SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue4Rhinolithiasis: Two Clinical Cases and Review of the LiteratureRamsay Hunt Syndrome: A Rare Case of Otalgia author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Gazeta Médica

Print version ISSN 2183-8135On-line version ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.7 no.4 Queluz Dec. 2020  Epub July 21, 2021

https://doi.org/10.29315/gm.v7i4.290 

Casos Clínicos

Encefalopatia/Encefalite Ligeira com Lesão Reversível do Corpo Caloso: Entidade Benigna Rara com Diagnósticos Diferenciais Menos Benignos

Mild Encephalitis/Encephalopathy with Reversible Splenial Lesion: Rare Benign Entity with Less Benign Differentials

Margarida Mouro1 
http://orcid.org/0000-0002-8944-8412

Lorrane Viana1 

Ana Martins1 

Daniel Coutinho2 

Sofia Nunes2 

Jorge Velez3 

1 Interna de Formação Específica em Doenças Infeciosas, Departamento de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal.

2 Assistente de Doenças Infeciosas, Departamento de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal.

3 Assistente Graduado de Doenças Infeciosas, Departamento de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal.


Resumo

A encefalopatia/encefalite ligeira com lesão reversível do corpo caloso é uma entidade clínico-radiológica benigna rara, caracterizada por sintomas neurológicos inespecíficos associados a achados imagiológicos, em ressonância magnética, de lesão do corpo caloso. De etiopatogénese desconhecida, têm sido sugeridos vários desencadeadores (infeções, alterações metabólicas, fármacos, entre outros). Apresenta-se o caso de um homem de 44 anos, previamente saudável, admitido na urgência com quadro súbito de cefaleias, ataxia, mioclonias da face e disartria, em contexto de síndrome gripal. Após diagnóstico presuntivo de encefalite vírica iniciou aciclovir empiricamente, suspenso após ressonância magnética revelando lesões no corpo caloso. O doente evoluiu favoravelmente sem terapêutica dirigida, com resolução clínica em menos de uma semana e controlo imagiológico, aos dois meses, normal. Esta entidade, que exige diagnóstico diferencial entre condições benignas e outras, de pior prognóstico, é habitualmente diagnosticada por exclusão, não exige terapêutica dirigida e apresenta, quase universalmente, um desfecho favorável.

Palavras-chave: Corpo Caloso; Encefalite

Abstract

Mild encephalitis/encephalopathy with reversible splenial lesion is a rare benign clinical-radiological entity, characterized by nonspecific neurological symptoms associated with imagiological findings of corpus callosum lesion in magnetic resonance. Of unknown etiopathogenesis, several triggers have been suggested (infections, metabolic disturbances, drugs, among others). We present the case of a healthy 44-year-old man, admitted at the emergency department with sudden-onset headache, ataxia, facial myoclonus and dysarthria, in a context of flu-like syndrome. After presumptive diagnosis of viral encephalitis, he empirically initiated intravenous acyclovir which was suspended after magnetic resonance imaging disclosed corpus callosum lesions. The patient’s condition favourably evolved without specific therapy, with clinical resolution in less than a week and a normal magnetic resonance at two months. This entity, which requires differential diagnosis between benign conditions and others with worse prognosis, is usually diagnosed by exclusion, does not require targeted therapy and has an almost universally good outcome.

