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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

Print version ISSN 2184-0458On-line version ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.10 no.2 Braga Dec. 2023  Epub Feb 28, 2024

https://doi.org/10.21814/rlec.4644 

Artigos Temáticos

Teias do Eu, Teias do Significado. Três Retratos Fragmentários Femininos na Banda Desenhada Impressa Pós-Digital

iLaboratório de Investigação em Design e Artes, Escola Superior de Artes e Design, Instituto Politécnico de Leiria, Caldas Rainha, Portugal


Resumo

O presente artigo analisa o trabalho de três artistas contemporâneas, independentes e ativas no panorama da banda desenhada portuguesa: Hetamoé, Joana Mosi e Ana Margarida Matos. Faz uma leitura formal detalhada do seu trabalho, seguindo o artigo fundamental de Peter Wollen sobre contra-cinema. Apesar das ressalvas quanto à adoção de noções absolutas e inequívocas de diferentes media, há suficientes pontos em comum e características narratológicas que proporcionam comparações estimulantes. Tal como no cinema, também na banda desenhada existe um entendimento normativo amplamente aceite do modo de criação de sentido da banda desenhada, contra o qual estas três autoras apresentam aquilo a que se pode chamar, a exemplo de Wollen, estratégias formais de resistência. A banda desenhada portuguesa tem uma história conturbada, que envolve um desenvolvimento económico difícil e a falta de um reconhecimento social mais amplo (como um campo culturalmente relevante). No entanto, os seus domínios e subculturas mais independentes têm dado provas de criadores individuais empenhados, informados e inventivos. As mulheres criadoras não são exceção à regra, e este grupo em particular demonstra três potencialidades para expandir o campo, tanto política como esteticamente. Além disso, estas mesmas estratégias de des/re/construção abordam questões associadas à identidade, ao autorretrato, a questões corporais, à memória e aos próprios processos de criação de significado em que assenta o seu trabalho. As dimensões feministas do seu trabalho, ainda que bastante variadas, permitem detetar interpretações intensas do eu e do papel da mulher num processo mais amplo de autorrealização e vida social. Assim, utilizarei as noções de “cuteness” (fofura) e “animatedness” (animação) de Sianne Ngai para compreender como as três autoras interpretam e constroem o seu eu na banda desenhada.

Palavras-chave: banda desenhada experimental; contra-estratégias; cuteness; animatedness; identificação heteropática

Abstract

The present paper analyses the work of three contemporary, independent women artists active in the Portuguese comics scene: Hetamoé, Joana Mosi, and Ana Margarida Matos. It provides a close formal reading of their work by following Peter Wollen's seminal article on counter-cinema. Despite the caveats of adopting whole cloth and in a clearcut manner notions from different media, there are enough commonalities and narratological features that provide stimulating comparisons. As in cinema, comics also have a broadly accepted normative understanding of comics' way of creating meaning, against which these three authors present what one can call, after Wollen, resisting formal strategies. Portuguese comics have had a troubled history, which entails a difficult economic development and the lack of wider social recognition (as a culturally relevant field). However, its most independent realms and sub-cultures have provided ample proof of engaged, informed, and inventive individual creators. Women creators are no exception to this, and this particular group shows three potentialities of opening up the field, both politically and aesthetically. Moreover, these same de/re/constructive strategies broach issues associated with identity, self-portrait, bodily matters, memory, and the very meaning-making processes at the core of their work. The feminist dimensions of their work, albeit quite varied, allow one to detect intense interpretations of the self and the role of womanhood in a broader process of self-actualization and social life. Thus, I will use Sianne Ngai's notions of "cuteness" and "animatedness" to understand the three author's specific manners of doing so, as depicted and constructed within the medium of comics.

Keywords: experimental comics; counter-strategies; cuteness; animatedness; heteropathic identification

Não existe um estado fixo ou definitivo.

Não será esta a afirmação mais verdadeira já que todos os seres vivos

não passam de “condensações da respiração”?

François Cheng, O Que Disse Tianyi

Três Autoras no Panorama da Banda Desenhada Portuguesa Contemporânea

O panorama da banda desenhada portuguesa vive em perpétua crise desde há 40 anos. Desde o desaparecimento das revistas periódicas de banda desenhada, destinadas a um público vasto e amplamente distribuídas por redes de distribuição comercialmente sólidas, a produção tem seguido sobretudo caminhos sinuosos, embora tenha ocasionalmente obtido sucesso junto da crítica. No entanto, é possível sublinhar a concretização global de um panorama autorístico flutuante em Portugal, que produziu um trabalho notável, embora pouco reconhecido.

Para analisarmos este circuito de produção, devemos debruçar-nos sobre publicações que se encontram, de certa forma, à margem das instituições literárias e dos modelos de distribuição comercial. É o caso das editoras independentes ou de pequena tiragem, das edições de autor, dos pequenos trabalhos apresentados de forma não publicada ou em publicações que não são banda desenhada, bem como da multiplicidade de objetos impressos a que podemos chamar “fanzines”. Foi este tipo de plataformas que utilizei para o presente artigo. A maioria das obras que menciono não são livros de acesso fácil e comercial.

Poder-se-ia argumentar que o enfraquecimento das publicações comerciais mais sólidas abriu espaço para inúmeras oportunidades de tentar uma nova abordagem à banda desenhada. Com o advento da democracia moderna em Portugal, após o 25 de abril de 1974, o meio da banda desenhada abriu-se gradualmente a novos géneros, escolhas visuais, temas e espaços. O didatismo que presidiu à maior parte da produção de banda desenhada durante a ditadura do Estado Novo não foi completamente abandonado. No entanto, os novos autores experimentaram outros tipos de linguagens artísticas, desde a ficção científica ao surrealismo (por vezes ambos), passando por retratos realistas de jovens, mulheres, minorias étnicas ou sexuais, e temas como a decadência urbana, os conflitos financeiros, o desemprego, entre outros (Moura, 2022, pp. 49-65). O feminismo da terceira vaga teve um impacto significativo neste panorama da banda desenhada porque as novas autoras trouxeram a identidade feminina para a linha da frente dos seus esforços artísticos e preocupações políticas. Permitiu, finalmente, a emergência de espaços diversos num meio heteronormativo, como a maioria dos outros, no país, na altura e, possivelmente, hoje. Autoras como Ana Cortesão, Alice Geirinhas, Mimi, Maria João Worm e Isabel Carvalho publicaram muitas bandas desenhadas (na maior parte das vezes, peças curtas em várias publicações coletivas) que ou reforçavam o poder das mulheres, ou exploravam sarcasticamente os obstáculos de um patriarcado muito tradicional e misógino.

Hoje, há muitas mulheres a criar e a publicar banda desenhada em Portugal, e não há praticamente nenhuma editora, grande ou pequena, que não tenha uma lista de autores que inclua mulheres. Estou a referir-me sobretudo a editoras que publicam autores portugueses, e não apenas a obras internacionais traduzidas. Quanto às pessoas não binárias, menos, mas também há alguma diversidade neste domínio. Além disso, algumas destas autoras sentem-se bastante confortáveis a trabalhar em material circunscrito a um género mais específico, a temas ambivalentes mais amplos, ou a encomendas institucionais que não têm necessariamente como temas principais questões políticas ou identitárias que se relacionam diretamente com a feminilidade, por assim dizer. É o caso de Joana Afonso, Rita Alfaiate, Marta Teives, Dileydi Florez, Inês Garcia, Sofia Neto, entre outras. Isto não significa, de forma alguma, que estas autoras não tenham uma posição feminista na sua vida privada ou que a sua obra não possa ser lida numa perspetiva feminista, mas apenas que a sua produção não explora inequivocamente essas questões. A propósito de uma exposição de quatro mulheres artistas de banda desenhada no “Festival de Banda Desenhada” da Amadora de 2022 (na qual participou Mosi, uma das nossas autoras), Sara Figueiredo Costa (2022) escreveu que as histórias “percorrem memórias de família, episódios quotidianos, observações sobre o mundo que nos chega através dos múltiplos ecrãs e das narrativas que vamos escutando ou vivendo” (p. 4). Mesmo que essas histórias sejam criadas por mulheres, tenham protagonistas mulheres, ou ambas, são, acima de tudo, “histórias que atravessam o nosso presente comum, quer pelo modo como questionam as identidades que nos constroem, quer pela atenção que dedicam às ideias-feitas e aos preconceitos que continuam a definir o modo como vivemos” (Costa, 2022, p. 4).

