Desde o início da pandemia instalada pela COVID-19, os cuidados de saúde em Portugal têm sofrido inúmeras reformulações que permitiram colmatar as necessidades no imediato, mas que deixaram a descoberto as várias fragilidades que há muito se faziam sentir. É notório o desgaste dos profissionais e a sobrecarga a que são sujeitos pela necessidade de assumir turnos e postos de gestão por ausência de colegas, quer por motivos de doença, quer por alocação a outras instituições de saúde ou por rescisão de contrato com o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os cuidados de saúde de urgência foram a linha da frente no combate contra a COVID-19 e, atualmente, mantêm-se como uma porta de entrada de muitos utentes para o SNS. Recebem-se utentes imigrantes que ainda não se encontram inseridos no SNS, utentes estrangeiros com episódios agudos pontuais, utentes sem médico de família, utentes com conceções erradas sobre a necessidade de recurso ao serviço de urgência e, finalmente, utentes com sintomas e queixas que merecem a avaliação em contexto de urgência. Atualmente, assistimos a uma sobrelotação e deterioração destes serviços, agravada durante a pandemia, e que culmina em elevados tempos de espera, no desgaste dos profissionais e nas pobres condições laborais que se evidenciaram nos últimos dois anos.
Vários estudos europeus e portugueses1-3 destacam que cerca de um terço das idas aos serviços de urgência são consideradas situações de caráter não urgente, sem necessidade de cuidados diferenciados, que poderiam ter sido geridas em contexto de cuidados de saúde primários ou mesmo no domicílio. Contudo, diversas são as crenças e justificações que motivam os utentes a dirigir-se ao serviço de urgência. Entre as mais comuns destacam-se a crença de que a sua condição apresenta critérios de avaliação em contexto de urgência; a perceção de que poderão realizar todos os exames necessários num mesmo período de tempo e no mesmo local; considerarem que necessitam de avaliação por um especialista hospitalar; a ausência de médico de família; ou a unidade de cuidados de saúde primários não apresentar horário e consultas disponíveis no próprio dia.3,4-6 Estas motivações, aliadas a uma pobre literacia em saúde, conduzem à sobrelotação dos serviços de urgência a nível nacional, ao aumento dos custos em saúde e à fragilidade dos cuidados prestados.
Como interna de Medicina Geral e Familiar tive a oportunidade de integrar o serviço de urgência de Medicina Interna de um dos hospitais centrais de Lisboa e observar a disfuncionalidade que se vive durante 24 horas, todos os dias.
O serviço de urgência desenrola-se dentro do caos habitual, necessariamente contrastando com o quotidiano da Unidade de Saúde Familiar. Os utentes com patologias sem caráter de urgência e que não necessitam de cuidados hospitalares no imediato representam 35% das vindas ao serviço de urgência.1-3 Pela minha experiência nos vários períodos em que integrei a equipa de urgência, pude comprovar, grosseiramente, essa percentagem. Muitas destas admissões constituíam quadros passíveis de serem geridos em contexto de ambulatório, em cuidados de saúde primários, ou mesmo no domicílio com recurso a analgesia simples. Contudo, devido à iliteracia em saúde, os utentes não só desconhecem a gravidade da sua queixa e como geri-la no domicílio, como também mantêm conceções desatualizadas sobre o que deve motivar a ida ao serviço de urgência.6 Ao longo do turno, fui frequentemente interrompida por utentes que questionavam se porventura os tinha esquecido ou que ameaçavam abandonar o serviço devido ao elevado tempo de espera. As inscrições infundadas condicionam elevados tempos de espera podendo ultrapassar as 6 horas até que um utente seja avaliado por um médico pela primeira vez. Este tempo foi frequentemente ultrapassado das várias vezes que integrei a equipa de urgência. Posto isto, se mesmo após este tempo de espera o utente permanece no serviço de urgência, é natural que o médico assuma que existe, de facto, um problema que merece tratamento neste contexto. Esta conclusão poderá ser falaciosa, mas não poderia julgar de outra forma o impacto que a queixa do doente terá na sua vida, uma vez que o motivou a recorrer ao serviço de urgência e nela permanecer por mais de 6 horas.
Além de tudo isto, outro problema se impõe. Quando um utente apresenta um sintoma inespecífico ou específico, sem aparentemente gravidade que justifique a sua estadia no serviço de urgência, vejo-me a questionar a minha abordagem quando pondero requisitar exames complementares de diagnóstico. Em contexto de cuidados de saúde primários, dependendo da gravidade da queixa, aconselho o utente com tratamento empírico confiando apenas na minha avaliação através da anamnese e do exame objetivo e encaminho o utente para o domicílio com as recomendações necessárias na eventualidade de necessitar regressar ou de se dirigir ao hospital. Mas quando o utente falha esta etapa e nos encontramos no serviço de urgência questiono se “Estarei a fazer o suficiente por esta pessoa que se dirigiu ao hospital, enfrentou mais de 6 horas de espera e que considera o seu problema, de facto, uma urgência?”. Este questionamento ocorre por ter ao dispor vários meios complementares de diagnóstico e terapêutica que podem corroborar a minha avaliação ou aflorar outro problema não objetivável que seria desvalorizado caso não fosse realizada uma investigação. Consequentemente, são várias as ocasiões em que são requisitados exames desnecessários, que apenas confirmam a nossa avaliação clínica do doente, ou que revelam uma alteração inespecífica, mas que nos deixa inquietos e, por isso, somos induzidos a investigar.5 A importância de aplicar a prevenção quaternária impõem-se nestes casos. Ainda que tenhamos ao dispor todos os meios para “tranquilizar” o utente (segundo o próprio) podemos apenas estar a violar um dos princípios básicos da ética médica - primum non nocere.7 Tudo isto culmina num aumento do tempo de espera, aumento de custos em saúde, no cansaço do profissional e ansiedade do utente, na perda de tempo em reavaliações desnecessárias e na contribuição para a iliteracia da população, que continuará a considerar que é ao serviço de urgência que se terá de dirigir numa situação semelhante. Enquanto este cenário se desenrola, utentes com patologias verdadeiramente importantes vão-se acumulando na sala de espera e aguardam mais de 6 horas pela primeira avaliação médica. Nesse momento, sabemos que o utente fará as 12 ou 24 horas de urgência connosco, mas em piores condições. É neste cenário, que se repete diariamente, que a saúde fica comprometida e que os pilares do SNS se encurtam. Deixa de ser universal, pela impossibilidade de resposta a todas as pessoas, e torna-se incapaz de assegurar a gratuitidade quando o custo é a própria saúde do utente.
A precariedade que observamos hoje em Portugal, não é apenas financeira. A iliteracia em saúde é um dos contribuintes mais notórios para a sua manutenção. É urgente rever a prática de medicina, procurando ouvir os profissionais e atendendo às dificuldades dos utentes, pois não seremos capazes de praticar medicina sem médicos ou com doentes alheados dos seus direitos e deveres em saúde.