Introdução
“De repente, esperança” (Figura 1). Foi este o título da capa da revista noticiosa The Economist, publicado a 12 de novembro de 2020. Esta revista foi fundada em setembro de 1843, pelo banqueiro James Wilson, numa época particularmente complicada, na qual se discutia a revogação da Lei dos Cereais (Corn Laws; From the Corn Laws to Your Mailbox, 2007). A revista foi fundada para dar apoio à abolição desta lei, em vigor desde 1815. A lei impunha tarifas, entre outras restrições, à importação de cereais, tornando o seu custo demasiado elevado. Esta lei beneficiava, do ponto de vista económico e político, os donos de grandes propriedades, impedindo o crescimento de outros setores económicos. Os grupos provenientes das zonas urbanas foram os principais opositores desta lei. A grande escassez de alimentos na Irlanda, no período entre 1845 a 1852, forçou o governo da época, liderado pelo Primeiro-Ministro britânico Sir Robert Peel, a tomar uma posição e a revogar a lei. Com a evolução dos tempos, The Economist tornou-se numa revista noticiosa de prestígio internacional, cobrindo vários assuntos da atualidade, da política às tecnologias emergentes e assuntos internacionais. O primeiro editor-chefe foi James Wilson (1843–1857), o fundador da revista. Zanny Minton Beddoes é, atualmente, a editora-chefe da revista. Assumiu ocargo em 2015, sendo a primeira mulher, desde a fundação da revista, a assumir esta posição (The Economist, s.d.).
Fonte. De “Suddenly, Hope”, The Economist, 2020. Copyright 2020 de The Economist. Reimpresso com autorização.
Análise Semiótica
Uma imagem, gravura, quadro, enfim, a arte em geral, tem como objetivo principal transmitir uma mensagem e provocar impacto no público-alvo. Quem consegue ficar indiferente aos quadros de Picasso, como, por exemplo, o quadro Maternidade, de 1901, ou Guernica, de 1937? Independentemente de se gostar de uma determinada imagem ou quadro, estes têm a capacidade de produzir sentimentos em quem os vê, seja de felicidade, de tristeza, ou de outro género (Gerger et al., 2014, p. 174; Hubard, 2015, p. 93). Este processo comunicacional implica a existência de um emissor (o autor da capa), a mensagem (um sentido) e um recetor (quem vai ver a capa), supondo este processo um código específico e estando inscrito num contexto determinado (Moura, 2011, p. 48).
A escolha das cores da capa em análise de modo algum foi aleatória. As cores foram escolhidas para transmitir uma mensagem inequívoca. A cor é de tal forma importante que Goethe (1810/1840) a apresenta como o principal elemento da perceção humana, atribuindo-lhe uma dimensão fisiológica no livro, a Zur Farbenlehre (Doutrina das Cores), publicado originalmente em 1810. A sua teoria ganha outra dimensão após a publicação da versão em inglês, por John Murray, em 1840 (Goethe, 1810/1840).
O olho deve a sua existência à luz. De órgãos animais a ela indiferentes, a luz produz um órgão que se torna seu semelhante. Assim, o olho forma-se na luz e para a luz, a fim de [que] a luz interna venha de encontro à luz externa. (Goethe, 1810/1993, p. 72)
Goethe (1810/1993, p. 175) vai mais longe, referindo que a cor tem a capacidade de induzir um efeito definitivo e significativo na alma do recetor da mensagem. Este descreve que as pessoas, em geral, sentem grande prazer com a cor, reiterando que o olho necessita tanto dela, quanto da luz (Goethe, 1810/1993, p. 175). No livro Doutrina da Cores, Goethe (1810/1933) recorre a uma imagem singular para reforçar a sua ideia. Este relembra a sensação de rejuvenescimento que se sente num dia sombrio ao ver o sol iluminar uma parte isolada da paisagem tornando as cores visíveis. Goethe (1810/1933) menciona, ainda, um episódio engraçado no seu livro, ao referir que um francês espirituoso terá dito que sentiu que o tom da conversa com a senhora mudou desde que esta mudou a cor do armário do seu quarto de azul para vermelho1 (p. 176), mostrando assim de uma forma inequívoca, o efeito que a cor tem no estado anímico de uma pessoa.
Tendo em consideração a importância da cor e a sua capacidade de causar diferentes sensações, tão eloquentemente descrita por Goethe, é então possível fazer uma análise do ponto de vista da semiótica baseada nos conceitos de Saussure (1916/2006) e Charles Peirce (1960). Mas, como? Através da aplicação dos conceitos definidos pelo primeiro à língua e da conceção triádica do signo de Charles Peirce.
Saussure (1916/2006) refere que “a língua constitui um sistema de valores puros que nada determina fora do estado momentâneo dos seus termos ( … ) havendo a relação, que determina o lugar (posição ou espaço)” (p. 95). Saussure faz assim a demonstração de que cada signo está vinculado a todas as outras unidades, pelo que estas não podem ser consideradas isoladamente.
É possível, então, considerar uma linguagem cromática, sendo esta constituída por um sistema com unidades simples, relacionadas entre si, a ponto de as combinarmos, formando unidades mais complexas, como as cores ou combinações destas, significando aquilo que o sistema determina que signifiquem (Pereira, 2011, p. 82). Aplicando o conceito de Saussure à linguagem cromática, podemos considerar a cor como uma combinação de unidades simples. A cor é caraterizada pelo sistema (ou seja, pela combinação de unidades) ao qual está vinculada (Saussure, 1916/2006, p. 95). A cor, e a combinação desta, na imagem da capa do The Economist, aqui em estudo, tem que ser compreendida de acordo com a função que desempenha (Pereira, 2011, p. 83). É, ainda, importante considerar a conceção triádica do signo, de inspiração peirceana, uma conceção que permite diferentes análises, como descreve Santaella (2005):
em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no seu poder para significar; na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa e nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus recetores, isto é, nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus usuários2. (p. 5)
Não é possível fazer uma análise inspirada na conceção triádica da semiótica peirceana (Peirce, 1960) sem referir os seus componentes.
Um signo, ou representamen, é algo que representa para alguém, alguma coisa em algum aspecto ou capacidade. É dirigido a alguém, ou seja, cria na mente da pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. O signo que foi criado eu chamo de interpretante do primeiro signo. O signo representa algo, o seu objeto. (Peirce, 1960, para. 228)
Apesar desta divisão tripartida, é importante referir que os elementos da semiose peirceana — representamen, interpretante e objeto — não existem isolados, mas apenas em relação uns com os outros (Pereira, 2011, p. 84).
Partindo dos pressupostos expostos, é possível configurar um modelo de análise semiótica da imagem da capa da revista The Economist, incluindo as cores escolhidas pelo autor, dado que estas podem ser consideradas como signos.
A análise semiótica da capa em questão não pode ser feita sem o contexto social para o qual remete. Com efeito, a produção de sentido faz-se sempre em condições concretas de tempo, espaço e interlocução (Martins, 2002, 2017), e no caso em apreço, as condições sociais são as do contexto pandémico em que vivemos.
Num primeiro olhar para esta capa (Figura 1), é possível ver um túnel. Mas não é um túnel qualquer. É um túnel no qual os arcos que o formam têm protuberâncias, representando as espículas do SARS-CoV-2. Este elemento não pode ser encarado apenas como uma caraterística morfológica da partícula viral, dado que esta caraterística não direciona, somente, para o SARS-CoV-2. Remete, também, para a importância que estas espículas têm na infeção. O vírus SARS-CoV-2 tem muitas proteínas S-glicosiladas na sua superfície, que permitem a ligação ao recetor ACE2 (angiotensin-converting enzyme 2) das células humanas, mediando assim a sua entrada (Huang et al., 2020, pp. 1141–1142; Letko et al., 2020, p. 562). Esta semelhança pressupõe que foi o vírus SARS-CoV-2 que deu origem à formação deste túnel, levando a sociedade, de alguma forma, a caminhar por ele.
A cor preta no início deste túnel confere-lhe a escuridão. Do ponto de vista da física, o preto não é uma cor verdadeira, mas o resultado da absorção de todo o espectro da luz visível. Esta caraterística pode ainda levar-nos a uma outra interpretação. A situação pandémica em que vivemos é de tal forma grave, que toda a energia circundante foi absorvida, a ponto de nada mais restar. O preto é acromático, uma ausência de luz (Farina et al., 2006, p. 98). Esta ausência de luz, a escuridão, transmite um sentimento sombrio, triste e depressivo, e mesmo uma ideia de morte e de destruição (Farina et al., 2006, p. 98). Aquilo que a situação que vivemos espelha, com exatidão, é, pois, uma situação de caos e morte.
Ao caminhar por este túnel, o preto é gradualmente substituído por tons de cinzento, até ao branco, ou seja, até à claridade. A cor branca aparece como a antítese do preto. O branco, que de um ponto de vista da física, é a reflexão de todas as cores, está associado à pureza, à vida, à divindade (Farina et al., 2006, p. 97). Esta dicotomia pode ainda ser relacionada com a religião judaico-cristã, em que o branco representa a luz e o preto as trevas.
O túnel, por sua vez, demonstra o caminho que a sociedade tem que percorrer para atingir a luz. E quanto mais se aproxima da luz, menor é a escuridão. A cor cinza, sendo esta também uma cor neutra, é obtida pela mistura do branco com o preto. Neste sentido, ao aproximarmo-nos da luz, as trevas vão ficando mais longe, pelo que mais claro se torna o caminho. A origem da própria palavra cinza, cinicia do latim e gris do germânico, simboliza a posição intermediária entre a luz e a sombra (Farina et al., 2006, p. 98). Ao caminhar pelo túnel, em direção à luz, as protuberâncias observadas no primeiro arco do túnel desaparecem, podendo dar a indicação do desaparecimento do “malfeitor”, o vírus.
No fim do túnel aparece um elemento novo, uma seringa. Esta seringa representa a tão desejada vacina contra o vírus SARS-CoV-2. Este elemento é o único que contém uma cor verdadeira, o vermelho. O vermelho é a primeira de todas as cores, representa a energia e o sangue. Induz uma sensação de calor, impulsionando a atenção (Farina et al., 2006 p. 99). Ao olhar para a seringa é inevitável não olhar para o elemento vermelho. Na cultura cristã, o vermelho de sangue é dávida, o que purifica e santifica. É o vermelho do Salvador, o sangue que ele derramou na cruz para a salvação dos humanos. É o signo da força e da energia de redenção (Farina et al., 2006, p. 99).
Ao olhar para a imagem da capa do The Economist é ainda possível fazer um paralelismo com a teoria da liminaridade, de Victor Turner (1969/1974), que analisa o rito de passagem de uma situação pré-societal a uma situação societal. Victor Turner (1969/1974) concebe a “liminaridade” como a passagem entre o estado cultural, definido cognoscitivamente e articulado logicamente, e o limbo, que é uma ausência de status (p. 120). As entidades “liminares” (pessoas em passagem) não se encontram aqui nem ali (Turner, 1969/1974, p. 117), estão num estado intermédio. Neste contexto, quando a sociedade enfrenta um evento repentino, como a praga que vivemos (SARS-CoV-2), as distinções sociais e a hierarquia normal desaparecem, sendo, de alguma forma, atiradas para o limbo. E toda a sociedade passa a estar sujeita à mesma situação, encontrando-se no limiar de algo, entre a doença e a cura. O túnel representado pela escuridão simboliza, de alguma forma, a doença, enquanto que a vacina representada pela luz simboliza a cura. A travessia do túnel pode ser considerada o limbo. Nesta fase ritual, em que a sociedade se encontra, que é um tempo indeterminado e sinaliza uma situação transitória de “morte” social, no sentido em que todos podemos ser afetados pelo vírus, não existindo distinção social. A sociedade sairá do limbo, quando atingir a luz, consistindo esta passagem no renascimento da sociedade.
Estaremos, deste modo, perante um ritual necessário, que permita à sociedade o advento de um mundo novo, um mundo com novas hierarquias sociais, onde seja possível uma maior igualdade? É duvidoso que assim seja.
A capa da revista The Economist pode ainda levar-nos, tanto para a narrativa do Génesis, como do Apocalipse. Na principal tradição religiosa do ocidente (a tradição judaico-cristã), o acontecimento é esclarecido pela ideia de história da salvação, um particular entendimento do tempo histórico, que “é comandado pelo princípio escatológico” (Martins, 2011, p. 43). Neste sentido, o acontecimento é um facto singular, uma fonte autónoma de sentido e de inteligibilidade, é o portador de um “poder hermenêutico”, um “poder de revelação” (Martins, 2011, p. 51). Tendo em conta este ponto de vista, é possível fazer um paralelismo entre o momento em que vivemos e o apocalipse, considerado como a destruição, sendo a sociedade conduzida a passar o túnel, a um novo início, o génesis.
A vacina é vista como a salvação, comparável à chegada ao paraíso. Sendo este o único elemento com uma cor verdadeira, o vermelho, que é indissociável da sensação de energia, de redenção, e do sangue derramado pelo Salvador em prol da sociedade (Farina et al., 2006, p. 99). A vacina é, pois, a esperança da sociedade. Se conseguirmos percorrer o túnel sombrio, sairemos do limbo, chegando à luz, ao paraíso.
Ao debruçarmo-nos sobre a imagem em estudo, não podemos deixar de refletir sobre o que esta significa. Nesse sentido, podemos caraterizar a imagem de acordo com a dicotomia preto e branco, a que juntamos apenas um apontamento de cor, o vermelho, que configura a esperança e nos desperta para diferentes sentimentos, entre os quais o medo de não conseguirmos atingir o paraíso. E se, todavia, ficarmos presos no limbo?
Todas estas sensações são possíveis, porque “a cor é o toque, o olho, o martelo que faz vibrar a alma, o instrumento de mil cordas” (Farina et al., 2006, p. 13; Kandinsky, 1969). A cor apresenta várias dimensões, no sentido em que é vista, impressiona a retina, ou seja, é um elemento ótico-sensível, é sentida, provoca uma emoção psíquico-expressiva, e é construída simbolicamente, ou seja, em termos culturais. A cor tem, pois, um significado próprio, um valor de símbolo, é uma linguagem específica que comunica uma ideia (Farina et al., 2006, pp. 8, 13).
Pode dizer-se que a própria imagem transmite a mensagem, o que quer dizer que o título da capa é de alguma forma desnecessário, porque todos os elementos da imagem transmitem o caminho da esperança.
Roland Barthes (1964) não concordará, todavia, com a ideia de que o título da imagem se tornou desnecessário. Em “Rhétorique de L’Image” (Retórica da Imagem), defende a junção dos dois, da palavra e da imagem. Mais do que a junção, o que Barthes propõe é a submissão da imagem ao logos, sendo absurdo apresentarmos imagens sem palavras. É verdade, no entanto, que Barthes (1964) chega a referir que é possível encontrar imagens sem palavras, mas apenas quando com esta ausência queremos dar um sentido enigmático à imagem (p. 43). Mais ainda, Barthes (1964) refere que:
a imagem produz de imediato uma primeira mensagem, cuja substância é linguística; os suportes são dela a legenda, que é marginal, e os rótulos, que se inscrevem na naturalidade da cena, como que em conformidade; o código de que é extraída a mensagem é em francês; e para ser decifrada, a mensagem não exige outro saber que o conhecimento da escrita e do francês. (p. 41)
A sobreposição da imagem à palavra é relativamente recente. A este propósito, Martins (2011) refere o seguinte:
a deslocação da palavra para a imagem começou há mais de um século. Desde a invenção da fotografia por meados do século XIX, até às redes cibernéticas e aos ambientes virtuais, passando pela imagem do cinema e da televisão, a imagem não tem parado de seguir o caminho da separação da palavra, tornando-se autotélica. (p. 72)
Mas, a perceção da ameaça que a imagem representa para o logos ocidental tem, todavia, milhares de anos. Martins (2011) assinala ainda, neste sentido, a proibição feita pelo Antigo Testamento, e em particular pelo Êxodo, da representação de Deus por imagens: “não farás ídolo algum, nem nada que possua a forma daquilo que viva nas alturas do céu, na terra aqui em baixo, ou nas águas sob a terra” (Êxodo 20:4, como citado em Martins, 2011, p. 71).
A teologia cristã vai ainda mais longe ao diabolizar a imagem, designando-a como daimon. Daimon significa “génio”, na etimologia grega, ou seja, o diabo, que tenta seduzir e fazer cair em tentação. Por sua vez, dia-bolé é uma imagem separada, que se opõe a sun-bolé, uma imagem que reúne (Martins, 2011, p. 71). Mas, na era tecnológica que carateriza a nossa época, a separação do logos e da imagem é uma realidade. Aliás, Neiva (1993, p. 11) refere que é real apenas aquilo que for traduzido em imagens.
Analisando, então, do ponto de vista da semiótica, a imagem representada na capa do The Economist, seguindo Neiva (1993), que argumenta no sentido da importância da imagem, podemos concluir que sem ela não há realidade. Observando-a à luz da divisão triádica de Peirce (1960), “algo que determina outra coisa (o interpretante), para referir a um objeto, para o qual ele próprio remete (o seu objeto) da mesma forma, o interpretante transforma-se então num signo, e assim por diante ad infinitum” (para. 303). E de acordo com Farias e Queiroz (2017), qualquer ação do signo (semiose) é constituída pela relação irredutível do representamen, objeto e interpretante (p. 23), de modo que é possível olhar para a cor como um signo que está sujeito não apenas às suas propriedades internas e à referência àquilo que indica, como também ao efeito que produz no público-alvo (Santaella, 2005, p. 5).
O efeito que determinada imagem ou cor provoca num indivíduo não é, ou não tem que ser, igual à sensação que provoca noutro indivíduo. Como mencionado anteriormente, a cor exerce uma ação tripla no recetor: impressiona, expressa e constrói. E como é que o faz? A cor é vista, ou seja impressiona a retina; é sentida, ou seja, provoca uma emoção; e é construtiva, ou seja, constrói uma linguagem própria, que comunica uma ideia (Farina et al., 2006, p. 13). Mais ainda, como referem Farina et al. (2006), "o fator psicológico domina a eurritmia do pulsar do mundo, das vivências ativas e passivas na marcha diária do existencial humano, a cor, produto da nossa sensação visual tornou-se pelos múltiplos aspetos de sua aplicação uma realidade plástica... ” (p. 14).
Quer isto dizer que a cor não pode só ser apenas encarada do ponto devista da teoria física. Deve igualmente ser concebida de acordo com a sensibilidade de quem a observa. Como refere Carla Fazenda (2001) na sua tese de doutoramento:
quem foi que disse que as cores são apenas radiações eletromagnéticas que produzem impressões físico-químicas no fundo do globo ocular? Pois não se vê bem mesmo só com o coração? A cor não é uma impressão. A cor, se sabe é de cor. A cor é coração. Coloração. Não está nas coisas. Está no modo de vê-las, no modo de estar diante delas. Está no ato mesmo de ver, no ato de estar diante, admirar. Está no modo de colorir as coisas de fazer mágica com elas, num piscar de olhos. (p. 9)
A capa da revista The Economist foi desenhada com o intuito de marcar a alma do recetor, tirando partida do contexto em que vivemos e do fator psicológico de cada indivíduo. Ou seja, cada indivíduo perante a sua vivência neste contexto pandémico olhará para a imagem de forma distinta... Umas vezes, mais com a razão, outras com o coração.
Conclusões
Num primeiro olhar, nesta imagem vemo-nos a percorrer um túnel, que nos permite caminhar da escuridão até à luz. A cor dominante do túnel representado é o preto, sendo esta cor, do ponto de vista da teoria física, a absorção de todo o espetro da luz visível. Sendo esta cor, gradualmente substituída por diferentes graus de cinzento, até ao oposto da cor preta, o branco, que é o resultado da irradiação de todo o espetro da luz visível. É possível comparar esta caminhada a uma travessia, do deserto ao oásis, do inferno ao paraíso, do caos à salvação, enfim, do apocalipse ao génesis, através da dicotomia do preto e branco, o apocalipse (o inferno) representado pelo preto e o génesis (o paraíso) representado pela cor branca.
Como refere Martins (2002, 2017), a produção de sentido está, sempre, intimamente ligada ao contexto, ou seja, a condições concretas, de tempo, espaço e interlocução. Nestas circunstâncias, o contexto é, na análise que empreendemos, o atual estado pandémico, que estamos a viver, assim como a incerteza do que possa estar para lá do túnel, os quais nos remetem para um limbo, como bem refere Victor Turner (1969/1974), na teoria da liminaridade.
Na imagem de capa do The Economist que analisamos são muitos os elementos que nos permitem refletir sobre sentimentos tão distintos, como a angústia, a depressão, a claustrofobia (a cor preta), a alegria e a libertação (a cor branca). É importante referir a seringa, esta configura a vacina como a salvação, sendo que este significado é reforçado pelo apontamento vermelho, que na cultura cristã representa o sangue que dá a vida. A imagem não apenas utiliza a linguagem cromática, para induzir sentimentos distintos e transmitir a sua mensagem, como também utiliza as caraterísticas biológicas do próprio vírus, SARS-CoV-2, sendo o caso, por exemplo, as espicúlas, que medeiam a entradado vírus nas células humanas. Estes procedimentos, utilizados na capa da revista, em estudo, tornam a mensagem mais assertiva, dado que a responsabilidade pela escuridão em que a sociedade se encontra é endossada ao vírus.
Entretanto, a caminhada que é feita através deste túnel permite, ainda, outras interrogações, que o interpretante pode sempre formular. Nos termos clássicos da semiótica peirceana (1960), que estabelece uma divisão tripartida do signo, em representamen, objeto e interpretante, o interpretante é aquele que recebe a mensagem. E entre as interrogações que podemos formular, encontra-se a seguinte: será a sociedade capaz de alcançar a salvação, ou seja, a vacina? E como segunda questão: estará a comunidade humana no início de uma nova era, uma era de maior justiça social?
É importante realçar que apenas a linguagem cromática e o vínculo que estabelecem entre si todas as unidades que constituem a língua, nos termos propostos por Saussure (1916/2006), nos permite embarcar na viagem proposta pela imagem. E, naturalmente, não sendo possível esquecer que a produção de sentido se faz sempre em condições concretas de tempo, espaço e interlocução, devendo ser assinalado, igualmente, que esta análise tem como condição social a situação pandémica em que vivemos.
No entanto, por mais cuidado e meticuloso que seja o nosso olhar, o impacto que a imagem provoca varia de pessoa para pessoa. A mensagem é construída, tendo por base as vivências do interpretante, do seu estado psicológico e do mundo que o rodeia. Até os céticos não consideram a cor apenas à luz da teoria física, como absorção e reflexão da luz. Sem dúvida, há que considerar, igualmente, o efeito que a cor produz no interpretante. Como bem refere Carla Fazenda (2001), “a cor é coração”(p. 9).