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Gazeta Médica

Print version ISSN 2183-8135On-line version ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.10 no.4 Queluz Dec. 2023  Epub Dec 29, 2023

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.627 

Casos Clínicos

Doença de Behçet nos Cuidados de Saúde Primários: Um Diagnóstico Difícil numa Consulta de 10 Minutos

Behçet’s Disease in Primary Health Care: A Difficult Diagnosis in a 10-Minute Consultation

1. USF Além D’Ouro, Vila Nova de Gaia, Portugal.


Resumo

A doença de Behçet é uma doença autoimune rara que pode afetar todos os vasos sanguíneos, sendo por isso considerada uma panvasculite. Carateriza-se por estomatite aftosa recorrente, úlceras genitais e manifestações sistémicas que podem afetar a pele, o sistema nervoso central, o olho, as articulações, o sistema digestivo e o sistema vascular. Desta forma, manifestações como eritema nodoso, artrite, uveíte, úlceras digestivas ou aneurismas vasculares, são frequentes. Neste artigo reportamos um caso de uma doente com doença de Behçet, que recorreu à consulta de situação aguda, que atendendo ao tempo limitado de consulta e complexidade da sua doença, constituiu para nós um desafio diagnóstico.

Palavras-chave: Cuidados de Saúde Primários; Síndrome de Behçet/complicações; Síndrome de Behçet/diagnóstico; Síndrome de Behçet/tratamento

Abstract

Behçet's disease is a rare autoimmune disease that can affect all blood vessels, and is therefore considered a panvasculitis. It is characterized by recurrent aphthous stomatitis, genital aphthosis and systemic manifestations that may affect the skin, central nervous system, eye, joints, digestive system and vascular system. Manifestations such as erythema nodosum, arthritis, uveitis, digestive ulcers or vascular aneurysms are frequent. In this article, a patient goes to a patient with Behçet's disease, who reports to the consultation of an acute situation, a diagnosis that meets the limited time of consultation and the complexity of his disease, constituting a challenge for us.

Keywords: Behcet Syndrome/complications; Behcet Syndrome/diagnosis; Behcet Syndrome/therapy; Primary Health Care

Introdução

A doença de Behçet (DB) afeta cerca de 2,5 pessoas em cada 100 000 habitantes em Portugal. (1 Não é, por isso, uma patologia frequente na realidade da Medicina Geral e Familiar. Uma vez que se trata de uma patologia sistémica, pode apresentar manifestações clínicas diversas. (2-4 Atendendo aos aspetos previamente referidos e ao facto de o Médico de Família ser, muitas vezes, o primeiro contacto do doente com os serviços de saúde, é necessário que este esteja familiarizado com a doença e capacitado para a diagnosticar, iniciar tratamento adequado e referenciar à especialidade.

Caso Clínico

Uma mulher de 37 anos recorreu à consulta de situação aguda. A sua história obstétrica era composta por 4 gestas e 3 paras, salientando-se um aborto espontâneo no primeiro trimestre. Recorreu por noção de tumefação cervical dolorosa, odinofagia, tosse seca e febre, desde há 4 dias. A orofaringe encontrava-se eritematosa. Objetivaram-se três adenopatias cervicais posteriores esquerdas infracentimétricas, dolorosas ao toque. O teste rápido de deteção de antigénio COVID-19 foi negativo. Desta forma, foi assumido quadro de síndrome mononucleósido, tendo sido prescrito tratamento sintomático com paracetamol 1000 mg e ibuprofeno 600 mg. Dois dias depois, a doente regressou a nova consulta por manutenção das queixas e aparecimento de várias lesões ulceradas na cavidade oral e uma lesão ulcerada na vulva, ambas dolorosas. Foi possível apurar história de artralgias de ritmo inflamatório de longa data, localizadas sobretudo aos joelhos, punhos e tornozelos, de ritmo infamatório. Constatou-se também que a estomatite aftosa apresentava caráter recorrente, há pelo menos 4 anos. Quando confrontada com a possibilidade diagnóstica de DB a doente referiu que tinha um primo em segundo grau com a doença (Fig. 1). Ao exame objetivo, observaram-se duas úlceras orais localizadas no lábio inferior e uma úlcera localizada junto ao freio da língua, no pavimento da cavidade oral (Figs. 2 e 3). As lesões apresentavam um halo eritematoso caraterístico, estavam cobertas por fibrina e possuíam cerca de 1 cm de diâmetro.

Figura 1 Genograma. 

Figura 2 Úlceras Orais. 

Na região interna do lábio esquerdo, junto à comissura labial posterior, observou-se uma úlcera genital de bordos regulares eritematosos e com profundidade considerável, com cerca de 3 cm de diâmetro (Fig. 4). O fundo da úlcera encontrava-se parcialmente coberto por uma pseudomembrana de fibrina. Foi prescrito acetato de fluocinolona 0,25 mg/g tópico. Para as úlceras orais foi prescrito budesonido suspensão pulverizada 32 mcg/dose e sucralfato 1000 mg/5 mL. Foram pedidos também exames complementares adequados ao contexto clínico.

