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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.9 no.1 Braga jun. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3923 

Varia

Debates Midiáticos Sobre Reforma Agrária em Contextos de Ruptura Institucional: 1932-1936 na Espanha e 1964 no Brasil

Camila Garcia Kieling1  , conceituação, metodologia , investigação, redação , redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-1584-4244

José Manuel Peláez Ropero2  , conceituação, metodologia, investigação, redação , redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-3841-2871

1Escola de Comunicação, Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

2Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal


Resumo

O objetivo deste artigo é realizar uma análise comparada de discursos da imprensa em relação ao tema da reforma agrária em dois importantes eventos que marcaram o século XX: a tentativa fracassada de golpe de Estado que deu início à Guerra Civil Espanhola no ano 1936 e o golpe civil-militar de 1964 no Brasil. Nossos objetos de estudo são textos jornalísticos publicados pelo periódico monárquico ABC na Espanha e pelo brasileiro O Estado de S. Paulo sobre o tema da reforma agrária, proposta central dos governos reformistas em questão e, consequentemente, importante eixo discursivo midiático. Como resultado, procuramos demonstrar, em uma proposta metodológica de articulação dos campos da comunicação e da história, placas de encadeamento que ajudam a compreender os eventos em questão, como o ambiente político de pluralismo antagônico, a consciência histórica, o discurso coordenado da grande imprensa e, finalmente, a concepção da mudança como um acontecimento midiático, impulsionado por uma ideologia da transparência pública desse tipo de discurso.

Palavras-chave: imprensa; reforma agrária; Brasil; Espanha; século XX

Abstract

This article aims to develop a comparative analysis of press discourses concerning the agrarian reform issue in two critical events that marked the 20th century: the failed attempt of a coup d’état that triggered the Spanish Civil War in 1936 and the 1964 civil-military coup in Brazil. The study objects are journalistic texts published by the monarchic periodical ABC in Spain and the Brazilian newspaper O Estado de S. Paulo on the agrarian reform. That was a central proposal of the reformist governments in question and, consequently, a critical media discursive axis. Within a methodological proposal for articulating the fields of communications and history, we attempt to demonstrate the interconnected plates that help understand the two events: the political environment of antagonistic pluralism, historical consciousness, the coordinated discourse of the mainstream media, and finally, the conception of change as a media event boosted by an ideology of public transparency in this type of discourse.

Keywords: press; agrarian reform; Brazil; Spain; 20th century

1. Introdução1

O objetivo deste artigo é realizar uma análise comparada sobre a atuação de jornais representativos das grandes imprensas brasileira e espanhola em dois importantes eventos que marcaram o século XX: (a) a tentativa fracassada de golpe de Estado que deu início à Guerra Civil Espanhola (1936-1939), permitindo a instauração do mais longevo dos regimes fascistas na Europa, e (b) o golpe civil-militar de abril de 1964 no Brasil, ato inaugural de uma ditadura que durou 21 anos (1964-1985). Apesar da distância geográfica e das quase 3 décadas que separam essas ocorrências, elas guardam diferentes aspectos em comum: entre os mais importantes, a participação-chave dos meios de comunicação de massa no processo de deslegitimação das instituições democráticas de ambos os países e sua aposta decidida por soluções autoritárias (Barreiro, 2004; Chammas, 2012; Larangeira, 2014; Luis Martin, 1987; Silva, 2014).

Na Espanha, o frustrado golpe de Estado confrontou duas visões de mundo antagônicas que vinham se enfrentando desde a proclamação do novo regime em 1931: ao lado do governo democrático, ideologias progressistas de centro e de esquerda; com os militares insurrectos, posições conservadoras de cunho fascista. Tal como vinha acontecendo desde abril de 1931, o posterior episódio bélico revelou um conflito de natureza simbólica e ideológica, durante o qual foram desenvolvidas e experimentadas estratégias, técnicas e tecnologias de comunicação para fins de propaganda política (Pena-Rodríguez, 2014). O evento serve para compreender - tanto nos aspectos políticos e ideológicos quanto nos midiáticos - outros acontecimentos que marcaram o século XX, inclusive ditaduras que se espalharam pela América Latina entre os anos 1960 e 1970.

O golpe civil-militar que colocou o Brasil sob uma ditadura (1964-1985) pode ser chamado também de golpe midiático (Silva, 2014). Os meios de comunicação contribuíram ativamente para o clima de instabilidade política e para a legitimação de atos inconstitucionais que levaram ao afastamento do Presidente João Goulart. Nesse processo, há, em comum com a Segunda República Espanhola, a atuação da mídia no enquadramento dos acontecimentos como uma “encruzilhada histórica”. De acordo com a grande imprensa brasileira, o país via-se acossado diante da ameaça comunista, não havendo alternativa senão a intervenção de forças em defesa da legalidade e da democracia (Silva, 2014).

Estruturamos este artigo em duas etapas principais. A primeira consiste em uma discussão a respeito do método comparativo e sobre como as relações entre os campos da comunicação e da história podem contribuir para um avanço nas pesquisas que abordam a mídia em uma perspectiva histórica. A segunda pretende avançar, de forma empírica, na aplicação do método comparativo ao estudo dos discursos propostos, consistindo, em um primeiro momento, no exame de bibliografia sobre a atuação da imprensa na etapa da Segunda República Espanhola e no golpe de 1964 no Brasil. A seguir, empreendemos a análise comparada de textos publicados pelo jornal monárquico ABC (http://hemeroteca.abc.es/nav/Navigate.exe/hemeroteca) na Espanha e pelo jornal brasileiro O Estado de S. Paulo (OESP; https://acervo.estadao.com.br/) sobre o tema da reforma agrária, proposta central de ambos os governos reformistas em questão e importante eixo discursivo.

Por fim, concluímos com uma autorreflexão sobre a experiência comparativa e os resultados apresentados por este exercício, tendo como objetivo contribuir para o encorajamento de novas experiências dedicadas a “comparar o incomparável” (Detienne, 2002/2004).

2. O Método Comparativo e Sua Pertinência nos Estudos de Mídia em uma Perspectiva Histórica

Nossa abordagem teórico-metodológica é comparativa. Assim, ambos os eventos (Veyne, 1971/2008) são compreendidos como específicos, mas, ao mesmo tempo, como reflexos de contextualidades alargadas, acessíveis pela comparação: “certos elementos de abstração comparada permitem compreender a complexidade das particularidades. Evita principalmente que o historiador visualize a priori a especificidade como excepcionalidade, originalidade, unicidade” (Lima, 2007, p. 28).

Em Comparar o Incomparável, o historiador francês Marcel Detienne (2002/2004) apresenta uma defesa do método comparado no campo da história, apoiando-se na crítica à adesão irrestrita de parte dos estudos desta disciplina ao construto de seu lugar como “ciência” e “nacional”. Propõe, assim, uma aproximação com o campo da antropologia, que, por sua vez, não respeita limites pré-concebidos no exercício comparativo.

O autor identifica os historiadores da Renascença, colocados frente à exploração do que se chamou “novo mundo”, como aqueles que abriram caminho para uma abordagem “crítica das tradições e de tudo que nos é transmitido” (Detienne, 2002/2004,p. 21). Naquele momento, em busca da “perfeição histórica”, historiadores como La Popelinière (1541-1608) propunham a exploração presencial dos locais e das humanidades que ali habitavam, demonstrando uma disposição etnográfica, uma “vontade de experimentar sobre si da mesma forma que sobre os outros, distantes e próximos, mortos ou vivos” (Detienne, 2002/2004, p. 22). As primeiras experiências etnológicas aparecem no começo do século XVIII. Os estudos são enquadrados em uma perspectiva evolucionista; as culturas, classificadas das mais primitivas às mais evoluídas, e o mundo helê nico é interditado ao exercício comparativo.

