Introdução
A chupeta, objeto pequeno, com um bico semelhante a uma teta, dado geralmente a bebés e crianças pequenas para chucharem (“chupeta”, no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) é parte dos lares de todo o mundo, aquando da existência de um recém-nascido.1
Esta prática remonta a tempos mais antigos, existindo evidência de variados objetos que foram sendo usados ao longo da história com o mesmo objetivo, como espigas de milho, panos mergulhados em mel ou Brandy ou contas de madeira. A primeira patente, em borracha, foi feita em 1903 por C. Meinecke, que a chamou de “Reconfortante de bebé”.
A utilização da chupeta para acalmar o bebé tornou-se, assim, um hábito culturalmente enraizado, seguido pela maioria dos pais/tutores, mas foi surgindo receio de que a utilização deste objeto tenha influência negativa no sucesso da amamentação.2-5 Segundo vários autores, a introdução de mamilos, tetinas artificiais ou chupetas durante os primeiros tempos de aleitamento materno, pode provocar “confusão de bicos” e causar dificuldades ou mesmo abandono precoce do aleitamento materno.6
Cabe ao prestador de cuidados que acompanha a primeira infância e desenvolvimento da criança realizar o aconselhamento sobre as mais variadas temáticas nesta fase da vida e esclarecer todas e quaisquer dúvidas que possam surgir aos pais/tutores.
A amamentação, outrora desconsiderada, tem vindo a assumir uma crescente importância na comunidade científica mundial pelos benefícios que tem na nutrição, proteção e desenvolvimento da criança, bem como no vínculo afetivo entre mãe e filho.7-9 Assim, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses de idade e tem implementado medidas a nível mundial para estimular essa prática. Uma das iniciativas mais reconhecidas e eficazes nesse sentido foram os “Tem Steps to Successful Breastfeeding”, primeiramente introduzidos em 1998 e atualizados posteriormente, mais recentemente em 2018.8,10 No documento original, era recomendada a evicção do uso de chupetas, biberons e mamilos artificiais, até que a amamentação estivesse estabelecida com sucesso, devendo ser preferidos outros métodos para tranquilização do lactente. Na mais recente atualização, essa recomendação foi modificada no sentido de realçar a importância do aconselhamento dos pais/tutores acerca dos riscos e benefícios da utilização da chupeta, ao invés da sua proibição.
Persiste, assim, na comunidade científica, evidência contraditória sobre a utilização da chupeta e o seu papel na amamentação.
Desta forma, os autores propuseram-se a rever a evidência científica mais recente, com o objetivo de determinar se o uso de chupeta causa interferência no sucesso e duração da amamentação. Será feita uma revisão da literatura sobre a temática, para que o prestador de cuidados possa melhor aconselhar e orientar os tutores sobre a utilização segura deste objeto de utilização tão comum.
Métodos
Para esta revisão da literatura, os autores basearam a sua pesquisa em duas bases de dados: PubMed e Cochrane. Foram utilizados filtros com base no tipo de estudo (meta-análises, revisões sistemáticas e guidelines), língua (inglesa e portuguesa) e data de publicação (entre janeiro de 2013 e março de 2023). Na base de dados PubMed foram utilizados os termos MeSH: Pacifiers e Breast Feeding. Foram incluídos estudos que avaliassem recém-nascidos, independentemente da idade gestacional. Foram excluídos estudos que se encontravam repetidos entre as várias bases de dados, estudos que avaliaram uma intervenção ou outcome diferente da influência da chupeta no sucesso da amamentação como artigos sobre a influência da chupeta na redução da síndrome da morte súbita do lactente (SMSL) ou do efeito analgésico da chupeta aquando de situações dolorosas como a administração de vacinas, ou caso não apresentassem os referidos critérios de inclusão.
Resultados
A Fig.1 esquematiza o processo de pesquisa e seleção dos artigos incluídos nesta revisão. Obtiveram-se 53 artigos no total, tendo 6 desses artigos sido considerados relevantes para o tema da revisão. Dois dos artigos eram duplicados, dos restantes 51 artigos, 41 foram eliminados por serem discordantes do objetivo da revisão.
Dos restantes 10 artigos, foram eliminados mais 4 por serem de tipologias diferentes, não incluídas nos critérios de inclusão. Incluíram-se assim 6 artigos entre os quais constam 3 revisões sistemáticas com meta análise, 2 revisões sistemáticas e 1 ensaio clínico randomizado. Na Tabela 1 são esquematizados os resultados obtidos.
