Introdução
A COVID-19 surgiu em dezembro de 2019, na China, em adultos que apresentavam pneumonia de causa desconhecida. Com a propagação da epidemia começaram a ser reportados casos pediátricos. Contudo, a doença é sem dúvida muito menos frequente nas crianças e geralmente de menor gravidade, podendo ser assintomática.1-6
A explicação fisiopatológica para isto pode resumir-se em 4 pontos-chave:
SARS-CoV-2 une-se à enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) que nas crianças é imatura e, portanto, tem menor afinidade;
Menor expressão de ACE2 a nível pulmonar em pediatria, o que comparativamente aos adultos, pode contribuir para a menor severidade a nível pulmonar;
Descrevem-se menos marcadores inflamatórios em Pediatria;
A presença de outros vírus (de forma simultânea) na mucosa pulmonar e nas vias respiratórias pode limitar o “crescimento” de SARS-CoV-2, por interações diretas de vírus.7
A propagação foi de tal maneira rápida que a 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou este vírus como Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional.1
A 11 de fevereiro atribuiu-se o nome oficial de COVID-19 (coronavirus disease 2019) e designou-se o vírus causal como SARS-CoV-21 e a 11 de março declarou-se pandemia.8,9
Cedo se comprovou a transmissão de pessoa a pessoa por gotículas respiratórias inaladas ou por contacto com as mucosas.2 Tem sido referida a presença de vírus no sangue, fezes e até no líquido peritoneal, mas sem provas de que estes sejam relevantes na transmissão.10
Até ao momento também não existem evidências de transmissão vertical.2,4
Muitos países fecharam escolas e jardins-de-infância para minimizar a COVID-19, por se acreditar que as crianças seriam um veículo importante na disseminação da doença, o que agora se pensa ser improvável.6,11 Provavelmente a não existência de sintomas respiratórios ou o facto de estes serem menos frequentes explica a menor probabilidade da transmissão viral.6
Até março apontava-se para uma mortalidade aproximada de 3,7%, comparada com uma mortalidade inferior a 1% no vírus Influenza.12 Dados mais recentes estimam (embora ainda haja alguma incerteza nos números) uma mortalidade entre 0,9% a 3%, que é bastante inferior ao descrito para SARS-CoV (6%-17%) e MERS- CoV (20%-40%).2,3 O elevado número de mortes mundiais, a nível absoluto, da SARS-CoV-2, está diretamente interligado com a sua alta contagiosidade.
Os dados do Chinese Center for Disease Control and Prevention (CCDC) apontaram para cerca de 2% de casos em idade pediátrica, na China (1% até aos 10 anos e 1% dos 10-19 anos), sem nenhuma morte até aos 9 anos.2,13
A 30 de maio de 2020 e tendo como fonte os dados oficiais da Direção Geral da Saúde (DGS) registaram-se em Portugal, 32 203 casos confirmados, sendo 654 casos em crianças até aos 9 anos (2,03%) e 1081 casos dos 10-19 anos (3,36%). Estas percentagens mais elevadas, quando comparadas com os valores anteriormente referidos, estão relacionadas com a fase em que estamos, onde a quantidade de testes efetuada é muito maior. De salientar que até agora a taxa de mortalidade até aos 19 anos é de 0%.14
Sintomas
Em todos os estudos se refere, que na generalidade, as crianças têm menos sintomas que os adultos, sendo habitualmente uma doença ligeira e podendo até ser assintomática.
No entanto, há uma panóplia de sintomas que podem estar associados ao COVID-19.2,3,15
O período de incubação é estimado de 5-6 dias, sendo similar ao que ocorre no SARS-CoV e MERS- CoV.2,5
O quadro clínico pode incluir: febre, tosse, odinofagia, rinorreia, diarreia, fadiga, vómitos, mialgias, cefaleia, sinais de dificuldade respiratória e/ou recusa alimentar.2,3,15
Parece haver uma maior incidência de sintomatologia gastrointestinal na criança, comparativamente ao adulto.
