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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.10 no.1 Braga jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.4157 

Entrevista

O Lugar da Textualidade na Arte: Entrevista a Bernardo Pinto de Almeida

i Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Braga, Portugal


Bernardo (Alberto Frey) Pinto de Almeida (Peso da Régua, 1954) é poeta e ensaísta com obra publicada em Portugal e no estrangeiro. Desde 1974 desenvolveu atividade poética, teórica, historiográfica e crítica. É investigador e professor catedrático de história e teoria da arte. A partir de uma relação próxima com alguns dos principais artistas portugueses da segunda metade do século XX, elaborou aproximações críticas às respetivas obras em cumplicidade de criação, diferenciando assim o seu de outros discursos críticos1.

Descendo as escadas rumo ao café-bar de Serralves, contíguo à biblioteca, local de encontro pré-combinado com Bernardo Pinto de Almeida, surpreendo-me com o sossego, acompanhada, em contraponto, da minha memória dos muitos estudantes que por ali encontrara na última visita, ocupando todas as mesas das redondezas. É dia 11 de maio de 2022 e a tarde, estendida de fora para dentro e da qual as vidraças de Siza me permitem fruir, encontra-se parcamente luminosa. Tendo chegado mais cedo, começo por tomar um pausado café e espalho os livros, assim como os apontamentos, sobre a mesa - além da minha, apenas uma outra se encontra ocupada - dedicando-me à revisão do meu guião. A comunicação e a mediação artística, assunto da conversa que pretendo fomentar, desdobra-se em múltiplas dimensões, e penso de antemão que talvez não seja expectável explorar a temática até à sua exaustão. Guardo como princípio orientador a entrevista enquanto acontecimento, um passeio a dois sem rumo certo, pelos meandros de um pensamento que se vai desvelando, de parte a parte, motivado pela referência a um objeto que ao mesmo tempo serve de âncora partilhada e catapulta os interlocutores para a deriva. Antevendo Baudelaire (2006) como mediador e referência comum, em aproximação ao discurso do entrevistado, penso no potencial da conversa que nos aguarda nos termos da modernidade, em jeito de “prazer fugidio da circunstância”, prática de extração do “eterno no transitório”, exercício de pôr em comum um conhecimento e uma experiência que se atualizam no desenrolar de uma contingência.

Enquanto isso, vejo subitamente chegar Bernardo Pinto de Almeida. Depois de um prelúdio feito de lembranças da sua passagem pela Universidade do Minho, em tempos idos do Instituto de Ciências Sociais, damos início a uma costura de ideias que se vão desenrolando a par e passo, sem pressa, e afinal de contas com destino a uma nova paragem, que por sua vez será o ponto de partida para a transcrição que neste contexto se publica.

Helena Pires (HP): Na revista do Expresso no último fim de semana, encontrei um artigo (Martins, 2022) sobre o quadro de Warhol que representa a Marilyn sobre um fundo azul, discutindo o valor astronómico que a obra atingiu, tendo em consideração a história da arte, uma vez que a obra em causa ultrapassou, no mercado, o próprio Picasso. Reproduzindo um excerto do artigo pode ler-se: “o Arthur Danto viu nas caixas Brillo fac símiles das caixas de sabão que qualquer cidadão americano poderia encontrar no supermercado aquilo que só poderia ser definido como arte pela mediação ou curadoria” (Martins, 2022, pp. 53-55). A questão que eu coloco - e tendo presentes as noções clássicas da perda da “aura”, os efeitos da “reprodutibilidade técnica” - é se a partir da arte moderna, definida precisamente na sua aproximação à vida prosaica e mesmo pela adoção dos mecanismos da referida “reprodutibilidade técnica”, a arte não abriu espaço ao incremento da importância da crítica, ou de outra formas de mediação como modo de legitimação da obra e do artista.

