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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.10 no.2 Braga dez. 2023  Epub 28-Fev-2024

https://doi.org/10.21814/rlec.5397 

Nota Introdutória

Nota Introdutória: BD Maravilha. Redefinindo o Género nas Narrativas Gráficas Ibero-Americanas

iCentro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal

iiCentro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas, Universidade do Minho, Braga, Portugal

iiiUniversidad Rey Juan Carlos, Madrid, Espanha


A banda desenhada e os romances gráficos - ou narrativas gráficas, como alguns preferem chamar-lhes (Chute & DeKoven, 2006) - são um meio de comunicação de sucesso crescente em todo o mundo, tanto em termos de popularidade como de reconhecimento crítico. O recente surgimento e disseminação do romance gráfico, um formato geralmente associado a “banda desenhada de maior dimensão e de temática adulta” (Baetens & Frey, 2015, p. 1) para o qual os canais de distribuição (nomeadamente, as livrarias) estavam anteriormente vedados, permitiu o renascimento das narrativas gráficas em muitas zonas do globo. Funcionou também como um salvo-conduto para a banda desenhada ser reconhecida em áreas de investigação académica que tradicionalmente se mostravam relutantes relativamente à nona arte, como a dos estudos literários. Por outro lado, o advento daquilo a que Manuel Castells (2004) chamou “sociedade em rede” (p. x) para identificar a crescente influência das tecnologias da informação e da comunicação no nosso quotidiano alargou significativamente o espetro de receção das narrativas gráficas e continua a desempenhar um papel fundamental na reformulação das possibilidades da banda desenhada. A banda desenhada digital, na Internet e nas redes sociais é, hoje em dia, uma realidade cujas complexas dinâmicas são estudadas no âmbito de um subcampo de investigação em expansão (Busi-Rizzi 2023; Busi-Rizzi et al., 2023; Wilde, 2015) que ultrapassa rapidamente as suas fronteiras disciplinares para conquistar gradualmente espaço e despertar interesse noutras áreas mais amplas, como os estudos culturais e as ciências da comunicação.

Tanto o formato de romance gráfico como o fenómeno da banda desenhada digital têm exercido um impacto significativo na visibilidade atribuída a autores não hegemónicos relativamente ao género e na representação de questões relacionadas com o género. O romance gráfico é um formato que, como os académicos têm salientado (Baetens & Frey 2015, pp. 10-13), constitui uma plataforma privilegiada para narrativas não ficcionais e, entre estas, para histórias de vida como as memórias gráficas, as biografias gráficas e os diários gráficos. Sendo as narrativas de vida, como as autobiografias e as biografias, uma prática criativa que as mulheres escritoras e outras subjetividades marginalizadas têm historicamente reelaborado e reapropriado (Kadar, 1992, p. 5; Henke, 1998; Cooke, 2020, pp. 7-8), não é de estranhar que muitas das autoras que se destacam através do romance gráfico sejam mulheres e artistas queer. Neste sentido, basta pensar em nomes proeminentes e já canonizados como os de Julie Doucet, Alison Bechdel, Marjane Satrapi, Liv Strömquist e Jul’ Maroh. Por outro lado, a banda desenhada digital tem contribuído para a democratização dos processos de publicação, permitindo que categorias de criadoras de banda desenhada, historicamente excluídas da indústria, experimentem plataformas (como websites de crowdfunding, plataformas de subscrição ou redes sociais) que quebram o modelo hierárquico cultivado pelo setor editorial tradicional, propondo assim dinâmicas mais horizontais e acessíveis para a produção, distribuição e consumo de banda desenhada. Desse modo, “reduz-se o risco de exclusão de autores/as e promove-se a inclusão de consumidores/as, facilitando a criação de comunidades capazes de agregar grupos sociais não hegemónicos e de lhes dar voz” (Mandolini & Busi-Rizzi, 2023, p. 110). As mulheres e criadores trans estão entre as categorias identitárias que, apesar de continuarem a ser discriminadas e assediadas mesmo no espaço digital, têm, na sua maioria, aproveitado e beneficiado da mudança tecnológica (Gandolfo & Turnes, 2020; Chakraborty, 2022; Mandolini & Busi-Rizzi, 2023).

