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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.7 no.2 Queluz jun. 2020  Epub 24-Jun-2021

https://doi.org/10.29315/gm.v7i2.349 

Artigo de Perspetiva

Pandemia COVID-19: Impacto (Também) na Cardiologia

COVID-19 Pandemic: Impact (Also) on Cardiology

1 Centro do Coração, Hospital CUF Infante Santo, Lisboa, Portugal;

2 Serviço de Cardiologia, Hospital de Santa Marta, Lisboa, Portugal;

3 Instituto de Fisiologia, Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, Portugal.


Resumo

A pandemia COVID-19 implicou profundas e rápidas mudanças no funcionamento dos serviços de saúde. A suspensão da atividade eletiva no período de confinamento e a redução significativa das idas às urgências hospitalares, condicionada pelo receio de contágio COVID-19, levaram ao adiamento do tratamento de situações cardiovasculares potencialmente graves, apesar do normal funcionamento da via verde coronária e do acidente vascular cerebral (AVC). Estes fatores facilitaram a descompensação de diferentes patologias, contribuindo provavelmente para o aumento da mortalidade na população idosa em Portugal durante a pandemia. O artigo sublinha a importância de manter a sociedade informada sobre a necessidade de recorrer às urgências hospitalares, de forma a permitir a intervenção atempada e maior benefício no tratamento do enfarte do miocárdio e AVC.

Palavras-chave: COVID-19; Doenças Cardiovasculares; Pandemia

Abstract

The COVID-19 pandemic involved profound and rapid changes in the functioning of health care services. The interruption of clinical programmed activity during the lockdown period and the significant reduction in visits to emergency departments, due to the fear of COVID-19, led to the postponement of appropriate treatment for potentially serious cardiovascular conditions, despite the normal functioning of the interventional units for acute myocardial infarction and stroke. These factos contributed to the decompensation of different pathologies, probably influencing the observed increase in mortality of elderly population in Portugal during the pandemic. This article stresses the importance of keeping population informed about the importance of hospital emergencies in cardiovascular care, in order to allow for timely intervention and greater benefits in the treatment of myocardial infarction and stroke.

Keywords: Cardiovascular Diseases; COVID-19; Pandemics

A pandemia COVID-19 condicionou a rápida e profunda introdução de modificações na organização e funcionamento do nosso sistema de saúde, impondo circuitos de funcionamento independentes para doentes com teste positivo para o coronavírus SARS-CoV-2 ou suspeitos de infeção, e para utentes com teste negativo, adaptando os diferentes setores de atividade na redistribuição de recursos humanos e condições logísticas a uma realidade de admissão em meio hospitalar que se projetava apresentar com grande crescimento. Estas súbitas transformações, que ocorreram em hospitais públicos e privados, associaram-se a medidas para conter a propagação da infeção, nomeadamente com o confinamento e distanciamento social, a desinfeção frequente das mãos ou a utilização de máscaras.1 Neste contexto, a recomendação para suspensão da atividade clínica eletiva veio influenciar, e muito, o atendimento prestado aos doentes em geral, mas com espectável repercussão na Cardiologia.

Na realidade, a divulgação de que a população com fatores de risco e doenças cardiovasculares significativas representa um grupo particularmente vulnerável no contexto da COVID-19, sobretudo quando idosa e com comorbilidades (como a diabetes, a doença pulmonar obstrutiva crónica e a imunossupressão), levou a que muitos destes utentes tenham evitado recorrer a urgências hospitalares por descompensação ou agudização da sua patologia, levando ao adiamento ou ausência de tratamentos considerados fundamentais.

A partir do mês de março, registou-se uma queda próxima de 50% na afluência às urgências. Se por um lado uma parte dos casos atendidos e tratados em regime de urgência não terão afinal problemas prioritários, por outro, muitos doentes com sinais de alerta para situações graves ficaram em casa, com receio de contágio pelo coronavírus SARS-CoV-2, mas também por não quererem sobrecarregar os serviços de urgência nesta fase pandémica.

A verdade é que, apesar dos centros hospitalares da rede da via verde coronária e da via verde do acidente vascular cerebral (AVC) continuarem a funcionar em disponibilidade permanente, assegurando proteção adequada a profissionais de saúde e doentes, verificou-se uma redução significativa no número de casos enviados para intervenção nas primeiras horas de evolução destes acidentes cardiovasculares, perdendo assim o maior benefício do tratamento.