O historiador francês Marc Bloch (1886-1944) contribuiu com uma nova visão sobre os estudos comparados a partir do método de trabalho próprio dos filólogos e antropólogos. Destacou a importância que devia ser concedida ao método comparado como via necessária para desenvolver a síntese historiográfica. Partidário de um método de trabalho que misturava a divisão do trabalho e o trabalho em equipe, Bloch tem influência decisiva na atual história comparada, especialmente depois da eclosão da sociologia histórica e dos estudos culturais.

Detienne (2002/2004) apresenta um ponto de vista crítico aos movimentos comparativos de historiadores do século XX na França, Inglaterra e Alemanha - inclusive em relação ao próprio Marc Bloch - por considerar estas abordagens restritas, ainda, ao caráter nacional e aos limites de “sociedades vizinhas, contemporâneas e de mesma natureza” (p. 35) - natureza europeia, frise-se. Ao comentar o caso inglês, provoca: “é claro que nenhuma sociedade extraeuropeia é recomendável para pensar o que significa fundar uma colônia, conquistar um território ou inaugurar modos de viver juntos em um espaço novo” (Detienne, 2002/2004, p. 35).

Para o autor, “construir comparáveis” é uma atividade eminentemente coletiva, baseada na noção de singular-plural, favorecendo o trabalho de cooperação entre historiadores e antropólogos e rompendo com limites pré-concebidos de tempo e espaço:

o essencial para trabalhar junto é se libertar do mais próximo, do natal e no nativo, e tomar consciência, bem cedo e bem rápido, de que temos de conhecer a totalidade das sociedades humanas, todas as civilidades possíveis e imagináveis, sim, a perder de vista, historiadores e antropólogos da mesma forma confundidos. Esqueçamos os conselhos, prodigalizados por aqueles que repetem há meio século, de que é preferível instituir a comparação entre sociedades vizinhas, limites e que progrediram na mesma direção, de mãos dadas, ou então entre grupos humanos que atingiram o mesmo nível de civilização e que, à primeira vista, oferecem de modo suficiente homologias para navegar com toda a segurança. (Detienne, 2002/2004, p. 46)

Para motivar o trabalho de comparação, Detienne (2002/2004) sugere a procura de categorias “suficientemente genéricas” (p. 49), evitando-se aquelas demasiadamente específicas de uma cultura. Por exemplo, para responder à pergunta “o que é um lugar?”, seu grupo de pesquisa recorreu às categorias “fundar, fundação, fundador”. Elas serviram para compreender o objeto de estudo como um mecanismo de pensamento, permitindo aos pesquisadores recompô-lo, desmontá-lo, articulá-lo, refiná-lo sob diferentes configurações, condicionadas pelo exercício comparativo.

As entradas escolhidas por aqueles que se dedicam à investigação para empreender o exercício comparativo são denominadas por Detienne (2002/2004) como “comparáveis”. Eles não devem servir à produção de temas, tipologias ou morfologias, mas, sim, trabalhar como “placas de encadeamento” que colocam em perspectiva as configurações de uma sociedade. “Quando uma sociedade ( ... ) adota um elemento de pensamento, ela faz uma escolha entre outras que teria podido fazer” (Detienne, 2002/2004,p. 58). Em resumo, o comparativismo de comparáveis defendido pelo autor preocupa-se em detectar e analisar mecanismos de pensamento (Detienne, 2002/2004, p. 65).

Há na comparação, ainda, um valor ético que conduz o pesquisador a empreender um olhar crítico sobre sua própria tradição e valores, procurando identificar e interrogar seus pressupostos. Significa admitir que todas as sociedades são históricas e que é possível, especialmente através da comparação, construir categorias para compreender aquilo que Detienne (2002/2004) chama de “consciência histórica” e que se manifesta, especialmente, através de três noções: memória, mudança e passado.

Nesse sentido, a memória não se consagra no domínio de um estoque de informações, mas na complexa construção do tempo humano: a “apreensão no tempo de uma distância de si em relação a si mesmo” (Detienne, 2002/2004, p. 74). Interessa ao pesquisador atentar para as formas humanas de projetar essa distância dentro de diferentes arquiteturas do tempo, lembrando que aquilo que concebemos como consciência história começa com a organização dessa “ausência presente” (Detienne, 2002/2004,p. 76) e que esse movimento não é espontâneo.

O papel da mudança na constituição da consciência histórica está atrelado à composição de espaços críticos nos quais são compartilhadas as experiências de mudança, ainda que sejam “numerosas as sociedades que sofreram transtornos e mudanças radicais, sem tê-las reconhecido, ou pensando, ou teorizado” (Detienne, 2002/2004, p. 77). Nas sociedades ocidentais, fundamentadas nas técnicas da escrita e no saber histórico, que acredita que seu objeto é o passado em si mesmo, a mudança é compreendida em uma ideia de tempo linear e irreversível, manifesta em acontecimentos imprevisíveis e singulares.

Por fim, os modos de representação do passado são também manifestações da consciência histórica. Do passado como “aquilo que foi” - radicalmente cortado do presente - ao passado presente, que ensina, autoriza e também se abre em direção ao futuro, estão diversos modos de abordagem da tradição e da ancestralidade. É nesta última direção que aponta a definição de história proposta por Huizinga (1936): “é a forma intelectual na qual uma civilização presta contas a si mesma a respeito de seu próprio passado” (p. 9).

Paul Veyne (1971/2008) argumenta que podem ser considerados históricos os acontecimentos específicos: nem universais, nem singulares. Suas especificidades aparecem ao serem situados no tecido da história por meio da organização de uma intriga:

é histórico o que não é universal e o que não é singular. Para que isso não seja universal, basta que haja diferença; para que isso não seja singular, basta que seja específico, que seja compreendido, que remeta para uma intriga. (Veyne, 1971/2008, p. 72)

Os discursos jornalísticos, ao organizarem-se de acordo com critérios de noticiabilidade - os quais incluem a atualidade e a excepcionalidade - podem ser compreendidos como potenciais organizadores das intrigas por meio das quais os acontecimentos serão compreendidos, efetuando uma pré-seleção das intrigas que interessarão à história.

Empregando essas reflexões no campo jornalístico, propomos uma definição de jornalismo sob a perspectiva de sua inserção na consciência histórica: é um espaço de crítica característico da modernidade, no qual a sociedade presta contas a si mesma a respeito de seu presente, através de técnicas profissionais específicas e de uma concepção narrativa própria da noção de acontecimento, submetidas, por sua vez, a uma lógica de mercado capitalista e, consequentemente, a enviesamentos ideológicos análogos às suas condições de produção, circulação e recepção.

A imprensa, do modo como é concebida neste artigo, age de forma bastante específica na manifestação do que seja a mudança - e, por consequência, o acontecimento- nas sociedades modernas. A extraordinária expansão dos meios de comunicação no último século inseriu a civilização ocidental em um espaço inédito de crítica da mudança. Parece-nos que o estudo das diferentes manifestações dos fenômenos da comunicação social é essencial para compreender a consciência história manifesta nos casos que apresentamos.

Para Sodré (2009), a imprensa, como meio de comunicação preferencial da burguesia, tem sua modernidade “visceralmente ligada às mesmas exigências históricas que presidem ao fenômeno da construção do mundo por meio do discurso esclarecido” (p. 11). Sua legitimidade é fundada no princípio da superioridade da razão discursiva, alimentando o que autor chama de uma “ideologia da transparência pública” (Sodré, 2009, p. 11). A imprensa moderna constitui-se dentro da ética liberal como porta-voz dos direitos civis e reduto fundamental da liberdade de expressão. Sodré (2009, pp. 13-14) compõe um quadro da forma ideológica assumida pela imprensa industrial do seguinte modo: ela é universalmente burguesa e europeia; tecnicamente, foi aperfeiçoada pelos norte-americanos; e os ingleses, por sua vez, contribuíram para a constituição da notícia como a narração do acontecimento racionalizada como mercadoria. Assim, vemos que, guardando as particularidades de cada campo, a crítica de Sodré à inserção da imprensa nas sociedades modernas se dá na mesma perspectiva que a de Detienne (2002/2004) quando aponta a emergência da história como “ciência nacional” que es tuda o passado em si mesmo.