No entanto, ou pelo menos assim o creio, o que está em causa nas atividades do grupo de autoras que escolhi como constelação para o presente artigo é mais intenso, complexo e determinante. Todas estas autoras iniciaram a sua produção de banda desenhada nos últimos dez anos ou menos e, por meio de estratégias muito distintas, avançaram para domínios da criação de banda desenhada que exploram a construção do eu, a experimentação através da fragmentação e a própria ontologia da banda desenhada como meio. Para compreender como o fazem, utilizarei as contra-estratégias de Peter Wollen para descrever as escolhas formais e algumas das categorias estéticas e emoções de Sianne Ngai (2012) para aprofundar os seus modos de criação de sentido.

Começarei com uma apresentação de cada uma das autoras.

Hetamoé é o pseudónimo de Ana Matilde Sousa, nascida em 1984. É artista plástica, professora de arte e banda desenhada, e uma brilhante académica e investigadora. O seu principal corpo de trabalho é bastante influenciado por traços formais e temáticos característicos da banda desenhada japonesa ou mangá, especialmente nos seus círculos mais alternativos. O seu trabalho é matizado por noções como o abjeto, o grotesco, o excessivo e o extremo, e cria amálgamas perturbadoras entre os estilos cute/kawaii e géneros mais violentos e pornográficos. A sua própria assinatura é a combinação do chamado estilo “feio/mau” da mangá, conhecido como heta-uma, e do moé, um afeto muito forte por personagens da cultura visual popular japonesa (Sousa, 2020; para heta-uma, consultar o seu “Glossário”, entrada 21; para moé, 23). Lançou vários fanzines que exploram visualidades duras - entre o desenho, a colagem, a apropriação e a manipulação digital, entre outras - e peças mais curtas em antologias ou pequenos livretes. Assina também, com o seu próprio nome, outro tipo de material de banda desenhada, como Einstein, Eddington e o Eclipse - Impressões de Viagem, que não incluirei no presente capítulo, embora, numa apreciação diferente, pudesse muito bem merecer uma consideração conjunta.

Na peça They Say That Clovers Blossom From Promises (Dizem que os Trevos Florescem das Promessas; doravante “clovers”; Hetamoé, 2015a), a autora aborda a solidão que decorre de relações amorosas que resultaram mal, a desilusão da expressão pessoal e a forma como o desejo constitui o próprio eu. Estes poderiam ser vistos como temas permanentes de Hetamoé ao longo da sua obra, uma vez que esta peça está menos estruturada como uma história do que como um fluxo de impressões fantasmáticas e holísticas. Poder-se-ia, num breve vislumbre de “Obscure Alternatives” (Alternativas Obscuras; Hetamoé, 2015b; Figura 1), pensar que se trataria de uma história de fantasia épica, com duendes engraçados a conversar, mesmo com a presença de objetos modernos (telemóveis, uma arma).

Fonte. De “Obscure Alternatives”, de Hetamoé, 2015b, em Clube do Inferno (Ed.), QCDI 3000 - FEAR OF A CAPITALIST PLANET, pp. 3-8. Copyright 2015 de Chili Com Carne

Figura 1 Obscure alternatives 

Contudo, as legendas verbais parecem partir de um narrador desencarnado, e alguns trechos de diálogo, de grande intensidade emocional, não podem ser claramente atribuídos às personagens que vemos, criando uma malha muito complexa de metalepses. É como se o texto - muito poucos balões de fala têm caudas atributivas - criasse uma espécie de nevoeiro poético que ofusca a experiência concreta do mundo da história das imagens. A rede de intertextos é bastante densa, com referências à teoria marxista, rituais satânicos e numerosas alusões obscuras à cultura popular japonesa (o título é uma referência a uma canção da banda inglesa new wave da nova vaga Japan). Obriga o leitor a empenhar-se na árdua decifração desta fricção entre mundos referenciais aparentemente diferentes. Noutro lugar, comparei esta peça curta a uma versão da peça clássica de bunraku The Love Suicides at Amijima (Os Suicídios por Amor em Amijima), como se estivesse sob o famoso ditame de O Manifesto Comunista (Marx & Engels, 1848/2012; em parte a principal influência de QCDI 3000 - FEAR OF A CAPITALIST PLANET; QCDI 3000 - MEDO DE UM PLANETA CAPITALISTA): “tudo o que é sólido se dissolve no ar”. Na análise que se segue, importa ter presente esta tensão permanente de construção e dissolução, desmaterialização e re-materialização, na obra desta autora.

Joana Simão, mais conhecida por Mosi, nasceu em 1995 e tem sido uma incansável criadora, facilitadora e professora de banda desenhada. Se alguns dos seus primeiros trabalhos eram clara e assumidamente de géneros bem definidos, como a sua crónica autobiográfica de viagem para jovens adultos Altemente e a sua novela gráfica de fantasia épica, com Nuno Duarte, O Outro Lado de Z, rapidamente se desviou para territórios mais experimentais, tanto material como textualmente, recorrendo para isso a pequenos formatos impressos e até a trabalhos online. É extremamente ativa no Instagram, por exemplo. No entanto, para este artigo, irei debruçar-me apenas sobre o trabalho impresso. O seu trabalho questiona sempre as estratégias habituais da banda desenhada em termos de figuração, composição, narrativa, poética, coloração e fundamentos culturais.

As suas curtas bandas desenhadas partilham várias preocupações temáticas, assuntos, bem como uma voz semi-autobiográfica que nos permite considerá-las como um projeto contínuo e unificado, um pouco como tenho argumentado noutros projetos sobre artistas como Edmond Baudoin, Marco Mendes, e Francisco Sousa Lobo (Ana Margarida Matos também se enquadra nesta possibilidade). No entanto, nem sempre se envolve claramente num pacto autobiográfico. O pronome “eu” pode até estar presente, mas não há indícios visuais ou textuais que nos permitam ter a certeza de que a voz (muitas vezes desencarnada) fala de/para a empírica Joana Mosi. Mesmo a peça sem título da Amadora, que fala da “minha avó materna” com nomes reais, datas precisas e biografia detalhada, não oferece uma ligação indiscutível.

A terceira autora é Ana Margarida Matos, nascida em 1999. Depois de lançar alguns fanzines por volta de 2020, publicou um livro muito aclamado, Hoje Não (Matos, 2021). Este livro de mais de 120 páginas pode ser descrito, embora de forma superficial e incompleta, como um diário do confinamento COVID-19. De facto, na sequência de ter vencido um concurso de banda desenhada (Chili Com Carne 2020, “Toma Lá 500 Paus e Faz uma BD!”), dedicou-se a registar cuidadosamente durante seis meses da sua vida, uma página por dia em 2021, como rotina criativa. No entanto, não sucumbiu ao que a maioria das bandas desenhadas e cartoons que pertencem a esta categoria fizeram, que foi, basicamente, apresentar humor observacional em torno da mesma mão cheia de tropos imediatamente esgotados. Pelo contrário, inverteu completamente a situação para criar um ensaio gráfico profundo sobre a sua interioridade, saúde, identidade, bem como sobre a própria organização social que habitamos e discutir possíveis alternativas de categorias como trabalho, economia, empatia, etc. Paralelamente, com a criatividade no seu cerne, este livro reinventa as próprias ferramentas visuais e composicionais de criação de significado na banda desenhada, utilizando autorretratos fragmentários recorrentes, ritornellos gráficos, temas e variações de anotações e escrita de diários, e muito mais. Este tornou-se rapidamente num dos mais estimulantes projetos de banda desenhada portuguesa de grande formato dos últimos anos. Tanto o seu trabalho anterior como o subsequente, apesar de terem sido ligeiramente ofuscados pela maior projeção de Hoje Não, também abordam questões complexas de auto-apresentação, comunicação e expressão artística, redes sociais e máscaras sociais, precariedade e vida suburbana.

Talvez o Hoje Não de Matos (2021) seja o livro mais fortemente ancorado na, e referente à, realidade portuguesa, do conjunto destas três autoras. As inúmeras evocações à situação histórica específica e contemporânea de Portugal são apresentadas como algo habitual num modo diarístico. Mesmo que consigamos estabelecer ligações entre realidades históricas na obra de Mosi, será sempre com base em suposições e palpites, já que Mosi tende a apagar nomes de lugares, marcas de tempo e outras estratégias concretas de mapeamento. Matos, pelo contrário, acentua essas referências.

