Introdução
As infeções do trato urinário (ITUs) são das doenças infeciosas mais prevalentes em todo o mundo, sobretudo em mulheres, em qualquer estadio da sua vida, embora também possam ocorrer no sexo masculino. Esta diferença na maior propensão para a infeção no sexo feminino deve-se à anatomia do sistema urinário da mulher. (1 Existem outros fatores de risco para ITU para além do sexo feminino, nomeadamente antecedentes de procedimentos geniturinários, anomalias anatómicas ou fisiológicas do trato genitourinário (TGU), presença de corpos estranhos como cateteres vesicais, imunodeficiências e a presença de bexiga neuropática. (2 Em idosos é a segunda causa mais comum de doença infeciosa apenas precedida pelas infeções do trato respiratório. (3
A bactéria Escherichia coli (E. coli) é responsável por cerca de 80% de todas as ITUs adquiridas na comunidade na mulher. (4 A sintomatologia típica de uma ITU consiste em disúria, polaquiúria, dor suprapúbica e urgência miccional. Podendo ocasionalmente surgir hematúria. O diagnóstico é clínico, contudo a confirmação poderá ser feita através de uma urocultura (UC). (1 O tratamento das ITUs é feito com antibioterapia, sendo, segundo a norma de orientação clínica da Direção Geral de Saúde (DGS), a fosfomicina, a nitrofurantoína e a amoxicilina/ácido clavulânico as opções terapêuticas de primeira linha. (5 De acordo com a Associação Europeia de Urologia (EAU), a nitrofurantoína, a fosfomicina, o trimetoprim e a cefalexina nas grávidas, estão indicados na profilaxia antibiótica nas ITUs recorrentes. (6
A recorrência das ITUs é bastante comum em mulheres em idade jovem, sendo os principais fatores de risco para a recorrência a atividade sexual, a utilização de produtos espermicidas, ter a primeira ITU em idade precoce e história materna de ITUs. (7 Define-se como ITUs recorrentes quando ocorrem 3 ou mais episódios num espaço de 12 meses ou 2 ou mais episódios num espaço de 6 meses. (6-9
A crescente problemática da resistência à antibioterapia ao longo dos últimos anos, sobretudo de agentes uropatogénicos, tem levado à procura de alternativas à antibioterapia com utilidade na profilaxia de ITUs recorrentes, na esperança de se reduzir assim a prescrição antibiótica nestes casos. (10 Uma alternativa já vastamente estudada é o sumo de arando que tem demonstrado resultados entusiasmantes como alternativa à antibioterapia. (6 Outra substância que tem vindo a ser estudada é a utilização de antissépticos como é o caso do hipurato de metenamina que leva à produção de formaldeído quando num ambiente ácido, como o da urina, atuando como bacteriostático prevenindo assim a infeção bacteriana sem contribuir para a resistência antibiótica. Os estudos demonstraram a sua segurança em mulheres grávidas. (11,12 As queixas gastrintestinais leves são os efeitos secundários mais proeminentes da sua utilização. (13,14 A utilização desta substância está contraindicada na presença de disfunção hepática, de uma taxa de filtração glomerular (TFG) <10 mL/min e em doentes com gota. (15
Esta revisão tem como objetivo principal avaliar a evidência disponível acerca da eficácia do hipurato de metenamina na profilaxia da recorrência de ITUs na mulher adulta, podendo assim ser uma arma contra a resistência antibiótica nos agentes uropatogénicos.
Métodos
De forma a elaborar esta revisão realizou-se uma pesquisa bibliográfica referente a artigos que tenham sido publicados entre janeiro de 2012 e maio de 2022, tendo sido utilizados os termos MeSH “methenamine” e “urinary tract infections”. A pesquisa foi realizada nas seguintes bases de dados: The Cochrane Library, MEDLINE/PubMed, DARE, TRIP Medical Database, Canadian Medical Association Practice Guidelines Infobase e National Guideline Clearinghouse.
