Introdução
O imaginário social brasileiro historicamente tem produzido uma série de representações sobre corpos e identidades da região Nordeste. Em meio a uma geografia construída em torno dos significados de sequidão, pobreza e subdesenvolvimento humano, homens e mulheres são pensados/as, nomeados/as, classificados/as como espelhos dessa realidade crua e insalubre. Lançando um olhar para esse contexto discursivo criador, aprendemos com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1996) que há uma “geografia que nos marca e nos demarca” (p. 139) e que o Nordeste brasileiro é coisa frutificada pela história, uma invenção do início do século XX marcada por uma composição de interesses políticos e econômicos a fim de delinear territórios possíveis e impossíveis no Brasil.
Mas eis que surge em regiões ignotas uma semente de planta vigorosa que se espalha mesmo nas condições impróprias. Balançado pelas mudanças tecnológicas e econômicas dos séculos XX e XXI, do Nordeste emergem forças mobilizadoras de novos modos de vida, capturadas pelas imagens do diretor pernambucano Gabriel Mascaro no filme Boi Neon (2015). Ali, em meio ao agreste de Pernambuco, a tradição desconfia da modernidade e os encontros interculturais promovidos pelo cosmopolitismo respigam nos modelos de subjetividades disponíveis na confluência do consumo e das formas possíveis de vida. Iremar, personagem interpretado por Juliano Cazarré, representa para nós esta inflexão subjetiva, dando vida a um vaqueiro brusco que sonha em se tornar estilista, algo impensável nos estereótipos ligados aos homens nordestinos de outrora. Nesta narrativa de dilatação de gênero, como bem afirma Mascaro (2017), as representações ganham fronteiras diluídas, borradas, ora se apresentando na força feminizada do corpo másculo do nosso vaqueiro, ora na vida de Galega, interpretada por Maeve Jinkings, na liberdade do seu caminhão.
Neste artigo, destaco a potência de pensarmos a cultura visual como um espaço marcado por nuances estéticas que celebram as diferenças, criando fendas inesperadas nas identidades rígidas, promovendo reflexões sobre o nosso ser e estar no mundo. Iremar em seu devir-mulher nos seduz a esgarçarmos as masculinidades que insistem em se venderem como expressões naturais de corpos já acabados, como uma “metafísica da substância” (Butler, 1990/2018) que opera por meio de causalidades, como destinos irrevogáveis para determinadas criaturas.
A experiência-cinema emerge como um lugar de aprendizagem onde situações filosóficas e pedagógicas podem causar rupturas nas normas de gênero e de sexualidade, produzindo o que aqui chamo de um devir-mulher no homem: modos de ser/estar no mundo que, por meio de um encontro com o outro, proporcionado neste texto por experiências estético-cinematográficas, habitam nas brechas, nos entre lugares, promovendo criatividades fugidias quanto a uma matriz heteronormativa reguladora. Assim, com o objetivo de cartografar os processos de subjetivação das masculinidades que escapam aos modelos hegemônicos e inspirado nas contribuições da filosofia da diferença, da cultura visual e da teorização pós-crítica da educação, lanço meus olhos e dou espaço ao meu “corpo vibrátil” (Rolnik, 1989 1) para ler algumas cenas do filme Boi Neon, sob o argumento de que uma experiência-cinema é potente para a promoção de encontros que nos dessubjetivam, fazendo-nos provar existências mais afirmativas.
A Maquinaria da Cultura Visual: O Cinema Como Lugar de Aprendizagem
Na alquimia possibilitada pelos estudos culturais em toda a sua pós-anti-trans disciplinaridade e pelas teorizações pós-críticas2 da educação que assumem um caminho de experimentação não vinculado às verdades a-históricas, pensar os artefatos da cultura visual como lugares de aprendizagem requer a compreensão da capilarização do poder por meio das práticas culturais. Para tanto, as contribuições de Michel Foucault (1983/1995, 1975/2014b) sobre poder nos inspiram em muitas possibilidades analíticas. Para o filósofo francês, o poder existe apenas de forma relacional, em meio às práticas sociais que chamam à existência determinados modos governados de vida. Segundo Foucault (1983/1995), este exercício de poder “é um modo de ação de alguns sobre outros” (p. 242), não apresentando-se como uma entidade ontológica com uma aparição independente das relações sociais, não sendo, portanto, alvo de uma conquista, como argumentam as perspectivas marxistas.