Keywords: Corpus Callosum; Encephalitis

Introdução

A encefalopatia/encefalite ligeira com lesão reversível do corpo caloso - mild encephalitis/encephalopathy with reversible splenial lesion (MERS) é uma condição caracterizada por lesões do corpo caloso encontradas por ressonância magnética (RM).1,2 Trata-se de uma entidade clínico-radiológica rara, havendo mais casos descritos em crianças do que em adultos, a maioria deles no continente asiático (particularmente no Japão),3-5 denotando predisposição genética. Geralmente os doentes apresentam sinais e sintomas inespecíficos do sistema nervoso central, tais como cefaleias, convulsões, alteração do estado de consciência, alterações da linguagem, agitação psicomotora, irritabilidade, sonolência, monoparésias, alucinações visuais, ataxia, entre outros.1,3,6 Descrita inicialmente em 2004,7 a MERS pode ser dividida nos tipos 1 e 28: no primeiro caso as lesões são restritas ao esplénio do corpo caloso, enquanto no tipo 2 há envolvimento de todo o corpo caloso e/ou substância branca adjacente. Relativamente às lesões do corpo caloso, foram descritas três formas - arredondadas, ovais e em bumerangue8 - sem correlação com a clínica ou prognóstico.9 Apesar da etiopatogénese desconhecida, têm sido identificados vários fatores desencadeantes, destacando-se as infeções (sobretudo víricas), alterações metabólicas, vários fármacos (como antiepiléticos) ou sua suspensão, bem como privação de drogas e intoxicações.3,10 Praticamente todos os doentes, sobretudo na MERS tipo 1, recuperam de forma rápida e espontânea, clínica e imagiologicamente, sem sequelas.3,8 Apresenta-se o caso clínico de um homem que desenvolve quadro de MERS tipo 1 na sequência de síndrome gripal e, deste modo, pretende-se descrever uma entidade pouco frequente e elucidar e reforçar aspetos relevantes do diagnóstico e manuseamento apresentados na literatura.

Caso clínico

Homem, 44 anos, caucasiano, sem antecedentes patológicos, que recorre ao serviço de urgência por aparecimento súbito de cefaleias, ataxia, mioclonias e disartria. Desde o dia anterior à admissão que referia náuseas, vómitos e tonturas, bem como quadro gripal-like nos 5 dias prévios.

Tabela 1: Estudo analítico efetuado. 

Análises gerais Hemograma, INR, bioquímica sem alterações PCR 1,29 mg/dL e VS 28 mm/1ª hora
Líquido cefalorraquidiano Pleocitose (56 céls/μL) de predomínio mononuclear Hiperproteinorráquia (73,7 mg/dL) Glicorráquia (64 mg/dL), com razão LCR/soro de 0,64 PCR para vírus herpes simplex (VHS) 1/2
Serologias Ac. VHA total +/IgM -, Ag. HBs -, Ac. HBc -, Ac. HBs +, Ac. VHC -, Ac. VIH1+2/p24 - IgG de Toxoplasma gondii, CMV e VEB + IgG/IgM VHS 1/2 - Ac. antiTreponema pallidum-
Estudo autoimune Ac. anti ds-DNA, ANA, c-ANCA e p-ANCA -

Figura 1: Estudo imagiológico realizado. A) Ressonância magnética crânio-encefálica (RM CE) à admissão. Lesão focal mediana no esplénio do corpo caloso, emitindo hipersinal em T2, com restrição à difusão, sugerindo lesão transitória do esplénio. B) RM CE de controlo. Morfologia e intensidade de sinal normais das estruturas medianas, sem alterações de sinal do corpo caloso e sem focos de restrição no estudo de difusão. 

À admissão estava apirético e hemodinamicamente estável, apresentando mioclonias da face e afasia global. Fez estudo analítico (Tabela 1), tomografia computorizada (TC) e angio-TC crânio-encefálicas, sem alterações relevantes. Realizada posteriormente punção lombar, com estudo do líquido cefalorraquidiano (LCR) revelando discreta pleocitose (56 células/μL) com predomínio mononuclear, glicorráquia normal (razão LCR/soro de 0,64) e discreta hiperproteinorráquia (73,7 mg/dL). Foi assumida encefalite vírica, tendo iniciado empiricamente aciclovir endovenoso 10 mg/kg 8/8 h.

No dia seguinte desenvolve quadro de desorientação, com agitação psicomotora esporádica e retenção urinária com necessidade de algaliação. É pedido estudo serológico e autoimune, que foi negativo (Tabela 1).

Posteriormente é realizada RM crânio-encefálica (Fig. 1A) que revela lesão focal mediana no esplénio do corpo caloso, com hipersinal em T2 e restrição à difusão, sugerindo lesão transitória dessa área, sem outras alterações significativas. Assume-se possível diagnóstico de MERS tipo 1 e suspende-se o aciclovir. O doente é internado, apresentando recuperação neurológica total em dois dias, com alta uma semana após.

Realiza nova RM, dois meses após o internamento, que mostra resolução completa da lesão (Fig. 1B).

