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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.10 no.4 Queluz dez. 2023  Epub 29-Dez-2023

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.700 

Casos Clínicos

Neoplasia Peniana: Diagnóstico Mascarado por Inibidores do SGLT2

Penile Neoplasm: Diagnosis Masked by SGLT2 Inhibitors

1. Unidade de Saúde Familiar Emílio Peres, ACeS Grande Porto III - Maia/Valongo, Ermesinde, Portugal.


Resumo

O cancro do pénis é uma neoplasia rara que se pode apresentar com uma variada gama de sintomas. Quando diagnosticado precocemente tem um excelente prognóstico, contudo, este piora dramaticamente na presença de metástases.

Doente de 69 anos, sexo masculino, com antecedentes pessoais de diabetes mellitus. Após prescrição de empagliflozina recorre por lesão eritematosa no prepúcio. Foi medicado progressivamente com clotrimazol creme, valaciclovir, azitromicina, timidazol, fluconazol, amoxicilina + ácido clavulânico e hidrocortisona sem resolução do quadro. Diagnosticado com carcinoma epidermoide do pénis após biópsia em consulta de Dermatologia.

Trata-se de um caso de cancro do pénis com sintomatologia inespecífica num doente com fatores de risco para infeções genitais, dificultando a suspeição clínica e promovendo a adoção de medidas dirigidas ao tratamento da infeção genital. O papel do médico de família é fundamental para uma referenciação precoce dos doentes com clínica sugestiva de cancro do pénis.

Palavras-chave: Infeções do Sistema Genital/etiologia; Inibidores do Transportador 2 de Sódio-Glicose/efeitos adversos; Neoplasias Penianas/diagnóstico

Abstract

Penile cancer is a rare neoplasm that can present with a wide range of symptoms. When diagnosed early, it has an excellent prognosis, however, it worsens dramatically in the presence of metastases.

A 69-year-old male patient with a personal history of diabetes mellitus. After prescription of empagliflozin, the patient develops an erythematous lesion in the foreskin. He was progressively medicated with clotrimazole cream, valaciclovir, azithromycin, tinidazole, fluconazole, amoxicillin + clavulanic acid and hydrocortisone without improvement. Diagnosed with squamous cell carcinoma of the penis after biopsy in a Dermatology consultation.

This is a case of penile cancer with non-specific symptoms in a patient with risk factors for genital infections, making clinical suspicion difficult and promoting the adoption of measures aimed at the treatment of genital infection. The role of the family doctor is essential for an early referral of patients with clinical signs suggestive of penile cancer.

Keywords: Penile Neoplasms/diagnosis; Reproductive Tract Infections/etiology; Sodium-Glucose Transporter 2 Inhibitors/adverse effects

Introdução

O cancro do pénis é uma neoplasia rara. Em 2020, a nível mundial a sua taxa de incidência padronizada para a idade foi de 0,8 por cada 100 000 homens.1 Esta taxa apresenta grande variabilidade entre as diferentes populações, tendo os países menos desenvolvidos as taxas de incidência mais elevadas.2,3 Apesar de poder afetar homens em qualquer idade, esta representa uma doença mais frequentemente diagnosticada entre a sexta e sétima década de vida.2,3

São vários os fatores de risco associados ao cancro do pénis, como por exemplo, infeção pelo vírus do papiloma humano (HPV),2-4 fimose,2,4 má higiene do pénis,4 inflamação crónica do pénis, tabagismo,2-4 idade avançada,2,4 obesidade4 e exposição a fotoquimioterapia com psolareno e radiação ultravioleta A.2-4

O carcinoma de células escamosas ou carcinoma epidermoide é o principal tipo de cancro do pénis, representando 95% do total.4) Este desenvolve-se na superfície da mucosa do pénis, localizando-se principalmente na glande e prepúcio.4 Para o seu diagnóstico é fundamental uma completa história clínica,2 um cuidadoso exame físico da lesão primária2,5 e avaliação dos gânglios regionais.5

As manifestações clínicas de cancro do pénis apresentam-se com uma variada gama de sintomas, como por exemplo lesões cutâneas ou nódulos do pénis, ulceração, rubor, dor e irritação.2 Adicionalmente, podem experienciar hemorragia, dificuldade a urinar e escorrência subprepucial.2

Quando diagnosticado precocemente o prognóstico do cancro do pénis é excelente, até 40% dos homens diagnosticados com doença localizada têm uma sobrevida global a cinco anos de aproximadamente 90%. Contudo, o prognóstico piora dramaticamente na presença de metástases ganglionares.2,4,5

O caso clínico descrito representa um caso de cancro do pénis, alertando para uma patologia pouco frequente, com sintomatologia inespecífica, o que pode contribuir para um atraso no seu diagnóstico.