Bernardo Pinto de Almeida (BPA): Primeiramente, defendo uma certa conceção histórica da arte, isto é, acho que a arte precisa de uma paisagem, de um fundo de historicidade para ser pensada nos seus sucessivos regimes. Mesmo a contemporaneidade, que a meu ver é um período pós-histórico, no sentido em que a própria arte não se concebe historicamente - ou não se tem concebido historicamente nos últimos 20 ou 30 anos - mesmo aí a arte é historicamente pós-histórica. Isto é, ela não deixa de ter uma componente histórica, mesmo na sua negação pós-histórica.

Porque é que começo por aqui? Porque defendo que há um violentíssimo corte entre a modernidade e aquilo a que poderíamos chamar a época clássica. Vamos designar por época clássica a que vai até ao romantismo, digamos, toda a arte que se faz até ao romantismo. Porque a matriz que atravessa o modelo de produção da arte e de compreensão da arte até ao romantismo estabelece como que uma continuidade. A partir da modernidade, essa tipologia muda e essa matriz muda também.

O que é que muda? Muda, em primeiro lugar, o regime do discurso. Toda a arte clássica é feita sobre uma conceção em que o discurso precede o fazer. Por exemplo, se olharmos para a arte da Renascença, e mesmo a que é prévia à arte da Renascença, existe uma conceção da arte e da cultura que atravessa os domínios da filosofia, do pensamento - não é o pensamento estruturado como o que temos hoje - e desde o próprio Vasari que existe um pensamento da arte que define os termos em que a arte deve ser feita. Portanto, poderemos dizer, mesmo se apressadamente, que existe um discurso que é prévio ao fazer. E quando o Leonardo, o Miguel Ângelo, o Rafael... os nomes maiores da história da arte desse período, avançam para o ato artístico, não só se ancoram sobre uma formação técnica e um domínio sobre tudo o que se sabia sobre a execução, sobre o desenho e sobre a conceção do espaço, entre outros, como partem de uma filosofia perfeitamente estruturada e profunda, que vem da Grécia, e em parte passa por Roma. Basta dar dois ou três exemplos: a Escola de Atenas, de Rafael, é um tratado de geometria, mas também de teoria e de pensamento filosófico; temos Platão e Aristóteles e uma série de grandes pensadores representados, o que mostra até que ponto tudo aquilo é um processo concetual profundamente estruturado, ontológico e teológico, como na Capela Sistina, onde há uma chave onto e teológica fortíssima.

Deus entrega o mundo ao Adão… toda a obra de Miguel Ângelo tem uma dimensão teológica fortíssima e um conhecimento profundo de toda a teologia da época, mas também da medieval e da antiga. O artista era alguém que tinha uma posse extraordinária de todo o conhecimento e saber que existiam até então. Do mesmo modo, a Primavera, de Boticelli contém 500 espécies de plantas que já foram identificadas (pode ser que até sejam mais). Ou seja, a Primavera de Boticelli é também um tratado de botânica, num sentido quase enciclopédico. A arte clássica é uma arte enciclopédica que veicula todo o conhecimento que existe no seu tempo…

HP: E que de algum modo sintetiza…

BPA: …e sintetiza. Porque havia uma dimensão pedagógica, nomeadamente na Idade Média, na educação dos fiéis… estou a falar do ocidente.

A modernidade veio introduzir uma descontinuidade enorme relativamente a este processo. A ideia de que a arte, em vez de se apoiar no que foi, poderá apoiar-se sobre o que é ou sobre o que será. Quando Baudelaire, um dos maiores pensadores de sempre da arte, escreve esse texto extraordinário, que é a bíblia de toda a modernidade, O Pintor da Vida Moderna, estabelece que nem todos temos de continuar a fazer como os clássicos. Nem temos de continuar a vestir as nossas personagens, as personagens que habitam a nossa pintura, como se vestiam os clássicos, porque nós já somos outros. Portanto, nós temos de criar o nosso próprio modelo de pensamento e transportá-lo para as figuras que um dia farão a nossa própria posteridade, isto é, os que um dia olharão para nós tal como nós olhamos para os clássicos, fazendo de nós exemplos de outra época…

HP: Trata-se de um convite à criação de novas referências?