No seguimento destas mudanças, a velha reputação da banda desenhada como um meio onde o sexismo é generalizado, a discriminação de género é normalizada e as ruturas com este padrão sexista só podem ser encontradas no segmento de nicho underground (Aldama, 2021, p. 1), está lentamente a abandonar a nona arte. Também os gigantes da banda desenhada mainstream estão a fazer um esforço evidente no sentido da igualdade de género, muitas vezes associando-o a uma tentativa homóloga de promover outros tipos de inclusão que visam evitar representações raciais, classistas e capacitistas. Estudos sobre esta matéria mostraram como as mulheres e pessoas não conformes com o género, apesar de ainda estarem sub-representadas ou estereotipadas, têm assumido progressivamente uma maior relevância nas publicações distribuídas por grandes editoras de banda desenhada como a Marvel ou a DC (Billard & MacAuley, 2017, p. 233).

Também os debates académicos têm vindo a refletir claramente esta tendência positiva, atribuindo mais espaço à análise de produtos culturais assentes na banda desenhada da autoria de mulheres e de criadores/as não conformes com o género ou abordando temas relacionados com o género. Os volumes académicos têm sido dedicados a um leque bastante diversificado de questões relacionadas com o espetro do género. A primeira menção vai para Graphic Women (Mulheres Gráficas; 2010), de Hillary Chute, uma referência incontornável para académicos interessados em banda desenhada e género no contexto da América do Norte e não só. Igualmente fundamental, o trabalho da historiadora e autora de banda desenhada feminista Trina Robbins, cujo Pretty in Ink (Bonita em Tinta; 2013) reconstitui a história das mulheres cartoonistas nos Estados Unidos desde o século XIX até à atualidade. Le Donne del Fumetto (As Mulheres da BD; 2009), de Sara Zanatta, Smanta Zanghini e Eleonora Guzzetta, e Straight From the Heart: Gender, Intimacy, and Cultural Production of Shōjo Manga (Diretamente do Coração: Género, Intimidade e Produção Cultural de Shōjo Manga; 2010), de Jennifer

H. Prough, International Perspectives on Shōjo and Shōjo Manga: The Influence of Girl Culture (Perspectivas Internacionais Sobre Shōjo e Shōjo Manga: A Influência da Cultura