É preciso acautelar que esta população com situações agudas não represente um dano colateral deste difícil combate. É que além da perda de terapêutica atempada, poderá não haver lugar à orientação clínica subsequente, com medicação adequada e cuidados diferenciados de prevenção secundária, nomeadamente com programas de reabilitação, muito centralizados na fisioterapia, cuja atividade se tem mantido suspensa neste período.

Além disso, a interrupção de consultas programadas e procedimentos eletivos do foro da cardiologia de intervenção, combinada com (des)informação inicial relativamente ao risco de complicações graves em doentes sob medicação crónica anti-hipertensiva e da insuficiência cardíaca (inibidores da enzima de conversão da angiotensina e antagonistas do recetor da angiotensina), pode ter contribuído para uma maior dificuldade na manutenção da medicação, levando à interrupção no tratamento de patologias cardiovasculares frequentes, com descontrolo das mais variadas situações.

No que diz respeito à infeção COVID-19, para além de desequilibrar patologias previamente compensadas, pode ser causadora de complicações cardíacas, que incluem a isquemia e enfarte do miocárdio, mesmo na ausência de doença aterosclerótica das coronárias, a miocardite, as arritmias, o tromboembolismo ou insuficiência cardíaca (na fase muito grave de falência multiorgânica).

Apesar da inexistência de estudos consistentes mostrando terapêuticas dirigidas com benefício significativo na evolução clínica da COVID-19, têm sido utilizados vários medicamentos em regime de internamento, em particular nos cuidados intensivos, que, no caso da cloroquina ou hidroxicloroquina, combinada ou não com um macrólido, se associou a efeitos adversos, como arritmias ventriculares e aumento da mortalidade hospitalar.2

A recente publicação dum estudo sobre mortalidade global em Portugal durante a Pandemia, mostrou um aumento do número de óbitos na população idosa no período de março a abril, comparativamente ao ano anterior, numa dimensão não explicada pelas mortes devidas à COVID-19.3 Este aumento, que ocorre depois duma sequência de 10 anos consecutivos com diminuição do número total de óbitos em Portugal, dever-se-á, com elevada probabilidade à pesada componente das doenças cardiovasculares.4

A sociedade deve procurar difundir a toda a população a importância de se manter atenta a sintomas e sinais de alerta de eventos cardiovasculares agudos, para que acionem o 112 ou a linha SNS24, de modo a fomentar o acesso urgente a uma unidade hospitalar com capacidade de realizar o tratamento apropriado. Não podemos descurar os nossos doentes crónicos e as situações de emergência cardiovascular associadas a risco de mortalidade ou de importantes limitações biopsicossociais. É fundamental transmitir a confiança e segurança necessárias aos doentes, mostrando que está em vigor o normal funcionamento das urgências e centros com capacidade para intervenção aguda no enfarte do miocárdio e AVC.

Referências

1. Driggin E, Madhavan M, Bikdeli B, Chuich T, Laracy J, et al. Cardiovascular Considerations for Patients, Health Care Workers, and Health Systems During the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Pandemic. J Am Coll Cardiol. 2020;75:2352-71. doi: 10.1016/j.jacc.2020.03.031. [ Links ]

2. ehra MR, Desai SS, Ruschitzka F, Patel AN. Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis. Lancet. 2020 (in press). doi: 10.1016/S0140-6736(20)31180-6. [ Links ]

3. Nogueira PJ, Nobre MA, Nicola PJ, Furtado C, Vaz Carneiro A. Excess Mortality Estimation During the COVID-19 Pandemic: Preliminary Data from Portugal. Acta Med Port. 2020 (in press). doi: 10.20344/amp.13928. [ Links ]

4. Instituto Nacional de Estatística (INE). Lisboa: Indicadores de contexto para a pandemia COVID-19 em Portugal. Lisboa: INE; 2020. [ Links ]

Responsabilidades éticas

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares

Ethical disclosures

Financial support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer

Recebido: 01 de Maio de 2020; Aceito: 02 de Junho de 2020; Publicado: 30 de Junho de 2020

Autor Correspondente/Corresponding Author: Mário Oliveira [m.martinsoliveira@gmail.com] Tv. Castro 3, 1350-070 Lisboa, Portugal ORCID iD: 0000-0002-8371-8354

Conflitos de interesse:

Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of interest:

The authors have no conflicts of interest to declare.

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