Mais raramente pode manifestar-se por doença grave, com pneumonia associada a sépsis, choque séptico e/ou síndrome de dificuldade respiratória.2,5,15
Recentemente começaram a ser reportados casos de crianças com choque hiperinflamatório, mostrando semelhanças com a doença de Kawasaki, doença atípica de Kawasaki e síndrome de choque tóxico, mas sem se enquadrarem por completo em nenhuma delas.16
Exames complementares de diagnóstico
A requisição de exames complementares deve ser criteriosa, não sendo necessários na doença ligeira e na ausência de fatores de risco.15
Dependendo da gravidade podem realizar-se os seguintes exames laboratoriais:
Hemograma: pode estar normal ou haver leucopenia, sendo comum linfopenia e/ou neutropenia2,5,15;
Estudo bioquímico: AST, ALT, LDH, glicemia, creatinina, ureia, CK total, sódio, potássio, cálcio, fósforo, magnésio, VS, PCR, PCT e ferritina- que podem ou não estar alterados2,5,15;
Hemocultura em caso de pneumonia, sépsis ou choque séptico15;
Pesquisa de outros agentes microbiológicos: pesquisa por PCR de outros vírus respiratórios e/ou bactérias atípicas e/ou Bordetella pertussis/parapertussis.5,15
Na doença muito grave estão recomendados outros exames adicionais (ex. CK-MB, troponina, pro-BNP, gasimetria, marcadores de ativação macrofágica e citocinas).15
A nível da imagiologia destaca-se a radiografia do tórax e a tomografia computorizada (TC) pulmonar, sendo a segunda mais sensível, embora não uma abordagem de primeira linha.2,15 Numa fase inicial estas poderão ser normais, mas também podem observar-se alterações não específicas em indivíduos assintomáticos.15
Observam-se maioritariamente infiltrados bilaterais, intersticiais de predomínio periférico posterior e inferior, podendo evoluir para consolidações arredondadas.2,15
Diagnóstico
O diagnóstico é feito por RT- PCR em tempo real de secreções do trato respiratório superior e/ou inferior.2,3,17
Os testes serológicos quantitativos poderão suportar a investigação dos casos de infeção pelo SARS-CoV-2, revestindo-se da maior importância a avaliação e quantificação da presença de anticorpos para estudos de imunidade, mas não são o método mais útil em casos de infeção aguda.2,17 Podem ser utilizados para diagnóstico de casos suspeitos com RT-PCR negativos e para identificar infeções assintomáticas.8
Embora inicialmente alguns artigos reportassem a hipótese de haver uma transmissão fecal-oral, por deteção de zaragatoas fecais positivas em crianças com zaragatoas nasofaríngeas negativas,5 posteriormente isso não foi comprovado.6
Tratamento
Enquanto os resultados dos ensaios clínicos não estão disponíveis, não há evidências definitivas nas quais basear o tratamento de pacientes infetados com SARS-CoV-2.2,15
Na maioria dos casos o tratamento é de suporte.2,3,15
O alvo é prevenir ARDS, falha de órgão e infeções secundárias. Se houver suspeita de infeção bacteriana, deve fazer-se antibioterapia de largo espectro, por exemplo com uma cefalosporina de segunda ou terceira geração.2
Para completar o artigo achamos importante tentar esclarecer duas das principais dúvidas relativas ao COVID-19 em Pediatria: o papel da BCG e a síndrome inflamatória multissistémica.
Devemos vacinar as crianças com a bcg, para prevenir ou atenuar as manifestações da COVID-19?
Esta é uma pergunta muito frequente e como em tudo o referente à infeção pelo SARS-CoV-2, não é fácil de responder.