Feminina; 2015) de Toku Masami, Remembered Reading: Memory, Comics and PostWar Constructions of British Girlhood (Leituras Evocadas: Memória, BD e Construções da Adolescência Feminina Britânica no Pós-Guerra; 2015) de Mel Gibson, Funny Girls. Guffaws, Guts, and Gender in Classic American Comics (Miúdas Engraçadas. Gargalhadas, Coragem e Género na BD Clássica Americana; 2018) de Michelle Ann Abate, The Inking Woman. 250 Years of Women Cartoon and Comic Artists in Britain (A Mulher da Tinta. 250 Anos de Mulheres Artistas de Cartoons e BD na Grã-Bretanha; 2018) editado por Nicola Streeten e Cath Tate, Gothic for Girls: Misty and British Comics (Gótico Para Miúdas: Misty e a BD Britânica; 2019) de Julia Round, UK Feminist Cartoons and Comics (Cartoons e BD Feministas do Reino Unido; 2020) de Nicola Streeten, Comic Art and Feminism in the Baltic Sea Region: Transnational Perspectives (Arte da BD e o Feminismo na Região do Mar Báltico: Perspetivas Transnacionais; 2021) editado por Kristy Beers Fägersten et al. e Sugar, Spice, and the Not So Nice: Comics Picturing Girlhood (Açúcar, Especiarias e o Não Tão Agradável: BD Sobre a Adolescência Feminina; 2023) editado por Eva Van de Wiele e Dona Pursall, são outros exemplos de livros académicos sobre raparigas, mulheres e feminismo no mundo da banda desenhada. O género, a banda desenhada e o género dos super-heróis é outra intersecção de investigação bastante popular entre os académicos contemporâneos, como demonstrado pela recente publicação de volumes como Wonder Woman. El Feminismo Como Superpoder (Mulher Maravilha. O Feminismo Como Superpoder; 2017) de Elisa McCausland, Gender and the Superhero Narrative (Género e a Narrativa do Super-Herói; 2018), editado por Michael Goodrum, Tara Prescott e Philip Smith, Wonder Woman and Captain Marvel: Militarism and Feminism in Comics and Film (Mulher Maravilha e Capitão Marvel: Militarismo e Feminismo na BD e no Cinema; 2020) de Carolyn Cocca, e Hot Pants and Spandex Suits: Gender Representation in American Superhero Comic Books (Calças Justas e Fatos de Licra: Representação do Género na BD de Super-Heróis Americana; 2021), de Esther De Dauw. Entre as publicações mais gerais sobre esta matéria contam-se o Routledge Companion to Gender and Sexuality in Comics Books Studies (Guia Routledge Para os Estudos Sobre Género e Sexualidade nas Revistas de BD; 2021), editado por Frederick Luis Aldama, Intersectional Feminist Readings of Comics: Interpreting Gender in Graphic Narratives (Leituras Feministas Interseccionais da BD: Interpretar o Género nas Narrativas Gráficas; 2021), de Sandra Cox, e À Coups de Cases et de Bulles: Les Violences Faites aux Femmes Dans la Bande Dessinée (Golpes de Quadrinhos e de Balões: A Violência Contra as Mulheres na BD; 2023), editado por Frédéric Chauvaud, Lydie Bodiou, Jean-Philippe Martin, e Héloïse Morel. O tema foi também abordado em números especiais de revistas académicas reconhecidas internacionalmente. Destacam-se “Superheroes and Gender” (Super-heróis e Género), editado por Peter Coogan, Mel Gibson, David Huxley, Joan Ormrod e Derek Royal para o Journal of Graphic Novels and Comics (2011); “Wonder Woman Symposium Issue” (Edição do Simpósio da Mulher Maravilha), editado por Vera J. Camden e Valentino L. Zullo para o Journal of Graphic Novels and Comics (2018); “Feminist Comics in an International Frame” (A BD Feminista numa Vinheta Internacional), editado por Sally Munt e Rose Richards para Feminist Encounters (Encontros Feministas; 2020); “Feminist Discourse in Comics & Graphic Novels” (O Discurso Feminista na BD e no Romance Gráfico), editado por Houman Sadri e Anna Misiak para MAI: Feminism and Visual Culture (2023).

A clara predominância de publicações anglo-centradas não é casual. Pelo contrário, espelha o papel hegemónico que a cultura anglo-americana teve e continua a ter relativamente à produção de investigação académica e crítica sobre questões relacionadas com o género e as narrativas gráficas. Deste modo, ficam de fora muitas produções de banda desenhada oriundas de outros contextos culturais e escritas noutras línguas que não o inglês. Apesar de existirem autoras e autores de banda desenhada feministas e queer em muitos contextos geoculturais, é necessário fazer um esforço maior e mais consistente para que o seu trabalho não seja invisibilizado ou marginalizado, quer pela forte carga heteropatriarcal das sociedades em que se inserem, quer pelas lacunas do setor académico internacional dominado pela produção anglo-saxónica.