Como se pode depreender desde o início, quero realçar duas características principais que estas três autoras partilham. Por um lado, é claro, partilham uma identidade de género superficial, que se reflete também um pouco nos temas e protagonistas, como já referi brevemente. Nesse sentido, histórias fictícias com protagonistas femininas, de trabalhos autobiográficos ou semi-autobiográficos, ou de outras estratégias textuais, mas, sobretudo, onde o empoderamento e a autorreflexão são temas centrais dos enredos, constroem enredos feministas. Mesmo que a história obrigue a personagem a lidar com uma significativa turbulência interior, um trauma avassalador ou forças sociais, ou, pelo contrário, com momentos bastante serenos e íntimos, nas palavras de Roberta Trites (1997), “a protagonista feminista não precisa de esmagar a sua individualidade para se enquadrar na sociedade. Pelo contrário, a sua agência, a sua individualidade, a sua escolha e o seu inconformismo são afirmados e até celebrados” (p. 6).

Por outro lado, também partilham a mesma atitude formal e material, utilizando contra-estratégias relativamente às escolhas estilísticas mais convencionais da banda desenhada. A banda desenhada é um meio que frequentemente, se não sempre, revela a sua construção, e por vezes esta consciência pode ser utilizada para fins emancipatórios. De certa forma, estas estratégias podem ser comparadas com aquilo a que Peter Wollen (1972) chama os “sete pecados mortais” do contra-cinema, valores usados ao arrepio das expectativas normativas do cinema ortodoxo (ou “virtudes”). O cinema, evidentemente, é um meio com uma história poderosa e uma receção crítica e teórica extremamente significativa. Mas a banda desenhada tem as suas próprias convenções e tradições, a sua história e desenvolvimentos sociais, especificidades posicionais e metodológicas, possibilidades e traços expressivos. Existem inúmeros estudos comparativos, demasiados para serem mencionados. Utilizarei as categorias de Wollen - fora da sua ordem, que considero não ser fundamental - para nos guiar através dos espaços formais utilizados por estas três autoras.

Como veremos, os textos de Matos, Hetamoé e Mosi não seguem as assinaturas ortodoxas da banda desenhada, desestabilizando a produção de sentido. Um desses aspetos é a forma como adaptam as formas nativas digitais (interfaces de redes sociais, ícones, emojis, molduras narrativas, linhas narrativas multicanais), o que me leva a chamar-lhes “pós-digitais” no título, sem, contudo, abandonarem totalmente o meio conhecido como banda desenhada.

Construção de Sentido Através de Contra-estratégias

2.1. Estranhamento

Uma das mais apelativas “contrapartes e contrários” de Peter Wollen (1972) dos “valores do velho cinema” (p. 2) é a do “estranhamento”, evitando uma identificação superficial e defeituosa. Não tenho tempo para me debruçar sobre a noção problemática de identificação, habitualmente abordada de tal forma que mistura o que significa no campo da psicanálise e o que significa na semiótica. Basta dizer que a adoção de um ponto de vista favorável (identificação semiótica primária) ou a proximidade de uma dada personagem no mundo da história (identificação semiótica secundária) num meio visual como a banda desenhada ou o cinema nada tem que ver com o reconhecimento do eu enquanto entidade autónoma e com outras estruturas psicanalíticas (recorro à síntese de Aumont, 1990, apesar de tudo bastante informativa). Aliás, já tratei deste assunto noutro lugar (Moura, 2022, p. 21), preferindo a noção de “identificação heteropática” de Kaja Silverman, descrita como “uma forma de encontro predicada numa abertura a um modo de existência ou experiência para além do que é conhecido pelo eu” (Bennett, 2005, p. 9). Por outras palavras, embora a empatia seja um sentimento muito bem-vindo, é fácil cair num sentimento erróneo de compreender o que está em jogo na história de vida (fictícia ou não) do indivíduo sem deixar espaço para um distanciamento crítico. Uma tal postura crítica é justamente reforçada por contra-estratégias de “estranhamento”.

Algumas das estratégias de representação utilizadas pelas autoras começam pela própria opção de não apresentar as personagens como personagens corporais de pleno direito. Ou as estratégias de representação apresentam as personagens, sobretudo as protagonistas, como corpos fragmentados, desenhos atravessados por linhas e borrões, ou as autoras recorrem a planos muito fechados que mostram um excerto dos rostos ou dos corpos (por exemplo, as mãos) ou optam mesmo por enquadramentos que apagam por completo a participação da personagem.

Ana Margarida Matos é, sem dúvida, a autora que mais se empenha num discurso claramente autobiográfico. Há suficientes pistas visuais e verbais que nos permitem perceber que a protagonista das suas histórias é a própria autora. Muitos dos autorretratos, em vez de seguirem uma representação mais clássica, na qual os autores se representam como “personagens na terceira pessoa” como todas as outras, pelo menos ao nível da pista visual (Moura, 2008, p. 92, 121-122), desfazem-se em reflexões e justaposições. Em Hoje Não (Matos, 2021), desenha um autorretrato com post-its que mostram diferentes partes do rosto em posições erradas, como declara a pista verbal: “Esta sou eu. Esta é a minha imagem. Este é o meu espaço”. Uma forma recorrente em flexágono, com partes do rosto, surge repetidamente, por vezes sob outras formas, ao longo do livro (Figura 2).

Fonte. De Hoje Não, de A. M. Matos, 2021, pp. 20-21. Copyright 2021 de Chili Com Carne. Reimpresso com permissão

Figura 2 Hoje não 

Há uma câmara Rolleiflex, na qual trabalha, que aparece em vistas explodidas ou desenhos de instruções, talvez como uma extensão da sua própria pessoa, reduzida a um dispositivo ativo de gravação e reflexão durante todo o confinamento COVID-19. O espaço são os quartos que habita. Os quartos, a câmara e o livro, tudo se torna uma câmara lúcida. Matos utiliza diariamente, para anotar a sua auto-construção, um processo que passa necessariamente pela desconstrução. No caso da curta “Untitled” incluída na Stripburger (Sem Título; Matos, 2023c), parece que a autora se apresenta como um nariz autónomo, como que numa versão pós-moderna do famoso conto de Gogol, depois de uma página que mostra 30 vistas do seu próprio nariz, representado de forma realista, enquanto se lê “e, no entanto, quando me olho ao espelho, procuro quem não sou hoje”. No seu centro está, por assim dizer, uma subjetividade descentrada.

O historiador cultural Ben Highmore (2010) escreveu uma vez que o corpo pode ser “a materialidade mais incómoda de todas” (p. 119), e Julia Bell (2020) desenvolve ainda mais quando afirma que “os nossos corpos são contingentes, difíceis, inexplicáveis, confusos, mortais. Em vez de atender a estas complexidades, é muito mais fácil fingir que não existem de todo” (p. 24). As três autoras podem nunca mostrar os corpos na sua totalidade como uma realidade objetiva, intacta e imaculada, precisamente para contrabalançar a mercantilização do corpo. My Best Friend Lara (A Minha Melhor Amiga Lara) de Joana Mosi (2021b), “Postal dos Correios” (Mosi, 2023), e a história sem nome, da Amadora (2022), nunca mostram as protagonistas totalmente. Este último mostra as mãos e os pés do que podemos supor serem as duas personagens principais (uma avó e a sua neta), mas os seus rostos nunca são mostrados em ação. Quando aparecem, fazem-no sob a forma de uma fotografia integrada, traduzida por um traço simplificado. Mas mesmo isso, só podemos supor a partir de um contexto muito oblíquo. Em “Postal dos Correios”, nem sequer vemos corpos humanos, apenas espaços em planos aproximados. Quanto a Lara, o número de páginas e a dimensão permitem uma abordagem e um estilo mais diversificados, mas é evidente a falta de representações mais francas e naturalizadas da personagem principal, a narradora. Confundindo um diário íntimo com um ensaio de artista, não é de estranhar que Mosi evite percursos ficcionais mais naturalizados. Quanto à personagem de videojogo Lara Croft - a amiga do título - aparece de corpo inteiro, em ações, em lugares acionáveis, mas é apresentada como uma personagem fictícia no mundo da história, pelo que não pertence ao mesmo nível ontológico da narradora (Figura 3).

Fonte. De My Best Friend Lara, de J. Mosi, 2021b, pp. 44-45. Copyright 2021 de Joana Mosi.