BPA: Novas referências, absolutamente. Vejam-se dois ou três exemplos. O Manet é um pintor extraordinário, que introduz uma violência inaudita: todo o sistema da vida moderna dentro do espaço, os teatros, os cabarets, as ruas, as corridas em Longchamp, o que hoje chamamos de espaço público, o Jardim das Tulherias… em Manet encontramos a pintura do seu próprio tempo. E aí introduz-se um corte absoluto com o modelo clássico. Vejamos Rodin. Quando traz Os Burgueses de Calais, quando traz o Balzac, dá-nos já a configuração moderna. E já não vemos a beleza clássica, vemos um homem gasto pela vida, deformado… desaparece essa consistência do espaço clássico e exemplar em benefício de uma tensão profunda do real.

E a partir daí a arte irá caminhar nessa direção.

HP: Em aproximação à vida comum?

BPA: Sim, à vida comum. O que significa descer da bitola dos modelos ideais. A biopolítica, já...

HP: Descomprometendo-se da sua ligação com os paradigmas clássicos da sua história e ligando-se à atualidade?

BPA: Toda a modernidade é um processo eminentemente histórico e, mais do que a arte clássica que dialogava bem com a Grécia e Roma, a arte moderna quer a história. A história é o seu horizonte e o seu desejo.

HP: Quer-se comprometida?

BPA: Quer-se comprometida. Em certa medida, a modernidade atenta o presente como horizonte. Se o “texto” da arte clássica é o conhecimento todo de que se dispõe, o texto da modernidade é o jornal. É o saber do dia.

HP: A atualidade.

BPA: É a atualidade, sim. Mas sobre este processo que a modernidade introduz vai-se gerar um outro que é absolutamente inesperado e que, a meu ver, é filho da precipitação dos acontecimentos, sobretudo a Revolução Industrial e a I Guerra Mundial que dão uma enorme aceleração ao tempo e ao tempo histórico. E o modernismo, a meu ver, nasce ali no princípio do século XX, entre 1905 e 1910.

Atende, por um lado, a essa nova episteme, trazida pela industrialização, e procura integrar os processos maquinais que a própria indústria tinha trazido. O real já não é simplesmente o real do vivido, mas é também o real da máquina, o real da aceleração do tempo e do espaço, é o real da mecânica. Há no modernismo uma lição, um atendimento profundo à realidade nova. O Marinetti vai escrever, no Le Figaro, no “Manifesto dos Futuristas”, “um automóvel de corrida é tão belo como a Vénus de Milo”… Isso significa muito. Significa que, a partir de agora, o clássico tem de dar lugar a outra coisa. Aqueles primeiros 20 anos da arte moderna, entre 1905 e 1925, grosso modo, que acompanha inclusivamente a I Guerra Mundial, são de uma aceleração absolutamente portentosa como nunca se tinha visto antes.

HP: Em poucas décadas…

BPA: Nem duas, é um espaço curtíssimo. E é numa Europa muito pequena, porque é no centro da Europa, a França, a Inglaterra, a Alemanha… e depois irradia, e ao mesmo

tempo tem uma potência de absorção fortíssima… há ali um caldeirão…

HP: …uma mobilidade entre as capitais…

BPA: Mesmo Moscovo… há uma irradiação que é ao mesmo tempo uma absorção. E isso assinala uma nova hipótese que já não é a do atual, mas a do futuro. Há uma inversão do paradigma temporal.

HP: Uma leitura do real antecipando as mudanças que já deixam indícios?

BPA: Exatamente. Essa para mim é a questão central do que estávamos a falar.

Ou seja, passamos de uma estrutura cultural e conceptual que é da arte clássica, baseada no que se sabe para o que já se sabia - aliás há uma frase muito célebre de São Tomás de Aquino: “somos anões às costas de gigantes”, designando todo o saber da Idade Clássica… - passamos de uma situação baseada sobre o conhecimento profundo de tudo o que havia, para um novo modelo de conhecimento, baseado no atual e atento aos sinais do atual… porque a modernidade durou 40 anos, de 1860 a 1900.