Esta secção temática, intitulada BD Maravilha. Redefinindo o Género nas Narrativas Gráficas Ibero-Americanas, visa precisamente este exercício de redirecionamento crítico, explorando o papel do género na produção, consumo e circulação das narrativas gráficas criadas no contexto Ibero-Americano, um vasto e heterogéneo recipiente de espaços culturais ligados por traços históricos, linguísticos e políticos comuns. Nos países Ibero-Americanos (Espanha, Portugal e América Latina), a banda desenhada (também chamada historietas, quadrinhos ou BD) tem tradicionalmente representado uma parte significativa das produções culturais e dos modos de comunicação. Nos últimos anos, a popularidade das narrativas gráficas atingiu novas proporções nestes países, tirando geralmente partido de uma tendência já existente para encarar a banda desenhada como um meio essencial no contexto da produção cultural nacional (pensemos, por exemplo, na importância histórica da historieta argentina, ou na relevância política que as HQs - histórias em quadrinhos - tiveram ao longo dos anos da ditadura e pós-ditadura no Brasil). A isto acresce a emergência de movimentos e teorias feministas avançadas e, em alguns casos, globalmente bem-sucedidas, sobre a questão da discriminação e violência de género, que encontraram com frequência no meio da banda desenhada um aliado amigável, o que facilitou a disseminação de mensagens políticas feministas e queer. Exemplos disso são os movimentos argentinos pela legalização do aborto e contra o femicídio (Ni Una Menos): ambos foram sustentados por narrativas gráficas feministas que ajudaram a disseminar as mensagens políticas nas redes sociais e nos média tradicionais (Gandolfo & Turnes, 2020, p. 3; Alarcon & Rosa, 2016, pp. 73-79); da mesma forma, no Brasil, a banda desenhada e os romances gráficos têm sido recentemente utilizados por uma infinidade de autoras transfeministas emergentes para denunciar a violência da cultura heteropatriarcal (Crescêncio, 2021; Mandolini & Busi-Rizzi, 2023; Lelis & Lima, 2023); em Espanha, artistas de banda desenhada e cartoonistas estão entre aquelas que reagiram à ameaça do ministro Alberto Ruiz Gallardón de limitar os direitos reprodutivos em 2014, organizando uma campanha online chamada Wombastic (Márquez López, 2018; Bettaglio, 2023); no Chile, uma mobilização social aconteceu no final de 2019 para a qual uma chamada gráfica foi organizada pela Plataforma de Investigación, Discusión y Toma de Posición Colectiva Desde América Latina (RedCSur) com hashtags como #No+ denunciando a violência sexual exercida contra mulheres manifestantes pelos carabinieri; na Bolívia, também em 2019, a RedCSur replicou a chamada com #Whipalazo organizada entre outros grupos pela publicação Matria para denunciar a violência sexual contra cholas em mobilizações sociais. Apesar da abundância de intersecções entre a política de género e a criação de banda desenhada no contexto ibero-americano, existem poucos artigos ou capítulos de livros publicados sobre o assunto. Nenhuma análise sistemática, monografia ou coleção especial foi dedicada ao tema. Este número especial pretende dar um primeiro contributo que, esperamos, estimule a investigação e a reflexão metodológica sobre o assunto.