No nosso país, a DGS decretou o fim da vacinação universal contra a tuberculose (TB) com a BCG, em janeiro de 2017 e passaram a ser vacinadas apenas as crianças que pertencem a grupos de risco para a TB ou as que vivem numa comunidade específica, com elevada incidência da doença.18
A bacillus Calmette-Guérin (BCG) é uma vacina viva atenuada de Mycobacterium bovis que protege contra infeções micobacterianas como a TB e a lepra, mas que também tem efeitos protetores heterogéneos contra infeções não relacionadas. Vários estudos epidemiológicos mostraram que a vacinação ao nascer está associada à redução da mortalidade infantil o que parece dever-se, principalmente, à proteção contra sépsis neonatal e infeções respiratórias.19,20
Dois tipos de mecanismos imunológicos foram sugeridos para mediar esses efeitos. O primeiro, denominado imunidade heteróloga refere que as células de memória CD4 e CD8 podem ser ativadas de maneira independente do antigénio (por exemplo, por citocinas estimuladas por uma infeção secundária). O segundo, imunidade treinada, sugere que a vacinação com BCG, induz modificação das histonas e reprogramação epigenética dos monócitos humanos, nos locais promotores de genes, que codificam citocinas inflamatórias (CI), como TNFA e IL6, resultando numa resposta imunitária inata mais ativa, após reestimulação. Os autores sugerem que a vacinação com BCG protege contra a infeção viral experimental em humanos, através da indução de citocinas associadas a imunidade treinada, por medição das CI, após a administração da BCG em outras doenças virais, nomeadamente no vírus da febre amarela.19
São estes factos que têm levado os investigadores a pensar na hipótese de existir uma associação benéfica entre a vacinação com BCG e a infeção pelo SARS-CoV-2, depois de observar os diferentes comportamentos da doença em países com e sem a vacinação universal com BCG. Vários estudos que têm sido publicados21,22 - estudos ecológicos - afirmam que países sem políticas de vacinação universal com BCG (Itália, Holanda, EUA) ou com início tardio da vacinação como o Irão (1984) foram mais severamente afetados pela doença, concluindo que a vacinação com BCG pode ser uma potencial ajuda na luta contra a COVID-19.21 Mas estes estudos, alguns ainda em fase de “pré-impressão”, à espera da revisão por pares têm recebido críticas sobre a validade das suas conclusões, argumentando viés estatísticos.23,24
Vários ensaios clínicos multicêntricos e randomizados estão a decorrer para avaliar o desempenho da vacinação BCG em profissionais de saúde de forma a reduzir a gravidade da infeção por SARS-CoV-2, com projeção de publicação dos resultados em finais de 2020.25
A 12 de abril de 2020, a OMS publicou no seu site que “a vacinação com BCG previne formas graves de TB em crianças e o desvio de recursos locais pode resultar na não vacinação dos neonatos, resultando no aumento de doenças e mortes por TB. Na ausência de evidências, a OMS não recomenda a vacinação com BCG para a prevenção da COVID-19. A OMS continua a recomendar a vacinação neonatal contra BCG em países ou locais com alta incidência de TB”.24
Se a vacina BCG ou outro indutor de imunidade treinada fornecer proteção inespecífica para preencher uma lacuna, antes do desenvolvimento de uma vacina específica da doença, isso seria uma ferramenta importante na resposta à COVID-19,26 mas temos que aguardar o resultado das investigações em curso para poder recomendar esta prática.
Síndrome inflamatória multissistémica em crianças e adolescentes com COVID-19
Como já foi referido, a maioria das crianças com COVID-19 são assintomáticas ou apresentam sintomas leves da infeção.27 No entanto, nos últimos 2 meses, foram
reportados alguns casos de crianças que desenvolvem uma resposta inflamatória sistémica significativa, que implica o internamento nos cuidados intensivos e tratamento com diversos fármacos, incluindo imunoglobulina parentérica e corticosteroides.
A 26 de abril, médicos do Reino Unido reconheceram um aumento de crianças previamente saudáveis que apresentavam uma síndrome inflamatória grave, com características semelhantes à doença de Kawasaki (DK).28-30 Posteriormente, autoridades de outros países da Europa e da América do Norte reportaram casos similares,31,32 alguns deles também com características semelhantes à síndrome de choque tóxico (SCT). Suspeitou-se que esta síndrome podia estar relacionada com a infeção por SARS-CoV-2.
A 14 de maio a OMS fez um aviso à comunidade internacional sobre esta entidade33 e no dia seguinte publicou uma definição preliminar de caso (DPC) e desenvolveu um formulário de relato de caso.34
Definição preliminar de caso*34
Crianças e adolescentes de 0 a 19 anos com febre > 3 dias E dois dos seguintes:
Exantema ou conjuntivite não purulenta ou sinais de inflamação mucocutânea (orais, mãos ou pés).
Hipotensão ou choque.
Características de disfunção miocárdica, pericardite, valvulite ou anormalidades coronárias (incluindo sinais ecocardiográficos ou valores elevados de troponina/NT-proBNP).
Evidência de coagulopatia (por PT, PTT, d-dímeros elevados).
Problemas gastrointestinais agudos (diarreia, vómito ou dor abdominal).
E Valores elevados de marcadores de inflamação (VSG, PCR ou PCT).
E Nenhuma outra causa microbiana óbvia de inflamação, incluindo sépsis bacteriana, síndrome de choque estafilocócico ou estreptocócico.