Muito rapidamente o modernismo veio fazer uma nova volta na perceção do mundo em que deixa de ser o atual ou o que era antes para passar a ser o que virá. E então todo o horizonte de legitimidade da arte passa a ser o destino que o futuro irá trazer adiante. Trata-se de uma nova conceção do tempo. Isto acaba por ter consequências muito profundas, nomeadamente na falta de haver um texto, um texto prévio, no sentido em que falávamos. O modernismo não tem texto. Ele projeta-se num tempo a vir e num “texto” que legitima, a cada momento, as suas várias voltas. O modernismo nunca é, vai ser, o modernismo será. Esse será, essa dimensão quase ontológica de um ser a vir, de um devir…

HP: … podemos falar já do devir de Deleuze?

BPA: Sim, é uma projeção no tempo. O devir-outro que requer o texto que está por escrever.

HP: Apela ao texto, pede o texto.

BPA: Requer o texto e dá à crítica uma importância que ela nunca tinha tido.

Porque a crítica era, até à modernidade, o modo como uma determinada produção pertencia a uma escola… a nova crítica projeta a justificação do que será.

HP: Produz sentido?

BPA: Produz sentido, exatamente.

Dou-lhe um exemplo. Quando Duchamp manda o urinol para a Sociedade de Artistas Independentes e aquilo é recusado, faz publicar um pequeno escândalo na revista The Blind Man - uma imagem da obra, fotografada por Alfred Stieglitz, e o Apollinaire escreveu um texto justificativo em que diz: era o que faltava não considerar a arte da casa de banho na arte do nosso tempo. Um urinol, na tradição artística, não fazia sentido nenhum. E todo esse processamento concetual projetado no futuro exige um texto que constantemente o legitime.

HP: Por sua vez, o autor do texto não é desconhecido e o contexto de publicação também é legitimador.

BPA: Absolutamente. Este processo arrasta-se, tem uma grande interlocução na II

Guerra Mundial em que o processo cultural que parecia galopar a todo o vapor…

HP: É refreado…

BPA: … é refreado e mais, é reprimido. E aí seria uma longa conversa.

HP: Entretanto, saltamos para os referenciais dos Estados Unidos da América (EUA), nas décadas de 50/60…

BPA: Porque há uma deslocação...

HP: A Europa deixa de ter condições para proporcionar um espaço de liberdade?

BPA: Já não tem. Há um effondrement da Europa… um afundamento. A Europa perde a capacidade de atribuir legitimidade a esta arte. Porque a cultura europeia não esteve à altura de impedir o massacre e a guerra. Aliás, nós estamos agora a assistir outra vez a uma situação tremenda desse ponto de vista.

HP: Com efeitos na arte?

BPA: Se chegássemos a uma terceira guerra, seria trágico.

HP: O mundo da arte não está incólume.

BPA: Não pode. Nesse sentido, quando a arte se desloca para os EUA, no fim da década de 40, logo a seguir à guerra, aparecem novos contextos. Os EUA praticamente não tinham arte no sentido clássico…

HP: … não tinham a tal herança, a tal história…

BPA: Portanto, tinham uma liberdade de experimentação incomparavelmente maior.

Nos EUA a arte tornou-se um assunto de Estado. Passou a ser vivenciada de uma maneira que a Europa desconhecia. Fizeram-se museus a partir dos anos 30. Coisas extraordinárias. Guggenheim, Rockfeller… houve uma aceitação da arte europeia. Nos anos 30, em 35 ou 36, o Picasso teve a primeira retrospetiva nos EUA e ainda estava a ganhar espaço na Europa embora com grande prestígio, mas já tinha uma retrospetiva nos EUA. Os dadaístas tiveram uma retrospetiva nos EUA quando da Europa tinham sido escorraçados.

Duchamp teve um prestígio enorme nos EUA...

HP: Estou a pensar no próprio Beuys, que teve também uma enorme projeção nos EUA.

BPA: Isso foi uma mudança. Acolheram a arte que lhes faltava. O Duchamp diz isso nas entrevistas. Como dizia o Duchamp em 68, tudo era muito fácil porque não só nos EUA tinham um enorme apetite pela arte como estavam dispostos a gastar dinheiro nisso, como aceitavam praticamente tudo, porque eram um pouco ingénuos. É Duchamp quem o diz, não sou eu, mas isso é evidente. Porque, de facto, eles abriram-se a uma experimentação muitíssimo grande. Muito baseada sempre na possibilidade do futuro.