Para esta revisão incluíram-se artigos escritos em inglês e português, com estudos realizados em humanos. Foram incluídos meta-análises, ensaios clínicos controlados e aleatorizados, estudos observacionais e guidelines. O modelo PICO foi utilizado de forma a estabelecer-se os critérios de inclusão dos estudos para esta revisão 16: População - mulheres com idade ≥18 anos e sem anomalias anatómicas do TGU; Intervenção - prevenção da recorrência de ITUs com o hipurato de metenamina; Comparação - antibioterapia ou não-tratamento; Outcome - recorrência de ITUs, definida clinicamente e/ou através de UC (>100 000 bactérias/mL). Excluíram-se artigos que não fossem de encontro aos critérios de inclusão propostos para esta revisão, nomeadamente estudos que incluíam mulheres com alterações anatómicas do TGU e/ou submetidas a intervenções cirúrgicas do TGU, estudos que não cumpriam a definição de ITU recorrente e estudos que combinavam o uso de hipurato de metenamina com diferentes antibióticos. Não houve restrição em relação à dose de hipurato de metenamina utilizada nem à duração do tratamento. O nível de evidência e a força de recomendação foram avaliados com base na escala strength of recommendation taxonomy (SORT) da American Family Physician. (17 Todos os artigos selecionados foram lidos pelos dois autores, tendo sido realizada a avaliação da evidência e qualidade em conjunto.
Resultados
Na pesquisa inicial efetuada obtiveram-se 106 resultados, sendo que 28 foram excluídos por repetição. Após leitura do título e resumo foram excluídos 62 estudos, sendo que após leitura na íntegra dos restantes foram selecionados 3 artigos que cumpriram os critérios de inclusão. A Fig. 1, em anexo, apresenta de forma pormenorizada o processo de seleção dos artigos incluídos nesta revisão.
A revisão incluiu 2 ensaios clínicos controlados e aleatorizados e 1 estudo observacional retrospetivo. Os 3 estudos incluídos nesta revisão baseada na evidência foram escritos em inglês, sendo que as suas características se encontram resumidas na Tabela 1.
Grupo de estudo | Desenho do estudo | Amostra | Outcome estudado | Intervenção | Resultados | NE |
---|---|---|---|---|---|---|
Harding et al. 2021 | Ensaio multicêntrico, aberto, randomizado, de não inferioridade | 240 mulheres com idade ≥18 anos, com ITUs de repetição, com necessidade de tratamento profilático | Incidência de ITUs sintomáticas em doentes tratados com antibióticos, durante o período de tratamento de 12 meses | Profilaxia antibiótica (nitrofurantoína, trimetoprim, cefalexina) id (n=120) ou hipurato de metenamina 1 g bid (n=120) | - Grupo de profilaxia antibiótica: incidência de 0,89 episódios por pessoa/ano (intervalo de confiança de 95% 0,65 a 1,12) - Grupo hipurato de metenamina: incidência de 1,38 (1,05 a 1,72) (intervalo de confiança de 90% 0,15 a 0,84) - Diferença absoluta de 0,49 casos/ano | 1 |
Botros et al. 2021 | Estudo randomizado, non-blinded | 92 mulheres com idade ≥18 anos com ITUs de repetição | Prevenção de ITUs recorrentes durante 12 meses após o início do tratamento | Profilaxia com hipurato de metenamina 1 g bid (n=43) ou trimetoprim id (n=43) por um período mínimo de 6 meses | - Grupo de profilaxia antibiótica: recorrência de 65% (28/43) - Grupo hipurato de metenamina: recorrência de 65% (28/43) - Sem diferenças estatisticamente significativas (p=1,00). | 2 |
Snellings et al. 2019 | Estudo retrospetivo, observacional | 150 mulheres com idades compreendidas entre os 60 e 89 anos | Tempo até a primeira ITU após o início de hipurato de metenamina vs. tempo médio entre ITUs nos 12 meses anteriores ao início da profilaxia | Profilaxia com hipurato de metenamina 1 g bid (n=133); 1 g id (n=16); 300 mg bid (n=1) | - Tempo médio para ocorrer ITU previamente à profilaxia: 3,3 meses - Tempo médio para ocorrer ITU com hipurato de metenamina: 11,2 meses - Diferença estatisticamente significativa (p<0,0001) | 2 |
Nestes estudos foram incluídas um total de 482 mulheres das quais 441 foram analisadas. Apenas um dos estudos incluídos envolveu <100 participantes. (18 Todos os estudos envolvidos utilizaram maioritariamente a posologia de hipurato de metenamina de 1 g duas vezes ao dia. O desenvolvimento de ITU sintomática foi avaliado em todos os artigos. Dois dos estudos utilizados nesta revisão usaram critérios semelhantes para definição de ITU recorrente 15,19 enquanto que num dos estudos esses critérios não foram adequadamente descritos. (18
Dentro dos 2 ensaios clínicos controlados e aleatorizados um comparou a eficácia do hipurato de metenamina com diferentes antibióticos como nitrofurantoína, trimetoprim e cefalexina 15 em 240 mulheres com idade ≥18 anos, com ITUs de repetição, enquanto outro comparou apenas com o uso de trimetoprim em 92 mulheres com idade ≥18 anos com ITUs de repetição. (18 O estudo observacional envolveu 150 mulheres com idade dos 60-89 anos com registo de ≥2 ITUs nos 12 meses prévios ao início do estudo. Os autores compararam o tempo necessário para a recorrência de ITU em mulheres a tomar hipurato de metenamina com o tempo médio entre ITUs nessas mesmas mulheres nos 12 meses anteriores. (19
Ambos os estudos que compararam a eficácia do hipurato de metenamina com a profilaxia antibiótica na prevenção de ITUs demonstraram, durante o período de tratamento (12 meses), não haver diferenças estatisticamente significativas entre a profilaxia antibiótica e o hipurato de metenamina. Ambos os estudos revelaram uma diminuição no número de ITUs de repetição tanto no grupo tratado com antibiótico como no grupo tratado com hipurato de metenamina, quando comparados com a ausência de tratamento. (15,18 É de referir que o estudo ALTAR obteve um resultado em favor da profilaxia antibiótica, traduzindo no entanto apenas mais 0,49 episódios de ITU no ano, nas mulheres a tomar hipurato de metenamina, sendo considerado pelos autores clinicamente pouco relevante (RR 1,52, intervalo de confiança de 95%: 1,16-1,98). Este estudo demonstrou ainda que, num período de follow-up de 6 meses após o tratamento, as taxas de ITUs nas mulheres em estudo aumentaram, mantendo-se, contudo, inferiores aos valores prévios ao tratamento. (15 O estudo de Botros et al, observou que a recorrência de ITUs no grupo da profilaxia com trimetoprim foi de 65% (28/43) tal como no grupo da profilaxia com hipurato de metenamina (65% (28/43) (p=1,00)). Demonstrou ainda que o tempo necessário até as mulheres em estudo apresentarem uma recorrência foi superior a 100 dias tanto no grupo com trimetoprim profilático como no grupo a tomar hipurato de metenamina. (18 Semelhantemente, o estudo retrospetivo demonstrou uma diferença estatisticamente significativa (p<0,0001) entre o tempo necessário para recorrência de ITU quando a tomar hipurato de metenamina (11,2 meses) e o tempo médio para desenvolver ITU nos 12 meses prévios ao tratamento (3,3 meses). No mesmo estudo, 22% das mulheres incluídas não tiveram ITU após o início da metenamina e cerca de 9% apresentavam uma clearance de creatinina (ClCr) <30 mL/min. Nestas mulheres o tempo necessário para desenvolver uma recorrência de ITU foi de 12,7 meses quando a tomar hipurato de metenamina, apresentando uma diferença estatisticamente significativa (p<0,0001) quando comparado com o tempo médio para desenvolver ITU nos 12 meses prévios ao tratamento. (19
Os efeitos adversos foram descritos de forma adequada em todos os estudos incluídos nesta revisão. Os principais sintomas observados nos 3 estudos com a toma de hipurato de metenamina foram sintomas gastrointestinais leves como diarreia, náusea e dor abdominal. Contudo, a percentagem de mulheres que reportaram efeitos adversos com a toma do hipurato de metenamina variou bastante entre os 3 estudos: Harding et al, reportaram efeitos adversos em 28% das mulheres, enquanto que Botros et al, e Snellings et al, observaram efeitos adversos em 8,88% e 10,7% das mulheres, respetivamente. (15,18,19 Nos estudos que realizaram a comparação com antibioterapia profilática não foram reportadas diferenças estatisticamente significativas nos efeitos adversos entre os dois grupos. (15,18 Snellings et al, demonstraram que mesmo com um ClCr < 30 mL/min a taxa de efeitos adversos com o uso de hipurato de metenamina é baixa. (19 Tendo em conta os baixos níveis de efeitos adversos observados, o estudo ALTAR demonstrou uma satisfação comparável entre os grupos em estudo, no entanto a profilaxia antibiótica obteve um score mais elevado no que diz respeito à conveniência, devido à posologia. (15
