A evolução constante da medicina e o aumento crescente da esperança de vida reforçam a pressão que os sistemas de saúde enfrentam com os doentes com doenças crónicas. Em 2015, 57,8% dos portugueses entre os 25 e os 74 anos reportaram ter pelo menos uma doença crónica e a multimorbilidade afetava mais de um terço destes indivíduos.1 O tratamento eficaz das doenças crónicas requer um sistema proativo e assente numa prestação de cuidados longitudinal ao longo da vida. A adesão ao tratamento é uma componente chave desta gestão, fundamental para reduzir a carga global de doença, minorando o seu impacto, prevenindo incapacidade, melhorando resultados e reduzindo custos em saúde. Não obstante, e apesar das armas terapêuticas que temos disponíveis atualmente para abordagem das mais variadas áreas da medicina, a adesão às terapêuticas de longo prazo permanece insuficiente, rondando os 50% nos países desenvolvidos,2 afirmando-se como um problema real de saúde pública.
A fraca adesão atenua o benefício clínico ótimo, culminando em complicações médicas e psicológicas da doença, reduzindo qualidade de vida e subotimizando recursos de saúde. Acresce também o aumento da probabilidade de insucesso do tratamento, complicações e sofrimento evitáveis, aumento da morbimortalidade e da recaída.2 É logico ainda afirmar que a falta de adesão acarreta um custo associado à ocorrência de efeitos indesejáveis, custo este que aumenta substancialmente com o surgimento de complicações evitáveis, frequentemente com hospitalizações associadas.
Embora o foco do cumprimento da terapêutica prescrita seja a ação individual, existem diversos fatores envolvidos no processo (co)responsáveis pela adesão à terapêutica. Ainda que a tendência seja focar sobretudo nos fatores relacionados com o doente como causa do problema da adesão, esta problemática contempla várias dimensões, que a Organização Mundial de Saúde organizou em cinco grandes grupos,2 nos quais importa refletir:
Fatores sociais, económicos e culturais: interessa ressalvar na componente socioeconómica as redes de apoio do doente, a dinâmica familiar e a proximidade e acessibilidade aos serviços de saúde, além dos recursos financeiros, instrução/educação e a literacia em saúde. Já a cultura apresenta um importante papel modelador das crenças relacionadas com a saúde do indivíduo, dos seus comportamentos e valores, influenciando o modo como este perceciona a doença. Se estas componentes não forem consideradas, a qualidade do atendimento aos nossos doentes, e em última instância a adesão ao tratamento proposto, estarão com certeza em risco num país cada vez mais multicultural com condições sociais e económicas muito díspares.
Fatores relacionados com os profissionais e serviços de saúde: neste ponto a comunicação em saúde será um dos aspetos mais relevantes não só para o estabelecimento de uma boa relação médico utente, mas também para uma sólida adesão à terapêutica. Embora esta interligação seja reconhecidamente fundamental, como poderá ser plena perante prestadores de cuidados de saúde exaustos, tempos de consulta escassos e inquietantes constrangimentos no acesso e seguimento. Outros pontos a destacar serão a indisponibilidade de medicação ou desigualdades na sua oferta bem como sistemas de saúde pouco sensibilizados e capacitados para o desafio da literacia em saúde da população, conceito capital não só para a promoção da saúde e prevenção da doença, mas também para a eficácia e eficiência dos serviços de saúde.
Fatores relacionados com a doença e comorbilidades: a própria natureza da doença, nomeadamente, presença de sintomas, a sua severidade, grau de impacto e incapacidade, taxa de progressão bem como existência de tratamentos efetivos são alguns determinantes de adesão.2 A invisibilidade da deterioração trazida por muitas das doenças crónicas silenciosas que tratamos diariamente desequilibra muitas vezes os pratos da balança da adesão, oscilando ainda mais se a terapêutica proposta carregar consigo efeitos secundários.
Fatores relacionados com a terapêutica: é frequente o doente ter uma opinião negativa acerca dos medicamentos, percecionando-os como prejudiciais sobretudo se tomados por longos períodos ou em doses elevadas, por receio de acumulação no organismo, dependência ou, por exemplo, interações medicamentosas. Outros aspetos a sublinhar serão a exigência e complexidade dos esquemas terapêuticos (cujos regimes de combinações em dose fixa têm tentado amenizar), a sua duração de ação, tratamentos prévios com insucesso e alterações frequentes do tratamento, expectativas inapropriadas e, ainda, os efeitos laterais e o eventual suporte cedido para lidar com os mesmos.2
Fatores relativos ao doente: relacionam-se com caraterísticas pessoais e psicológicas relativas ao comportamento de adesão. Dentro das caraterísticas pessoais destacam-se os extremos de idade: a população pediátrica, por exemplo, onde o envolvimento parental é fundamental para adesão sustentada aos esquemas terapêuticos, mas também os idosos, franja da população em que as doenças crónicas são muito prevalentes, com consequente risco de polimedicação e regimes terapêuticos complexos, aliados muitas vezes a disfunção cognitiva e/ou funcional próprias desta faixa etária. Outros aspetos com influência na adesão são os esquecimentos, conhecimento e crenças acerca da doença, atitudes, motivação e confiança na sua gestão. .2) Neste âmbito, a desmistificação de crenças aliada à construção da motivação intrínseca do doente, aumentando a importância percebida da adesão e munindo-o de ferramentas que lhe permitam uma melhor gestão da sua doença são alvos de tratamento comportamentais que devem ser adereçados.
A capacidade de um doente seguir o esquema terapêutico de forma ótima é frequentemente comprometida por mais do que uma barreira, constituindo um processo multidimensional, multifatorial e complexo, e ainda que nenhum dos fatores se mostre suficientemente explicativo por si só, estes interagem e potenciam-se mutuamente.
Ainda assim, a maioria dos estudos disponíveis à data focam apenas uma dimensão, geralmente os fatores relacionados com o doente, ou uma patologia ou terapêutica farmacológica específica, uma abordagem que limita a utilidade dos resultados.
A problemática do (in)cumprimento terapêutico é deveras comum na nossa prática clínica diária, muitas vezes até subestimada, constituindo no meu ponto de vista um fator de risco global e transversal a todas as áreas da medicina. O aumento da efetividade das intervenções na adesão pode ter um impacto major na saúde da população e no combate efetivo das doenças crónicas, mais do que qualquer outra melhoria em tratamentos médicos específicos, com benefícios económicos na utilização de cuidados de saúde e, particularmente, na melhoria dos resultados em saúde. O combate à inércia terapêutica do trinómio doente-clínico-sistema, com intervenções no sentido de minorar barreiras à adesão devem ser cada vez mais um componente central e contínuo da nossa consulta, com abordagens antes e após prescrição, nunca esquecendo o envolvimento do doente na decisão terapêutica e a corresponsabilização do mesmo com a sua saúde.