Tabela 1: Resultados de estudos sobre a associação entre uso de chupeta e a amamentação
Referência | Metodologia | Intervenção e outcomes | Resultados |
---|---|---|---|
Hermanson, et al (2019)11 | Ensaio clínico randomizado paralelo que avaliou recém- nascidos com ≥37 semanas e ≥2500g de peso à nascença n=239 Divididos aleatoriamente em 2 grupos | Intervenção: recomendar oferecer chupeta desde o primeiro dia de vida X recomendar evitar usar chupeta nas 2 primeiras semanas Outcomes
|
Sem diferenças estatisticamente significativas entre os 2 grupos em qualquer dos outcomes. |
Boccolinni, et al (2015)2 | Revisão sistemática 20 estudos transversais + 7 estudos longitudinais Sem referência à idade gestacional | Identificação de fatores associados com a amamentação exclusiva nos primeiros 6 meses de vida | Nos fatores proximais, o uso de chupeta foi o que mais se relacionou com a interrupção da amamentação exclusiva (presente em 16 dos estudos analisados e com associação em 15 deles) |
Zimmerman E, et al (2015)3 | Revisão sistemática 4 estudos longitudinais, 2 transversais e 4 ensaios clínicos randomizados 1 dos estudos avaliou recém- nascidos pré-termo e, os restantes, recém-nascidos de termo | Investigar a relação entre o uso de chupeta e biberão e a exclusividade ou duração da amamentação. | Não houve evidência conclusiva: 4 estudos mostraram que o uso precoce de chupeta interfere na exclusividade da amamentação e 6 estudos em que não se verificou associação - a maioria da evidência refuta a hipótese de confusão de bicos chupeta-mama |
Buccini, et al (2016)4 | Revisão sistemática com metaanálise que avaliou recém-nascidos de termo e saudáveis 2 ensaios clínicos randomizados + 20 estudos longitudinais cohort + 24 estudos transversais | Investigar a associação entre o uso de chupeta e a interrupção da amamentação exclusiva até aos 6 meses de idade | Não foi encontrada associação nos ensaios clínicos randomizados entre o uso de chupeta e a interrupção da amamentação exclusiva. Nos estudos observacionais foi observada uma consistente associação |
Jaafar SH, et al (2016)5 | Revisão sistemática com metaanálise que avaliou recém-nascidos de termo e saudáveis 2 ensaios clínicos randomizados | Avaliar o efeito do uso com ou sem restrições de chupeta na amamentação de bebés de termo saudáveis e com mães que pretendem manter amamentação exclusiva. | O uso de chupeta em bebés a seguir ao parto ou a seguir ao estabelecimento da amamentação não afetou significativamente a prevalência ou duração da amamentação, de forma exclusiva ou parcial, até aos 4 meses de idade |
Tolppola, et al (2022)6 | Revisão sistemática com meta-análise 10 ensaios clínicos randomizados 5 estudos avaliaram recém-nascidos pré-termo e, os restantes 5, recém-nascidos de termo | Avaliar se o uso de chupeta se associa com o sucesso da amamentação em bebés de termo e pré-termo e se influencia o tempo de hospitalização dos bebés pré-termo. | Uso precoce de chupeta não se associou com a duração da amamentação parcial ou exclusiva durante os primeiros 6 meses de vida. |
Discussão
A amamentação foi ganhando um papel cada vez mais preponderante no panorama científico mundial, com os seus reconhecidos benefícios no crescimento e saúde da criança e da ligação afetiva entre a mãe e o bebé.9 A Organização Mundial de Saúde publicou, em 1998,10 os 10 passos do Hospital Amigo do Bebé, que diziam inequivocamente que não deviam ser oferecidas
quaisquer formas artificiais de sucção desde tetinas artificiais a chupetas. Estas orientações foram revistas em 2018,8 face aos desenvolvimentos da ciência e às novas evidências e o texto foi adaptado, passando a dizer que deve ser prestado aconselhamento às novas mães sobre o uso e os riscos das chupetas, biberões e tetinas.
Vários autores debateram-se sobre o porquê de a utilização da chupeta poder estar associada a ineficácia da amamentação.
Alguns teorizam que, ao passar mais tempo com chupeta, os lactentes estão menos tempo na mama, diminuindo dessa forma a estimulação reflexa do aleitamento e diminuindo a produção materna de leite.