Não se pode esquecer que a imprensa, porém, funda-se em um paradoxo, uma vez que não deixa de lançar mão de recursos mitológicos, como o da “construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade” (Sodré, 2009, p. 12). A mitologia do liberalismo encobre as disputas em torno da atribuição de sentidos que presidem à constituição do discurso jornalístico ao mesmo tempo em que confere à notícia o estatuto de esclarecimento neutro.

É sobretudo a partir do século XX, através da ação dos meios de comunicação de massa, que a mudança - ou leitura midiática dessa noção - emerge como um valor preponderante na consciência histórica ocidental. Essa é a primeira “placa de encadeamento”, como denomina Detienne (2002/2004), que utilizamos para dar início à proposta comparativa deste artigo.

Sabemos que o golpe militar cujo fracasso levou à Guerra Civil Espanhola vinha envolvido no que chamamos de “placenta do golpe”, isto é, um conjunto de atividades de deslegitimação da política e das instituições republicanas dentro do qual a imprensa conservadora desempenhou um papel crucial, como órgão de mobilização antirrepublicana e porta-voz dos planos conspirativos contra o legítimo governo democrático. O método de desestabilização da opinião pública com fins golpistas aperfeiçoou-se ao longo do tempo e foi reproduzido em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil em 1964, onde também pôde ser constatada a existência dessa placenta conspirativa que gerou o ambiente necessário para o golpe. A partir dessa primeira noção, desenvolvida com mais profundidade no tópico a seguir, analisamos em pormenor a questão reformista (em especial a reforma agrária) em dois importantes jornais: ABC, na Espanha, e OESP, no Brasil. Este artigo enfrenta a tarefa de romper com fronteiras geográficas e temporais pré-concebidas no exercício comparativo. Parte do diálogo singular-plural entre pesquisadores oriundos de diferentes campos de trabalho, países e experiências.

3. Imprensa e os Golpes Midiáticos na Espanha e no Brasil

A imprensa desempenhou um papel fundamental na sociedade espanhola dos anos 1930. A chegada do novo regime supôs um importante estímulo para os diários no marco de um Estado social e democrático de direito, “o primeiro regime autenticamente democrático” na história da Espanha (González Calleja et al., 2015, p. 18). Em um contexto de modernização geral do país, de democratização do poder, em todos seus aspectos, a imprensa foi o reflexo de um modelo do governo que, pela primeira vez, dava protagonismo aos setores mais inovadores, que demandavam mudanças que o país precisava. Ainda que a censura de notícias e as suspensões de jornais fixadas pela Ley de Defensa de la República (lei da defesa da república) e a Ley de Orden Público (lei de ordem pública) - legislações que não resultavam excepcionais no marco dos estados democráticos do momento - tenham sido fatos realçados pelos seus detratores para chamar à república como “a grande oportunidade frustrada da liberdade da imprensa em Espanha” (Sinova, 2006), na etapa republicana assistimos a um momento dourado da liberdade jornalística. Uma etapa de mobilização política sem precedentes, de modernização social e cultural, cuja crônica foi recolhida por alguns dos melhores autores da história do jornalismo espanhol, nas páginas de diferentes periódicos do momento.

Desde seu início, as diferentes formações da direita espanhola acusaram ao regime republicano de ilegitimidade, qualificando de comunistas o que eram, simplesmente, as necessárias mudanças que a Espanha precisava dentro de um marco político que em nenhum momento rompeu com a realidade sociopolítica circundante. Dentro de um processo de radicalização crescente, que levaria a direita espanhola a apoiar a intervenção do exército, desde posturas próximas ao fascismo, a imprensa conservadora se somaria muito cedo a esta ofensiva contra o estado republicano. Jornais como os monárquicos alfonsinos ABC, La Época e La Nación, o diário tradicionalista El Siglo Futuro e, de maneira muito mais obscura, os jornais católicos El Debate, Ya e Informaciones alimentaram a ofensiva de deslegitimação contra a república, criando a placenta necessária para o golpe que posteriormente seria utilizada pelo franquismo para justificar o seu projeto de extermínio contra um importante setor da população espanhola e o seu próprio modelo de estado católico-fascista2.

Sem dúvida, o diário mais ativo nesta campanha antirrepublicana foi o monárquico ABC. Fundado em Madrid em 1903 pelo jornalista e empresário Torcuato Luca de Tena y Álvarez Ossorio, o diário ABC - que desde 1929 contava com uma nova edição publicada em Sevilha - era o órgão da direita monárquica alfonsina, que desde o início do novo regime apostou decididamente pela ruptura total com o mesmo (Barreiro, 2004). Com vínculos importantíssimos com a aristocracia latifundista, e partidário de uma monarquia autoritária, seguindo o modelo fascista da Itália que já se tinha experimentado na Espanha durante os anos 1920, sob outras publicações de direita, como a revista Acción Española, foi um importante laboratório de ideias autoritárias (Morodo, 1985). Essas ideias eram baseadas fundamentalmente na defesa da ordem social herdada da monarquia, a apologia de um nacionalismo antiliberal e a exaltação e saudosismo pelo passado imperial da Espanha. Convertidas sem referência da imprensa conservadora espanhola, suas páginas foram, também, o viveiro que nutriu de conceitos e militantes as diversas formações das direitas nestes anos cruciais. Muitos de seus colaboradores, além disso, constituiriam o núcleo da imprensa espanhola durante o franquismo, destacado por sua defesa entusiasta da ditadura (Luis Martin, 1987).

Cinco foram os temas utilizados pelo diário monárquico ABC em sua campanha antirrepublicana. Em primeiro lugar, a questão religiosa. O projeto de construir um Estado laico foi considerado pelo jornal conservador como um ataque frontal aos católicos espanhóis por parte de uma república ferozmente anticlerical e contrária às essências nacionais. O resultado foi gravar na memória coletiva de muitos católicos a ideia de que religião e república eram termos incompatíveis, contribuindo para privar o novo regime de um apoio fundamental para sua sobrevivência.

Em segundo lugar, a questão militar. As reformas militares desenvolvidas pelo novo governo, as quais procuravam racionalizar os efetivos, eliminando o alto número de oficiais existente, foram qualificadas como uma vingança contra a honra do exército. Um fato que, sem dúvida, contribuiu para esquentar os ânimos de muitos militares, e que explica o apoio do jornal à tentativa de golpe protagonizada pelo General Sanjurjo em agosto de 1932.

Terceiro: o tema autonômico. A questão catalã foi chamada pelo ABC de “traição”, e se manifestou na rejeição do diário ao projeto de Estatuto de Autonomia para Catalunha e, mais tarde, na negativa a aceitar o autogoverno na região. As consequências foram avivar o fantasma do separatismo e contribuir para criar um nacionalismo excludente, de cunho castelhano, que inviabilizaria qualquer saída racional ao labirinto plurinacional do país.

Em quarto lugar, a questão social. ABC faria da legislação social do primeiro biênio republicano e, especialmente, do projeto de reforma agrária seu grande cavalo de batalha. Seu propósito foi consolidar o bloco social dos grandes proprietários, aos que se somariam os pequenos e médio camponeses contrários à reforma, ao mesmo tempo que deterioravam a imagem do novo regime, qualificado de coletivizador e socialista.