Figura 3 My best friend Lara 

Em The Apartment (O Apartamento; Mosi, 2022a), talvez a narrativa mais convencional do grupo de textos discutidos neste artigo, das três autoras, as duas personagens principais, um casal, são desenhadas num estilo minimalista e fofo, próximo da assinatura chibi, tipo mangá. As personagens aparecem muitas vezes de costas para nós, mas quando se viram, os seus rostos estão em branco, sem qualquer tipo de traço (no entanto, a personagem masculina tem um par de óculos). Num rácio cabeça-corpo típico de três cabeças, o facto de não terem rosto, aliado aos seus corpos atarracados e curtos, mergulha-os, perdoem o trocadilho, de cabeça na categoria estética do “fofo”, retirando-lhes qualquer poder ameaçador que possam ter. No entanto, é o seu carácter quase descartável, como os milhares de personagens de marca registada que habitam um pacote de snacks, que exerce uma força gravitacional no sentido do estranhamento de Wollen. Apesar da crença popular e de algumas tentativas de teorização (McCloud, 1993), o “apagamento” e a “simplificação” das personagens não significam necessariamente uma melhor identificação.

Quanto às personagens de Hetamoé, deparamo-nos com uma maior diversidade de estruturas narrativas (ou não-narrativas) e de assinaturas visuais em toda a sua obra. No entanto, em virtude da apropriação e remistura geral de estilos associados à mangá, poder-se-ia descrever a maioria destas personagens como “cute”. Mas a fofura não é aqui uma escolha estilística superficial, apesar de coincidir com a superprodução e a hiper-comercialização de personagens figurativas em tudo o que é japonês (desde a mangá e a animé, ou seja, produtos orientados para a narrativa, mas também para bens de consumo de todos os tipos). De facto, esta palavra é aqui utilizada como uma das nossas categorias críticas e estéticas pós-modernas, como teorizado por Sianne Ngai (2012). Para esta pensadora cultural, quando se considera algo “cute”, não só a sua agência é completamente absorvida, como também se projeta um domínio sobre ele. Trata-se de um envolvimento paradoxal de emoções aparentemente contraditórias, uma resposta afetiva que encerra um certo grau de agressividade. Hetamoé explora isto ao juntar tais representações a temas abjetos. Os corpos femininos são sujeitos a transformações monstruosas, a transformações animais, a transes vampíricos, a agressões sexuais, a cenas pornográficas e a atos escabrosos, mas mantêm a sua inocência redondinha e fofa. Ngai escreve: “A verosimilhança realista e a precisão formal tendem a contrariar ou mesmo a anular a fofura, que se torna mais pronunciada em objetos com contornos redondos simples e pouca ou nenhuma ornamentação ou detalhes. ( ... ) Quanto menos articulada formalmente for a mercadoria, mais fofa” (Ngai, 2012, p. 64).

3. Acentuação

As “cutenesses” de Mosi e de Hetamoé são bastante diferentes, mas, como veremos, ambas se esforçam por criar personagens e enredos “menos formalmente articulados” (Ngai, 2012, p. 64) para melhor criar um distanciamento crítico. Parte das contra-estratégias visuais ou materiais para esta dimensão formal é analisável através do valor da acentuação de Wollen (1972), que atua de forma contrária à transparência. Com esta noção, Wollen sublinha estratégias formais que impedem um entendimento pós-renascentista e tradicional do lugar da composição como uma “janela” transparente para o mundo da história. Temos de compreender o próprio facto de que mesmo as pranchas da banda desenhada convencional apresentam composições já complexas de múltiplas vinhetas (famosamente teorizadas como multi-cadre por Thierry Groensteen, 1999). As imagens, muitas vezes mais do que uma numa única prancha, são colocadas numa estrutura graficamente orientada: cada vinheta existe numa relação diagramática com outra e, assim, desencadeia significados lógico-semânticos. No entanto, através de vários meios, estas três autoras exploram ainda mais a opacidade e a materialidade da própria banda desenhada através das suas estruturas abertas. A mesma qualidade de construção da banda desenhada vem ao de cima através destas escolhas. Podemos ver esta exploração da materialidade a dois níveis muito diferentes.

O primeiro está relacionado com a legibilidade. Como sabemos, durante muito tempo, os estilos de banda desenhada estiveram associados a um design simplificado que visava a máxima eficiência: linhas simples para emoções e significados claros. Quer fosse através do estilo bigfoot da banda desenhada clássica americana de animais dos anos 1920, 30 e seguintes, quer fosse através da linha clara pós-Hergé, qualquer marca que aparecesse no lugar da composição tinha uma utilização representativa ou simbólica clara. Mas a banda desenhada moderna trouxe uma infinidade de possibilidades expressivas, incluindo as proporcionadas por outros meios visuais ou através da sua exploração. Há artistas, incluindo Hetamoé, que integram níveis não representativos de criação de marcas nas suas bandas desenhadas. Como exemplo, consideremos “Obscure Alternatives”, uma curta de quatro páginas, isto é, dois spreads que fez parte da antologia QCDI 3000 (Hetamoé, 2015b), que publicou material do coletivo artístico de banda desenhada Clube do Inferno, do qual Sousa fazia parte. Esta obra integra um grau mais elevado daquilo a que poderíamos chamar “ruído gráfico”, borrões, impressões sobre-tintas, sombras irregulares, sobreposição de balões de fala e o seu posicionamento por cima de personagens ou linhas de enquadramento da vinheta, entre outros.

Numa obra anterior, “Clovers”, com a qual participou na antologia QCDA 2000 (só com artistas mulheres), Hetamoé não só tirou o máximo partido do grande formato (quando aberta, a publicação aproxima-se de um formato A2 horizontal normal), como também o utilizou para “espalhar” as suas vinhetas - refiro-me à criação da ilusão de uma composição sem estrutura -, misturando legendas e os típicos elementos “decorativos” (estou ciente do sentido pejorativo desta palavra) que povoam as páginas de shojo mangá: corações flutuantes, estrelas, brilhos, fios de esferas brilhantes, emojis e outras formas, que podem ou não ser lidas como espelhando um significado emocional relativamente aos acontecimentos da história. A falta de uma grelha ortogonal para organizar as múltiplas vinhetas de tamanhos e legendas muito diferentes, justapostas de forma aparentemente aleatória, também pode fazer lembrar um ecrã de computador com demasiadas janelas e separadores abertos. Lembre-se de que a banda desenhada é sempre um meio que permite, a um só tempo, uma visão geral e uma visão detalhada dos elementos dentro de um plano de composição - desde as mais simples vinhetas, bem emolduradas, até aos spreads e mais além. Assim, estes elementos podem ser interpretados em diferentes níveis de integração, desde a “decoração” aparentemente degradante até à tradução pungente da perturbação interior da personagem. Em todo o caso, a sua presença, típica da shojo mangá, enfatizando os sentimentos, parece criar momentos suspensos fora do fluxo narrativo temporal normativo.

Um segundo nível pode talvez ser visto como uma simples variação específica do primeiro. Quero sublinhar como a composição visual destas autoras explora amplamente o aspeto multitarefa dos jogos de vídeo, da utilização da Internet e dos ecrãs dos smartphones. No caso de Lara, de Joana Mosi (2021b), encontramos várias estratégias, tanto a nível temático como compositivo, que nos fazem lembrar certos ecrãs desta natureza. Uma página pode apresentar uma vinheta flutuante, mas essa vinheta é desenhada a partir de um post do Instagram, com perfil de utilizador, legenda, hashtags, botões de like, número de visualizações, etc. A página também inclui um temporizador, uma mensagem de chat, ícones de estado e outros elementos. A peça da Amadora, por exemplo, dispensa personagens de corpo inteiro e apresenta uma malha apertada de vinhetas que se concentram sobretudo nas mãos das personagens participantes. Quando surgem planos mais amplos (também dentro de vinhetas maiores), vemos uma fotografia remediada, da qual por vezes os rostos são apagados. Aparecem também pequenas vinhetas quadradas azuis, com desenhos de linhas brancas com legendas muito simples que lembram sinais de informação de trânsito ou posts de Instagram altamente estilizados (todos eles têm etiquetas de categorias de comida, moda ou géneros musicais como parte da narrativa sobre a qual se fala mais abaixo). Ao longo da história, há alguns pequenos ícones, emojis e vistos, como se integrassem mensagens de WhatsApp no campo da composição. “Postal dos Correios” é uma sequência muito curta - mais do que contar páginas, devemos mencionar que Mosi usa uma técnica de composição semelhante à que Chester Brown desenvolveu no final dos anos 1990, com vinhetas solitárias flutuantes numa página, ou em duas delas. Esta história contém 11 vinhetas em oito páginas. Mas começa com uma metáfora, comparando “viajar a um novo lugar” a “desbloquear o nível seguinte de um videojogo” (Mosi, 2023), mostrando como a familiaridade de percorrer estes espaços dispensa ajudas, pois se torna parte de uma rotina corporal.