E Evidência de COVID-19 (RT-PCR, teste antigénico ou sorologia positiva) ou provável contacto com pacientes com COVID-19.
* Considere esta síndrome em crianças com características típicas ou atípicas da DK ou do SCT.
Evidências crescentes sugerem que o dano tecidual na COVID-19 é mediado principalmente pela imunidade inata do hospedeiro. Nos doentes graves, as características clínicas e laboratoriais são semelhantes à síndrome de ativação de macrófagos, observada na linfo-histiocitose hemofagocítica induzida por vírus e tem como causa comum o fenómeno conhecido como tempestade de citocinas. Os investigadores sugerem que extrapolar a experiência clínica nas síndromes de tempestade de citocinas pode beneficiar as equipas multidisciplinares que cuidam de pacientes com COVID-19 grave e que a terapia anti-inflamatória direcionada e precoce pode prevenir a imunopatologia e ajudar a conservar os recursos do sistema de saúde.35 Esta hipótese parece ser apoiada pela experiência reportada nas séries de casos pediátricos, onde a terapia com imunoglobulina e corticoesteroides teve resultados satisfatórios.32
No entanto, como em tudo o que está relacionado com a COVID-19, fazer associações de causalidade não é fácil. Mas o aparecimento de padrões que parecem bastante similares, em várias cidades do mundo certamente aponta para uma associação causal. Vários casos não apresentaram evidência de infeção aguda pela COVID-19, embora as serologias positivas em alguns pacientes sugiram que a síndrome pode representar uma resposta imune tardia. O facto de DK e SCT serem condições relativamente vagas, sem testes de diagnóstico definitivos, aumenta o desafio de decifrar se todos esses casos refletem um sinal verdadeiro. Semelhanças nos valores laboratoriais, como PCR, D-dímero e ferritina, podem ser pistas tanto para o diagnóstico como para a patogénese, mas, infelizmente, esses testes não são específicos.36
O DK tem sido associado a vários vírus e a transmissão desses vírus diminuiu, como resultado do desaparecimento de reservatórios infeciosos, como escolas e creches. Além disso, as famílias estão apreensivas em procurar atendimento médico por medo de exposição contagiosa no ambiente da saúde. Por ambos os motivos, qualquer contribuição do COVID-19 para a incidência geral da DK pode diluir-se. Por outro lado, dado que a DK (particularmente a DK atípica) pode ser um diagnóstico ambíguo, a consciencialização de toda a atenção recente da mídia pode desencadear um aumento nos diagnósticos, em pacientes que anteriormente não teriam sido diagnosticados. Todos estes fatores devem ser considerados ao avaliar possíveis associações.36
Se a associação é de facto causal, importa por várias razões. Existem terapias comprovadas para DK e os atrasos ou falhas no diagnóstico podem levar a piores resultados, relacionados com aneurismas coronários. A associação também pode ser relevante se as manifestações, os resultados e as respostas ao tratamento forem diferentes para a DK associada à COVID-19 em comparação com outros tipos de DK. Além disso, podemos vir a descobrir que as infeções agudas por COVID-19 estão associadas à DK, assim como a outros vírus; mas que existe uma síndrome hiperinflamatória distinta da DK clássica, que ocorre após a recuperação da infeção aguda por COVID-19.36
Por outro lado, é necessário estar consciente das possíveis consequências negativas da disseminação generalizada desta possível associação. O diagnóstico incorreto de DK pode levar a um tratamento excessivo e a ancoragem nesse diagnóstico pode impedir que os médicos considerem outras condições hiperinflamatórias ou infeciosas.
Uma inflação falsa da incidência relatada pode aumentar ainda mais a ansiedade e levar a intervenções de saúde pública de benefícios incertos, como o encerramento contínuo da escola.
A não associação com a síndrome da DK, atribuindo-lhe um nome diferente, “síndrome inflamatória pediátrica multissistémica”, como foi proposto por alguns,36 poderia atenuar as preocupações de tratamento excessivo.
No entanto, dado o potencial de atribuições incorretas de causalidade, devemos agir com cuidado e objetividade.
Pediatras e especialistas em saúde pública no Mundo estão a trabalhar para agregar dados e experiências, a fim de criar uma base de evidências para diagnóstico e tratamento da COVID-19.37,38 Promover a consciencialização é crucial para aprender mais e estabelecer colaborações.
O que nós sabemos é que falta muito para saber.