E, em último lugar, o tema da ordem pública. As diversas desordens protagonizadas pelo movimento anarquista foram instrumentalizadas pelo diário conservador para mostrar a imagem de um regime débil, com evidentes simpatias para os revoltosos, incapaz de manter a lei e a ordem e garantir o direito à propriedade. Posteriormente, a tentativa insurrecional encabeçada pela esquerda asturiana, em outubro de 1934, foi utilizada pelo jornal para manifestar a vontade revolucionária do mesmo regime. Um fato que se agravaria depois do triunfo da Frente Popular nas eleições de fevereiro de 1936, quando a imprensa conservadora falava, já sem rodeios, do perigo comunista que se assomava sobre Espanha e da necessidade do impedir por todos os meios, incluindo a força, se fosse necessário.

Se teve um momento em que ABC refletiu todas essas tensões, foi aquele motivado pelas sessões parlamentares de 16 de junho e de 1 de julho de 1936, centrado precisamente na deterioração da ordem pública. O jornal manifestou, através do colaborador Manuel Delgado Barreto, seu desprezo pelo governo, o qual chegou a acusar de estar diretamente implicado em vários destes acontecimentos. Nos dias seguintes, o diário fez alusão a uma intervenção do líder da direita monárquica, José Calvo Sotelo, que afirmava que a situação social e política não podia ser mantida por mais tempo e que advertia sobre a possibilidade de um golpe de Estado preventivo. Frente à inércia do governo, acusado de precipitar o país na revolução e na anarquia, Calvo Sotelo exigiu ordem, e não duvidou em se declarar partidário de um estado fascista que pusesse fim à luta de classes impulsionada pelo marxismo.

Observamos, assim, como um importante setor da imprensa espanhola da época considerou a mudança democrática de 1931 como uma patologia, uma sequela demagógica do sistema parlamentar que o General Primo de Rivera tratou de resolver com métodos autoritários, já nos anos 20. Daí que procedesse, em primeiro lugar, a identificar, indistintamente, república, revolução e democracia, e, após, a realizar uma denúncia feroz das iniquidades do regime republicano em suas páginas. A denúncia da radicalidade do projeto reformista republicano conduziu, de forma inevitável, a questionar seu caráter democrático, e sua adaptação à realidade nacional, convertida no símbolo de todos os males produzidos pela anti-Espanha. Um discurso fecundo, que posteriormente se converteria na pedra angular do imaginário social do franquismo, e cujas impressões têm perdurado até nossos dias.

Mais tarde 30 anos, ecos desse discurso atravessam oceanos. No contexto de confronto da chamada “Guerra Fria”, as experiências desenvolvidas em matéria de propaganda pelos estados fascistas foram utilizadas pelas potências democráticas vencedoras na Segunda Guerra Mundial e, singularmente, pelos Estados Unidos.

Nos anos 1960, o Brasil vive, à sua maneira, as grandes questões globais: as tensões da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a efervescência dos movimentos de contracultura. Para Gaspari (2002), um dirigismo conservador e anticomunista foi encampado pela direita brasileira, manifestando-se como uma utopia planejadora, centralizadora e que via com maus olhos o voto popular. A crença na ameaça comunista esteve na base dessa utopia, para fins de propaganda, como cimento para unir interesses divergentes e como estereótipo para encobrir bandeiras simplesmente libertárias ou reformistas. Esse movimento conservador encontrou apoio na caçada ao “inimigo vermelho” empreendida pelos Estados Unidos - especialmente, no Brasil, na figura do embaixador Lincoln Gordon (Green & Jones, 2009) -, assim como, na Espanha, foi abraçado pelo fascismo que se espalhava pela Europa. No Brasil, a Escola Superior de Guerra era dominada pela Doutrina de Segurança Nacional, um conjunto de diretrizes geopolíticas que estabelecia entre os principais objetivos nacionais a proteção do Brasil frente à internacionalização do comunismo através de compromissos recíprocos entre Brasil e Estados Unidos da América para defesa do hemisfério (Couto & Silva, 1981).

João Goulart, conhecido como “Jango”, chega à presidência com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Nas eleições de 1960, elegera-se vice-presidente pelo Partido Trabalhista Brasileiro. Quadros (Partido Trabalhista Nacional) foi eleito presidente com o apoio da conservadora União Democrática Nacional, com a maior votação que um candidato já recebera no país: 48% dos votos (Costa, s.d.).

O governo de Quadros começa com dificuldades: sem maioria no congresso, enfrenta problemas. Pretende tornar-se uma liderança terceiro-mundista através de uma política externa independente dos Estados Unidos. Exemplos dessa política são a recusa do Brasil em apoiar a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos e a condecoração com a Ordem do Cruzeiro do Sul do Ministro cubano Ernesto “Che” Guevara. O excêntrico Quadros fez um governo ambíguo e as reais motivações para sua renúncia não são claras. A literatura da história e das ciências sociais concorda que ele tinha a intenção de dar um golpe de Estado (Ferreira & Gomes, 2014). Quadros renuncia justamente enquanto Jango encontra-se em visita oficial à China comunista. Contrariando seus planos, a renúncia é aceita. Em seguida, forma-se uma junta militar que tenta impedir a posse de Jango, acusando-o de proximidade com os comunistas. O congresso forma uma ampla aliança pela defesa da constituição, em confronto com os militares. No sul do país, o Governador Leonel Brizola encabeça a Campanha da Legalidade. O vice-presidente assume, mas em regime parlamentarista.

Jango governa em um ambiente hostil, mas segue tentando avançar com o programa trabalhista, as reformas de base: reforma agrária, fiscal, bancária, urbana, tributária, administrativa e universitária, além do controle do capital estrangeiro e monopólio estatal de setores estratégicos da economia brasileira.

A direita anticomunista articula-se através de organizações como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, articulando os interesses de grandes corporações americanas, grupos privados nacionais e ruralistas e financiando a campanha de deputados da oposição nas eleições legislativas de 1962 (Ferreira & Gomes, 2014). Em um plebiscito realizado em janeiro de 1963, a população opta pelo retorno ao presidencialismo.

Em 13 de março de 1964, o Comício das Reformas reúne entre 150.000 e 200.000 pessoas no Rio de Janeiro. No palanque, Jango defende a elegibilidade dos sargentos, o direito de voto dos analfabetos e, principalmente, a reforma agrária. A reação da oposição vem em 19 de março. A “Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade”, em São Paulo, reúne por volta de 500.000 pessoas - entre empresários, militares, padres e senhoras católicas - e alerta para o “perigo do comunismo no Brasil”. No dia 25, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil ignora ordem do ministro da Marinha e promove uma reunião. A hierarquia militar é colocada em questão. Jango não pune os insurgentes, como exigiam os oficiais.

A última gota foi o discurso de Jango na sede do Automóvel Club, no Rio de Janeiro, em 30 de março de 1964, ocasião na qual era homenageado pelos sargentos. O General Mourão Filho inicia a marcha para depor o presidente desde Minas Gerais. Os Estados Unidos desencadeiam a operação Brother Sam como suporte aos golpistas, dispondo a força militar da frota do Caribe na costa brasileira (Kornbluth, 2004). O presidente do senado, Auro de Moura Andrade, na madrugada do dia 2 de abril, mesmo com o presidente em solo nacional, declara vacante a presidência, ato sem qualquer amparo legal (Skidmore, 1989/2000). Goulart exila-se no Uruguai. Os Estados Unidos reconhecem imediatamente o novo governo. Os militares só deixariam o poder 21 anos depois.

Os meios de comunicação participam ativamente do golpe. A grande imprensa, que já promovia intensa campanha de desestabilização do governo Goulart, colabora para que a ação seja vista como legítima. É de amplo reconhecimento no campo da história da imprensa brasileira o apoio dos grandes meios de comunicação ao movimento civil-militar golpista de 1964. Apesar disso, parte das relações entre a grande imprensa e o regime militar reside em uma área nebulosa. A ênfase e a generalização sobre a atuação da censura - que sem dúvida sacrificou empresas, profissionais e o público, como demonstram consistentes pesquisas acadêmicas e relatos pessoais - contribuíram para a formação de um discurso mítico, fomentado pela própria imprensa e pelos jornalistas, que se apresentam como inequívocos defensores da liberdade e da legalidade e, portanto, vítimas do golpe e do regime civil-militar (Barbosa, 2007). Esse terreno vem sendo identificado, pesquisado, analisado e trazido a público, movimento do qual são exemplares os trabalhos de Abreu (2004), Amado (2008), Chammas (2012), Kushnir (2004), Silva (2013, 2014), Larangeira (2014), entre outros. Neste artigo, buscamos contribuir para esse des(en)cobrimento (Silva, 2010) por meio de uma proposta metodológica comparativa.