HP: À época, o que acontecia com atividades como a crítica?

BPA: Era fortíssima. Desde o Greenberg ao Schapiro, antes dele, o Michael Fried, que ainda é vivo… A América introduziu muito cedo a crítica da arte moderna e a história no ensino nas universidades. Criou revistas. O Rauschenberg, em 66, é trazido à Bienal de Veneza, porque havia um departamento de estado para isso, e Rauschenberg beneficia de uma bolsa da Agência de Informação dos Estados Unidos que é um fundo que hoje se sabe que pertencia à CIA. Fazia parte da estratégia americana, para fazer oposição ao socialismo, na Rússia.

Havia uma política que dizia que a América era tão livre que fazia arte abstrata, lá onde os russos continuavam a pintar painéis e a glorificar figuras-tipo no realismo socialista.

A arte abstrata americana, desde os anos 50, é protegida pelo estado americano como assunto de propaganda do mundo livre contra a União Soviética. Como o cinema americano o foi, tal como a dança.

Por outro lado, este grupo, John Cage, Rauschenberg… que definem a abertura, no fim dos anos 50, a esta nova paisagem americana, são os primeiros grandes legitimadores.

Os surrealistas em particular foram para os EUA fugidos à guerra. E já depois de a guerra acabar, nos anos 50/60, o Warhol diz nos seus diários que o John Cage era a pessoa mais influente em Nova Iorque. Alguns vinham da Bauhaus europeia. Os americanos fizeram uma assimilação profunda do modelo modernista. Quando Warhol surge, este já tem espaço onde se afirmar. Os ready-mades de Warhol são uma continuidade relativamente a Duchamp.

HP: Por falar em Warhol, e voltando à importância do texto, é sabido o quanto este geria estrategicamente a sua carreira e cultivava uma boa relação com os críticos, os galeristas, os marchands

BPA: Muito, muito… alguns eram imigrantes judeus que se tinham fixado nos EUA e que tinham capital. Há uma entrevista célebre com o Warhol que está no YouTube em que lhe fazem uma pergunta e ele diz “não sei responder a isso, perguntem ao meu galerista”.

HP: Como quem diz, o discurso não é comigo.

BPA: O discurso não é comigo.

Pode-se entender com isto uma consignação, uma entrega ao texto de outrem. Um texto que explique o que eu faço. Ora, esta passagem, voltando à arqueologia que fiz e aos sucessivos modelos, vai conduzir, de facto, à condição pós-moderna da arte, nos finais da década de 70, quando Lyotard publica aquele texto A Condição Pós-Moderna. O pós-modernismo na arte está antecipado porque o pós-modernismo consiste numa viragem epistemológica, num linguistic turn, que consiste na passagem de um modelo compreensivo para a ideia de que a arte corresponde a um pensamento que está a ser construído ali ao lado e que é isso que haverá de explicar a própria eclosão da arte.

HP: É, pois, acentuada a dependência da produção discursiva.

BPA: Absolutamente. Tentei falar sobre isso no último livro que publiquei. A arte americana, marcada por Duchamp e não só, e por uma linha protestante, é a arte do texto e não da imagem. Quer dizer, enquanto a arte europeia, católica, é uma arte da imagem…

HP: Dada a tradição da iconicidade…

BPA: Tudo isso… a arte americana é uma arte do texto. A ideia de que há uma explicação para a imagem.

HP: A perceção da arte muda, mas também a auto-perceção do artista.

BPA: O artista que faz a imagem, o iconografista pode, de repente, fazer a imagem para um texto. Veja-se Lichtenstein. A arte concetual é baseada na ideia de que existe um texto. Tudo é explicativo.

HP: O próprio processo?

BPA: O próprio processo. O primeiro artista da arte pós-modernista é um crítico de arte, Donald Judd. Muda de função, passa de crítico a artista.