Matos também inclui nas suas páginas muitas formas provenientes de ferramentas digitais, manuais explicativos e outras fontes visuais não-narrativas. No entanto, no seu caso, a diversidade e riqueza do conjunto das páginas é tão grande que é difícil ver estas integrações como diferentes do “grau normal” das suas escolhas compositivas. Em Passe Social (Matos, 2019), por exemplo (Figura 4), várias vinhetas parecem imitar selfies de corpo inteiro no espelho, mostrando a personagem principal (informações extratextuais, como fotos da autora e selfies nas redes sociais, ajudam a identificar essa personagem com a autora empírica) tirando fotos de si mesma. No entanto, não só está demasiado longe para a reconhecer totalmente, como não há marcas faciais, apenas uma superfície em branco, e o telemóvel esconde o seu rosto. É um complicado jogo de escondidas de autorrepresentação. Há também capturas de ecrã de pesquisas no Google, publicações no Instagram, um leitor de mp3, a barra de controlo do telemóvel, mas também dispositivos de comunicação impressos, como uma agenda diária (que se tornaria a base da estrutura de Hoje Não). Além disso, há também vinhetas aparentemente não-narrativas com objetos icónicos que funcionam como “zoom in” de atividades diárias - uma colher, uma lata de atum, um único fusìllo - e pequenas sequências explicativas de uma ação - fazer um bolo, preparar um chá.

Fonte. De Passe Social, de A. M. Matos, 2023, p. 8. Copyright 2023 de Erva Daninha.

Figura 4 Passe Social 

4. Intransitividade Narrativa

Hetaomé, Mosi e Matos podem ser vistas, assim, como autoras que empregam, utilizam e remediam várias técnicas de narração visual que não são apenas nativas ou específicas do meio da banda desenhada, mas também de outras formas de media, como os videojogos e as redes sociais, resultando em escolhas notáveis de composição de página. Além disso, estas escolhas também têm impacto na própria “linha discursiva” das histórias, ou seja, no seu enredo. O primeiro valor de contra-estratégia discutido por Wollen (1972) é a intransitividade narrativa. Significa que um fluxo mais habitual de causa e consequência é interrompido, obrigando o leitor a reorientar permanentemente a sua atenção em vez de cair na ilusão de seguir uma sequência natural de acontecimentos. Wollen sugere aqui o estímulo para um estado de atenção reforçado. No entanto, e de forma algo paradoxal, ao utilizar os dispositivos que acabo de descrever, a fragmentação dinâmica das autoras da banda desenhada parece pôr em marcha, a um só tempo, o espelhamento da atomização contemporânea da atenção trazida pelas capacidades multitarefa dos utilizadores da Web, mas também as suas novas possibilidades. Permitam-me que cite Julia Bell (2020) a partir do seu curto, mas fascinante ensaio Radical Attention:

neste ambiente de distração constante e de baixo nível, a nossa atenção está frequentemente dividida por várias tarefas diferentes. Podemos percorrer o Instagram enquanto vemos televisão, ou abstrair-nos do Facebook quando estamos num bar com amigos. Mas o que acontece é que não prestamos atenção a nada. O scroll nas redes sociais, a conversa ou o programa transformam-se num fluxo de dados que passa literalmente por nós, em vez de serem armazenados para utilização ou recordação futura. A nossa capacidade de criar memórias é mais afetada por este tipo de atenção dividida. (…) No meio de toda a sobre-estimulação, somos incapazes de criar novas memórias, o que significa que também não nos lembramos muito do que estamos a fazer. (pp. 73-74)

O vaticínio de Julia Bell (2020) pode soar depreciativo, mas, primeiro, ecoará em diferentes partes dos textos das minhas três autoras e, em segundo lugar, aquilo em que a ensaísta pretende que nos concentremos é um modo de “estar presente”, como escreve, inspirando-se em Simone Weil. Uma “forma diferente de nos relacionarmos uns com os outros (…) não em competição, mas em ligação. Não como unidades de consumo atomizadas, mas em solidariedade” (Bell, 2020, p. 33). É preciso ter cuidado com as simplificações excessivas, mas a banda desenhada é um meio com um “processo de leitura incorporado e multissensorial” enraizado que exige hiperleitura e hiperatenção (Orbán, 2014, p. 169). Assim, mesmo que estas autoras pantominem a multiplicidade digital volátil e adaptável de itens produtores de significado (imagens, textos, ícones, gráficos, enquadramentos), tecem as suas muitas vertentes como significativas. Em vez de criarem uma barragem de átomos não relacionados, apresentam elementos que o ato de leitura tecerá numa teia de significado.

5. Diegese Múltipla

É claro que, como em qualquer empreendimento artístico, a criação de banda desenhada existe numa espécie de espetro, tal como o que existe entre escolhas normativas e abordagens mais experimentais. Nunca existe uma posição absoluta de “ligado/desligado”, “isto/aquilo”. Wollen (1972) opõe a diegese única à diegese múltipla, apresentando, por um lado, os mundos de histórias homogéneos centrados no enredo dominante em Hollywood e, por outro lado, os “dispositivos de filme dentro de filme” de Godard, em que as narrativas se podem interpolar umas às outras ou mesmo não comunicar diretamente entre si. Com exceção de Hoje Não, de Matos (2021), a maioria das outras obras eleitas são contos, e todas se apresentam materialmente como textos coesos (conto, fanzine, folheto, livro de artista, novela gráfica), mantidos juntos não só pelos seus materiais constitutivos mas também por estratégias paratextuais. Como tenho sublinhado, podemos também interpretar algumas das escolhas estruturais textuais, temporais, visuais, espaciais e composicionais como ruturas de uma única linha narrativa.

Em The Apartment (Mosi, 2022a), por exemplo, o enredo supostamente central - a relação de um casal - é interrompido vezes sem conta por “imagens” (imagens dentro de imagens, desenhos dentro de uma narrativa desenhada) supostamente do apartamento por baixo do dos protagonistas, que está à venda. Mas a contribuição mais radical de Mosi para a multiplicação dos fios de sentido que se entrelaçam no plano legível é, sem dúvida, a peça sem nome da Amadora (Figura 5). Podemos identificar esses fios através de descrições que parecem apresentar uma linha coerente, como “diálogo com a avó”, “jogar às cartas” e “preencher um questionário”. A pista verbal pode nem sempre coincidir com a pista visual, e todos estes fios estão baralhados e misturados. Por exemplo, nas perguntas de um questionário típico da Internet - “Plan a Party and we’ll Tell you What Cake you Are” (Planeia uma Festa e Dizemos-te que Bolo És) - as respostas múltiplas são apresentadas como quadrados azuis brilhantes, mas não aparecem necessariamente a seguir às perguntas ou mesmo por ordem. Isto convida os leitores a lerem de trás para a frente ou em complicados movimentos associativos de tressage (cf. Groensteen, 1999).

Fonte. De Plan a Party and We’ll Tell you What Cake you Are! Unpublished 10-page comic, de Joana Mosi, 2022b, p. 5-6. Copyright 2022 de Joana Mosi.

Figura 5 Plan a party and we’ll tell you what cake you are! 

Do ponto de vista da organização da narrativa - a presença de um protagonista, a localização e o tempo exato das ações representadas, a centralidade de um enredo, etc. - Hetamoé é talvez a mais radical destas três artistas, ao explorar múltiplas formas de entrelaçar os elementos das suas peças de banda desenhada.

Idle Odalisque (Odalisca Ociosa; Hetamoé, 2012), a publicação mais antiga que irei abordar aqui, apresenta uma composição bastante desordenada de figuras desenhadas a marcadores grossos, como se imitasse um artista jovem e inexperiente ou a escola heta-uma. O enredo apresenta uma jovem núbil que consegue aumentar os seus seios usando umas gotas mágicas para os olhos, prostitui-se com um urso e acaba por jogar Scrabble e dormir aconchegada. Embora possa fazer lembrar uma das numerosas e já conhecidas versões pornográficas (hentai, na linguagem japonesa) de contos folclóricos europeus, versões cujo impacto emocional é esvaziado pela sua pirotecnia visual, estas abordagens “desajeitadas” tornam-se muito mais desconcertantes, ao misturarem o banal, o excessivo, o abjeto e o absurdo.