4. Discursos da Grande Imprensa Sobre a Reforma Agrária na Espanha (1932-1936) e no Brasil (1964)

No início dos anos 1930, a Espanha continuava um país maioritariamente rural, no qual quase 50% da população ativa desenvolvia atividades relacionadas com a agricultura e a pesca. Não obstante, e longe dos tópicos regeneracionistas - que falavam de uma agricultura atrasada e incapaz de experimentar um mínimo processo de modernização-, experimentou um importante desenvolvimento durante as primeiras décadas do século XX, permitindo a configuração de uma próspera agricultura de exportação, baseada fundamentalmente na obtenção de azeite de oliva, vinho, hortaliças e frutas, e que convivia com uma agricultura extensiva, de latifúndio, estendida sobretudo nas províncias do sudeste, de muito baixa produtividade e com fortes índices de desemprego estrutural.

Na chegada do regime republicano, o processo de abertura viu-se seriamente afetado pela queda dos preços agrários, como consequência da crise económica internacional iniciada nos Estados Unidos em 1929. A redução do benefício empresarial, a queda dos salários e o aumento do desemprego agrário provocou um incremento das greves e das reivindicações sindicais, no mesmo momento que o novo governo tentava aplicar uma avançada legislação sociolaboral, orientada a satisfazer os interesses dos boias-frias e outros assalariados agrícolas.

Uma das bases deste projeto era uma profunda reforma da propriedade da terra, encaminhada para pôr fim à injusta distribuição que se tinha consolidado no longo processo de assentamento do capitalismo na Espanha. O objetivo final, tal como assinala Robledo (2015), era transformar a realidade do setor primário espanhol, especialmente nas zonas latifundistas, para atuar como fator anticíclico do desemprego e consolidar o compromisso político do campesinato com o novo regime.

O debate sobre a reforma agrária, entre 1931 e 1932, manifestou as tensões existentes no seio do governo de coalizão republicano sobre este tema. Se os socialistas do Partido Socialista Obrero Espanhol, presentes no governo de coligação, eram partidários de um modelo de expropriação da terra que a colocasse em mãos dos coletivos de boias-frias organizados sindicalmente, indicando assim sua preferência pelo cultivo coletivo e as explorações modernas, eficazes e mecanizadas, os demais partidos do governo consideravam esta proposta radical demais. Finalmente, no debate que antecedeu à aprovação da lei da reforma agrária, em setembro 1932, os socialistas moderaram suas posturas, optando por uma solução de compromisso com o resto das forças republicanas, apoiando a proposta do ministro da agricultura, Marcelino Domingo. Um projeto pragmático e ambivalente, que abarcava desde a partilha dos latifúndios em pequenos lotes até a gestão coletivizada dos assentamentos camponeses (Malefakis, 1971).

Apesar destas propostas moderadas, a direita, nas suas diferentes vertentes - desde a católico-agrária à monárquico-autoritária -, opôs-se radicalmente a qualquer projeto de reforma. Na visão dos monárquicos - que nunca aceitaram os resultados das eleições plebiscitárias do 14 de abril 1931 -, a Segunda República era um regime ilegítimo, e qualquer projeto de lei proveniente das novas autoridades devia ser chamado ilegal. Nessa linha, a grande imprensa conservadora, liderada pelo diário monárquico ABC, fez da reforma agrária o cavalo de batalha contra o regime republicano, o qual, em sua visão, apenas procurava a dissolução de valores tradicionais, começando pela propriedade privada, conceituada sagrada pela direita. Isso não impediu que esta imprensa, em momentos concretos, adotasse uma postura oportunista e aparentemente conciliadora, dentro da política acidentalista auspiciada pela direita católico-agrária, em função do signo da conjuntura política e do equilíbrio de poderes entre as diferentes famílias conservadoras.

Durante esta primeira etapa, o ABC esforçou-se em descrever a reforma agrária como a ponta de lança do projeto coletivizador impulsionado pela república e, mais especificamente, pelo gabinete reformista presidido pelo primeiro-ministro, Manuel Azaña, a quem não hesitaria em criminalizar, acusando-o de ser o responsável pela onda violenta no campo, pelo movimento anarquista, contrário ao projeto reformista. A tática seguida pelo diário teve vários objetivos: por um lado, desacreditar o governo republicano ante o campesinato pequeno e médio, acusando suas políticas de serem a causa dos constantes episódios de violência agrária que tiveram lugar durante o primeiro biênio repu blicano; e, por outro, reclamar uma política de mão de ferro em frente dos excessos dos indicatos, e a volta à ordem tradicional no campo, com a anulação de todas as políticas auspiciadas pelas autoridades republicanas. De fato, o ABC - sobretudo, na sua edição de Sevilha - exibiria sua simpatia pela tentativa de golpe de Estado do General Sanjurjo em agosto de 1932, que utilizaria a reforma agrária, junto às reformas militares, como pretexto para o seu projeto de restauração monárquica, dentro da ação conspirativa que a direita alfonsina vinha mantendo praticamente desde a queda da monarquia, o que lhe valeria um novo fechamento por parte das autoridades republicanas. Posteriormente, o jornal se somaria de forma entusiasta ao projeto de reconstrução da ordem agrária tradicional impulsionado pela direita no governo, entre 1933 e 1935.

Um exemplo pode ser apreciado na forma como o diário abordou o debate parlamentar sobre o projeto da reforma agrária no mês de junho de 1932. Nos dias 29 e 30 de junho, e após diversos artigos muito críticos ao próprio ministro da agricultura, o ABC (ABC de Madrid) tratou o debate num tom conciliador, em aparência. Para isso, elegeu determinada estrutura esquemática: reprodução das intervenções dos parlamentares, com escassos comentários que procuravam acentuar uma postura de retificação por parte do governo, depois que o Ministro Marcelino Domingo optou por um projeto mais restrito e ambivalente. O diário também usou expressões ideológicas - num tom supostamente neutro, no qual a sintaxe eleita pretendia reforçar a ideia de que o governo republicano, por fim, tinha optado pela via do sentido comum, limitando os efeitos mais progressistas da reforma. Nesta ocasião, o jornal optou intencionadamente pela moderação, num momento no que o jogo de poder entre as diversas formações da direita parecia inclinar-se pela via acidentalista e oportunista do bloco católico-agrário, dada a debilidade dos partidos conservadores-autoritários alfonsinos nessa altura.

A segunda etapa inicia-se em fevereiro de 1936, depois do triunfo do Frente Popular e do regresso da esquerda e do Primeiro-Ministro Azaña ao poder. Na altura, os republicanos já dispunham de uma ideia mais clara sobre como executar a reforma agrária e os seus efeitos. O objetivo, então, foi experimentar uma via camponesa, ou seja, fazer da Espanha um país de pequenas explorações a partir da redistribuição dos grandes latifúndios, numa primeira fase, para dotá-la de um marco institucional que incrementasse a produtividade no campo, permitisse a transferência da população agrária aos setores secundário e terciário, e criasse uma base de pequenos proprietários comprometidos com os valores republicanos, seguindo o modelo francês.