Ou seja, a arte americana é uma arte eminentemente textual, assenta sobre um regime de discurso e deixa de ser uma arte da imagem que valia por si mesma e que era a tradição europeia. Nesta diferença assenta o fundamental daquilo a que se chama “pós-modernidade”. Não como conceito sociológico, mas como passagem de um paradigma para outro. É uma arte não da imagem, mas da textualidade.

HP: Estávamos a falar de crítica e eu estava a pensar que se assiste também a uma mudança, inclusive de terminologia, uma vez que hoje se fala talvez mais de curadoria. A crítica teve já um papel mais legitimador da arte e do artista nesse mundo mais fechado, o mundo da arte, e hoje, se calhar, podemos observar a deslocação da crítica para a curadoria, até porque o termo é mais popular atualmente e terá ocupado, pergunto, o lugar da crítica, expandindo as suas competências. Pergunto ainda se a curadoria não expandiu também, se não abriu esse limite, esse mundo fechado da arte, uma vez que se preocupa com os públicos e não apenas com o marchand, o galerista e daí esta estratégia diferente que procura definir o modo de chegar aos públicos. Por isso é que se calhar se fala hoje da educação artística, do serviço educativo… Não há galeria que se preze que não tenha o seu serviço educativo. Tudo isto dá-nos que pensar sobre um conjunto de mudanças que não se cingem a uma questão de terminologia. O que é isto de curadoria, de educação artística, de mediação?

BPA: Concordo com tudo o que disse. Apenas acrescentaria uma dimensão, que a meu ver é fundamental. Com o desenvolvimento das nossas sociedades democráticas, com a vitória do modelo neoliberal do ocidente, essa conquista de um espaço democrático aberto, dependente de um discurso e de uma legitimação, sem dúvida, mas aberto e experimental, com a influência dos americanos que começam por defender que é possível educar pela arte, uma arte para as pessoas se desenvolverem, o levar as crianças aos museus. Lembro-me que nos anos 70, nos museus, via-se meia dúzia de gatos pingados...

HP: Além de que hoje podemos falar também da mercantilização da arte…

BPA: Além disso. Mas quando visitei os museus europeus no fim dos anos 70, lembro-me do Museu de Prado sem grandes multidões. Hoje já não é assim. O espaço público abriu-se à arte.

HP: E a arte abriu-se ao espaço público.

BPA: E a arte abriu-se ao espaço público. A mudança do paradigma crítico para o paradigma curatorial tem a ver com isto. O curador é quem faz a mediação. Enquanto o crítico era uma figura que ainda procurava explicar a arte num plano erudito, o curador faz a mediação para o público. Descodifica e mostra ao tempo o tempo. Isto é, como se a arte do seu tempo pudesse conviver com outros tempos. Ora isto modifica a própria natureza da arte.

HP: Estou a pensar em Jeff Koons…

BPA: Já se trata de uma arte-espetáculo. É um homem inteligentíssimo.

HP: São artistas que captam o espírito do seu tempo…

BPA: Sem dúvida. Quando o Koons fez a primeira retrospetiva na Europa, no Centro Georges Pompidou - e isto é muito interessante do ponto de vista da sociologia da arte, pelo menos - a sala maior era do Jeff Koons e a sala geralmente atribuída a artistas com alguma importância, mas menores, era do Duchamp. Ora, isto mostra uma mudança de paradigma profunda. Duchamp era o herói da arte na contemporaneidade, mas curiosamente surge invertido. No dia da inauguração perguntavam ao Koons o que achava da sua exposição coabitando com o Duchamp e ele dizia, “acho muito interessante que haja duas exposições de dois artistas que se interessaram pelo ready-made”. Como se o Duchamp não tivesse inventado o ready-made e ele não fosse apenas um continuador...

HP: Colocou-se a par.

BPA: Colocou-se completamente a par. É isto a pós-história. É um tempo em que se faz tábua rasa da sucessão histórica. Porque o tempo agora não se pensa historicamente, mas pensa-se circularmente.