Discussão

O diagnóstico de MERS é imagiológico, com lesões em RM habitualmente mostrando hipersinal em T2 e restrição à difusão no esplénio do corpo caloso.(4,11) Dada a inespecificidade do quadro neurológico, o diagnóstico diferencial desta entidade benigna autolimitada engloba uma miríade de condições clínicas não benignas (tumores ou infeções do sistema nervoso central, lesões isquémicas, esclerose múltipla, encefalomielite aguda disseminada, …), que devem ser excluídas.11

Realça-se também a presença de sintomatologia compatível com síndrome gripal previamente ao quadro. Entre os vários precipitantes descritos na literatura, destaca-se a patologia infeciosa, particularmente vírica, embora possa haver associação com infeções bacterianas.3,10

A patogénese da MERS não está bem definida, principalmente pela natureza heterogénea das condições subjacentes,12 formulando-se hipóteses como presença de edema intramielínico, dano axonal, edema citotóxico ou stress oxidativo. Há patologias neurológicas com restrição à difusão na substância branca, provavelmente decorrentes de edema intramielínico separando as camadas de mielina, igualmente reversíveis.7 No entanto, a MERS pode ocorrer em recém-nascidos, cujo esplénio ainda se encontra desmielinizado.1 Já os valores da proteína Tau no LCR são normais nestes doentes, o que aliado ao facto de epiléticos com lesões do esplénio não apresentarem interrupção em imagens de difusão, torna menos provável a hipótese de dano axonal.13 Por outro lado, o influxo de células inflamatórias e macromoléculas, a par do edema citotóxico, podem causar diminuição do coeficiente de difusão.6 Já foi demonstrada relação entre a expressão aumentada da aquaporina-4, fortemente presente no corpo caloso, e o edema citotóxico intracelular cerebral,8 estando descrito o aumento das aquaporinas nalguns dos precipitantes da MERS, bem como a sua alteração nas fibras axonais de doentes com lesões do corpo caloso.9 Também o stress oxidativo pode ter um papel nesta patogénese, comprovado pelo aumento no LCR de alguns marcadores oxidativos (interleucinas 6 e 10) e descrição de casos com hiponatrémia,7,13 ausente neste doente.

A metilprednisolona ou a imunoglobulina humana, recomendadas para tratamento de algumas encefalopatias, não apresentam evidência científica na MERS,4 com desfecho semelhante (recuperação completa) quando utilizadas. Isto coloca em causa a utilidade destas intervenções, tal como exemplificado neste caso, em que ocorreu um desfecho favorável apenas com instituição de medidas sintomáticas.

No doente descrito, o controlo imagiológico feito aos 2 meses mostrava-se já sem evidência das lesões previamente descritas em RM (Fig. 1B). A literatura descreve um espaço temporal curto (dias a meses) para resolução das lesões.3,8

Em síntese, a MERS é uma entidade rara que apresenta uma panóplia de diagnósticos diferenciais, desde condições benignas a outras de pior prognóstico, sendo um diagnóstico de exclusão. A não necessidade de terapêutica dirigida, aliada a um desfecho favorável, são aspetos-chave a reter.

Apresentações/Presentations

O presente caso clínico foi apresentado sob a forma de e-poster no “18th European Congress of Internal Medicine”, que decorreu em Lisboa nos dias 29 a 31 de agosto de 2019, com o título “Mild Encephalitis/Encephalopathy With Reversible Splenial Lesion - A Benign Condition With Not So Benign Differentials”.

Referências

1. Takanashi J. Two newly proposed infectious encephalitis/encephalopathy syndromes. Brain Dev. 2009;31:521-8. doi: 10.1016/j.braindev.2009.02.012. [ Links ]

2. Gomez Iglesias P, Lopez Valdes E, Vega Bayoll M, Gomez Ruiz MN. Mild Encephalitis/Encephalopathy with Reversible Splenial Lesion: A little-known entity with favourable prognosis. Neurologia. 2019;35:581-3. doi: 10.1016/j.nrl.2019.03.006. [ Links ]