Os objetivos dos partidos republicanos chocaram-se com a direita, que nessa altura iniciou o processo conspirativo que terminou no frustrado golpe de Estado de julho de 1936. Neste contexto, o ABC - e o resto da imprensa da direita - desempenhou um importante papel na criação do que temos chamado de “placenta do golpe”, ou seja, o ambiente de deslegitimação das instituições democráticas no qual se desenvolve a conspiração e criam-se os argumentos que, posteriormente, servirão de legitimação ao golpe. E isto é algo que pode ser apreciado tanto nas formas como no léxico do diário conservador nestes meses cruciais. Para agitar as classes proprietárias, sobretudo no sul e no leste do país - onde posteriormente aconteceriam alguns dos piores massacres perpetrados pelos franquistas -, recorre ao medo, um pânico cênico que tem como objetivo mobilizar aos proprietários frente ao perigo de uma revolução comunista e preparar o caminho ao futuro golpe. Um recurso que foi magnificado no contexto de uma campanha de polarização que tinha como objetivo criar um clima favorável à intervenção militar e preparar as consciências para a sangrenta repressão posterior (Espinosa Maestre, 2007).

Os exemplos neste caso são numerosos e estão relacionados com o fato de que o governo da Frente Popular estava decidido a retomar a reforma agrária e as ocupações de propriedades agrícolas junto com boias-frias e sindicatos. Destacamos uma edição do ABC que consideramos significativa. No dia 28 de março 1936, o diário informa o incremento dos quadros de pessoal do Instituto de Reforma Agraria, órgão encarregado da execução da reforma. De súbito, o tom das notícias muda, e a estrutura esquemática da página altera-se para informar como uma assembleia de autarcas na província de Sevilha acordou solicitar ao governo o restabelecimento da Ley de Términos Municipales (lei de termos municipais), uma medida adoptada pelo governo Azaña nos seus primeiros meses, em 1931, para remediar a situação do desemprego forçado de muitos boias-frias, sobretudo no sul do país. Evidentemente, a escolha deste assunto não é inocente, já que esta lei foi uma medida contra as práticas de caciquismo agrário, e uma das que mais contrariou os proprietários agrícolas, ao obrigá-los a contratar trabalhadores desempregados das populações e aldeias onde estavam situadas as propriedades agrárias. Se temos em conta que a notícia faz referência à ocupação de propriedades agrícolas por boias-frias fora de todo o controle, podemos compreender como o círculo informativo se completa, no intento de refletir um medo cênico que mobilize os proprietários frente ao que seria considerado uma revolução comunista em amadurecimento, tolerada por um governo débil, ante o que urge tomar medidas excepcionais, incluindo, naturalmente, o recurso ao exército. Neste sentido, a ação da imprensa conservadora, apresentando os boias-frias como uma ameaça, terá efeitos demolidores para o futuro. A desumanização de amplos setores das classes populares e trabalhadoras seria um passo necessário para compreen der a posterior e sangrenta repressão franquista (Langa Nuño, 2007; Preston, 2011).

Passamos à análise, do mesmo tema, agora no Brasil, em 1964. O longevo e tradicional OESP nasceu em 1875, por meio de um grupo ligado aos interesses das oligarquias cafeeiras paulistas comprometidas com um programa liberal. Adversário histórico do trabalhismo representado pelos governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954), o diário alinha-se politicamente com a ala conservadora da política nacional que se organiza na União Democrática Nacional a partir de 1945. Quando Jânio Quadros renuncia, em agosto de 1961, o jornal reage de acordo com seu histórico antivarguismo, colocando-se contra a posse do Vice-Presidente João Goulart, a solução parlamentarista e o plebiscito que restaurou o presidencialismo.

OESP foi além da oposição política e midiática, contribuindo não apenas editorialmente para a desestabilização do governo Goulart, mas também, especialmente através de sua direção, de forma conspiratória em conjunto com grupos políticos, econômicos e militares favoráveis ao golpe. Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal à época, é o redator de um documento conhecido como “Roteiro da Revolução”, orientador de algumas das primeiras ações dos golpistas.

O golpe de 1964 foi bem-recebido pelo jornal, fato reconhecido pelo Grupo Estado no resumo histórico que consta em seu site:

editorialmente o jornal sempre manteve sua linha de apoio à democracia representativa e à economia de livre-mercado. Em 1964, “O Estado” apoiou o movimento militar que depôs o presidente João Goulart ao constatar que o mesmo já não tinha autoridade para governar. No entanto, entendia que a intervenção militar deveria ser transitória. Quando se evidenciava que os radicais de extrema direita aumentavam sua influência, objetivando a perpetuação dos militares no poder, O Estado retirou seu apoio e passou a fazer oposição. (Grupo Estado, s.d., para. 2)

Realizamos uma análise de textos publicados pelo jornal OESP durante o mês de março de 1964. De acordo com o acervo online do jornal, o resultado da busca pelos termos “reforma agrária”3 indica que esse é o mês que reúne mais referências naquele ano: ao todo, 63 resultados. A fim de reduzir o recorte, selecionamos textos publicados na página 3, tradicional espaço de opinião e política do jornal, às vésperas e logo a seguir ao Comício das Reformas, ocasião em que Goulart anuncia a assinatura do decreto da Superintendência de Política Agrária (SUPRA; Rio de Janeiro, 13 de março de 1964).

Cabe destacar que o tema da reforma agrária apresenta grande relevância nos resultados da busca do acervo online de OESP no início dos anos 1960, fato que só voltaria a se repetir a partir de 1985, com o fim da ditadura. No Brasil do início dos anos 1960, as reformas sociais estavam na agenda das mais diversas forças políticas. Partidos, sindicatos, igreja, militares e sociedade civil discutiam a necessidade de amplas reformas para superar os mais graves problemas estruturais do Brasil: a fome, a pobreza, a desigualdade social. Entre as reformas, a mais emblemática era a agrária.

No contexto da Guerra Fria, o governo norte-americano, com John Kennedy à frente, via nas reformas uma possibilidade de combater movimentos de internacionalização do comunismo na América Latina. Para tanto, os Estados Unidos da América comprometem-se, através do programa Aliança para o Progresso (agosto de 1961), a incentivar reformas que promovessem o desenvolvimento econômico e social na região. O programa representa para o governo Goulart uma chance de contornar problemas econômicos e políticos, além de levar adiante o compromisso reformista defendido por seu governo e assumido perante seus eleitores (Yamauti, 2005).

Em 15 de abril de 1963, Jango propõe uma emenda constitucional que permita a indenização de desapropriações com títulos da dívida pública (só era previsto o pagamento em dinheiro). O partido conservador, a União Democrática Nacional, posiciona-se contrário à emenda. Goulart é pressionado pela esquerda (setores que consideram as reformas imperialistas excessivamente moderadas, ao gosto dos ianques) e pela direita (que, ao defender a indenização em dinheiro e a “inviolabilidade da constituição”, conseguia bloquear as reformas e, ao mesmo tempo, desestabilizar o governo, aprofundando a crise econômica). Esse nó político alimenta o forte antagonismo na cena política brasileira e é uma das chaves discursivas da imprensa do período, porque articula uma argumentação que traveste o golpismo de legalidade ao mesmo tempo que imputa ao governo Goulart tendências arbitrárias e totalitárias.

Jango opta por fazer das reformas o seu instrumento político de comunicação com as massas, neutralizando o discurso conservador pela mesma linha de Kennedy (a miséria e desigualdade não fazem prosperar um país). Imputa ao congresso conservador e às estruturas arcaicas do Brasil a resistência às reformas.

No discurso de OESP, enfrentar e pressionar o congresso torna-se sinônimo de desrespeito pelo jogo político e, portanto, confirmaria as suportas tendências totalitárias e demagógicas de Goulart. Isso fica claro na edição de 4 de março de 1964, na Página 3: o texto “Goulart Decidido a Realizar Consultas Sobre as Reformas” informa que o presidente estaria decidido a realizar oficialmente - através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - uma consulta nacional da opinião pública sobre as reformas de base, em especial a reforma agrária. Sobre essa iniciativa, o jornal afirma:

mas está claríssimo que o sr. João Goulart deseja é obter um instrumento de pressão política para ser manobrado com habilidade e ser imposto ao Congresso e dele arrancar as reformas em termos realmente revolucionários ou servir para a intriga junto às classes armadas (ênfase acrescentada). (“Goulart Decidido a Realizar Consultas Sobre as Reformas”, O Estado de S. Paulo, 4 de março 1964)

A pesquisa foi mesmo realizada, em oito capitais do país entre os dias 9 e 26 de março de 1964. Seus resultados não foram divulgados na época, sendo resgatados nos anos 1990 por pesquisadores nos arquivos da Universidade de Campinas. A pesquisa apontava que, em média, 70% dos brasileiros consideravam necessária a realização da reforma agrária no Brasil (Dias, 2014). Às vésperas do comício das reformas, OESP especula: “está o sr. João Goulart sendo muito estimulado por alguns de seus assessores para dirigir um ataque frontal ao Congresso, inclusive com o suspeitíssimo objetivo de fazer um teste sobre as reações populares” (“Goulart Ainda Não Fixou as Diretrizes de Seu Discurso”, O Estado de S. Paulo, 6 de março de 1964).

O discurso construído acerca da possível consulta popular sobre as reformas demonstra uma das estratégias de representação negativa do outgroup (exogrupo; van Dijk, 2005). Neste caso, ela ocorre através da projeção dos desdobramentos dos fatos a partir das ações do governo. Estas últimas, objetos de forte especulação, são esmiuçadas e projetadas em um enquadramento que coloca Goulart na posição de oportunista, demagogo, antidemocrático. O mesmo não ocorre em relação às articulações da oposição, ocasionando um silenciamento sobre suas eventuais consequências. A projeção de futuro é uma das formas através das quais o discurso jornalístico afirma opinião (van Dijk, 2005). Ao comentar as articulações para a eleição do então Ministro do Trabalho Almino Afonso na liderança da bancada do Partido Trabalhista Brasileiro na câmara, OESP afirma:

o objetivo agora ( ... ) é um novo plebiscito, eufemisticamente chamado inquérito, ou “enquete”, previsto para maio e do qual espera o sr. João Goulart extrair a reforma constitucional que lhe permita entrar na campanha eleitoral com o “slogan” JG-65, já impresso em cartazes. (“A Penetração Lacerdista no PSD Preocupa Kubitschek”, O Estado de S. Paulo, 5 de março de 1964)

Assim, a consulta, na visão do jornal, é diretamente relacionada ao fim político eleitoral. Atentamos, aqui, para a escolha lexical: “plebiscito” foi o instrumento democrático que restaurou o presidencialismo no Brasil, devolvendo a Goulart os poderes tolhidos através da solução parlamentarista de 1961. O OESP foi contra a realização desse plebiscito e desfavorável a seu resultado. “Plebiscito”, no trecho destacado, refere-se à consulta popular que resulta positiva para o governo Goulart, a contragosto do OESP: um novo plebiscito só poderia resultar em nova vitória da situação. A oposição já demonstrava nitidamente seu desprezo pelas consultas populares.

A expectativa em relação ao comício das reformas, que ocorreria no dia 13 de março, espalha-se pelas páginas de OESP:

têm sido inquietadores em alguns círculos políticos e, principalmente, desalentadores, nos mais expressivos centros das classes empresariais, esses dias de expectativa que antecedem o 13 de março, dia de assinatura do decreto da SUPRA, que uns e outros indicam como sendo uma provável data sangrenta e triste na história da República. (“A Penetração Lacerdista no PSD Preocupa Kubitschek”, O Estado de S. Paulo, 5 de março de 1964)

Além de lançar mão, novamente, do expediente da projeção do futuro (sombrio), neste trecho o OESP utiliza-se do recurso de apagamento dos sujeitos, revelador da dinâmica ingroup (endogrupo) versus exogrupo. “Uns e outros”, “círculos políticos”, “classes empresariais” remetem a grupos vagos, genéricos, indefinidos; por outro lado, as ações do governo são personificadas na figura do chefe do executivo. “A simples assinatura do decreto deverá provocar invasões de terras naquelas áreas de mais agudo atrito, onde a questão está sendo posta em termos revolucionários” (“A Penetração Lacerdista no PSD Preocupa Kubitschek”, O Estado de S. Paulo, 5 de março de 1964).

Em 13 de março de 1964, no comício das reformas, na estação ferroviária Central do Brasil, no Rio de Janeiro, Goulart anuncia a assinatura do decreto da SUPRA, que determina a desapropriação de propriedades rurais com extensão superior a 500 hectares às margens de rodovias, ferrovias e açudes federais.

No dia seguinte, 14 de março, o OESP afirma que o país vive em “regime pré-totalitário” e que depois do comício “não tem mais sentido falar-se em legalidade democrática como coisa existente”.

Quando o chefe do executivo se permite, nas praças públicas, fazer a apologia da subversão e incitar as massas contra os poderes da República que lhe estorvam a marcha para o cesarismo, pode-se afirmar que a ditadura, embora não institucionalizada, é uma situação de fato. (“O Comício”, O Estado de S. Paulo, 14 de março de 1964)

No comício, Goulart dedicou boa parte de seu discurso a explicar que a reforma agrária não subverteria as relações capitalistas de produção e que o modelo de indenização proposto pelo decreto (títulos da dívida pública) era corrente em diversos países que já haviam realizado reformas, como Japão, Itália, México:

reforma agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária. (EBC, 2015, para. 43)

Para o OESP, o discurso do presidente reuniu “considerações confusas” e que “demonstram falsa erudição”. A indenização em títulos da dívida consistiria em “espoliação pura e simples dos proprietários legítimos de terra” (“O Comício”, O Estado de S. Paulo, 14 de março de 1964).

O OESP insiste na associação entre reformas e comunismo: “sob a bandeira das ‘reformas’, as palavras de ordem da revolução são levadas a todos os cantos do país”. Para o jornal, a “revolução foi pregada” apenas com “pequenas variações de acordo com as necessidades da estratégia e da tática revolucionárias”. Sobre Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango que também discursou no comício, “dir-se-ia que se julga na Rússia de 1917” (“O Comício”, O Estado de S. Paulo, 14 de março de 1964).

Vemos, assim, que o discurso jornalístico analisado acerca da reforma agrária dá acesso à complexidade das disputas políticas do período e reforça a compreensão do tema, naquele período, como aspecto essencial no debate público. Dezemone (2016) aponta para necessidade de se contemplar de forma ampliada a compreensão de “reforma agrária” nesse momento histórico, a qual nem sempre corresponde a um consenso sobre a distribuição da propriedade, diferente de outras questões, como a contenção do êxodo rural e o desenvolvimento econômico.

5. Comparação e Consciência Histórica: Uma Proposta de Colaboração Entre os Campos da Comunicação e da História

Partimos ao exercício comparativo propriamente dito: a busca pelas placas de encadeamento propostas por Detienne (2002/2004).

No ambiente político interno, são muitas as semelhanças. Em ambos os países, governos progressistas, comprometidos com sindicatos e movimentos populares, estão no poder e enfrentam graves crises econômicas. Podemos afirmar que, frente a isso, as respostas apresentadas por esses governos apontam para uma mudança em estruturas de produção consideradas arcaicas, injustas e incoerentes com o desenvolvimento econômico, social e humano projetado por essas lideranças.

Os setores oligárquicos e conservadores, por sua vez, articulam-se em torno da defesa de valores tradicionais e da manutenção de privilégios, amparados por um discurso que naturalizava as injustiças em torno de um pragmatismo conservador, um legalismo instrumental e uma política autoritária. Nesse sentido, a questão da reforma agrária assume protagonismo no cenário interno e expõe o confronto das forças políticas em questão.