Caso Clínico

Doente de 69 anos, sexo masculino, caucasiano, autónomo para as atividades da vida diária. Antecedentes pessoais de diabetes mellitus diagnosticada em 1992, com seguimento em consulta de Endocrinologia no hospital de referência, retinopatia diabética, hipertensão arterial diagnosticada em 1992 com dilatação da aurícula esquerda e disfunção diastólica, hipercolesterolemia e obesidade (índice de massa corporal de 32 kg/m2). Medicado com 32 unidades de insulina glargina 100 U/mL à noite, metformina 850 mg id, metformina + vidagliptina 1000 mg + 50 mg 2id, atorvastatina 40 mg id, ácido acetilsalicílico 100 mg id, indapamida 1,5 mg id, amlodipina + valsartan 5 mg + 160 mg id.

No contexto de consulta programada de diabetes mellitus na sua unidade de saúde familiar (USF), por valor de hemoglobina glicada de 7,9%, teve indicação para suspender metformina 850 mg id e iniciar empagliflozina 25 mg id. Seis meses depois, recorre a consulta aberta na USF por perceção de eritema e edema na área genital com uma semana de evolução. Ao exame objetivo apresentava lesão eritematosa no prepúcio com dúvida sobre a presença simultânea de vesículas. Foi medicado com clotrimazol creme 10 mg/g e valaciclovir 500 mg 2id durante três dias. Nesta consulta foi solicitado estudo analítico com anticorpos do vírus da imunodeficiência humana (VIH), antigénio de superfície do vírus da hepatite B (AgHBs) e teste não treponémico Venereal Disease Research Laboratory (VDRL).

Por persistência do quadro clínico após tratamento, regressou a consulta aberta após duas semanas. Apresentava anticorpos VIH, AgHBs e VDRL negativos. Foi medicado com azitromicina 1 g em toma única e tinidazol 2 g em toma única, tendo tido indicação para manter clotrimazol creme 10 mg/g e suspender empagliflozina 25 mg.

Duas semanas depois, em consulta programada de diabetes mellitus na USF, mantinha sintomatologia sem melhoria após tratamento e suspensão de emplagliflozina 25 mg. Foi medicado com hidrocortisona pomada 10 mg/g, fluconazol 150 mg em toma única, e amoxicilina + ácido clavulânico 500 mg + 125 mg 2id durante sete dias. Foi referenciado a consulta de Dermatologia do hospital de referência por balanite com um mês de evolução sem melhoria com medicação instituída.

Na primeira consulta de Dermatologia, dois meses após início do quadro, apresentava ao exame objetivo “placa infiltrada no prepúcio, verrucosa e firme, e fimose discreta em contexto de balanite xerótica obliterante”. Nesta consulta foram solicitados teste treponémico Treponema pallidum particle agglutination assay (TPPA/TP), pesquisa de ácido desoxirribonucleico (ADN) de Chlamydia trachomatis, Neisseria gonorrhoeae e Mycoplasma genitalium na urina e anticorpos antivírus da hepatite C. Todos os exames realizados para despiste de infeções sexualmente transmissíveis tiveram resultado negativo. À reavaliação por Dermatologia após um mês, revelava “nódulo com ulceração central e bordo infiltrado, firme à palpação no prepúcio”. Foi encaminhado para biópsia da lesão que revelou no exame histológico "carcinoma epidermoide, bem diferenciado, pT1a (...) Margens laterais de biópsia com lesão.".

Após orientação para consulta de Urologia, foi submetido a excisão de lesão no prepúcio, mantendo posteriormente vigilância em consulta de Urologia.

Discussão

Existem vários pontos que merecem reflexão no caso descrito. Devido à hiperglicemia, glicosúria e diminuição da imunidade humoral e celular,6,7 os doentes com diabetes mellitus têm um risco aumentado de infeções genitais, sendo as infeções fúngicas as mais frequentes.7 Os fármacos inibidores do cotransportador de sódio-glicose-2 (iSGLT2) são responsáveis por induzir a concentração urinária de glicose, promovendo condições favoráveis para a sobrevivência de agentes infeciosos.7 As infeções genitais micóticas são o mais frequente efeito adverso dos iSGLT2, estando a sua utilização associada a um risco de infeções genitais três a quatro vezes superior quando comparado com placebo.8

Apesar das manifestações de cancro do pénis serem típicas na maioria dos casos, é preciso estar alerta para a possibilidade de apresentações alternativas.2 As lesões com aparência ulcerada ou inflamatória da glande ou prepúcio têm uma ampla gama de diagnósticos diferenciais e são frequentemente secundárias a doenças benignas.2,4

A sintomatologia apresentada por este doente revelou-se bastante inespecífica obrigando à consideração de vários diagnósticos diferenciais possíveis.