A decisão de explorar as questões de género na produção e consumo de banda desenhada relativamente a um recipiente conceptual tão vasto como o da cultura ibero-americana não é uma escolha neutra. É, pelo contrário, uma decisão que coloca potenciais problemas éticos e metodológicos, dadas as óbvias (e por vezes amplas) diferenças que caracterizam tanto a abordagem societal ao género nos países que pertencem ao mundo ibero-americano como a relação que esses mesmos países mantêm com o meio da banda desenhada. O primeiro problema substancial que importa referir é a inclusão, no recipiente ibero-americano, de países pertencentes a paradigmas geopolíticos antagónicos, nomeadamente ao norte global (Espanha e Portugal) e ao sul global (Brasil e América hispanohablante). Esta divisão, profundamente ligada ao legado colonial que continua a criar laços e hierarquias entre países europeus e países da América do Sul ou Central, tem moldado os esforços teóricos e as práticas políticas de pensadoras e movimentos feministas. Neste sentido, as feministas latino-americanas têm demonstrado uma propensão para o pensamento interseccional que visa analisar as discriminações de género relacionadas com as desigualdades raciais e classistas que as mulheres e as pessoas não conformes com o género enfrentam frequentemente no sul global. Estas reflexões só foram introduzidas em Espanha e Portugal por meio de um exercício derivativo que ainda está a tentar contaminar a tradição feminista europeia, maioritariamente branca e de classe média. Isto não é surpreendente se, com Raka Shome (2016), admitirmos “a importância de reconhecer como as relações globais desiguais (da cultura e da economia) articulam continuamente a política de género em qualquer contexto local, e como as relações locais estão sempre em ação nos processos macro globais” (p. 255). Outra divisão a destacar é a relevância das narrativas gráficas no milieu das produções culturais nacionais. Em países como Espanha, Argentina e Brasil, a banda desenhada desempenhou historicamente um papel de relevo, como demonstra o facto da distribuição e consumo terem moldado a educação de várias gerações de leitores. Por exemplo, o histórico TBO em Espanha, influenciado pela ideologia católica nacional da ditadura franquista, especialmente em publicações para meninas, veiculava mensagens doutrinárias sobre o sexismo e a maternidade. Além disso, adquiriu dimensões que ultrapassaram em muito as fronteiras nacionais (com personagens como Mafalda, de Quino, ou Mônica, de Maurício de Sousa, que alcançaram uma relevância iconográfica transnacional). Em países como Portugal, as narrativas gráficas tiveram dificuldade em alcançar reconhecimento popular e da crítica, o que relegou a nona arte para a marginalidade ou, em casos afortunados, para o nicho do underground. Apesar dessas diferenças, acreditamos que o conceito de Ibero-América oferece uma categoria crítica útil, permitindo considerar o diálogo gerado pelas conexões históricas e políticas, além das ligações transnacionais estabelecidas pelos fluxos migratórios, tanto antigos quanto recentes. Isso é especialmente visível na esfera virtual, onde as redes baseadas na língua superam fronteiras nacionais e distâncias transatlânticas. São muitas as práticas de banda desenhada e de género que ilustram a força destes laços. Por exemplo, o impacto do etos transnacional que caracteriza a política e os movimentos feministas desde a década de 1990 (Baksh & Harcourt, 2015, p. 4) reverberou no mundo narrativas gráficas lusófonas nos últimos anos. Um exemplo notável é o trabalho realizado pela Sapata Press, uma editora transfeminista de zines de banda desenhada sediada em Lisboa, e gerida pelo cartoonista brasileiro Ciço Silveira. O seu objetivo é estabelecer uma ponte entre as produções brasileiras e portuguesas de banda desenhada de mulheres e autoras não conformes com o género (López Casado, 2021). Em Espanha, são de salientar os trabalhos da publicação Femiñetas, promovida por Flor Coll, com um objetivo transnacional, feminista e queer, e o do Colectivo de Autoras de Cómic que promoveu, em conjunto com duas ONG bascas, a banda desenhada digital Viñetas de Tortas y Bollos. Cómics Lésbicos Desde dos Orillas (Vinhetas de Bolos e Pães. Banda Desenhada Lésbica de Duas Margens; 2019), e ainda Coordenadas Gráficas: 40 Historietas de Autoras de España, Argentina, Chile y Costa Rica (Coordenadas Gráficas: Quarenta Bandas Desenhadas de Autoras de Espanha, Argentina, Chile e Costa Rica), obra analisada neste volume, por Moriano.

Atendendo a este contexto, este número temático representa um espaço de visibilidade e legitimação crítica da banda desenhada e dos romances gráficos feministas e queer ibero-americanos. É também um fórum para aprofundar a discussão sobre os pontos fortes e as limitações que as caracterizam, quer no que respeita a abordagem da complexidade das teorizações de género, quer no seu acesso à difusão local e transnacional. Não é por coincidência que esse é o objetivo do grupo de trabalho Autoras, Investigadoras y Editoras de Cómic convocado pelas editoras deste número especial, María Márquez López e Nicoletta Mandolini, no âmbito do projeto iCOn-MICs da Cost Action. O trabalho realizado para esta publicação é, por isso, um dos resultados do projeto iCOn-MICs. Além disso, a inclusão deste número especial no trabalho editorial da Revista Lusófona de Estudos Culturais deu-nos a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre as produções gráfico-narrativas mais negligenciadas pela crítica ibero-americana: aquelas que provêm do espaço cultural lusófono. A seleção de artigos e recensões que este número temático propõe reflete essas escolhas.