HP: Voltando a Koons, ele tem sido acusado de plágio…

BPA: Está sempre a ser acusado. Tem mais processos de plágio do que qualquer outro artista contemporâneo. Aliás isso só fazia sentido no período da conceção histórica, que foi suspensa...

HP: Apesar de tudo, podemos dizer que ele tem uma linguagem própria?

BPA: Tem. É um seguidor do Warhol. Leva o paradigma do Warhol à exaustão. O Koons é um artista milionário que trata a sua arte como quem trata do seu negócio.

HP: Sem pudor…

BPA: Sem qualquer pudor. Sorrindo o tempo todo. É uma figura absolutamente medial. Uma figura mediática, uma pop star. Inscreve-se no mundo das atrizes de cinema, no mundo da moda… é uma figura que se confunde com a cultura popular.

HP: Koons rompe com essa distinção entre a cultura erudita e a cultura popular…

BPA: Com certeza. Mas essa distinção existia no modernismo. O próprio Adorno baseia toda a teoria estética numa separação fundamental entre o modelo da cultura popular e o modelo da cultura erudita, e a Escola de Frankfurt, no fundo, transporá essa mensagem, o que foi completamente dissolvido pela contemporaneidade.

No modernismo, os interlocutores dos críticos não são o grande público. Antes o pequeno mundo da arte. O curador, nesse sentido, é uma figura de mediação incomparavelmente mais destinada a uma medialidade aberta, isto é, não pode ignorar o público.

Mas ainda há resistências e mesmo ressentimento.

HP: Estava a pensar no perfil do curador, já que este pode reunir competências múltiplas, a produção, a mediação com o próprio artista, a mediação com os órgãos de comunicação social, o papel pedagógico, mas há quem considere que o curador hoje quer entrar também no campo quase autoral. Até porque a produção discursiva também vai ganhando relevo. Aliás, os média destacam sempre a referência a uma dada exposição comissariada por

BPA: Há uma transformação entre o paradigma modernista e o contemporâneo em que a pós-modernidade é um ponto de passagem. A contemporaneidade caracteriza-se pela perda de uma dimensão autoral e pelo deslocamento do papel do autor para a realidade da própria arte.

Com Matisse, há ainda uma disputa sobre o reconhecimento do papel do génio. Este modelo de distinção e de mediação evoluiu para um outro em que a arte existe por si mesma (no fundo, um modelo mais parecido com o do século XVIII). Trabalha-se para a arte e não para o mundo. Koons faz aquilo que já é arte quando se começa a fazer, ou seja, vai para a arte como o operário vai para a obra. Ele é o patrão (de uma equipa). A arte é para a sociedade.

Há uma deslocação da figura do indivíduo para a figura do coletivo. Mas o problema é como é que o público percebe aquilo a que se chama “arte”? O curador ajuda na mediação assentando em si o protagonismo da atividade. Os curadores duram 15 dias, três semanas, dois anos… não duram mais do que isso. O curador é como o pivô de televisão. Tem sucesso enquanto o programa está no ar.

HP: O seu protagonismo é temporário?

BPA: É temporário. Mas enquanto ele é o pivô, ele define o que deve ser mostrado. É uma figura de mediação de entre os poderes. O curador é aquele que explica aos média a importância daquilo que se expõe. E não explica apenas, traduz numa linguagem mediática.

HP: E reinventa sentidos?

BPA: Reinventa sentidos já mediatizados. Enquanto que o crítico modernista falava para Deus, o curador fala para o comum dos mortais. E para os média. Não há exposição com algum significado hoje que não seja precedida de uma abordagem aos mecenas, entre outros, uma pré-visita… ou seja, há uma nova sociologia da arte. Isto significa a natureza da arte, por um lado, a arte de carácter coletivo, apesar do modelo artístico assente na figura do herói ainda estar muito presente. O artista hoje é apenas o artesão.

Aquela figura inacessível acabou.

O que não quer dizer que não possa aparecer um por outro. Ao tornar-se uma coisa muito mais coletiva e coletivizada, a arte participa na construção ideológica da sociedade. Isso é muito importante. Os museus estão cheios de gente e, de facto, o propósito de acabar com a arte enquanto algo de acesso apenas por parte das classes mais privilegiadas realizou-se.