A Yonkoma Collection (Coleção Yonkoma; Hetamoé, 2014) refletia já uma espécie de “fase madura” dos processos discursivos da autora na altura. Hetamoé nunca esteve interessada em seguir um estilo euromanga ou em ser vista como uma mangaka portuguesa, como muitos outros autores que se limitam a adotar convenções estilísticas e narrativas numa emulação transplantada. Poderíamos talvez identificar algumas fontes quase diretas para os seus temas e técnicas de desenho, como os luminares da segunda geração de gekiga, Oji Suzuki e Seiichi Hayashi. Tal como estes antigos autores da Garo, Hetamoé estrutura as suas narrativas em torno da fluidez onírica, da melancolia e da poesia do silêncio e da ambivalência. Estes elementos estão também claramente presentes noutros autores experimentais ocidentais contemporâneos, como Aidan Koch, Lala Albert e Blaise Larmee. Mas, em termos de composição, Hetamoé utiliza uma forma muito tipificada neste projeto: a do yonkoma titular, uma tira geralmente humorística constituída por quatro vinhetas de igual dimensão dispostas verticalmente umas sobre as outras (Figura 6). A publicação é uma “coleção” de 17 dessas tiras, passando por todas as combinações imagináveis, desde tiras quase “silenciosas” a algumas com diálogos, desde ações representadas densas e concentradas a estruturas mais expandidas ou mesmo listas visuais de objetos semelhantes. Há um tema geral, é certo - “o amor dói”, poderíamos resumir -, mas a autora desvenda significados inesperados e produtivos a partir destas justaposições que apelam à participação do leitor na realização de associações.

Fonte. De Yonkoma Collection, de Hetamoé, 2014, pp. 4- 5. Copyright 2014 de Clube do Inferno

Figura 6 Yonkoma collection 

Muji Life (Vida Muji; Hetamoé, 2016) é uma publicação a solo completa que se divide em duas partes e é um objeto que repensa a forma como a banda desenhada pode comunicar e apresentar-se formal e materialmente. Por um lado, temos um livro quadrado que se assemelha aos catálogos da famosa marca japonesa de artigos para o lar, e uma espécie de ensaio complementar, apresentado numa brochura separada, mas integrada, intitulada Yangire/Yandere. Neste projeto, Hetamoé consome completamente o uníssono entre o grotesco, o erótico e o cruel. O ensaio utiliza ferramentas dos estudos culturais, dos estudos feministas e de outras áreas académicas para discutir as noções do seu duplo título, que se refere a figuras femininas tipificadas específicas de alguns géneros de banda desenhada japonesa. Em suma, podemos descrever estas figuras yangire e yandere como personagens femininas muito jovens, com candura e um comportamento tranquilo, mas que servem de máscara a uma faceta oculta de extrema violência. Há diferenças significativas entre estes termos, que Hetamoé elucida brilhantemente, mas, para os nossos propósitos, basta dizer que ambos sublinham e apoiam uma imagem heteronormativa das mulheres como, e cito novamente Ngai (2005, p. 95), “animadas”, ou seja, “demasiado emotivas” e, por isso, mais perturbadoras - nessa perspetiva - quando se envolvem em atos violentos como o desmembramento ou o homicídio. Assim, a narrativa de Muji Life, apresentada como uma série de grelhas mais ou menos coordenadas de quatro vinhetas quadradas, como se apresentasse produtos, pode ser vista como a ilustração, por assim dizer, das lições do ensaio. As noções, os objetos e as discussões do ensaio alimentam uma história fragmentária sobre uma obsessão apaixonada que termina nos atos violentos mais abjetos.

Em 2020, publicou Violent Delights (Delícias Violentas; Hetamoé, 2020), quase um corolário paroxístico destas vertentes temáticas. Cita a peça Romeu e Julieta e os sonetos de Shakespeare, desconstrói tropos visuais de mangá e animé e discute questões como o Antropoceno. Formalmente, muda rapidamente as escolhas de composição e as estratégias de desenho, numa espécie de zapping de estilos página a página. Poderíamos ser tentados a não compreender a sua coerência, mas o paroxismo pode ser o próprio ato violento no centro da mais famosa tragédia (adolescente) de Shakespeare, o que não é uma contradição, mas antes a confirmação da sua poderosa paixão, refletida na citação/título.

6. Abertura

Uma consequência imediata da multiplicidade de narrativas alimenta a próxima das categorias de Wollen (1972), nomeadamente o fechamento vs. abertura. Wollen discute a intertextualidade, o ecletismo, a citação, o pastiche e a ironia, mas também podemos considerar uma relação mais direta entre as partes dos textos ou talvez até “episódios”. De facto, a maior parte da banda desenhada parece habitar confortavelmente o fim do espetro de enredos unívocos concluídos de forma satisfatória. Além disso, do ponto de vista da estrutura específica da banda desenhada, Scott McCloud (1993) tentou, de forma bastante célebre, elevar a noção de “fechamento” como o núcleo da “arte invisível da banda desenhada”. De acordo com esse teórico, o fechamento implica um envolvimento dos leitores/espetadores na ligação de duas imagens separadas e no “fechamento” dessa lacuna com atos de imaginação, completando ações, supondo acontecimentos e ligações, e provocando uma resposta ética, à medida que os leitores se tornam cúmplices de qualquer ação retratada.

No entanto, as muitas justaposições desconcertantes já mencionadas em alguns dos textos de banda desenhada de Hetamoé, Matos e Mosi criam uma impossibilidade de integrar todas as intervenções num único campo semântico. Ainda assim, alguns dos projetos aqui discutidos poderiam ser descritos como “fechados” de uma certa perspetiva. Afinal, Hoje Não, de Matos (2021), é um diário que tem claramente um princípio e um fim, um diário que começa com páginas monumentais e se espalha como se declarasse o seu início enérgico e termina com uma enxurrada cerrada e exclusivamente textual de notas diárias rabiscadas até que mesmo esse manuscrito termina e ficamos com entradas diárias vazias. É como se a energia se tivesse esgotado, ou se estivesse a decorrer uma espécie de desfecho. Both Sides Now (Os Dois Lados Agora), de Mosi (2021a), confronta reinterpretações de dois filmes, talvez antagónicos do ponto de vista da receção crítica e do género, The Losbter (A Lagosta; 2015), de Yorgos Lanthimos, e Love Actually (O Amor Acontece; 2003), de Richard Curtis, mas que poderiam ser subsumidos na perspetiva interpretativa da protagonista (mais uma vez, ocultada) sobre ambos. A peça sem nome, da Amadora, pode também ser vista como uma homenagem à figura da avó, cujas memórias são centrais para o diálogo e para a criação de laços femininos. Reflexão sobre uma vida quase gasta e sobre a iminência da morte e da dissolução, este conto termina com uma sequência de vinhetas cada vez mais escurecidas, representando talvez o mar a cobrir as areias (esta peça reflete, ainda que indiretamente, o conto de duas páginas “La Orilla” (A Margem), de Federico del Barrio e Elisa Gálvez, de Madriz, Número 13, fevereiro de 1985, e uma leitura comparativa revelaria certamente múltiplas leituras).

No entanto, esses sentimentos de finalidade e univocidade não passam de uma ilusão. A dissolução e a confusão estão sempre presentes e permitem uma estrutura aberta na maioria, se não em todos, os textos. O livro de Matos (2021) abre com a seguinte declaração: “hoje é segunda-feira. Hoje foi terça, quarta, quinta e sexta. Tudo menos sábado. Tudo menos o fim de semana”. E fecha com: “hoje não foi sábado nem foi dia nenhum. Hoje é segunda-feira. Hoje eu não fui eu. Não fui nenhum. Hoje passou num piscar de olhos”.

Grapefruit (Toranja), a contribuição de Matos para a editora letã Kuš (ainda não publicada no momento em que escrevo, mas já disponível aquando da vossa leitura), é uma tour de force sobre o ato criativo associado ao meio da banda desenhada e não só. Ao longo destas páginas, Matos (2023b) tenta descrever o que planeia fazer quando coloca palavras e imagens no papel numa determinada ordem para o significado aparecer e, ao mesmo tempo, reflete sobre a sua própria identidade e o seu eu. Criar é auto-criar-se, mas as dúvidas e a dissolução estão sempre presentes. Escreve: “através deste processo de auto-desconstrução, pensei em mim própria ao ponto de me tornar nos meus próprios pensamentos”.

A última página deste pequeno livro (Figura 7) tem um lápis a acenar adeus. Mas é uma composição complicada: um fantasma sombrio de uma personagem feita a grafite parece saltar pela janela, revelando que o lápis é apenas parte do vidro. Depois, as janelas abrem-se de novo e a sombra expande-se e transforma-se numa forma ainda mais densa até desaparecer completamente, e depois o lápis aparece de novo de costas para nós e acena de novo antes de a perspetiva se elevar e desaparecer. Entretanto, a pista verbal (com diferentes tipos, tamanhos e apresentação visual, mas numa frase semântica lógica) declara: “Enquanto as marcas intuitivas, as palavras impressas, e as imagens retiradas de outras imagens transportam a carga da narrativa, a realidade continua sem mim. Narrar é criar, viver é ser vivido” (Matos, no prelo). Este reconhecimento de uma realidade vivida que existe para além do trabalho criativo estende o significado para além e fora do texto. Numa sinopse de Hoje Não, o artista António Jorge Gonçalves (citado em Matos, 2021) elogia o “rigor gráfico virtuosamente obsessivo” de Matos na criação daquilo a que chama “páginas de labirinto”. Labirintos como armadilhas onde se refazem caminhos sem fim ou se cruzam caminhos, voltando sempre a novos modos de tecer os significados.

Fonte. De Grapefruit, de A. M. Matos, 2023b, p. 11. Copyright 2023 de Kuš.

Figura 7 Grapefruit 

Além disso, é claro, as mudanças radicais de estilo e de voz de Hetamoé e a atenção dispersa anunciam um encerramento quase insolúvel, relançando sempre os seus leitores num frenesim de tentativas associativas. Este frenesim, uma espécie de viagem emocional e semântica que negociamos constantemente enquanto tentamos juntar as peças destes livros, é o seu próprio núcleo significativo. Não estamos apenas a ler estas histórias para reconstruir um enredo redutível a um breve esboço, e onde todas as partes contribuem para um “tema” único, objetivável e isolável. Muito pelo contrário, é a permanente deslocação que constitui o objetivo.

7. Des/Prazer

Ao chegarmos ao sexto par virtude/pecado de Peter Wollen (1972), aquele entre prazer e desprazer, torna-se um pouco mais difícil seguir o seu raciocínio. A própria noção é um pouco mais controversa para os nossos tempos, ou pelo menos na minha interpretação. Em primeiro lugar, o entretenimento é visto por Wollen como parte de uma sociedade de consumo que foi, naturalmente e com razão, denegrida por um ponto de vista crítico marxista. Não quero entrar em muitos pormenores sobre a economia alternativa contemporânea da banda desenhada independente, mesmo que possamos estar a aceitar aqui uma espécie de cooptação da comercialização normalizada, mas notarei que, apesar das suas tiragens limitadas (menos de 500 exemplares, no total, de cada um dos títulos mencionados), eles têm, como se diz, “vendido bem”. Hoje Não, por exemplo, até esgotou a sua edição portuguesa e está prestes a ser publicado em inglês por uma nova e não negligenciável editora independente dos Estados Unidos. My Best Friend Lara, de Mosi, é um livro feito à mão, encadernado em capa dura e impresso em risografia a duas cores. Com as suas cores de pastel delicadas e texturadas - um verde-floresta de dois tons e um tom salmão forte - misturadas com pinceladas expressivas (mesmo que feitas digitalmente), por vezes até próximas de manchas e riscos abstratos sobre as figuras, o livro cria uma materialidade marcante que serve de contraponto ao seu tema - a natureza suave e dita imaterial dos videojogos e computadores - ou formato mediático de telemóvel. De facto, ao expor excessivamente as formas nativas digitais em todo o seu trabalho, Mosi enfatiza as suas qualidades hápticas e emocionais, e este objeto-livro é a sua realização mais completa. Assemelha-se bastante, em todos os aspetos, a um livro de artista pela sua materialidade, pela encadernação artesanal e pelas intervenções manuais, e pela sua tiragem muito limitada (alguns exemplares foram vendidos com mais um desenho impresso). Não se pode negar a existência de um certo fetichismo, que reforça as suas características aprazíveis.

Existe, porém, um segundo nível na escrita de Wollen (1972) quando aborda a fantasia e o seu complicado aglomerado de significados. Para simplificar, quero apelar à máxima de Slavoj Žižek (2008) de que a fantasia é constitutiva da própria realidade do sujeito. Permitam-me uma citação mais longa do filósofo esloveno em The Plague of Fantasies (A Peste das Fantasias):

não existe nenhuma ligação entre o real (fantasmático) do sujeito e a sua identidade simbólica: os dois são completamente incomensuráveis. A fantasia cria assim uma multiplicidade de “posições de sujeito” entre as quais o sujeito (observador, fantasista) é livre de flutuar, de deslocar a sua identificação de uma para outra. (p. 7, nota de rodapé 5)

Falámos noutro lugar (Moura, 2022, p. 220) dos “corpos em permanente mutação” e dos “avatares” dos criadores de autobiografias traumáticas. Também referimos acima como esses autores apresentam formas oblíquas de representação das suas personagens, espelhando essa multiplicidade de posições de sujeito. Esta exploração da fantasia, do trabalho do sonho, provoca uma espécie de prazer. Mas o desprazer revolucionário defendido por Wollen (1972) continua a existir: reside na provocação destas estratégias de representação muito mutáveis e dos múltiplos focos.

Provavelmente, não há outra concretização mais clara de tal paradoxo do que Onahole, de Hetamoé (2013), com informação pornográfica. Materialmente falando, este é um caso muito gestual, cru e de baixa qualidade. Trata-se de uma clássica brochura fotocopiada, dobrada e agrafada em folhas A4, com traços muito espontâneos, aparentemente desenhados a caneta, e preenchida com texturas básicas e “sujas” que podem utilizar corretor, grafite, pó de toner ou outras tintas. As figuras são corporais, mas enquadradas de forma a revelarem apenas as partes do corpo necessárias ao enredo minimalista, e com uma composição simples, mas evocativa, algo frenética. “Onahole” é o nome dado a um brinquedo sexual, um dispositivo de silicone, que simula uma vagina ou um ânus, utilizado para a masturbação do pénis. A história apresenta-se como um texto, por vezes escrito à mão, outras vezes dactilografado, o que pode indicar quer uma mudança na mesma voz unificada que fala com o protagonista, quer vozes alternadas. Quanto às imagens, estas representam o que parecem ser flores, um cavalo meio apagado numa paisagem, um pénis excitado, uma jovem adolescente que parece perdida e que, em pelo menos uma cena, mostra uma expressão perturbadora de dor no rosto, presumivelmente devido a uma penetração forçada e dolorosa (Figura 8). A situação é indeterminada, mas há elementos suficientes para acreditar que a violência sexual parece ser de facto o acontecimento-chave deste conto, embora não haja garantias absolutas. Por exemplo, não há certezas absolutas sobre quem é o agressor e quem é a vítima, embora não seja difícil de adivinhar do ponto de vista social. De facto, esta narrativa visual faz-me lembrar a curta-metragem de animação Le Chapeau (O Chapéu), de Michèle Cournoyer (1999), em que as transformações visuais entre os objetos incrivelmente diversos só são decifráveis através do enigma criado pela própria sequencialização das imagens. Se considerarmos que estes objetos de autogratificação, os onaholes, são mais uma reificação absoluta e espetacularmente redutora do corpo da mulher ou feminino, a violência está presente desde o momento da sua conceção e fabricação. No entanto, ao intercalar cenas com flores, bem como a palavra recorrente “crescer”, talvez Hetamoé queira apontar, obliquamente, para uma direção completamente diferente: a da autodescoberta e autocelebração. A fronteira friável entre o prazer e o desprazer mantém-se, no entanto.

Fonte. De Onahole, de Hetamoé, 2013, p. 9. Copyright 2013 de Clube do Inferno.

Figura 8 Onahole 

8. Realidade

A última oposição proposta por Wollen (1972) é entre ficção e realidade. Como vimos, a criação de um mundo de histórias homogéneo que nos é apresentado como se fosse visto por uma janela emoldurada que se apaga como um canal ou nos oferece a ilusão de não estarmos conscientes da sua presença cria um caminho fácil para a identificação e o fechamento emocional e intelectual. Pelo contrário, as contra-narrativas vão perturbar os seus espetadores e leitores, empurrando-os para um posicionamento crítico e não deixando escapar a ideia de que estamos perante um texto interpretável e aberto enquanto texto. Violent Delights, por exemplo, parece apresentar uma salva de abertura em staccato de vários enquadramentos que, paradoxalmente, se apagam reciprocamente por substituição, mas também criam um efeito cumulativo… Apesar da objetividade de Passe Social e Hoje Não, Matos insiste em estratégias que tornam presentes as suas circunstâncias mais específicas, mas também obriga o leitor a negociar o seu próprio posicionamento relativamente à matéria textual/verbal.

Não obstante, a negociação da ficção e da realidade num meio visual não ocorre apenas ao nível da sua diegese, da sua pista verbal. A mudança de estilo, quando não é justificada por um recurso do mundo da história, é desconcertante e pode alertar-nos para negociações complexas de significado. Veja-se o caso de The Apartment, de Joana Mosi (2022a). Este pequeno livro tem uma excecionalidade marcante nas suas escolhas de representação. Como referimos, as personagens são desenhadas de forma muito simples, com poucas linhas para os seus contornos. Aparecem, normalmente, com uma de duas cores, um laranja suave e um azul ligeiramente elétrico, muito provavelmente aplicados digitalmente, mas resultando num padrão tipo pochoir. Há um momento em que a personagem masculina se torna azul (de laranja) quando grita para a companheira do outro lado da sala, e no final, quando a personagem feminina reage a um filme que acabaram de ver na sala de estar, a sua cara é vermelha, enquanto o resto do seu corpo (bem como o ambiente, incluindo o marido) é azul, um pouco como quando as pessoas coram são representadas na banda desenhada. Mas a maior discrepância de estilo é a página que mostra a personagem a chorar enquanto vê o filme (Figura 9): temos uma página com quatro vinhetas, separados por um pequeno filamento preto, que mostra o perfil da personagem, desenhada num estilo mais detalhado, quase realista, apesar de também ser feita com contornos simples, e um tom de vermelho progressivamente mais escuro e manchado. Uma lágrima rola pelo rosto da personagem. Ela limpa-a com os dedos.

Fonte. De The Apartment, de J. Mosi, 2022a, pp. 22- 23. Copyright 2022 de mini kuš!

Figura 9 The apartment 

Quando falámos acima de Muji Life de Hetamoé, apenas mencionei brevemente o “ugly feeling” (sentimento feio) de Sianne Ngai (2005), mas agora posso aprofundar mais esta análise, dado que, de certa forma, talvez este seja um momento de uma página que mostra a animação da personagem. Logo na introdução do seu livro pioneiro, Sianne Ngai (2005) refere como a animação conduz “ao estado passivo de ser movido ou vocalizado por outros para seu divertimento” (p. 32). Obviamente, em The Apartment, estamos perante um pequeno paradoxo: afinal, este estilo mais realista e esvoaçante poderia ser lido como “menos animado” do que o estilo cartoonista do resto do livro, mas, dentro da sua narrativa, o contraste atua de forma particularmente contrária. O acesso súbito a microexpressões faciais incorpora o excesso emocional, algo impossível de conseguir através do estilo chibi de antes e depois.

Como descrito, a personagem feminina estava a ver um filme. Ela chora, e nós testemunhamos esse choro através de uma transformação estilística bem radical. O marido da personagem - de volta ao estilo chibi -, no entanto, parece ter uma reação muito diferente ao mesmo filme, por dizer: “não sei a tua opinião, mas caramba, que filme de merda” (Mosi, 2022a). Isto atua de duas maneiras. Não só compreendemos que o significado emocional foi bastante diferente para o casal - ela chora por causa do filme, ele menospreza-o - como vemos que ele nem sequer reconhece a reação chorosa dela (“Não sei a tua opinião”). Ou talvez ele esteja mesmo a minimizar a situação, excluindo-a da possibilidade de comunicar emoções. Os factos visuais a que temos acesso fazem-nos crer que partilham o mesmo espaço (o sofá) mas estão a milhas de distância. Há, ao longo da história, insinuações de questões que poderiam levar a novas desavenças conjugais: sobre a sala dos fundos, o tapete, a colocação da mesa e o preço da comida pedida, mas “nada acontece”, para citar um importante livro de Greice Schneider (2016) sobre como a banda desenhada contemporânea aborda o alheamento e os sentimentos de inércia da sociedade moderna. O próprio facto de não haver melodrama em The Apartment aponta para uma degradação silenciosa, mas latente da intimidade deste casal. A personagem feminina encontra uma libertação emocional no filme, uma libertação que literalmente - ainda que nos limites da materialidade do mundo desenhado - a animou em novas formas e gestos e possibilidades afetivo-físicas. Mas ela permanecerá trancada.

9. Para terminar: Animar o Tecer de Significados

É importante notar aqui que Ngai (2005) também teoriza a animação como um “marcador de alteridade racial ou étnica, em geral” (p. 94). No entanto, esta questão não será objeto de análise no presente capítulo. As três artistas que analiso são todas mulheres portuguesas brancas, o que não implica nenhum tipo de “neutralidade”. Além disso, poderíamos abrir uma discussão intensa sobre o uso que Hetamoé faz de personagens de mangá e todas as questões incómodas sobre o seu carácter asiático. Estes são assuntos para outro momento.

Poderíamos também argumentar que o trabalho de Joana Mosi tem explorado precisamente este tipo de formas de emoção subjugadas, contidas, quase diluídas. As histórias que aqui escolhi não chegam a ser demonstrações explosivas de sentimentos, seja a nostalgia chorosa de uma infância perdida, seja a estranheza de reconhecer lugares onde os protagonistas nunca estiveram. Mas são exatamente esses os territórios afetivos apresentados e explorados que compõem a autoconstrução da voz criativa da autora.

Mosi apresenta emoções tão complexas, colocando-as em espaços aparentemente seguros e distanciados. Hetamoé mergulha nos paroxismos e nas imagens chocantes para fazer emergir emoções duras mas necessárias e expor as nossas personas contraditórias. E Matos lança complicados fios de multilegibilidade que espelham as múltiplas maneiras de nos formarmos. Estes atos, cada um à sua maneira complexa, criam textos que atenuam o impacto ou disfarçam a verdade de formas intensas de autoidentidade, mas é a sua malha de sentimentos que, ao mesmo tempo, nos permite ver através e de forma aguda a própria verdade que tentam esconder. Em todo o caso, não há dúvida de que as autoras merecem ser estudadas mais a fundo na forma como exploram as subjetividades descentradas.

Permitam-me que regresse mais uma vez a Wollen (1972) e à declaração final do seu texto curto, mas altamente influente. Escreve,

o cinema não pode mostrar a verdade, ou revelá-la, porque a verdade não está no mundo real, à espera que a fotografem. O que o cinema pode fazer é produzir significados, e os significados só podem ser traçados, não relativamente a uma bitola abstrata ou critério de verdade, mas relativamente a outros significados. (p. 17)

A banda desenhada pode produzir significados, e os das bandas desenhadas de Mosi, Matos e Hetamoé são finamente tecidos e intrincadamente construídos, simultaneamente uma multiplicidade e um padrão recorrente que se revisita a si próprio e aos eus. É frágil, oscila ao sabor do vento, mas está pronto a apanhar os novos significados que possam surgir.

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Recebido: 20 de Março de 2023; Aceito: 11 de Maio de 2023

Tradução: Anabela Delgado

Pedro Moura é um académico de banda desenhado baseado em Lisboa, doutorado em Literatura Comparada pela KUL, Leuven, e pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa. O seu livro, Visualing Small Traumas. Contemporary Portuguese Comics at the Intersection of Everyday Trauma, foi publicado em 2022 pela Leuven University Press. No início de 2023, publicou um estudo em português sobre Bordalo Pinheiro, o chamado “pai” da banda desenhada portuguesa. Uma coletânea de ensaios que editou, sobre o artista de banda desenhada experimental Ilan Manouach, será publicada em breve pela Routledge. Lecciona história, teoria e escrita de argumentos para banda desenhada, ilustração e animação desde 2003 em várias instituições portuguesas e tem alguma experiência internacional. Na área da banda desenhada, é muito ativo como curador, documentarista televisivo, podcaster, livreiro/galerista, argumentista e crítico publicado, escrevendo regularmente para os seus blogues em português e inglês, bem como para as redes sociais. Email:pedrovmoura@gmail.com Morada: Lida - Escola Superior de Arte e Design, Caldas da Rainha, Instituto Politécnico de Leiria, Rua Isidoro Inácio Alves de Carvalho, Campus 3, 2500-321 Caldas da Rainha

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