As Contribuições Para Este Número Temático

Os primeiros artigos do número temático exploram a genealogia como ponto de partida para a reapropriação da banda desenhada de género na cultura impressa do século XX, em particular as pioneiras brasileiras. São analisadas as obras de mulheres e artistas queer da banda desenhada do século XX. Destaca-se aqui a ligação umbilical entre a banda desenhada e a cultura impressa, uma vez que os dois artigos apresentados a seguir oferecem uma reflexão detalhada sobre os contributos das mulheres e de membros da comunidade LGBTQ+ para dois dos principais géneros do mercado da imprensa ilustrada: o humor e o erotismo.

Em “Patrícia Galvão: A Primeira Quadrinista Brasileira”, Stella Avelino analisa duas obras da autora, o álbum Nascimento, Vida, Paixão e Morte e as oito tiras publicadas no jornal O Homem do Povo, “Malakabeça, Fanika e Kabelluda”. Galvão (São Paulo, 1910 - Santos, 1962) publicou a sua primeira obra de cunho autobiográfico aos 19 anos, tornando-se assim a primeira autora de banda desenhada do seu país. Apesar da contribuição feminista das suas obras para o legado de mulheres autoras que a sucedeu, Avelino recupera a sua importante figura, injustamente recordada apenas pelo seu estatuto de musa modernista e por pertencer a um círculo intelectual e sentimental de homens.

Em “Mulheres, Política e Humor Gráfico na Imprensa do Início do Século XX: Um Breve Olhar Sobre o Caso Brasileiro”, Thaís B. R. Moreira estuda o humor gráfico produzido por mulheres na imprensa brasileira das primeiras décadas do século XX. Numa perspetiva histórica e comparativa orientada pela categoria do género, a autora analisa as caricaturas de mulheres de Rian, as ilustrações da rubrica Feminismo do jornal O Paiz e as tiras cómicas de Pagu (Patrícia Galvão), enquanto desconstruções dos padrões misóginos e sexistas do humor gráfico vigente, que reinterpretam a cultura visual em desafio à autoridade masculina e patriarcal.

Os quatros artigos seguintes focam novelas gráficas e outras produções em banda desenhada, abrangíveis pela categoria da narrativa de si e do corpo, recentemente produzidas por mulheres e pessoas trans- no Brasil, em Portugal e em Espanha. Este conjunto de artigos inclui análises de tipologias de banda desenhada desde a banda desenhada ativista até aos romances gráficos e antologias que, apesar de serem claramente dedicados a uma reflexão comum sobre políticas do corpo e posições autobiográficas, foram distribuídos em canais diferentes (digitais e não digitais).

Marina Bettaglio analisa a utilização do útero como recurso visual no artivismo em “Um Útero com Visão (Política): A Reivindicação dos Direitos Reprodutivos nos Cartoons Feministas Espanhóis”. A autora destaca a iniciativa Wombastic, um projeto criado no Tumblr pelo coletivo espanhol Asociación Autoras de Cómic para contestar o projeto de lei restritivo do aborto que o Partido Popular espanhol aprovou em dezembro de 2013. O projeto de lei acabou por não ser implementado, graças a protestos como o que foi organizado em torno do Wombastic. A análise de Bettaglio centra-se na reivindicação do corpo feminino representado através da banda desenhada e da ilustração como um espaço de resistência para contrariar a propaganda neoconservadora.

Silvia Valencich Frota e Marta Soares debruçam-se sobre um tema que parece estar profundamente ligado à representação do corpo e à autoexpressão. A partir da análise da publicação portuguesa Nódoa Negra (2018), um volume organizado por Dileydi Florez que reúne narrativas gráficas da autoria de mulheres, Frota e Soares abordam a representação da dor feminina. Este tema funciona como um traço de união para toda a antologia de histórias gráficas curtas. Partindo de teorias anteriormente propostas por Marianne Hirsch para o estudo das representações gráficas do trauma, as autoras concluem que, ao dizer o que não pode ser mostrado, mostrar o que não pode ser dito, e promover a construção de significados no espaço intersticial entre texto e imagem, a narrativa gráfica permite um maior refinamento e expressividade da dor na sua abstração e concretização, entre o dizível e o indizível.

Em “Teias do Eu, Teias do Significado. Três Retratos Fragmentários Femininos na Banda Desenhada Impressa Pós-Digital”, Pedro Moura estuda romances gráficos de três autoras portuguesas contemporâneas: Hetamoé (2012-2020), Joana Mosi (2021- 2023) e Ana Margarida Matos (2019-2023). Recorrendo às estratégias do contra-cinema teorizadas por Peter Wollen e às noções de cuteness e animatedness de Sianne Ngai, o autor analisa, em cada uma, as modalidades de resistência à doxa ou norma estilística e narrativa da banda desenhada, assim como o modo como essas estratégias problematizam a identidade e configuram interpretações feministas de si, explorando as múltiplas vias que formam e deformam o self.

Camila Luiza Lelis e Marcus António Assis Lima, no seu artigo “Tem um Monstro no Meu Espelho: Uma Análise do Romance Gráfico Autobiográfico Monstrans: Experimentando Horrormônios, de Lino Arruda”, aprofundam o esforço autobiográfico empreendido pelo cartoonista brasileiro Lino Arruda, que parte da sua própria experiência de transição de género FpM (Feminino para Masculino) para construir uma narrativa autobiográfica perturbadora onde o paradigma da monstruosidade é constantemente evocado. Lelis e Lima contextualizam o trabalho de Arruda e reconhecem-no como parte de uma miríade de narrativas autobiográficas queer, muitas das quais assumiram a forma de memórias gráficas. Os autores identificam uma série de topos (o do espelho e o tema da monstruosidade, já mencionado) e de práticas (uma autorrepresentação vívida de características físicas) sistematicamente reelaborados para atribuir espaço simbólico aos corpos dissidentes.

Samanta Coan e Nara B. Lage analisam, em “Multiplicidades, Narrativas de Vida e Memória Coletiva da Docência na História em Quadrinhos Fessora!”, o romance gráfico de Alice Lemos, publicado em 2021, que narra a experiência da autora como professora de história numa escola pública do Brasil. Adotando um ângulo de abordagem inspirado da teórica argentina Leonor Arfuch, que criou a noção de espaço biográfico, as autoras retomam essa noção para examinarem como a autorrepresentação e a forma testemunhal axializam a narrativa de experiências que mostram a escola como uma instituição impreparada para acolher as várias identidades de género bem como as várias identidades etno-culturais brasileiras.

Beatriz Moriano e Neus Lagunas são as autoras de uma das duas recensões deste número temático que se centra na banda desenhada, no género e nas ligações transatlânticas. As autoras analisam a antologia ibero-americana Coordenadas Gráficas: Cuarenta Historietas de Autoras de España, Argentina, Chile y Costa Rica publicada online em 2020. O projeto nasceu de duas iniciativas expositivas com a curadoria do Coletivo de Autoras de Cómic (Espanha) e da investigadora argentina Mariela Acevedo. A Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento patrocinou a antologia. Segundo Moriano e Lagunas, o valor da obra reside no carácter transnacional, intergeracional, inclusivo e histórico das contribuições das autoras participantes dos países mencionados no título da publicação.