Com o sacrifício da perda da soberania do artista, que perdeu a sua aura (de genialidade). E o crítico, que deixou de ser aquele que esclarecia. O curador faz isso diretamente para os média. E aberto à contaminação do mercado. A arte contemporânea exige um mercado fortíssimo.

É preciso que exista muito dinheiro a circular. Que o mercado tenha crescido, não é uma coisa negativa. É uma vantagem para a arte. Este novo regime da arte esclarece a arte neste novo paradigma de massas. Não há nenhuma sociedade que tenha gasto tanto dinheiro com a arte como a nossa sociedade democrática no ocidente. Isso significa que damos à arte um valor extremo. A arte democratiza a sociedade. É um mobilizador social tão forte que produz a sociedade económica, a sociedade financeira… e o público. Hoje a arte ocupa, quase, o lugar da religião no século XV. E a arte é mais política hoje do que alguma vez foi.

HP: Abordando uma questão mais específica, acredita no papel do serviço educativo da arte no contexto das diferentes organizações? É importante formar os públicos e não apenas abrir as portas da galeria ou do museu?

BPA: Faz parte, no contexto da cultura democrática, que a arte criou como educadora da própria sociedade. Hoje a arte tem um papel fundamental na educação das sociedades. Porquê? Porque a arte continua a ser um lugar de experimentação social, política e simbólica.

Quando um modelo artístico qualquer aparece, embora já não tenha o carácter escandaloso que tinha no modernismo (mulheres com três olhos, etc.), a arte também se tornou num dos elementos do pensamento da própria contemporaneidade.

Quando vamos ver uma exposição, podemos estar a ver o modelo de sociedade que antecipa qualquer futuro. Porque essa dimensão do diálogo aberto entre a arte e a sociedade está mais viva do que nunca. Não se trata de uma arte que se projeta no horizonte do futuro, no sentido de dizer hão-de acabar por dizer que temos razão, mas trata-se pelo contrário de uma telescopagem do futuro no presente.

A arte sempre teve um valor antecipatório. Só que antigamente criava escândalo quando avançava demais sobre o presente. Hoje, como a arte ensina, muito, a tolerância, a abertura, a disponibilidade para o outro… nós vemos imagens do futuro no presente. Esta aceitação é uma característica do contemporâneo. Hoje já não se discute se é bom ou se é mau. Está ali, é porque é para ver. Isto é uma alteração profundíssima da natureza das sociedades e da perceção da diferença.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. No âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

Referências

Baudelaire, C. (2006). A invenção da modernidade (Sobre arte, literatura e música; P. Tamen, Trad.). Relógio d’Água. [ Links ]

Bernardo Pinto de Almeida. (2022, 21 de novembro). In Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Bernardo_Pinto_de_AlmeidaLinks ]

Martins, C. (2022, 7 de maio). A fama em azul. Revista Expresso, 53-55. [ Links ]

1Para mais informação, ver “Bernardo Pinto de Almeida” (2022)

Recebido: 30 de Setembro de 2022; Aceito: 02 de Novembro de 2022

Helena Pires é professora associada no Departamento de Ciências da Comunicação, no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade do Minho, Portugal, e membro integrada do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Doutorou-se em Ciências da Comunicação, na área de semiótica da comunicação, pela Universidade do Minho, em 2007. Nesta mesma instituição, tem lecionado nas áreas de publicidade, semiótica e comunicação e arte. Durante quatro anos, até novembro de 2019, foi coordenadora do Grupo de Publicidade da Sociedade Portuguesa de Ciências da Comunicação. Tem publicado e desenvolvido trabalho de investigação no âmbito da cultura visual e urbana, nomeadamente sobre a paisagem (urbana), e em particular sobre a paisagem na arte contemporânea. É co-coordenadora da Passeio - Plataforma de Arte e Cultura Urbana, projeto de investigação e intervenção do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade/Universidade do Minho. Email: hpires@ics.uminho.pt Morada: Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4715-398 Braga, Portugal

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