Outra teoria é que a sucção num material com propriedades mecânicas diferentes do que a mama leva a que a sucção seja mais fraca, superficial e com uma pega menos eficaz, causando trauma mamilar e mamada ineficaz. Nenhuma destas teorias foi provada ou se mostrou mais prevalente.6
Para além do potencial impacto na amamentação, têm sido descritos outros possíveis riscos e benefícios associados ao risco de chupeta. Existe evidência que o uso prolongado de chupeta, particularmente após os 4 anos de idade, está associado a problemas dentários como má-oclusão, mordida aberta, cáries, e outras anomalias.1 Existe também associação do uso de chupeta a um aumento do risco de otite média, a partir dos 12 meses de idade, diretamente proporcional ao tempo e frequência da sua utilização, sendo recomendada a sua evicção nas crianças com história de otites de repetição.4,12
Por outro lado, há benefícios comprovados do uso da chupeta, dos quais se destacam a redução do risco de SMSL,13,14 o efeito analgésico e de conforto, podendo ser usada como calmante em procedimentos dolorosos15) e está também associada a internamentos hospitalares mais curtos, especialmente nos recém-nascidos pré-termo, possivelmente através do aumento da pressão arterial e frequência cardíaca.5,16
Várias entidades científicas nacionais e internacionais têm posições públicas e recomendações sobre o uso da chupeta no período de amamentação. Para além da já referida posição da OMS, destacam-se na Tabela 2.
Tabela 2: recomendações de ordens médicas ou sociedades internacionais
Ordem ou sociedade | Ano | Recomendações |
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Sociedade Canadiana de Pediatria17 | 2003 | Deve ser prestado aconselhamento antecipatório por rotina acerca do uso seguro e apropriado da chupeta a recém-nascidos e crianças;
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American Family Physician18 | 2009 | O uso de chupeta pode estar associado à cessação precoce da amamentação ou ser um marcador de dificuldades na amamentação; por isso, deve ser evitado o uso até a amamentação estar bem estabelecida. (grau de evidência B) |
Sociedade Portuguesa de Pediatria19 | 2009 | Ofereça uma chucha ao bebé para dormir, mas se ele a rejeitar não force. Se o bebé for amamentado, a chupeta não deve ser oferecida nas primeiras semanas de vida, pois pode prejudicar a adaptação do bebé à mama. |
American Academy of Pediatrics20 | 2012 | Para recém-nascidos a ser amamentados, a introdução da chupeta deve ser adiada até à amamentação estar firmemente estabelecida. O tempo até ao estabelecimento da amamentação é variável, mas usualmente situa-se às 3 ou 4 semanas. |
National Health System (NHS)21 | 2021 | Se está a amamentar, garanta a relação de amamentação e reserva de leite primeiro (pode levar cerca de 4 semanas), antes de considerar o uso de chupeta. Um bebé satisfeito que se alimenta bem pode não querer uma chupeta e não deve ser encorajado a aceitar uma. Se usar chupeta, não a introduza até a amamentação estar bem estabelecida. Isto ocorre usualmente quando o bebé tem cerca de 1 mês de vida. |
UpToDate22 | 2023 | Nas primeiras duas a quatro semanas de vida, o uso de chupeta pode interferir com o estabelecimento da amamentação. Sucção na mama é preferível porque ajuda a alertar o corpo da mãe para produzir mais leite. Durante este período, se o lactente desejar, deve ser oferecida a mama para garantir uma adequada frequência de alimentação, para maximizar o aporte e estimular a produção de leite. Assim que a amamentação esteja estabelecida (quando o recém- nascido recuperar e ultrapassar o peso de nascença, a mãe tiver boas reservas de leite e a criança estiver efetivamente a esvaziar a mama a cada mamada), pode ser oferecida chupeta para dormir. O uso de chupeta para dormir parece diminuir o risco de SMSL. |
Assim, as principais sociedades e entidades científicas internacionais parecem recomendar o uso de chupeta pelo seu benefício na redução do risco de SMSL, mas apenas depois de efetivamente estabelecida a amamentação, pelo potencial risco de interferência.
Na presente revisão da literatura, os resultados contradizem estas posições.