O ambiente político de pluralismo polarizado é uma importante placa de encadeamento neste exercício comparativo. Ele coloca os governos progressistas, tanto no Brasil quanto em Espanha, em situação delicada, pressionados pela esquerda e pela direita. No Brasil, a esquerda mais radical criticava as reformas ao gosto ianque. Já os setores conservadores evitariam de toda a forma o acesso do governo Goulart aos recursos da Aliança para o Progresso, pois isso tornaria uma candidatura de esquerda imbatível nas eleições de 1965. As reformas, se levadas a cabo na posposta de Goulart, solapariam as bases socioeconômicas da oligarquia, produzindo de qualquer forma efeitos na representatividade política. Assim, as elites sentem-se ameaçadas, ainda que as medidas propostas pelo governo fossem progressistas e não comprometidas com um programa revolucionário. Na Espanha, os republicanos negociam e aprovam um projeto de reforma excessivamente ambíguo, recusado pelo movimento anarquista, e cuja implementação levaria a um quadro dramático de radicalização política. No Brasil, não houve consenso sobre o projeto de reforma agrária, e o decreto da SUPRA foi um “primeiro passo” (nas palavras do próprio Jango, no discurso do comício) muito duro para as elites.

O forte antagonismo político interno nos remete a uma outra importante placa de encadeamento, que diz respeito à consciência histórica (Detienne, 2002/2004) de cada período analisado. Na Espanha, o ambiente é de ascensão do fascismo, uma onda autoritária que engoliu o movimento progressista espanhol e que levou o continente europeu a ser novamente palco de um trágico confronto mundial. No caso brasileiro, a questão da conjuntura externa manifesta-se em uma intervenção direta de Washington, reflexo dos resultados da Segunda Guerra Mundial: com uma mão, os Estados Unidos da América cortejavam o governo Goulart com a promessa dos recursos da Aliança para o Progresso, visto que o Brasil era território estratégico no cenário da Guerra Fria; com a outra, financiavam deputados e organismos conservadores comprometidos em manter a “ordem” e representar os interesses econômicos norte-americanos no país. Nesse contexto internacional de polarização, torna-se corrente, com o apoio da imprensa estudada, a ideia de que as reformas de que o Brasil precisava para superar as dificuldades econômicas e a miséria aconteceriam pacificamente ou através de uma revolução comunista. De fato, a arena parlamentar não se mostra capaz de formar uma coalizão hegemônica estável para conduzir as reformas. A imprensa ajuda a construir a hegemonia necessária para suportar uma solução autoritária de ruptura institucional, em um amálgama de interesses de classe e de um lugar discursivo privilegiado, amparado por um imaginário que a coloca “fora da política” e como porta voz da opinião pública. O discurso coordenado da grande imprensa forma uma nova placa de encadeamento, central para a análise proposta neste artigo.

Os jornais analisados, o ABC na Espanha e o O Estado de S. Paulo no Brasil, são ambos representantes de setores oligárquicos que seguem no controle político em seus países mesmo após certo desenvolvimento agrário, como no caso da Espanha dos anos 1930, e industrial, no caso do Brasil dos anos 1960. Operam aquilo que aqui denominamos “placenta do golpe”, ou seja, o conjunto de atividades de deslegitimação da política e das instituições democráticas e a antecipação e naturalização da solução autoritária. Isso ocorre através de estratégias que ficaram evidentes através do exercício de análise do discurso dos jornais selecionados, dentre elas:

  • desmoralização do governo como um todo e do chefe do executivo, em particular. O Presidente Goulart, no Brasil, era qualificado como golpista, acusado de vínculo com o comunismo, populismo, getulismo, incompetência, totalitarismo e caudilhismo. Na Espanha, o mesmo se passa com os republicanos e seu líder mais significativo, o Primeiro-Ministro Manuel Azaña, acusado de demagogo, caudilhista e rancoroso, e responsabilizado pela violência no campo;

  • deturpação das propostas de reformas, conectando-as com a ameaça comunista;

  • antecipação e naturalização dos movimentos dos grupos conservadores;

  • apagamento ou desqualificação das lutas camponesas e das classes desfavorecidas;

  • defesa de uma legalidade instrumental: esse é um movimento que pode ser percebido na longa duração. As leis e a constituição servem às mais variadas deturpações retóricas. Na Espanha, a direita monárquica nem sequer aceita o resultado do plebiscito de 14 de abril de 1931, e considera o governo republicano um governo ilegítimo. No Brasil, a posse de Jango e o plebiscito que restaura o presidencialismo são motivo de revolta entre os conservadores e alimentam um discurso que serve tanto para acusar o governo Goulart de autoritário e ilegal, como emprestar ao movimento golpista um oportuno verniz de legalidade

Apontamos, ainda, na esfera do que Detienne (2002/2004) indica como pontes de acesso à consciência história, a questão da invocação da memória. Na Espanha, os conservadores evocam o passado antiliberal, elitista, glorioso e imperial em frente uma etapa democrática de massas, caraterizada pela decadência e a dissolução de todos os valores; no Brasil, centram na articulação de Jango com o período ditatorial de Getúlio Vargas, de quem Goulart é herdeiro político, e sobretudo com a vinculação das reformas propostas com suposições como ameaça comunista, golpismo, ataques à constituição. A relação entre consciência histórica e imprensa está articulada - em nossa proposta, apoiada em Sodré (2009) - na concepção da mudança assimilada como acontecimento midiático, visão consolidada na modernidade. Nesse sentido, o exercício compara tivo realizado neste artigo serve como porta de entrada para um entendimento específico sobre os modos de produção e acesso aos discursos jornalísticos, entendidos como interfaces midiáticas da compreensão da mudança nas sociedades modernas. No caso Espanhol, um laboratório de técnicas propagandísticas de todo tipo de manipulação; no caso brasileiro, uma versão sofisticada de grande esquema ideológico que fomenta aquilo que denominamos “placenta dos golpes”. Em ambos os casos, a imprensa analisada, ao se colocar como lugar privilegiado de fala (no caso espanhol, com uma imprensa de matriz opinativa europeia) ou como lugar fora da política, isento e objetivo (no caso brasilei ro, com o jornalismo de matriz norte-americana), funda sua legitimidade no princípio da superioridade da razão discursiva, alimentando o que Sodré (2009) chama de uma “ideologia da transparência pública”, mas que, contraditoriamente, como pudemos observar neste exercício de análise, serve à construção de uma hegemonia que evidencia no plano macroestrutural do discurso as relações entre endogrupo e exogrupo (van Dijk, 2005).

Agradecimentos

Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático). Agradecemos ainda o apoio da bolsa Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; 2013-2017).

Referências

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1Uma versão ampliada deste artigo foi apresentada no “8.º Congresso do Consejo Europeo de Investigaciones Sociales en América Latina”, organizado pelo Instituto de Iberoamérica da Universidade de Salamanca entre os dias 28 de junho e 1 de julho 2016.

2Sobre este particular, ver Checa Godoy (1989) e, especialmente, Barreiro (2004).

3A busca por descritores exatos produz distorções. O tema da reforma agrária é debatido em outros espaços do jornal além dos apresentados pela busca do acervo online com esses termos. “Decreto da SUPRA” ou “reforma no campo” seriam termos adequados para produzir um resultado mais completo sobre a cobertura a respeito do assunto. De qualquer forma, acreditamos que a amostra selecionada, ainda que parcial, é consistente para desenvolver os objetivos deste artigo

Recebido: 15 de Fevereiro de 2022; Aceito: 18 de Março de 2022

Camila Garcia Kieling é professora adjunta da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil), e doutora em comunicação social pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da mesma instituição. Email: camila.kieling@pucrs.br Morada: Av. Ipiranga, 6681. CEP 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil

José Manuel Peláez Ropero é doutor em história pela Universidade de Salamanca e doutorando em ciências da comunicação, sendo investigador da linha de estudos culturais do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (Portugal). Email: rubeum@gmail.com Morada: Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga, Portugal

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