O termo balanopostite é utilizado para descrever uma inflamação na glande e prepúcio, englobando um conjunto de etiologias díspares com apresentação clínica semelhante, como por exemplo eritema, edema, dor, prurido, ulceração ou escorrência subprepucial.9 Estes são sintomas inespecíficos sobreponíveis às manifestações clínicas mais frequentemente observadas no cancro do pénis, previamente descritas neste manuscrito. Dentro das várias etiologias de balanopostite destacam-se as infeções por Candida spp, infeções bacterianas, infeções víricas e outras infeções sexualmente transmissíveis.10 Por vezes as manifestações clínicas são sugestivas de determinada etiologia, contudo estas não são consideradas patognomónicas e a biópsia pode ser necessária para excluir malignidade.9

A presença destes dois fatores de risco (diabético e sob fármaco da classe dos iSGLT2) para infeções genitais, bem como a baixa incidência de cancro do pénis quando comparada com a incidência de infeções genitais, levaram a um atraso na suspeição clínica, promovendo a adoção de medidas dirigidas ao tratamento da infeção genital.

São vários os exames auxiliares de diagnóstico que permitem o diagnóstico etiológico definitivo de balanopostite, como por exemplo, culturas de esfregaço subprepucial ou testes de amplificação de ácidos nucleicos.9 No entanto, estes são exames dispendiosos e de difícil acesso através dos cuidados de saúde primários. Na abordagem deste doente procedeu-se à prescrição de terapêutica empiricamente, tendo em consideração os agentes etiológicos mais prováveis.

A maioria dos ensaios clínicos realizados concluíram que suspender um iSGLT2 durante um episódio de infeção genital não está relacionado com um melhor prognóstico.7 As infeções genitais em doentes com sintomas ligeiros a moderados respondem bem ao tratamento sem necessidade de descontinuação do iSGLT2.7,8

O cancro do pénis pode ser física e psicologicamente devastador para os doentes,2 não sendo infrequente o adiamento da procura de observação médica.3 Alguns motivos que o justificam são a raridade da doença,3 a pouca sensibilização da população,3 bem como a vergonha associada à doença.2 Devido à raridade da doença, alguns profissionais de saúde não especializados podem falhar em reconhecer a seriedade da situação, resultando num atraso do tratamento definitivo.2

Assim, o papel do médico de família é fundamental na promoção da educação para a saúde, funcionando como uma porta de entrada nos cuidados de saúde, valorizando as queixas dos doentes e contribuindo para uma referenciação precoce dos casos com clínica sugestiva de cancro do pénis.

Referências

1. Fu L, Tian T, Yao K, Chen XF, Luo G, Gao Y, et al. Global Pattern and Trends in Penile Cancer Incidence: Population-Based Study. JMIR Public Health Surveill. 2022;8:e34874. doi: 10.2196/34874. [ Links ]

2. Akers C, Holden F. An overview of the diagnoses and treatments for penile cancer. Br J Nurs. 2020;29:S6-s14. doi: 10.12968/bjon.2020.29.9.S6. [ Links ]

3. Douglawi A, Masterson TA. Penile cancer epidemiology and risk factors: a contemporary review. Curr Opin Urol. 2019;29:145-9. doi: 10.1097/MOU.0000000000000581. [ Links ]

4. Thomas A, Necchi A, Muneer A, Tobias-Machado M, Tran ATH, Van Rompuy AS, et al. Penile cancer. Nat Rev Dis Primers. 2021;7:11. doi: 10.1038/s41572-021-00246-5. [ Links ]

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10. Wray AA, Velasquez J, Khetarpal S.. Balanitis Treasure Island: StatPearls Publishing;2022. [ Links ]

Declaração de Contribuição/Contributorship Statement

AS e JP: Desenho do artigo, análise e interpretação dos dados, redação do manuscrito, revisão e aprovação final

HC: Revisão e aprovação final

AS and JP: Article design, data analysis and interpretation, manuscript writing, review and final approval

HC: Review and final approval

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 18 de Novembro de 2022; Aceito: 03 de Julho de 2023; : 06 de Setembro de 2023; Publicado: 29 de Dezembro de 2023

Autor Correspondente/Corresponding Author: Ana João Valente Silva [anajoaovs@gmail.com] ORCID iD: 0000-0001-8842-565X

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