Figura 3 Úlcera oral junto ao freio labial. 

Figura 4 Úlcera vulvar. 

A doente regressou novamente para ser reavaliada e mostrar os exames requisitados. Constatamos francas melhorias das queixas álgicas associadas às úlceras e uma diminuição do seu tamanho, com a terapêutica instituída. A doente apresentava uma velocidade de sedimentação de 116 mm/h e uma proteína C-reativa de 7,27 mg/dL. Nesse momento, foi realizado pedido de consulta de Reumatologia Hospitalar e iniciou-se tratamento com colchicina 1 mg, uma vez por dia. Por recorrência das úlceras orais e pelo agravamento das queixas articulares dos tornozelos, a doente recorreu a nova consulta um mês depois. Apurou-se que as lesões ulceradas anteriores tinham resolvido com cicatrização fibrosa (Fig. 5). Requisitou-se radiografia dos tornozelos, enquanto aguardava chamada para consulta de Reumatologia.

Figura 5 Úlcera oral e cicatriz. 

Discussão

A DB é uma doença subdiagnosticada. Desde o início da sintomatologia, a doença demora cerca de 5,3 anos a ser diagnosticada. 5 Este facto pode revelar um relativo desconhecimento da doença por parte dos clínicos, que é explicado pela raridade da mesma e pouca frequência na prática do dia-a-dia. (2 Por outro lado, trata-se de uma condição extremamente complexa, que pode apresentar manifestações muito díspares, sendo facilmente confundida com outras patologias. O próprio curso surto-remissão caraterístico da doença frequentemente impede que, a um dado momento, estejam reunidos todos os critérios diagnósticos necessários e, por outro lado, pode contribuir para a desvalorização das queixas por parte do doente, tal como evidenciado no caso reportado, o que retarda a procura de cuidados de saúde. O diagnóstico de DB é clínico e baseado em opinião de especialistas, bem como exclusão de outras etiologias.3 O seu diagnóstico diferencial implica a consideração de várias patologias. Na presença de úlceras genitais, devemos excluir doenças sexualmente transmissíveis, particularmente a sífilis, cancroide ou linfogranuloma venéreo. As úlceras orais podem ter diversas causas. O lúpus eritematoso sistémico pode cursar com esta manifestação, embora as úlceras sejam habitualmente indolores e não deixem lesões cicatriciais. Por sua vez, apesar da estomatite aftosa recorrente poder causar úlceras muito dolorosas que poderão interferir com a ingestão ou a fala, os sintomas sistémicos são nulos ou residuais. A DB poderá manifestar-se com sintomas gastrointestinais similares à doença inflamatória intestinal. Para além disso, as ulcerações da mucosa oral são comuns em ambas as patologias, o que dificulta ainda mais a sua distinção. Muitas vezes, essa diferenciação apenas pode ser feita pela presença de granulomas em exame anátomo-patológico do tecido envolvido do tubo digestivo. (3 Espera-se que esta estratégia diagnóstica seja eficiente no diagnóstico de DB quando o tempo de consulta é escasso, permitindo ao Médico de Família suspeitar do diagnóstico, excluir outras doenças particularmente infeciosas agudas e dar o encaminhamento precoce para consultas especializadas de doenças autoimunes.

Referências

1. Doença de Behçet - Sociedade Portuguesa de Reumatologia [Internet]. [cited 2022 Mar 4]. Available from: Available from: https://spreumatologia.pt/doenca-de-behcet/ . [ Links ]

2. Davatchi F, Chams-Davatchi C, Shams H, Shahram F, Nadji A, Akhlaghi M, et al. Behcet's disease: epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis. Expert Rev Clin Immunol. 2017;13:57-65. doi: 10.1080/1744666X.2016.1205486. [ Links ]

3. Smith EL, Yazici Y. Clinical manifestations and diagnosis of Behçet syndrome. UpToDate [Internet]. [cited 2022 Mar 4]. Available from: Available from: https://www.uptodate.com . [ Links ]

4. Bulur I, Onder M. Behçet disease: New aspects. Clin Dermatol. 2017;35:421-34. doi: 10.1016/j.clindermatol.2017.06.004. [ Links ]

5. Alpsoy E, Donmez L, Onder M, Gunasti S, Usta A, Karincaoglu Y, et al. Clinical features and natural course of Behçet’s disease in 661 cases: A multicentre study. Br J Dermatol. 2007;157:901-6. doi: 10.1111/j.1365-2133.2007.08116.x. [ Links ]

Declaração de Contribuição/Contributorship Statement

RD: Introdução, discussão e revisão do artigo

IM: Descrição do caso e revisão do artigo

2Todos autores aprovaram a versão final a ser publicada

RD: Introduction, discussion and article review

IM: Case description and article revision

5All authors approved the final version to be published

RESPONSABILIDADES ÉTICAS

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 14 de Maio de 2022; Aceito: 25 de Agosto de 2023; : 10 de Novembro de 2023; Publicado: 29 de Dezembro de 2023

Autor Correspondente/Corresponding Author: Rui Pinheiro Dias [rcpd1996@gmail.com] ORCID iD: 0000-0002-4397-1769

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