A segunda recensão é a contribuição de Virginia Tonfoni intitulada “Coordenadas Partilhadas: A Escrita da Herstory na Banda Desenhada Ibero-Americana”. Tonfoni fala de uma “sororidade transnacional” assente em projetos expositivos e editoriais desenvolvidos nos últimos anos através da dinâmica associativa e de investigação. Analisa particularmente o impacto da exposição espanhola Presentes: Autoras de Tebeo de Ayer y de Hoy (2016), a exposição argentina Nosotras Contamos (2019) e a publicação Coordenadas Gráficas: Cuarenta Historietas de Autoras de España, Argentina, Chile y Costa Rica (2020), destacando os denominadores e interesses comuns nesta produção e circulação de obras de interesse coletivo, visando recuperar o papel das mulheres na história da banda desenhada.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

REFERÊNCIAS

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Tradução: Anabela Delgado

Nicoletta Mandolini é investigadora da FCT no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (Portugal), onde está a trabalhar no projeto Sketch Her Story and Make It Popular. Usando Narrativas Gráficas no Ativismo Feminista Italiano e Lusófono Contra a Violência de Género (https://www.sketchthatstory.com/). Trabalhou como investigadora de pós-doutoramento da FWO na KU Leuven (Bélgica) e tem um doutoramento da University College Cork (Irlanda). Financiado pelo Irish Research Council, o seu projeto de doutoramento resultou na monografia Representations of Lethal Gender-Based Violence in Italy Between Journalism and Literature: Femminicidio Narratives (Routledge, 2021). Entre outros artigos sobre abusos sexistas na literatura e nos media contemporâneos, co-editou o volume Representing Gender-Based Violence. Global Perspectives (Palgrave, 2023). É membro ativo do grupo de investigação Centro de Estudos Avançados em Línguas e Culturas sobre Violência, Conflito e Género, que coorganizou de 2016 a 2019. É membro fundador do SnIF (Studying’n’Investigating Fumetti) e é co-líder do Grupo de Trabalho sobre Autoras, Investigadoras y Editoras de Cómic do projeto iCOn-MICs, da COST Action. Email: nicoletta.mandolini@ics.uminho.pt Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 4710-057 Gualtar, Braga, Portugal

Cristina Álvares é doutorada em literatura narrativa medieval (o olhar no romano cortês, 1180-1250) e professora associada de literatura francesa na Universidade do Minho. A sua investigação tem sido desenvolvida no Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho desde 1986. É autora de dois livros e de um grande número de artigos sobre a literatura francófona medieval e contemporânea. É co-editora da série Literatura, Cinema, Banda Desenhada, publicada na coleção Hespérides (Húmus), e publicou artigos sobre bande dessinée franco-belga nas revistas Cincinnati Romance Review, Revue Romane, Synergies Espagne, Neuroptica, European Comic Art e Contemporary French and Francophone Studies. É delegada nacional do comité de gestão da ação COST iCon-MICS (Investigação sobre Banda Desenhada e Novelas Gráficas no Espaço Cultural Ibérico). Email: calvares@elach.uminho.pt Morada: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas, Universidade do Minho, 4710-057 Gualtar, Braga, Portugal

María Márquez López é jornalista especializada na área do audiovisual (mestrado em Teoria e Prática do Documentário Criativo, UAB; e mestrado em Argumento Cinematográfico, UIMP). É doutora cum laude com menção internacional em Estudos Interdisciplinares de Género (Universidad Rey Juan Carlos), publicou a sua investigação sobre banda desenhada de autoras mulheres em revistas indexadas e participou em conferências nacionais e internacionais relacionadas com este tema. As suas áreas de interesse são a banda desenhada, os estudos de género, os estudos cinematográficos e os estudos culturais. É professora associada da licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade Rey Juan Carlos. Atualmente, é co-líder do Grupo de Trabalho sobre Autoras, Investigadoras e Editoras de Cómic do projeto iCOn-MICs, da COST Action. Email: maria.marquez.lopez@urjc.es Address: Ciencias de la Comunicación de la Universidad Rey Juan Carlos, Campus de Fuenlabrada, Camino del Molino, 5, 28942 Fuenlabrada, Madrid.

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