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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.9 no.1 Braga jun. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3828 

Varia

Interconexões Conceituais e Metodológicas em Pesquisas Sobre Comunicação, Jornalismo e Relações de Gênero

Carlos Alberto de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0001-8433-8794

1Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil


Resumo

Neste artigo, reflito sobre as contribuições de noções teóricas e aportes metodológicos de estudos sobre relações de gênero para a superação de limites heurísticos em pesquisas sobre comunicação e jornalismo. A partir de investigações sobre coberturas noticiosas relativas a violências físicas e simbólicas contra mulheres, a acontecimentos que envolvem a homofobia e suas consequências e aos primeiros casos de síndrome da imunodeficiência adquirida tornados públicos, indico o quanto as dinâmicas sociais das relações de gênero são potencialmente disruptoras de certezas. No entanto, o aprofundamento das pesquisas mostrou limites e repetição de fórmulas também em pesquisas sobre as relações de gênero, levando-me a um desafio: como lidar com repetições que tendem a desconsiderar particularidades dos fenômenos sob investigação nas áreas da comunicação, do jornalismo e das relações de gênero, inclusive em suas possíveis interconexões?

Palavras-chave: comunicação; jornalismo; relações de gênero

Abstract

In this article, I reflect on the impacts of theoretical and methodological contributions developed in gender relations studies to overcome heuristic limits in communication and journalism research. After analyzing studies on how the media covers physical and symbolic violence against women, events related to homophobia and its consequences, and the first cases of acquired immunodeficiency syndrome made public, I indicate how the social dynamics in gender relations can be potential disruptors of certainties. However, my analysis of these studies revealed that we could find limits and formulaic repetition in gender relations research as well, leading me to a challenge: how can we deal with repetitions that tend to disregard particularities of phenomena in communication, journalism, and gender relations research, also considering the potential interconnections in these fields?

Keywords: communication; journalism; gender relations

1. Introdução

A análise de processos comunicacionais envolvendo relações de gênero me permitiram, ao longo dos últimos anos, identificar limites teóricos e metodológicos em uma série de aportes conceituais que buscam entender a comunicação e o jornalismo. Por exemplo, investiguei coberturas jornalísticas de feminicídios e outras formas de violên cias físicas e simbólicas contra mulheres, assim como acontecimentos que têm na homofobia e suas consequências individuais e sociais a motivação informativa, incluindo as conexões entre síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) e vírus da imunode ficiência humana (HIV) com as homossexualidades. Atribuo essa potência das relações de gênero como motivadora de rupturas nos modos de pensar a comunicação e o jornalismo a pelo menos duas razões, com seus possíveis desdobramentos. Primeiro, os acontecimentos no entorno das relações de gênero podem implodir as lógicas viciadas de olhar para aquelas áreas de investigação. Por outro lado, os próprios conceitos acionados em estudos de gênero permitem rever chavões e clichês conceituais, assim como fórmulas metodológicas aplicadas sem considerar as especificidades dos fenômenos comunicacionais e jornalísticos sob escrutínio.

No entanto, à medida que aprofundo o mergulho em pesquisas empíricas e revisões bibliográficas nas esferas das relações de gênero, o incômodo com a aplicação de fórmulas conceituais e metodológicas identificada em determinados estudos sobre comunica ção e jornalismo começa a surgir também com a percepção de repetições em pesquisas nessa área de conhecimento. É a partir de um duplo incômodo, portanto, que este artigo tem por objetivo refletir sobre o que considero a necessidade de uma crítica tanto acerca de teorizações nos campos da comunicação e do jornalismo, quanto das relações de gênero. O cuidado a ter é não reproduzir teorias e metodologias como se fossem de aplicação universal, independentes das demandas de cada pesquisa em suas especificidades.

Relações de gênero implicam muito mais do que questionar biologismo e binarismo como fundados em diferenças físicas, em genitálias e hormônios definidores de homens e mulheres. Mas também não se esgotam no reconhecimento das dimensões políticas, culturais, comportamentais, de interseccionalidade e outras que constituem o avanço da noção de gênero comparativamente à de sexo e de sexualidade. Relações de gênero implicam ainda olhar para pessoas que reivindicam não ter na sexualidade e/ ou nas práticas sexuais pontos nevrálgicos das suas existências. Por isso, ao lidarmos com as perspectivas das relações de gênero, estamos diante do necessário cuidado de descentrar e dessencializar toda e qualquer afirmação identitária como inata ou obrigatória. E não estou entendendo o inato como correspondendo exclusivamente a alguma conformação física de nascença, mas também àquilo que deveria constituir obrigatoriedade de características, por exemplo, de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas assexuadas, entre outros. Trata-se, no universo das relações de gênero, de perceber intrincadas modalidades de contatos e distanciamentos, convergências e divergências que necessariamente começam por questionar qualquer forma de pensar que tenha como ponto de partida a oposição entre homem e mulher, entre o masculino e o feminino, entre masculinidade e feminilidade.

Mas, e isso certamente constitui contradição provavelmente insuperável, não é possível e nem mesmo desejável a simples recusa às identidades, no mínimo por razões políticas. A recusa deve ser aos essencialismos identitários, que ao invés de permitirem mobilidades, impõem caracterizações muitas vezes centradas nos binarismos que supostamente estariam sendo superados. Nessa perspectiva, até mesmo noções como trânsito identitário ou identidades em trânsito podem ser atalhos que impedem perceber os modos como grupos ou pessoas enfrentam suas vivências de gênero, afetivas e sexuais. Consequentemente, na esteira de Zygmunt Bauman (2004/2005), reivindicar uma identidade é lidar com a ambiguidade entre o que me permite afirmar quem sou e, simultaneamente, oferecer minha alteridade a quem não a reconhece, podendo, inclusive, justificar minha eliminação física ou me minar moral e eticamente a partir das minhas características identitárias.

Pensar as e a partir das relações de gênero implica sensibilidade para reconhecer que não é possível lidar com gênero sem estar diante das mais variadas, cruéis e sofisticadas modalidades de violências físicas e simbólicas, assim como de pesados jogos de poder. Mas é também estar frente a uma multiplicidade de ações, estratégias e táticas de enfrentamento levadas a cabo por pessoas que não admitem as lógicas de controle, as hierarquizações que desumanizam ou quaisquer formas de preconceitos, rebaixamen tos, injúrias e demais lógicas de inferiorização. Por seu turno, pensar a comunicação e o jornalismo, com seus processos e produtos, requer o cuidado de evitar maniqueísmos à maneira de processos unilaterais de influência, assim como levar em consideração intrincados jogos de poder, disputas de sentido, ambiguidades e contradições. Em co mum, as relações de gênero, a comunicação e o jornalismo são realidades humanas envoltas em polêmicas, fraturadas antes de qualquer possibilidade consensual. Dois universos de pesquisa que, pensados de forma independente, são de difícil manejo, e pensados em suas possíveis interconexões, potencializam as dificuldades de escrutínio.

O objetivo deste artigo é refletir sobre o que me parece um momento de sedimentação teórica e metodológica em abordagens sobre as relações de gênero, sobre o jornalismo e a comunicação e, apesar da natureza relativamente recente do empreendimento, das possíveis interconexões entre essas áreas de investigação. Salvo engano, a repetição de esquemas explicativos e de estratégias metodológicas têm se sobreposto ao questionamento do efetivo potencial heurístico dos conceitos acionados e da necessária renovação metodológica, que leve em consideração contextos e demandas específicos. Trata-se, tomando de empréstimo a Silvia Rivera Cusicanqui (2018), de evitar recorrer a “palavras mágicas”, entendidas por ela como conceitos que, por sua simples referência, já conteriam todos os significados positivos que não mereceriam críticas e superações, a exemplo da noção de movimentos sociais por ela referida. Sedutoras, “com efeito de fascinação e hipnose coletiva” (Cusicanqui, 2018, p. 95), as palavras mágicas obstruem a busca de seus sentidos múltiplos, às vezes dissimulados. São, ainda, formas de colonização intelectual, seja quando adotamos conceitos importados sem considerar contextos particulares, seja na condição de explicações que se impõem da academia para determinadas populações deliberadamente excluídas do acesso às instâncias formais de produção de conhecimento, como se verifica relativamente a travestis e transexuais, ainda em pequeno número nas universidades, para ficarmos em apenas duas das populações no universo LGBTIQAP+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos, queers, assexuais, pansexuais e demais pessoas não heteronormativas). Essas pessoas são alvo das hierarquizações que inferiorizam, dos preconceitos e das violências que se alimentam das lógicas das relações de gênero.

Superar as limitações impostas pelas palavras mágicas constitui desafio de fôlego, que não tenho condições de empreender neste artigo. Mais modestamente, indicarei pesquisas nas quais foi possível identificar fraturas e incompletudes - às vezes grave deficiência heurística - nos conceitos com os quais tive que lidar. Complementarmente, indicarei alguns conceitos de largo uso cuja repetição acrítica faz com que, não raro, as conclusões sobre a realidade investigada já estejam dadas antes do esforço analítico, forçando, metodologicamente, a realidade a se submeter aos conceitos, quando eles deveriam ser revistos à luz das especificidades do que se encontra sob escrutínio, simultaneamente à renovação do empreendimento metodológico. Em outros termos, é urgente questionarmos conceitos e metodologias cujos pontos de partida são também os pontos de chegada.

2. Identificando as Palavras Mágicas na Comunicação e no Jornalismo

A primeira pesquisa que realizei no entrecruzamento entre comunicação, jornalismo e relações de gênero teve como corpus as primeiras notícias sobre SIDA publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo, no início da publicização da epidemia equivocadamente identificada como de incidência sobre “grupos de risco” (Carvalho, 2009). Embora a dissertação tenha recebido outro título, a ideia original era nomeá-la como “doença de viado, puta e drogado? A Aids das noções de grupo de risco às de comportamento de risco”. Ainda que modificado o título, a perspectiva de lidar com acontecimentos socialmente controversos e disruptores foi mantida e efetivamente os preconceitos contra viados, putas e usuários de drogas endovenosas foram identificados como componentes dos acontecimentos noticiados. A ênfase, nos primeiros anos da década de 1980, recaiu sobre os homossexuais masculinos (viados) como alvos preferenciais do HIV, levando a manchetes escandalosas como “peste gay”, “câncer rosa” e derivações, registrando que não as identifiquei na Folha de S. Paulo.

Naquela pesquisa, não discuti especificamente conceitos como homofobia ou relações de gênero e somente retrospectivamente é possível identificar seus traços, por meio da indicação do recrudescimento dos preconceitos contra homossexuais masculinos que veio na esteira da SIDA. Recrudescimento que se manifestou em discursos religiosos que atribuíam a esta síndrome o castigo imposto aos homossexuais pecado res, em discursos médicos que sugeriam a promiscuidade sexual de gays como responsável pelo espraiamento de infecções pelo HIV, dentre uma série de outras manifestações preconceituosas, em que os limites entre motivações religiosas, médicas, científicas, culturais e comportamentais era de difícil identificação (Carvalho, 2009).

Do ponto de vista das teorias da comunicação, a análise das narrativas jornalísticas, somada a leituras sobre as relações entre homossexualidade e SIDA, levou-me a perceber profundas fraturas e inconsistências na proposição da perspectiva relacional, no final dos anos 1990 apresentada como aporte teórico que superava os limites da comunicação como processos manipulatórios (França, 1999). Se havia o acerto teórico de indicar processos mais complexos que apontavam para dinâmicas de efetivação de comunicações interpessoais e mediadas por dispositivos sociotécnicos em condições que se davam contextualmente, restavam dois problemas.

O primeiro, relegar os jogos de poder e as assimetrias inevitáveis em quaisquer relações de comunicação para segundo plano, tomando como princípio válido o pressuposto de que estavam em cena partilhas simbólicas que levariam a mútuas compreensões. Ademais, não restavam explicadas as possibilidades de desacordo, de impossibilidade de consenso em trocas comunicacionais mediadas ou não por dispositivos sociotécnicos. A dimensão relacional, como se explicita a partir das relações de gênero, não está isenta de clivagens, fraturas e permanentes negociações, marcadas por pesados jogos de poder, que auxiliam a perceber dinâmicas semelhantes nos processos e produtos comunicacionais. Assim, a perspectiva relacional deve ser pensada em função de desníveis socioculturais e econômicos que fazem com que as pessoas envolvidas nas dinâmicas comunicacionais não sejam portadoras das mesmas condições no estabelecimento de diálogos e trocas simbólicas. E o mais importante, nem sempre processos comunicacionais resultam na produção de consensos ou na possibilidade de efetivar compreensão mútua, podendo conduzir a dissensos irreconciliáveis e à impossibilidade de diálogos que superem diferenças quanto ao que está em jogo nas trocas comunicativas.

O segundo problema relativo ao paradigma relacional da comunicação identificado foi o risco de transformá-lo em fórmula que se aplica a tudo, com um conjunto fixo de pressupostos conceituais e metodológicos. De fato, à medida que o pressuposto relacional adotava os princípios brevemente resumidos acima, ele estava pouco atento à própria contextualidade que constitui uma das suas bases essenciais de explicação dos produtos e processos comunicacionais. O mergulho nas questões em torno da SIDA e do HIV, incluindo aquilo que era dado a ver ou ocultado pelas narrativas jornalísticas que analisei, não deixava dúvidas quanto ao fracasso resultante da aplicação de modelos teóricos e metodológicos médicos e científicos utilizados em outros enfrentamentos de doenças. A epidemiologia se viu, como nunca antes, diante da urgência de encontrar caminhos que levassem em conta de forma mais consistente as muitas variáveis sociais, culturais e econômicas que impactam as dinâmicas de infecção, para ficarmos em um só exemplo dos desafios que implodiram as certezas oriundas da aplicação de fórmulas de investigação. As condições únicas da epidemia no Brasil (Daniel, 2018; Daniel & Parker, 2018) trouxeram à tona os limites das teorias e metodologias médico-científicas, particularmente no campo da epidemiologia, em função de arranjos sexuais específicos entre homens brasileiros e da vulnerabilidade de travestis, por exemplo.

Ciência inexata por natureza, a comunicação se presta menos ainda a fórmulas metodológicas quando do cotejamento com a epidemiologia ou as ciências médicas. Mas não é somente a natureza de uma ciência que se faz fundamentalmente a partir de múltiplas possibilidades de leitura que põe em xeque a validade da aplicação de suposta universalidade heurística. A perspectiva relacional segundo a qual é necessário levar em conta a contextualidade dos processos comunicacionais amiúde descuida as materialidades implicadas nessas dinâmicas. Como consequência, teórica e metodologicamente há tendência para negligenciar as distintas modalidades técnicas, estéticas, culturais, comportamentais, políticas e ideológicas de narrativas jornalísticas, programas de auditório, telenovelas, radiojornais, filmes, documentários, vídeos no YouTube, trocas de mensagens por WhatsApp, interações em plataformas digitais sociais e a vasta gama de produtos e processos comunicacionais, que ainda desafiam pelas questões éticas que suscitam. Por extensão, também as distintas configurações dos dispositivos sociotécnicos por meio dos quais são produzidos e postos a circular aqueles produtos e processos que costumam ser relegados para segundo plano, quando são decisivos em suas características materiais, culturais, políticas, ideológicas, estéticas e éticas.

Quando da revisão teórica sobre o jornalismo, a implosão das fórmulas não foi menor. Uma das perguntas que fiz foi sobre o que motivava a pauta recorrente da SIDA na cobertura jornalística, com números crescentes à medida que a síndrome se espalhava pela sociedade brasileira. Ao recorrer à noção de acontecimento, encontrei em Adriano Duarte Rodrigues (1993) a proposição de que um dos principais critérios de noticiabilidade é a raridade de ocorrência de um determinado acontecimento. Segundo essa perspectiva matemática, quanto mais raro, mais noticiável seria o acontecimento, com o oposto levando à não noticiabilidade, exatamente o contrário do que identifiquei na cobertura da SIDA em seus primeiros anos de publicização pela Folha de S. Paulo. Essa inversão aponta para a falácia das fórmulas teóricas e metodológicas tão em voga em estudos sobre o jornalismo, incapazes de leituras críticas mais atentas sobre os fenômenos investigados. O que se evidenciou foi que realidades sociais complexas não se sujeitam a princípios matemáticos e suas lógicas estatísticas, posto que, no caso das primeiras notícias sobre a SIDA, estava em cena uma diversidade de atores e atrizes disputando sentidos médicos, culturais, comportamentais, morais, éticos e tantos outros que emergiram à época, motivadores de pautas nas quais as consequências sociais da síndrome se apresentavam como um leque inesgotável para possíveis narrativas jornalísticas.

Outra expectativa frustrada foi a aparição da SIDA sobretudo a partir do que se convenciona denominar jornalismo científico, pressupondo que a medicina e a ciência teriam mais a dizer sobre a síndrome, particularmente considerando que nos anos 1980 ainda se buscava compreender melhor os mecanismos de infecção, as características do vírus HIV e outras variáveis de natureza mais técnica. O que a pesquisa mostrou, no entanto, foi o predomínio de abordagens noticiosas focadas principalmente em questões comportamentais e políticas, revelando lutas por direitos a tratamento médico digno e universal, pelo fim de preconceitos pelas então pejorativamente nomeadas pessoas “aidéticas” e estratégias que evitassem a hegemonia da medicina nas abordagens sobre a SIDA, o que poderia trazer como consequência controles sobre os corpos soropositivos que não levassem em conta a autonomia das pessoas diagnosticadas. Também nesse caso as relações de gênero implicadas na cobertura jornalística da SIDA e do HIV provocaram mudanças na estratégia informativa. Foram postas em xeque pesquisas sobre o jornalismo que adotam princípios teóricos e metodológicos supostamente consagrados pela repetição e por isso em tese garantidores de resultados satisfatórios. É o caso da recorrência aos “gêneros jornalísticos”, dos quais o jornalismo científico é parte, junto a uma miríade de taxonomias, cada uma com seus princípios teóricos e metodológicos com pretensões de validade universal.

Cerca de 1 década após a pesquisa sobre as primeiras coberturas da SIDA pela Folha de S. Paulo, investiguei no doutorado a cobertura jornalística da homofobia e suas consequências, com um corpus de narrativas publicadas pela Folha de S. Paulo e pelo jornal O Globo (Carvalho, 2012). Dentre outras dimensões conceituais, interessava-me compreender como o jornalismo praticado por aqueles jornais lidava com um tema que a partir dos anos 2000 passou a constituir polêmicas nos espaços públicos tradicionais e midiáticos, com as denúncias de violências físicas e simbólicas motivadas por ódio homofóbico - com dezenas de assassinatos cruéis de pessoas LGBTIQAP+ todos os anos -, as reivindicações por garantias legais de matrimônios entre pessoas de mesmo gênero, as lutas pela criminalização da homofobia e uma série de outras variáveis. Recusando a perspectiva do jornalismo como “espelho do real” (Wolf, 1985/1994), a leitura das narrativas e dos agentes e personagens nelas presentes me permitiu perceber o jornalismo como um ator social em intensa disputa de sentidos e jogos de poder com outros atores e atrizes sociais envolvidos e envolvidas nas discussões sobre a homofobia e suas consequências.

Ao invés de simplesmente refletir a sociedade, como se dela fossem um espelho, os jornais Folha de S. Paulo e O Globo mostraram-se parte interessada e importante nos debates sobre a homofobia, com todas as contradições típicas da ação jornalística. Assim, ao mesmo tempo que os dois jornais reivindicavam editorialmente a criminalização da homofobia, apresentavam dificuldades em superar visões estereotipadas sobre a população LGBTIQAP+ em algumas narrativas sobre acontecimentos factuais, cujas marcas traziam as impressões digitais do ranço LGBTIQAP+fóbico. Consequentemente, travestis foram retratadas predominantemente pela lógica da violência e da prostituição, homossexuais masculinos a partir de estilos de vida hedonistas e lésbicas como mulheres predispostas ao consumo de álcool.

Por outro lado, nas narrativas analisadas, não raro os jornais se posicionavam contra atores e atrizes sociais historicamente identificados e identificadas com posições LGBTIQAP+fóbicas, especialmente denominações religiosas e parlamentares conservadores (Carvalho, 2012). Em certa medida, a Folha de S. Paulo e O Globo, a despeito das contradições identificadas na pesquisa, em diversos momentos assumiam posições na contramão do conservadorismo brasileiro em relação à homofobia e aos direitos das pessoas LGBTIQAP+. Tal como na pesquisa sobre as primeiras notícias relativas à SIDA e ao HIV, a investigação sobre a cobertura jornalística da homofobia, realizada nos marcos das relações de gênero, foi profícua para a identificação de limites heurísticos de teorias e metodologias que tentam dar conta do jornalismo a partir de pacotes prontos para aplicação, independentemente de matizes e nuances da realidade sob escrutínio.

Realizada como parte do estágio pós-doutoral na Universidade do Minho, sob orientação de Moisés Lemos Martins, a pesquisa sobre violências físicas e simbólicas contra mulheres em relações de gênero, em perspectiva comparada entre o site brasileiro Uol e site do jornal português Público, indicou os limites de duas abordagens conceituais sobre o jornalismo que costumam ser repetidas irrefletidamente. A primeira refere-se aos critérios de noticiabilidade (Wolf, 1985/1994) e a segunda à premissa do jornalismo como forma de conhecimento (Genro Filho, 1987; Meditsch, 1998). Embora tenham sido identificadas diferenças de abordagens nas narrativas jornalísticas publicadas pelos dois sites que tiveram por tema violências contra mulheres, advindas das especificidades culturais do Brasil e de Portugal, foi possível estabelecer críticas comuns às duas abordagens conceituais acima referidas.

Segundo a perspectiva dos critérios de noticiabilidade, as mídias jornalísticas adotam critérios de seleção do que é noticiável a partir de parâmetros que tendem a se universalizar, como importância das pessoas envolvidas, proximidade física do acontecimento relativamente ao público da mídia que noticia, grau de violência de determinados acontecimentos e uma lista que pode se estender ao infinito, como a leitura de textos que tratam dos critérios evidenciam. Ainda que as pesquisas indiquem a variabilidade possível dos critérios de noticiabilidade a depender da mídia investigada, permanecem os princípios imutáveis de fundo conceitual e metodológico: basta aplicá-los que, a despeito dos acontecimentos, chegaremos a uma lista de critérios de noticiabilidade que encerrariam o problema da pesquisa, pouco importando outras dinâmicas implicadas nas estratégias de valorizar ou não um acontecimento como noticiável.

Ao atentar nas narrativas jornalísticas que tiveram as violências físicas e simbólicas contra mulheres em contexto de relações de gênero, adotar a perspectiva dos critérios de noticiabilidade seria negligenciar o próprio problema implicado nessas modalidades de violências. Em outros termos, limitar ao “grau de violência” que transformou uma determinada agressão contra mulher em notícia é não verificar os complexos jogos de poder e disputas de sentido que estão por trás das motivações de gênero. O que fica de fora é precisamente o que mais importa, ou seja, a capacidade das mídias jornalísticas para especificar os crimes físicos e simbólicos não como mais um dado estatístico das mortes e violências genericamente contabilizadas, mas como parte de dinâmicas que ultrapassam as demais violências cotidianas. Assim, o que as violências físicas e simbólicas contra mulheres em relações de gênero deixam a ver é a impossibilidade heurística da perspectiva dos critérios de noticiabilidade ir além da superfície das supostas motivações de uma determinada mídia para eleger este ou aquele acontecimento como digno de se transformar em notícia. Além disso, as relações de gênero, por sua natureza de amplo espraiamento social, permitem perceber outra fragilidade heurística dos critérios de noticiabilidade: a premissa de que eles resultariam fundamentalmente das dinâmicas internas ao jornalismo, com seus variados operadores, que tomariam decisões prioritariamente em função de arranjos internos, como a cultura profissional, os constrangimentos temporais que afetam a produção noticiosa, dentre um leque de outras variáveis, todas não sujeitas às disputas de sentido e jogos de poder com atores e atrizes sociais externos aos domínios jornalísticos.

Mais sofisticada teoricamente do que o conjunto infinito de possíveis critérios de noticiabilidade, a premissa do jornalismo como forma de conhecimento também não passou incólume quando investiguei os crimes contra mulheres motivados por relações de gênero. Tal como encontramos em autores como Adelmo Genro Filho (1987) e Eduardo Meditsch (1998), o jornalismo constituiria uma das formas modernas de conhecermos a realidade, não somente por ser por meio das diversas mídias informativas que tomamos conhecimento de acontecimentos, tanto próximos quanto distantes de nós, quanto porque a exposição sistemática a notícias sobre economia e política, por exemplo, nos permitiriam progressivamente chegar à compreensão dessas atividades sociais, inclusive identificando suas contradições e clivagens. Em síntese, embora constitua conhecimento distinto do sociológico ou filosófico, o jornalismo, particularmente na proposta de Genro Filho (1987), seria dotado das potencialidades de desvendamento da realidade social a partir das singularidades dos acontecimentos noticiados. A leitura das narrativas do corpus dos sites Uol e Público revelou realidade bem distinta, ficando a singularidade, com raras exceções, restrita a algumas informações sobre a dinâmica dos crimes sem mencionar as motivações de gênero, descrição quase sempre parcial de cenários e estabelecimento de relações causais predominantemente segundo a lógica da dicção policial, aliás, recorrentemente os únicos agentes presentes nas narrativas, muitas vezes falando “em nome” tanto de vítimas quanto de agressores.

Ao invés da possibilidade de o jornalismo constituir uma forma de conhecimento, me parece mais prudente, tomando como referência narrativas jornalísticas que implicam relações de gênero, pensá-lo a partir da lógica de inteligibilidades precárias. Longe de permitir o conhecimento da realidade social genericamente considerada ou de fenômenos sociais específicos, o jornalismo nos oferece quadros explicativos parciais, que mesmo levando em conta a regularidade de exposição às mais diversas mídias informativas, dificilmente permitiriam fazer do conjunto de dados singulares ofertados pelas narrativas jornalísticas eventos suficientes para ascender a compreensões mais sofisticadas nos níveis dos conhecimentos particulares e universais, outra vez recorrendo às categorias acionadas por Genro Filho (1987).

Concretamente, a maioria das narrativas que encontrei na investigação do pósdoutorado lidaram com os crimes contra mulheres sem ao menos sugerir relações de gênero, ou quando elas estavam insinuadas, vinham sob a égide de “crimes passionais” ou de violências domésticas. Tratados como crimes comuns, assassinatos, violências físicas e simbólicas contra mulheres motivaram em algumas narrativas sugestões e insinuações de que as vítimas eram culpadas pelas agressões que sofreram. Identifiquei uma lógica de entrelinhas em que as relações de gênero atuam sem estarem explicadas em suas dinâmicas, ou seja, mulheres morreram ou foram vítimas de outros crimes, em síntese, porque não teriam se ajustado a supostos modos corretos de ser e se comportar como mulher, o que, ademais, aponta para formas particulares de o jornalismo também exercer violência de gênero.

Noções como feminicídio (Pasinato, 2011) estão ausentes nas narrativas encontradas nos dois sites quando noticiam assassinatos de mulheres, com a necessária ressalva de que o conceito é de pouco uso em Portugal. A única exceção ficou por conta de notícia publicada no Uol informando sobre o sancionamento, pela Presidenta Dilma Rousseff, da Lei do Feminicídio, mas sem entrar em detalhes conceituais do termo, o que inclusive permitiria melhor compreensão sobre a necessidade do referido instrumento legal. Poucas exceções também encontrei em referências diretas a relações de gênero, destacando que somente em narrativas que tratavam de articulações para o seu combate, e não no contexto de crimes específicos noticiados. Acredito, assim, que a perspectiva de inteligibilidades precárias permite melhor compreender os limites do jornalismo na abordagem dos acontecimentos narrados, comparativamente à pretensão de que ele constitua uma forma de conhecimento.

3. As Palavras Mágicas em Estudos Sobre Relações de Gênero

Na esteira da proposição de Silvia Rivera Cusicanqui (2018) sobre as palavras mágicas como metáfora para a crítica aos limites heurísticos de uma série de conceitos que acionamos de forma naturalizada, amplio meu incômodo com algumas noções recorrentes em estudos sobre as relações de gênero. Como destaquei, se inicialmente teorias e metodologias no entorno das relações de gênero foram profícuas para avanços na compreensão de limites em algumas abordagens acerca da comunicação e do jornalismo, o aprofundamento das pesquisas revelou limites heurísticos também na área a princípio fundamental para minhas análises críticas e propositivas de novas aproximações explicativas. Progressivamente tenho identificado conceitos que, embora não errados, perdem potência quando utilizados à maneira de clichês e caixinhas de ferramenta, numa espécie de repetição exaustiva que deixa em segundo plano as particularidades das relações de gênero sob escrutínio.

Na pesquisa sobre as primeiras notícias relativas à SIDA e ao HIV publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo (Carvalho, 2009), se, como indiquei, não trabalhei diretamente com a noção de homofobia, a perspectiva do recrudescimento de preconceitos históricos contra homossexuais, prostitutas e pessoas que usam drogas endovenosas não era suficiente para dar conta da complexidade que pode ficar em segundo plano quando dimensões culturais, racistas, comportamentais, econômicas e outras também estão em jogo. A referência genérica a homossexuais e SIDA não era suficiente, por exemplo, para dar conta das particularidades das trocas sexuais entre homens no Brasil (Daniel, 2018; Daniel & Parker, 2018; Green, 2000; Parker, 2002; Perlongher, 1987). Se a promiscuidade de gays era utilizada como uma das estratégias moralistas para “explicar” porque eram pessoas “preferenciais” do vírus, assim como em certa medida também as prostitutas, sequer se cogitava a mesma promiscuidade como característica dos homens presumidos heterossexuais que recorriam aos serviços sexuais das prostitutas. Por seu turno, embora incluídos no equivocado rol dos “grupos de risco”, hemofílicos não estavam entre as pessoas soropositivas merecedoras de sanções éticas ou morais, indicando, para além da seletividade dos preconceitos, separações entre vítimas inocentes pela necessidade de transfusões de hemoderivados contaminados pelo vírus e algozes promíscuos a espalharem o mal. Nesse caso, a sexualidade poderia permanecer entre parênteses, no máximo gerando a desconfiança de homossexualidade não assumida por algum hemofílico.

Ao lidar com o conceito de homofobia, os limites de algumas proposições teóricas no entorno das relações de gênero se mostraram mais profundos. Ainda que tomemos como referência a proposição de que a homofobia é o rechaço individual ou social a pessoas homossexuais ou assim presumidas, que encontramos em Daniel Borrillo (2001), ou na perspectiva de Didier Eribon (1999/2008) das lógicas da injúria contra homossexuais, restam ainda lacunas de difícil superação. Se tomamos o radical “fobia”, a sugestão daí potencialmente derivada de “doença”, ainda que metaforicamente assumida como construto social, pode levar à falácia de uma “cura”, mas principalmente a apagar o complexo emaranhado de discursos religiosos, pedagógicos, jurídicos, filosóficos, médicos, dentre outros, que historicamente têm sustentado as práticas de ódio identificadas com a homofobia, mesmo que contraditoriamente também possam atuar em sua denúncia e superação (Carvalho, 2012; Junqueira, 2007). Mais grave ainda, as múltiplas violências físicas e simbólicas - não raro concretizadas em assassinatos com requintes de crueldade - tanto podem ser obnubiladas pela perspectiva da homofobia como doença, quanto podem vir a ser justificadas, inclusive resultando em absolvição judicial, pela alegação de que sendo doença, atenua-se a responsabilidade de quem cometeu o crime de ódio homofóbico (Carrara & Vianna, 2004).

A polissemia do termo “homofobia” constitui um desafio teórico quando observamos a diversidade de modos como os preconceitos, rechaços e hierarquizações que inferiorizam se dão contra pessoas do amplo espectro amparado na sigla LGBTIQAP+. Para além da crítica mais comum de que homofobia é um conceito inicialmente aplicado a homossexuais masculinos, derivando daí a proposição de conceitos que abrangessem as especificidades dos preconceitos, como lesbofobia, bifobia, transfobia e, mais recentemente, LGBTIQAP+fobia (Green et al., 2018), temos as particularidades que agravam não somente a intensidade do ódio por rechaço à sexualidade a depender de qual é a população LGBTIQAP+ atingida, como questões de interseccionalidade devem ser consideradas na avaliação de distintos níveis de violências genericamente atribuídas a motivações homofóbicas. Assim, vêm à tona diferenças não negligenciáveis que tornam travestis e transexuais mais vulneráveis a violências comparativamente a gays e lésbicas, por exemplo, mas também como o racismo é componente que se soma aos rechaços motivados pela sexualidade, operando ainda níveis de vulnerabilidade associados a menor poder econômico.

Desmistificar a polissemia do termo homofobia conduz ao reconhecimento das hierarquizações que inferiorizam já a partir do interior das pessoas LGBTIQAP+, com preconceitos que misturam racismo, desprezo por quem tem menor nível econômico e o que em tese não deveria ocorrer, também em função da sexualidade. Consequentemente, identificamos gays que rebaixam outros gays porque são negros, pobres ou moram em regiões consideradas inferiores; gays que recusam pares considerados afeminados; lésbicas denunciando os preconceitos de gays contra elas, e também o oposto; travestis e transexuais alvos dos rechaços de gays, lésbicas e bissexuais; transexuais que se recusam a aceitar qualquer laço de solidariedade com as homossexualidades porque querem se identificar com um determinado gênero a partir de critérios binários; e uma série de outras formas de violências das pessoas LGBTIQAP+ entre si. Menos do que polissêmico, o conceito de homofobia resta ambíguo, escorregadio e mesmo contraditório.

As diferentes gradações dos preconceitos e a impossibilidade de um único termo dar conta da diversidade de violências físicas e simbólicas a ele associada, no entanto, não deve levar a simplesmente descartar o conceito de homofobia, a começar por sua ampla circulação social. A identificação da homofobia como grave problema social inegavelmente está associada ao termo, inclusive nas reivindicações da sua criminalização, decisão que no Brasil tem sido historicamente postergada pelo poder legislativo, a quem cabe a iniciativa, afinal tomada pelo poder judiciário, que equiparou a homofobia ao crime de racismo. Ao que centralmente interessa neste artigo, destacar a enganosa polissemia do conceito de homofobia deve começar por reconhecê-la como uma palavra mágica, que nessa condição precisa ser objeto de questionamentos quanto à validade dos pressupostos teóricos e metodológicos que lhe seriam inerentes. Lidar com os rechaços contra as pessoas LGBTIQAP+ requer, portanto, colocar em cena a multiplicidade de variáveis que devem ser acionadas para melhor compreensão das dinâmicas de ódio e violências, tanto interna quanto externamente a essas populações. Desse modo, é possível evitar que a utilização genérica da noção de homofobia leve ao risco de negligenciar as interseccionalidades, a exemplo do racismo, das questões econômicas e tantas outras que cada investigação em particular deve estar atenta para detectar.

A pesquisa sobre violências físicas e simbólicas contra mulheres em contexto de relações de gênero também me levou a identificar algumas palavras mágicas, cuja sedução potencialmente oculta fragilidades heurísticas. Para começar, teórica e metodologicamente foi necessário estabelecer um conjunto de procedimentos que orientariam a composição do corpus da pesquisa, já sabendo de antemão que as referências diretas às relações de gênero seriam escassas. Efetivamente, a busca por palavras-chave como “gênero”, “relações de gênero”, “violências físicas”, “violências simbólicas”, acompanhadas ou não da palavra “mulher” ou seu plural, resultaria em quase nenhuma narrativa jornalística identificada nos dois sites que investiguei. A alternativa foi, a partir de um conjunto teórico prévio, adotar como método de coleta a leitura de todas as notícias constantes dos portais do Uol e do Público, sempre em um mesmo horário, complementando a me todologia com uma revisão criteriosa das teorias acionadas, com vista à verificação da pertinência face às especificidades do que estava sob investigação, incluindo as diferenças culturais, comportamentais, sociais, econômicas e jurídicas entre Brasil e Portugal.

Conceito recorrente em estudos feministas e sobre homossexualidades, heteronormatividade compulsória (Butler, 2007, 1990/2008; Louro, 2004, 2007, 2009) foi uma das palavras mágicas que me desafiaram na compreensão das dinâmicas específicas de violências físicas e simbólicas contra mulheres em contexto de relações de gênero no corpus de narrativas jornalísticas que analisei. Se entendemos o conceito, grosso modo, como a imposição de modelos de relacionamentos afetivos e sexuais entre pessoas de gêneros diferentes, preferencialmente com fins procriativos, em que não restem dúvidas sobre os papéis obrigatórios para homens e mulheres, estamos diante do problema de termos os resultados da investigação antes do percurso iniciado. Ou dito de outra forma, as premissas impõem as conclusões, independentemente do percurso da pesquisa, que tenderá a submeter a realidade investigada aos princípios teóricos e metodológicos de suposto poder heurístico universal.

Ainda que seja capaz de auxiliar - e muito - no escrutínio das motivações das violências físicas e simbólicas contra mulheres em contexto de relações de gênero, inclusive na identificação das mídias jornalísticas como parte dessas engrenagens, a perspectiva da heteronormatividade compulsória deve ser adotada como um ponto de partida possível, com todos os cuidados para não descuidar das especificidades em que tal dinâmica se estabeleceria, mas não como condição de chegada. Além dos limites indicados, corremos o risco da adoção de visões maniqueístas, pouco atentas a clivagens e contradições, em que as complexas condições de interseccionalidade, relativamente às quais temos insistido, podem ficar totalmente à margem, sem mencionar a reificação das divisões binárias.

A noção de patriarcado, embora também não errada, e importante sobretudo em algumas correntes dos estudos feministas, trouxe algumas dificuldades para a pesquisa sobre as violências físicas e simbólicas contra mulheres em contexto de relações de gênero. Uma primeira pergunta que se impôs: o conceito teria a mesma potência heurística para a compreensão de dinâmicas das violências investigadas em narrativas jornalísticas informando sobre ocorrências no Brasil e em Portugal, com suas distintas configurações culturais? Derivou dessa primeira dúvida uma outra, de natureza próxima: sendo a sociedade portuguesa identificada como a colonizadora e a brasileira como a colonizada, seria de se esperar algum tipo de solidariedade de gênero, por via das dinâmicas do patriarcado, que pudessem ter nos tornado distintos de Portugal no que se refere ao patriarcalismo? Ou ainda: o patriarcalismo à brasileira seria uma herança direta daquele de tipo português? As dificuldades impostas por essas perguntas, com outras dúvidas delas derivadas, levaram-me a considerar mais prudente não lidar com o conceito de patriarcado, evitando assim recorrer a uma teoria cujas fraturas se mostra ram evidentes.

A mais sedutora das palavras mágicas com que me deparei na pesquisa das narrativas jornalísticas dos sites brasileiro e português foi a noção de masculinidades hegemônicas, de largo uso em investigações sobre homofobia, violências contra mulheres e outros estudos que têm as relações de gênero como foco. Inspirada pelo conceito de hegemonia de Gramsci, Raewyn Connell (1995) propôs a noção como parte da compreensão das estratégias de dominação masculina, em estudos realizados na Austrália que evidenciaram os modos de construção de masculinidades nos contextos escolar e sindical, com atenção a modulações corporais e obtenção de privilégios. O sucesso da teoria levou não somente ao seu largo uso mundo fora, como a uma série de críticas, das possíveis impertinências na correlação com o conceito gramsciano de hegemonia, a riscos como reificação do conceito e inadequação a contextos distintos, além da condição de fórmula pronta em suas configurações teóricas e metodológicas.

Embora a autora, em parceria com James W. Messerschmidt (Connell & Messerschmidt, 2013), tenha escrito um bem argumentado artigo reconhecendo alguns limites e refutando outras críticas à perspectiva das masculinidades hegemônicas, não me parece que no essencial o fundamental tenha sido superado. Permanece a aplicação dos princípios teóricos e metodológicos que, a despeito de descrições de algumas especificidades de cada realidade investigada, mantêm os pressupostos teóricos e metodológicos que acabam por levar a conclusões que preservam um conjunto taxonômico cujas variações podem ser mais na nomeação do que propriamente na inovação conceitual. Consequentemente, ainda que as contraposições de mulheres às masculinidades hegemônicas sejam lembradas em alguns estudos ou que sejam incorporadas noções como masculinidades subalternas ou cúmplices, mantem-se a lista taxonômica, com possíveis analogias com as listas dos critérios de noticiabilidade criticadas no tópico anterior. A criatividade de quem pesquisa pode levar, nesse sentido, a taxonomia das masculinidades a uma lista infinita, sempre internamente coerente, mas com pouca possibilidade de ruptura de princípios reificados, por mais sinceros que tenham sidos os argumentos de Connell e Messerschmidt em afirmar o contrário.

A prudência novamente me levou a não utilizar o conceito de masculinidades hegemônicas na pesquisa sobre violências físicas e simbólicas contra mulheres em contexto de relações de gênero, evitando assim recorrer a uma noção mais motivado pela sua ampla utilização do que pela potência heurística. Nesse sentido, usar conceitos e metodologias fazendo ressalvas sobre seus problemas e reconhecendo seus limites equivaleria a um duplo equívoco. Primeiro, recorrer a esquemas que impõem os resultados antes do percurso analítico, como indiquei relativamente a outras teorizações e aportes metodológicos nos campos da comunicação, do jornalismo e das relações de gênero. Segundo, o reconhecimento dos limites se torna mera formalidade destituída de sentido prático, pois ao repetir o que em tese estava sob crítica, elimina-se a validade ou sinceridade da crítica, pela capitulação evidenciada pela repetição do uso.

4. Considerações Finais

Como explicitei na introdução, meu objetivo neste artigo não é oferecer as alternativas aos princípios teóricos e metodológicos que têm me causado incômodos segundo a perspectiva das palavras mágicas, conceito tomado de empréstimo a Silvia Rivera Cusicanqui (2018). A cada pesquisa meu esforço - nem sempre recompensado, é importante frisar - tem sido o de buscar perspectivas analíticas que fujam dos esquemas fáceis, com um olhar vigilante sobre as particularidades de cada investimento de pesquisa. Nesse sentido, se as contribuições teóricas e metodológicas dos estudos no entorno das relações de gênero têm se mostrado fundamentais para que eu proponha novas abordagens sobre modos de compreensão da comunicação e do jornalismo, o caminho inverso ainda está por ser trilhado.

Mas algumas considerações acumuladas nas últimas 2 décadas de esforço de pesquisa me parecem, no mínimo, sugerir algumas pistas a seguir. A falácia de pretender para os estudos sobre relações de gênero, comunicação e jornalismo aplicar princípios de falseabilidade, como algumas ciências adotam em seus processos de verificação de cientificidade, deve ser evitada. Por essa razão, tomei sempre o cuidado de indicar limites heurísticos e o caráter de fórmulas prontas de teorias e metodologias, e não de simplesmente desqualificá-las como se pouco científicas fossem. São limitadas e tais limitações devem ser objeto de superação em que se reconheça a impertinência de pretender a universalidade de pressupostos independentemente das condições específicas do que está sob escrutínio.

A tentação de transformar a repetição de modelos teóricos e conceituais em prova de validade científica, no mínimo de capacidade de constituir procedimentos analíticos universalmente aceitos, é outro risco a ser evitado. Estamos, no universo da comunicação, do jornalismo e das relações de gênero, nunca é demasiado lembrar, lidando com o inexato, com processos humanos em seus mais elevados graus de disputas de sentido e pesados jogos de poder. São mutáveis, portanto, inclusive a partir das próprias pesquisas com seus resultados que inspiram e se inspiram em ações políticas com vistas a superar as mazelas aqui indicadas como próprias das relações de gênero e das lutas que envolvem os campos da comunicação e do jornalismo como estratégicos para o combate àquelas mazelas referidas, sem maniqueísmos e reducionismos de quaisquer espécies. É fundamental destacar que as mídias, não raro, são historicamente promotoras de violências de gênero, por exemplo, na reafirmação de estereótipos das pessoas LGBTIQAP+ em produtos e processos informativos e de entretenimento, em coberturas jornalísticas sensacionalistas de violências físicas e simbólicas contra mulheres e contra pessoas LGBTIQAP+, dentre uma série de outras possibilidades.

Parece-me urgente a necessidade de uma reescrita mais coletivizada sobre as relações de gênero, que incorpore de maneira efetiva a multiplicidade de pessoas concernidas, com seus modos particulares de percepção sobre os desafios cotidianamente enfrentados. Fazer valer, para trans e travestis, por exemplo, a efetivação dos lugares de fala que venham acompanhados dos lugares de ocupação de poder, assim como feministas, lésbicas e gays, com todos os percalços, têm aos poucos conseguido. A pesquisa acadêmica não está isenta de repetir estereótipos e preconceitos e isso, ao menos em parte, é consequência dos problemas que tentei evidenciar neste artigo.

Agradecimentos

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Referências

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Recebido: 29 de Janeiro de 2022; Aceito: 18 de Março de 2022

Carlos Alberto de Carvalho é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, com atuação na graduação e na pósgraduação. Coordena o Insurgente: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Redes Textuais e Relações de Poder/Saber. É bolsista produtividade nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Email: carloscarvalho0209@gmail.com Morada: Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais - Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha - Belo Horizonte - MG - CEP 31270-901

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