Discussão
De forma geral, os 3 artigos utilizados nesta revisão suportam um efeito positivo do hipurato de metenamina na prevenção da recorrência de ITUs, não tendo demonstrado inferioridade relativamente à profilaxia antibiótica. Estes resultados vêm corroborar os resultados reportados numa revisão da Cochrane de 2012 e numa revisão mais recente. (2,13 Diferentemente dos estudos envolvidos nessas revisões, que são estudos maioritariamente anteriores ao ano 2000, esta revisão incluiu dois estudos que comparam a eficácia do hipurato de metenamina com a antibioterapia profilática nas ITUs 15,18 e um estudo retrospetivo que compara com a ausência de profilaxia. (19 Snellings et al, reportaram pela primeira vez o benefício da profilaxia com hipurato de metenamina em mulheres com ClCr <30 mL/min. (19 Apesar de ser um resultado promissor, consideramos serem necessários mais estudos de forma a corroborar estes achados uma vez que a população de mulheres com ClCr <30 mL/min foi reduzida.
A dosagem recomendada de hipurato de metenamina pela Food and Drug Administration (FDA) na profilaxia de ITUs é de 1 g duas vezes por dia e essa foi a dosagem utilizada nos estudos analisados exceto num dos estudos em que foi utilizada uma dosagem diferente num número reduzido de mulheres (11,4%). 19
A taxa de efeitos adversos descrita nos estudos analisados foi baixa, sendo os sintomas gastrointestinais os mais frequentes, o que vai de encontro ao descrito na literatura, demonstrando assim a segurança na sua utilização. (2,13 Snellings et al, demonstraram ainda que na população de mulheres com ClCr <30 mL/min a taxa de efeitos adversos foi comparável com mulheres com ClCr ≥30 mL/min. (19
A utilização de hipurato de metenamina como profilaxia nas ITUs em lares é já muito frequente nos países nórdicos, nomeadamente na Noruega. Um estudo demonstrou que 48% dos residentes em lares na Noruega se encontravam sob profilaxia com hipurato de metenamina. (20
Existem alguns estudos que estão a decorrer à data da realização deste artigo que poderão fornecer maior evidência sobre a eficácia do uso de hipurato de metenamina na prevenção das ITUs de repetição. Um desses estudos é um ensaio clínico randomizado ImpresU que está a avaliar a eficácia do hipurato de metenamina na prevenção de ITUs de repetição em mulheres com idades ≥70 anos em quatro países (Noruega, Suécia, Polónia e Países Baixos). (21 Outro ensaio clínico a decorrer nos Estados Unidos da América pretende avaliar a eficácia do hipurato de metenamina na prevenção de ITUs de repetição em mulheres com idades compreendidas entre os 50 e os 85 anos. (22
Esta revisão apresenta várias limitações, nomeadamente o baixo nível de evidência de 2 dos artigos envolvidos e o número reduzido de estudos realizados desde 2012.
Conclusão
Uma vez que a resistência antibiótica se está a tornar um problema crescente na saúde, é de primordial importância encontrar métodos que possam auxiliar na prevenção desta ameaça crescente à saúde pública mundial. Como tal, estudos como este, e todos os que foram avaliados neste trabalho, são de vital relevância. O hipurato de metenamina surge assim como uma possível alternativa viável e segura à antibioterapia profilática demonstrando não ser inferior a esta (SORT B). No entanto, apesar dos resultados favoráveis à sua utilização na prevenção de ITUs são necessários mais estudos uma vez que a grande maioria dos estudos disponíveis são anteriores ao ano 2000. Existem vários estudos a decorrer cujos dados ainda não se encontravam disponíveis e que irão acrescentar maior evidência acerca da eficácia do hipurato de metenamina como profilaxia das ITUs recorrentes. 21,22