Buccini,2 Boccolini3 e Zimmerman6 realizaram revisões sistemáticas onde procuraram estudar a relação entre o uso de chupeta e a interrupção da amamentação, os fatores associados com a manutenção da amamentação exclusiva ou da sua interrupção e os fatores implicados na confusão de bicos entre chupeta e mama, respetivamente. Boccolini3 analisou apenas estudos longitudinais e verificou que existia associação entre o uso de chupeta e a interrupção da amamentação.
A revisão de Buccini2 incluía estudos longitudinais e ensaios clínicos randomizados com recém-nascidos de termo e saudáveis e verificou, nos estudos observacionais, associação entre o uso de chupeta e a interrupção da amamentação, que não se verificou nos ensaios clínicos randomizados. Zimmerman,6 não encontrou evidência conclusiva, com dois estudos longitudinais, um estudo transversal e um ensaio clínico randomizado a apontarem evidência a favor da confusão de bicos entre o uso de chupeta e a amamentação; os restantes estudos incluídos na revisão, incluindo três ensaios clínicos randomizados, não encontraram associação. Os autores concluem que a maioria da evidência refuta a hipótese de confusão de bicos chupeta-mama.
Hermanson11 realizou um ensaio clínico randomizado a recém-nascidos saudáveis e de termo, que foram aleatorizados em dois grupos: um com recomendação de atrasar a introdução da chupeta até às primeiras duas semanas e outro em que a chupeta foi introduzida no primeiro dia de vida. Estudaram a proporção de amamentação exclusiva aos dois, quatro e seis meses e os problemas com a amamentação; em nenhum dos outcomes foram encontradas diferenças estatisticamente significativas. Jaafar4 efetuou uma revisão sistemática com meta-análise de recém-nascidos saudáveis e de termo para avaliar o uso de chupeta, com ou sem restrições, na amamentação em mães motivadas. Concluiu que o uso de chupeta, independentemente da altura da sua introdução, não afetou a amamentação até aos 4 meses de idade. Por fim, Tolppola,5 realizou também uma revisão sistemática com meta-análise, que incidiu tanto em recém-nascidos pré-termo como de termo e analisaram a influência do uso de chupeta no sucesso da amamentação tendo verificado que a introdução precoce da chupeta não se associou com a duração da amamentação nos primeiros seis meses de vida.
Assim, estudos observacionais identificaram uma possível interferência da chupeta no sucesso e eficácia da amamentação, mas esta associação não se verificou nos ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas com meta-análise.2-6,11 Os estudos observacionais são importantes e trazem novas perspetivas, como potenciais associações ou hipóteses, mas são, geralmente, suscetíveis a viés quando tentam procurar a efetividade da intervenção. Essas hipóteses devem ser testadas e confirmadas com ensaios clínicos mais robustos e bem desenhados. No que toca ao outcome estudado nesta revisão, o impacto da chupeta no sucesso e duração da amamentação, os estudos de maior qualidade não demonstraram haver influência.
Alguns dos artigos levantam a hipótese de esta associação entre o uso de chupeta e a diminuição da amamentação ser apenas um marcador de dificuldades na amamentação e não de culpa nesse insucesso, principalmente em mães pouco motivadas para amamentar.
Conclusão
Esta revisão mostra que a evidência disponível não suporta a ideia de que a chupeta influencie negativamente o sucesso e duração da amamentação. Na opinião dos autores, dados os potenciais benefícios da chupeta na diminuição do risco de SMSL, entre outros, a chupeta deve ser oferecida, se essa for a vontade dos pais.
Os prestadores de cuidados, principalmente os que acompanham a primeira infância e desenvolvimento têm um papel fulcral no acompanhamento e esclarecimento de dúvidas aos pais e cuidadores naquela que é uma fase da vida cheia de novidades e incertezas. Estar munido da mais recente e atual evidência científica é a melhor forma de aconselhar e acompanhar a nova família, oferecendo os riscos e benefícios das práticas, permitindo uma decisão partilhada.
Futuros estudos nesta área devem focar de forma qualitativa as motivações para a introdução da chupeta tendo em conta diversos meios sociais, económicos e culturais. Devem também ser feitos estudos para esclarecer qual a influência da chupeta na iniciação e exclusividade do aleitamento materno em mães pouco motivadas. Para além da chupeta, é necessária também a pesquisa do efeito de mamilos artificiais, tetinas ou biberons e a sua causalidade na chamada confusão de bicos. Por fim, em vez de procurar que fatores podem diminuir o sucesso da amamentação, deviam também ser pesquisados fatores que fazem aumentar a adesão ao aleitamento materno no período neonatal.