3. Yildiz AE, Maras Genc H, Gurkas E, Akmaz Unlu H, Oncel IH, Guven A. Mild Encephalitis/encephalopathy with a Reversible Splenial lesion in children. Diagn Interv Radiol. 2018;24:108-12. doi: 10.5152/dir.2018.17319. [ Links ]

4. Yuan J, Yang S, Wang S, Qin W, Yang L, Hu W. Mild Encephalitis/encephalopathy with Reversible Splenial Lesion (MERS) in adults-a case report and literature review. BMC Neurol. 2017;17:103. doi: 10.1186/s12883-017-0875-5. [ Links ]

5. Ka A, Britton P, Troedson C, Webster R, Procopis P, Ging J, et al. Mild Encephalopathy with Reversible Splenial Lesion: na important differential of encephalitis. Eur J Paediatr Neurol. 2015;19:377-82. doi: 10.1016/j.ejpn.2015.01.011. [ Links ]

6. Zhang S, Ma Y, Feng J. Clinicoradiological spectrum of Reversible Splenial Lesion Syndrome (RESLES) in adults: a retrospective study of a rare entity. Medicine. 2015;94:e512. doi: 10.1097/MD.0000000000000512. [ Links ]

7. Tada H, Takanashi J, Barkovich AJ, Oba H, Maeda M, Tsukahara H, et al. Clinically Mild Encephalitis/Encephalopathy with a Reversible Splenial Lesion. Neurology. 2004;63:1854-8. doi: 10.1212/01.wnl.0000144274.12174.cb. [ Links ]

8. Qing Y, Xiong W, Da-Xiang H, Juan Z, Fei W, Yong-Qiang Y. Statistical Analysis of the apparent diffusion coefficient in patients with clinically Mild Encephalitis/Encephalopathy with a Reversible Splenial Lesion indicates that the pathology extends well beyond the visible lesions. Magn Reson Med Sci. 2019;5:1-7. doi: 10.2463/mrms.mp.2018-0097. [ Links ]

9. Zhu Y, Zheng J, Zhang L, Zeng Z, Zhu M, Li X, et al. Reversible splenial lesion syndrome associated with encephalitis/encephalopathy presenting with great clinical heterogeneity. BMC Neurol. 2016;16:49. doi: 10.1186/s12883-016-0572-9. [ Links ]

10. Garcia-Monco JC, Cortina IE, Ferreira E, Martinez A, Ruiz L, Cabrera A, et al. Reversible Splenial Lesion Syndrome (RESLES): what’s in a name? J Neuroimaging. 2011;21:e1-14. doi: 10.1111/j.1552-6569.2008.00279.x. [ Links ]

11. Pan JJ, Zhao YY, Lu C, Hu YH, Yang Y. Mild Encephalitis/Encephalopathy with a Reversible Splenial Lesion: five cases and a literature review. Neurol Sci. 2015;36:2043-51. doi: 10.1007/s10072-015-2302-2. [ Links ]

12. Liu J, Liu D, Yang B, Yan J, Pu Y, Zhang J, et al. Reversible Splenial Lesion Syndrome (RESLES) coinciding with cerebral venous thrombosis: a report of two cases. Ther Adv Neurol Disord. 2017;10:375-9. doi: 10.1177/1756285617727978. [ Links ]

13. Miyata R, Tanuma N, Hayashi M, Imamura T, Takanashi J, Nagata R, et al. Oxidative stress in patients with clinically Mild Encephalitis/Encephalopathy with a Reversible Splenial Lesion (MERS). Brain Dev. 2012;34:124-7. doi: 10.1016/j.braindev.2011.04.004. [ Links ]

Responsabilidades éticas

Fontes de financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo

Confidencialidade dos dados: Os autores decla-ram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares

Ethical disclosures

Financing support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients

Patient consent: Consent for publication was obtained

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed

Recebido: 10 de Dezembro de 2019; Aceito: 11 de Outubro de 2020; Publicado: 26 de Outubro de 2020

Autor Correspondente/Corresponding Author: Margarida Mouro [margaridamouro@campus.ul.pt] Avenida Artur Ravara, 3810-164 Aveiro, Portugal ORCID iD: 0000-0002-8944-8412

Conflitos de interesse:

Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of interest:

The authors have no conflicts of interest to declare.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons