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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.10 no.2 Queluz jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.736 

Artigo de Perspetiva

Público, Universal e Tendencialmente Gratuito: Uma Reflexão sobre o Sistema Nacional de Saúde

Public, Universal and Tendentially to be Free: A Reflection about the Public Health System

1. USF Valflores, ACES Loures Odivelas, Loures, Portugal.


Resumo

O Serviço Nacional de Saúde assenta sobre três pilares essenciais que permitem que toda a população tenha acesso à saúde. Contudo, nos últimos anos temos vindo a assistir à sua constante reformulação e degradação, não só do sistema como também dos seus profissionais. Estamos hoje mais ocupados a encontrar respostas rápidas para problemas colossais, que se evidenciam a cada novo desafio, do que a proteger a saúde dos utentes e dos profissionais. Além da parca gestão dos cuidados de saúde no geral, estamos a assistir a um implodir dos serviços de urgência que entregam a primeira resposta a muitos utentes. Estamos ainda a perpetuar um clima de catástrofe na formação dos médicos internos que atravessam estes serviços durante a sua formação. São recebidos como mão-de-obra extra, que suporta parte destes serviços, desacompanhados, sem experiência em serviço de urgência e sem qualquer tutoria.

Este artigo de perspetiva salienta esta vivência na primeira pessoa e alerta para a forma como temos vindo a permitir que se pratique a medicina no serviço público, que compromete a saúde dos seus utentes, bem como dos seus profissionais.

Palavras-chave: Acesso aos Serviços de Saúde; Mau Uso de Serviços de Saúde; Portugal; Serviço Nacional de Saúde; Serviço de Urgência Hospitalar

Abstract

The Portuguese National Health Service is based on three essential pillars that allows the entire population to have access to health. However, in recent years we have been witnessing its constant reformulation and degradation, not only of the system but also of its professionals. Today we are more busy finding quick answers to colossal problems, which become clear with each new challenge, than protecting the health of patients and professionals. In addition to the poor management of health care in general, we are watching a deterioration of the emergency services that provide the first response to many patients.

We are also perpetuating an environment of catastrophe in the training of junior doctors, who go through these services during their training. They are received as extra labor, which supports part of these services, unaccompanied, without experience in emergency services and without any mentoring.

This article highlights this first-person experience and alerts to the way we have been allowing medicine to be practiced in the public service, which compromises the health of its users as well as its professionals.

Keywords: Emergency Service, Hospital; Health Services Accessibility; Health Services Misuse; National Health Programs; Portugal

Desde o início da pandemia instalada pela COVID-19, os cuidados de saúde em Portugal têm sofrido inúmeras reformulações que permitiram colmatar as necessidades no imediato, mas que deixaram a descoberto as várias fragilidades que há muito se faziam sentir. É notório o desgaste dos profissionais e a sobrecarga a que são sujeitos pela necessidade de assumir turnos e postos de gestão por ausência de colegas, quer por motivos de doença, quer por alocação a outras instituições de saúde ou por rescisão de contrato com o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Os cuidados de saúde de urgência foram a linha da frente no combate contra a COVID-19 e, atualmente, mantêm-se como uma porta de entrada de muitos utentes para o SNS. Recebem-se utentes imigrantes que ainda não se encontram inseridos no SNS, utentes estrangeiros com episódios agudos pontuais, utentes sem médico de família, utentes com conceções erradas sobre a necessidade de recurso ao serviço de urgência e, finalmente, utentes com sintomas e queixas que merecem a avaliação em contexto de urgência. Atualmente, assistimos a uma sobrelotação e deterioração destes serviços, agravada durante a pandemia, e que culmina em elevados tempos de espera, no desgaste dos profissionais e nas pobres condições laborais que se evidenciaram nos últimos dois anos.

Vários estudos europeus e portugueses1-3 destacam que cerca de um terço das idas aos serviços de urgência são consideradas situações de caráter não urgente, sem necessidade de cuidados diferenciados, que poderiam ter sido geridas em contexto de cuidados de saúde primários ou mesmo no domicílio. Contudo, diversas são as crenças e justificações que motivam os utentes a dirigir-se ao serviço de urgência. Entre as mais comuns destacam-se a crença de que a sua condição apresenta critérios de avaliação em contexto de urgência; a perceção de que poderão realizar todos os exames necessários num mesmo período de tempo e no mesmo local; considerarem que necessitam de avaliação por um especialista hospitalar; a ausência de médico de família; ou a unidade de cuidados de saúde primários não apresentar horário e consultas disponíveis no próprio dia.3,4-6 Estas motivações, aliadas a uma pobre literacia em saúde, conduzem à sobrelotação dos serviços de urgência a nível nacional, ao aumento dos custos em saúde e à fragilidade dos cuidados prestados.

Como interna de Medicina Geral e Familiar tive a oportunidade de integrar o serviço de urgência de Medicina Interna de um dos hospitais centrais de Lisboa e observar a disfuncionalidade que se vive durante 24 horas, todos os dias.

O serviço de urgência desenrola-se dentro do caos habitual, necessariamente contrastando com o quotidiano da Unidade de Saúde Familiar. Os utentes com patologias sem caráter de urgência e que não necessitam de cuidados hospitalares no imediato representam 35% das vindas ao serviço de urgência.1-3 Pela minha experiência nos vários períodos em que integrei a equipa de urgência, pude comprovar, grosseiramente, essa percentagem. Muitas destas admissões constituíam quadros passíveis de serem geridos em contexto de ambulatório, em cuidados de saúde primários, ou mesmo no domicílio com recurso a analgesia simples. Contudo, devido à iliteracia em saúde, os utentes não só desconhecem a gravidade da sua queixa e como geri-la no domicílio, como também mantêm conceções desatualizadas sobre o que deve motivar a ida ao serviço de urgência.6 Ao longo do turno, fui frequentemente interrompida por utentes que questionavam se porventura os tinha esquecido ou que ameaçavam abandonar o serviço devido ao elevado tempo de espera. As inscrições infundadas condicionam elevados tempos de espera podendo ultrapassar as 6 horas até que um utente seja avaliado por um médico pela primeira vez. Este tempo foi frequentemente ultrapassado das várias vezes que integrei a equipa de urgência. Posto isto, se mesmo após este tempo de espera o utente permanece no serviço de urgência, é natural que o médico assuma que existe, de facto, um problema que merece tratamento neste contexto. Esta conclusão poderá ser falaciosa, mas não poderia julgar de outra forma o impacto que a queixa do doente terá na sua vida, uma vez que o motivou a recorrer ao serviço de urgência e nela permanecer por mais de 6 horas.

Além de tudo isto, outro problema se impõe. Quando um utente apresenta um sintoma inespecífico ou específico, sem aparentemente gravidade que justifique a sua estadia no serviço de urgência, vejo-me a questionar a minha abordagem quando pondero requisitar exames complementares de diagnóstico. Em contexto de cuidados de saúde primários, dependendo da gravidade da queixa, aconselho o utente com tratamento empírico confiando apenas na minha avaliação através da anamnese e do exame objetivo e encaminho o utente para o domicílio com as recomendações necessárias na eventualidade de necessitar regressar ou de se dirigir ao hospital. Mas quando o utente falha esta etapa e nos encontramos no serviço de urgência questiono se “Estarei a fazer o suficiente por esta pessoa que se dirigiu ao hospital, enfrentou mais de 6 horas de espera e que considera o seu problema, de facto, uma urgência?”. Este questionamento ocorre por ter ao dispor vários meios complementares de diagnóstico e terapêutica que podem corroborar a minha avaliação ou aflorar outro problema não objetivável que seria desvalorizado caso não fosse realizada uma investigação. Consequentemente, são várias as ocasiões em que são requisitados exames desnecessários, que apenas confirmam a nossa avaliação clínica do doente, ou que revelam uma alteração inespecífica, mas que nos deixa inquietos e, por isso, somos induzidos a investigar.5 A importância de aplicar a prevenção quaternária impõem-se nestes casos. Ainda que tenhamos ao dispor todos os meios para “tranquilizar” o utente (segundo o próprio) podemos apenas estar a violar um dos princípios básicos da ética médica - primum non nocere.7 Tudo isto culmina num aumento do tempo de espera, aumento de custos em saúde, no cansaço do profissional e ansiedade do utente, na perda de tempo em reavaliações desnecessárias e na contribuição para a iliteracia da população, que continuará a considerar que é ao serviço de urgência que se terá de dirigir numa situação semelhante. Enquanto este cenário se desenrola, utentes com patologias verdadeiramente importantes vão-se acumulando na sala de espera e aguardam mais de 6 horas pela primeira avaliação médica. Nesse momento, sabemos que o utente fará as 12 ou 24 horas de urgência connosco, mas em piores condições. É neste cenário, que se repete diariamente, que a saúde fica comprometida e que os pilares do SNS se encurtam. Deixa de ser universal, pela impossibilidade de resposta a todas as pessoas, e torna-se incapaz de assegurar a gratuitidade quando o custo é a própria saúde do utente.

A precariedade que observamos hoje em Portugal, não é apenas financeira. A iliteracia em saúde é um dos contribuintes mais notórios para a sua manutenção. É urgente rever a prática de medicina, procurando ouvir os profissionais e atendendo às dificuldades dos utentes, pois não seremos capazes de praticar medicina sem médicos ou com doentes alheados dos seus direitos e deveres em saúde.

Agradecimentos/Acknowledgments

Agradeço especialmente à Dra. Manuela Reis Carvalho pelo tempo e paciência na correção da redação deste artigo, bem como pelo incentivo em manifestar a minha opinião sobre o tema.

Referências

1. Botelho A, Dias IC, Fernandes T, Pinto LM, Teixeira J, Valente M, et al. Overestimation of health urgency as a cause for emergency services inappropriate use: Insights from an exploratory economics experiment in Portugal. Health Soc Care Community. 2019;27:1031-41. doi: 10.1111/hsc.12720. [ Links ]

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Conflitos de Interesse Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Suporte Financeiro O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa.

Proveniência e Revisão por Pares Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial Support This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and Peer Review Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 02 de Fevereiro de 2023; Aceito: 10 de Fevereiro de 2023; : 17 de Fevereiro de 2023; Publicado: 30 de Junho de 2023

Autor Correspondente/Corresponding Author Daniela Campelo [danielagamacampelo@gmail.com] Rua José Lins do Rego, nº 22, 4º direito, Lisboa, Portugal ORCID iD: 0000-0002-5095-5986

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