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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.7 no.1 Queluz mar. 2020  Epub 07-Jun-2021

https://doi.org/10.29315/gm.v7i1.301 

Casos Clínicos

Tromboflebite Séptica da Veia Porta como Complicação de Apendicite Aguda

Septic Thrombophlebitis of the Portal Vein as a Complication of Acute Appendicitis

Márcia Mendonça Souto1 
http://orcid.org/0000-0002-8908-4719

João Carvas2 

Cátia Canelas1 

Fernanda Linhares1 

Renata Silva1 

1 Serviço de Medicina Interna Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal.

2 Serviço de Cirurgia Geral, Unidade Local de Saúde do Nordeste,Bragança, Portugal.


Resumo

A pileflebite é uma tromboflebite da veia porta, ou suas tributárias, secundária a um processo infeccioso intra-abdominal. Apresentamos o caso de um homem de 40 anos que recorre ao serviço de urgência com dor abdominal nos quadrantes inferiores, vómitos biliares com oito dias de evolução. Analiticamente: leucocitose de 17 000 uL, proteína C reativa elevada. Ecografia abdominal compatível com apendicite aguda. Realizou apendicectomia de McBurney. Ficou internado no Serviço de Cirurgia. Ao dia 2 de internamento iniciou febre e distensão abdominal. Na tomografia computorizada abdominal constata-se veia porta com trombo endoluminal não completamente obstrutivo, que se estende à veia mesentérica superior (ocluída nos ramos proximais e segmentares). Iniciou hipocoagulação e antibioterapia, ficando orientado para consulta externa, onde realizou estudo protrombótico e excluídas causas de doença hepática. Estudo de imagem aos 3 meses de hipocoagulação mostrou trombose da porta recanalizada, sem colaterização.

Palavras-chave: Apendicite; Sepse; Tromboflebite; Veia Porta

Abstract

Pylephlebitis is a thrombophlebitis of the portal vein, or its tributaries, secondary to an intra-abdominal infectious process. We present a case of a 40-year-old male, who went to the Emergency Department with lower abdominal pain and biliary vomiting with eight days of evolution. Analytically: leucocytosis 17 000 uL and high C-reactive protein. Abdominal ultrasound exam was compatible with acute appendicitis. The patient underwent a McBurney’s appendectomy and was admitted to the Surgery Department. By the second day of hospitalization he initiated fever and abdominal distension. The abdominal computed tomography scan showed an endoluminal thrombus, not totally obstructive, in the portal vein, that reached into the superior mesenteric vein. The patient initiated hypocoagulation and antibiotic therapy and was oriented to consultation, where we performed prothrombotic study and excluded causes of hepatic disease. Image study after 3 months of hypocoagulation showed recanalization of the portal vein thrombosis, without collateral vein formation.

Keywords: Appendicitis; Portal Vein; Sepsis; Thrombophlebitis

Introdução

A tromboflebite séptica da veia porta, também denominada por pileflebite, consiste na trombose infetada e supurativa da veia porta e é uma complicação grave de diversas infeções intra-abdominais ou pélvicas.1

Considerada fatal na Era pré-antibiótica, esta patologia continua a ter alta morbimortalidade, apesar da evolução das técnicas de diagnóstico e tratamento.2 É uma entidade rara, com uma incidência de 2,7 por 100 000 pessoas ao ano, podendo acometer todas as faixas etárias.3,4

Habitualmente, o desenvolvimento de trombos venosos deve-se a um processo multifatorial. Uma combinação de fatores protrombóticos locorregionais e sistémicos pode ser a causa da trombose do sistema venoso porto-mesentérico. Os fatores de risco mais comuns são: doenças oncológicas, cirurgia recente, infeções abdominais, cirrose hepática e alterações da coagulação.4-6

Como complicação de apendicite surge muito raramente, e a sintomatologia é inespecífica, pelo que exige uma elevada suspeição diagnóstica.7

Com este caso clínico pretendemos chamar à atenção para uma entidade rara, com prognóstico muito desfavorável, caso o diagnóstico e o tratamento não sejam céleres.

Caso clínico

Doente do sexo masculino, 40 anos de idade, sem patologias conhecidas nem medicação crónica habitual, com hábitos tabágicos (20 unidades maço ano) (UMA) e etílicos (70-80 g/dia). Recorre ao serviço de urgência por dor abdominal tipo cólica de predomínio nos quadrantes inferiores, sem irradiação e sem fatores de alívio ou agravamento; vómitos de características biliares e anorexia, com oito dias de evolução. Objetivamente à admissão encontrava-se apirético, hemodinamicamente estável e com abdómen mole e depressível, doloroso à palpação profunda na região do hipogastro e sinal de Blumberg positivo. Analiticamente apresentava leucocitose (17 000/uL com 94% de neutrófilos) e proteína-C-reativa (4,35 mg/dL) aumentada. A ecografia mostrou espessamento e edema da parede do apêndice não compressível, achados sugestivos de apendicite.

Feito o diagnóstico de apendicite aguda, foi realizada apendicectomia de MCBurney sem intercorrências de imediato, cujo achado cirúrgico foi apêndice ielocecal necrosado. Admitido no internamento do Serviço de Cirurgia, onde ao dia 2 de internamento inicia febre e dor abdominal. Para avaliação de possível complicação infecciosa abdominal realizou tomografia computorizada (TC) com contraste endovenoso que mostrou: “pequena quantidade de líquido coletado na fossa ilíaca direita e, associadamente, densificação da gordura peritoneal mesentérica e escasso pneumoperitoneu; aumento do calibre da veia porta com cerca de 16 mm, com trombo endoluminal não completamente obstrutivo, que se estende para a veia mesentérica superior, a qual se encontra ocluída nos seus planos proximais, assim como os seus ramos segmentares (Fig.s 1 e 2). Hepatomegalia de 19 cm com parênquima de textura heterogénea com sinais de edema periportal. Esplenomegalia homogénea de 18 cm. Sinais de enfisema subcutâneo e densificação da parede abdominal anterior, em particular na região da fossa ilíaca direita”. Realizou também angio-TC de tórax sem outras alterações além de muito discreto derrame pleural direito.

FIGURA 1 e 2: Imagem de tomografia computorizada - trombo endoluminal não completamente obstrutivo da veia porta. 

Pedida avaliação por Imunohemoterapia e Medicina Interna que optaram por iniciar hipocoagulação com heparina de baixo peso molecular em doses terapêuticas e antibioterapia com amoxicilina e ácido clavulânico, com boa resposta clínica e apirexia sustentada. O doente teve alta ao oitavo dia de internamento, medicado com enoxaparina sódica 1 mg/kg duas vezes por dia e com indicação de cumprir antibiótico durante mais oito dias. Foi orientado para consulta Hospitalar para prosseguir estudo em ambulatório.

Na consulta de Imunohemoterapia e Medicina Interna/Hepatologia realizou estudo protrombótico com anticorpos anti-cardiolipina e anti-beta2-microglobulina negativos, proteínas C e S normais e mutação Jak2 negativa. Foram, ainda, excluídas possíveis etiologias da doença hepática com marcadores víricos negativos; parâmetros de ferro normais com saturação da transferrina de 30%; estudo imunológico sem alterações (anticorpos anti-mitocôndria e anti-músculo-liso). Iniciou anticoagulante oral direto (apixabano 5 mg 12/12 horas). Após três meses do início da hipocoagulação realizou ecografia abdominal com doppler que mostrou: “fígado proeminente (5,5 cm na linha média clavicular), textura heterógena mas sem sinais ecográficos de doença hepática crónica; baço com 14 cm de maior eixo; permeabilidade mantida do eixo espleno-portal com fluxo, ligeiro espessamento do tronco porta parietal a relacionar com trombose da porta recanalizada; sem colaterização portal; ramos direito e esquerda da veia porta e veia cava e supra hepáticas permeáveis.”

Com a veia porta permeável, foi suspensa a hipocoagulação e o doente mantém-se assintomático, sem novos eventos trombóticos e sem sinais de doença hepática.

Discussão

A pileflebite consiste na trombose séptica da veia porta e pode ocorrer, embora raramente, como complicação da apendicite aguda, nomeadamente quando o diagnóstico é tardio e o início de tratamento adiado.7

Estados de hipercoagulabilidade são encontrados em alguns doentes que desenvolvem esta complicação,8 que neste caso foram pesquisadas e excluídas. No doente em questão, a trombose parece estar relacionada apenas com o processo infeccioso intra-abdominal com cerca de uma semana de evolução, associado à intervenção cirúrgica decorrente da apendicite aguda.

O sistema porta é responsável pela drenagem de uma grande parte do trato digestivo. A extensão da tromboflebite de pequenos vasos para veias de maior calibre leva à trombose séptica da veia porta. Esta pode estender-se e envolver vasos mesentéricos,3 como no caso apresentado.

As manifestações clínicas são inespecíficas, como febre, dor abdominal, náuseas, vómitos e anorexia. Hepatomegalia e icterícia podem ocorrer em alguns casos e sugerem comprometimento hepático. Leucocitose e aumento de fosfatase alcalina e de gama glutamil transferase ocorrem na maioria dos doentes. A hipertensão portal com ascite pode ser uma complicação tardia.1-9

A TC na fase venosa portal é o meio complementar mais sensível, mas o diagnóstico final pode ser estabelecido através de ecografia com doppler ou TC com contraste, como no caso apresentado.7-9

Uma vez estabelecido o diagnóstico e identificada a causa da tromboflebite, o tratamento deve ser iniciado de imediato com antibioterapia de largo espectro e hipocoagulação.8,9

A antibioterapia constitui o principal tratamento para a pileflebite, sendo necessário início empírico para as bactérias mais comuns (Bacteroides fragilis, Escherichia coli e anaeróbios), devendo-se ajustar o antibiótico de acordo com o resultado cultural. Alguns autores defendem que a duração do tratamento deve ser de 4 a 6 semanas, sendo 2 a 3 semanas de antibiótico endovenoso.10 Neste caso, o doente apresentou boa resposta clínica com apirexia sustentada com apenas seis dias de antibiótico endovenoso, pelo que foi decidido pela equipa de Cirurgia a alta hospitalar, com antibiótico oral no domicílio, por mais uma semana.

Não existem, ainda, estudos prospetivos randomizados e consensos sobre anticoagulação no tratamento da pileflebite. Alguns autores defendem que em doentes com trombose isolada da veia porta e coagulação normal não é necessário anticoagular, podendo beneficiar de terapêutica anticoagulante os casos com envolvimento de veia mesentérica. Nos estados de hipercoagulabilidade, como, por exemplo neoplasias, o uso de anticoagulantes é mais consensual.11

No caso apresentado, foi decidido tratar o doente com enoxaparina sódica até estudo etiológico concluído. Posteriormente, e apesar da falta de evidência científica neste assunto, o doente foi medicado com um anticoagulante oral direto com boa resposta clínica e imagiológica.

A tromboflebite séptica da veia porta é uma complicação rara, associada a um prognóstico reservado se não for prontamente diagnosticada e tratada. Através da conjugação de esforços e da multidisciplinaridade, foi instituída terapêutica adequada e precoce.

Referências

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Fontes de financiamento: Não houve qualquer fonte de financiamento na realização do presente trabalho

Confidencialidade dos dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares

Financial support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients

Patient consent: Consent for publication was obtained

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed

Recebido: 13 de Janeiro de 2020; Aceito: 20 de Janeiro de 2020; Publicado: 31 de Março de 2020

Autor Correspondente/Corresponding Author: Márcia Mendonça Souto [m2souto@hotmail.com] Rua Principal, Paredes, 5090-210 Palheiros, Murça, Portugal ORCID iD: 0000-0002-8908-4719

Conflitos de interesse:

Os autores declaram não ter qualquer conflito de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of interest:

The authors declare that they have no conflicts of interest.

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