Como formas capilares de manifestação que se espalham na sociedade em meio às mais variadas práticas discursivas e não discursivas, as relações de poder são modos de governo das condutas, de ação sobre a ação de outros (Foucault, 1983/1995), assumindo delineamentos a fim de que certos modelos de subjetivação sejam alcançados. Ainda segundo Foucault (1975/2014b), podemos mencionar esta força que perpassa de maneira produtiva as relações no coletivo de uma tecnologia difusa de poder ou uma microfísica do poder “posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças" (p. 30).
Ao operar nesta seara teórica, podemos detalhar os modos como somos não apenas mencionados/as, ou melhor, interpelados/as, mas adentramos em um sistema simbólico de enunciações. Enunciações estas que se entrelaçam umas às outras na organização de sentidos para o mundo por meio do que o filósofo francês chama de formações discursivas (Foucault, 1969/1997). Na capilarização do poder que se espalha nas mais ínfimas atitudes cotidianas, desprendendo-se de uma tradicional referência a entidades molares como o Estado, por exemplo, vemos uma série de investimentos que organizam visualidades para a produção de posições de sujeito, aproveitando-se de uma certa centralidade que tanto a cultura quanto a imagem adquirem nos aspectos da vida em sociedade. Para Stuart Hall (1997), “a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos — e mais imprevisíveis — da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas” (p. 20).
Neste ponto e diante de um quadro cada vez mais espetacularizado do valor dado às imagens, a cultura visual, enquanto campo de pesquisa, destaca-se em toda a sua potência analítica ao problematizar não apenas as representações presentes nos mais diferentes artefatos, mas também as próprias visualidades em jogo. Sigo Maria Emilia Sardelich (2006) ao argumentar a força das tecnologias da informação e da comunicação no nosso cotidiano, pois, “nômades em nossas próprias casas, capturamos imagens, muitas vezes sem modelo, sem fundo, cópias de cópias, no cruzamento de inúmeras significações” (p. 452). Uma rotina permeada de incitações midiáticas que põe diante de nós “imagens para deleitar, entreter, vender, que nos dizem o que vestir, comer, aparentar, pensar” (Sardelich, 2006, p. 452).
Daí surge a importância também de refletirmos sobre a construção das próprias visualidades, ou seja, a forma como estabelecemos relações de sentido com o que vemos, com os códigos culturais que se tornam quadros de referência para as imagens que chegam até nós. Colocar as visualidades em questão é desnaturalizar os olhares, não tomando-os como pura expressão transparente da biologia, da capacidade cognitiva e de reconhecimento do corpo, mas sinalizando que “a cultura influencia a nossa experiência visual de modo muitas vezes aparentemente insuspeito” (Sérvio, 2014, p. 199). Ao reivindicar uma posição não essencialista da realidade, mas uma tomada construcionista por meio dos marcadores da linguagem, um território de possibilidades investigativas se abre, o que politiza o nosso cotidiano, os nossos olhares e as nossas experiências enquanto corpo que interage com o mundo, com seu entorno. Ainda segundo Pablo Sérvio (2014):
para os[as] autores[as] que trabalham com Cultura Visual as imagens importam, pois, em vez de simplesmente refletirem a realidade ou um contexto (como costuma entender o senso comum), nossa relação com as imagens afeta/constrói percepções sobre o mundo e sobre nós mesmos[as], influenciando nossas ações. Portanto, as imagens estão intrinsicamente conectadas à política e às relações de poder. (p. 201)
As imagens estão carregadas de representações do mundo. São construídas de forma esmiuçada para que determinadas demandas sejam atendidas, especialmente quando falamos da manutenção de uma ordem que rege o mundo. Esta ordem, que Michel Foucault chama de “ordem do discurso”, funciona como estabelecedora de limites do que é possível para certo tempo histórico e revela as mudanças que se sobrepõem em camadas enunciativas na composição dos modos de vida aceitáveis. De acordo com Foucault (1970/2014a), “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (p. 8). O filósofo complementa falando a respeito do controle dos acontecimentos e das materialidades, porém, ao destacar poderes e perigos, reforça que esta ordem do discurso só se sustenta por meio do exercício do poder na maioria dos microespaços da vida em sociedade para conter os perigos, ou seja, as existências que fogem aos padrões, aos modelos instituídos, às hegemonias que insistem em consensuais hierarquias e desigualdades. Nas imagens que diariamente se agrupam ao nosso redor uma série de representações da norma3 se evidenciam, porém, como em toda relação de poder há resistência (Foucault, 1983/1995), sendo uma condição para que a relação não seja tomada como um exercício de violência, focos de liberação dos enquadramentos também se revelam, povoando imaginários sociais e coroando de possibilidades a pluralidade da vida.
Para Gilles Deleuze (1986/2005),
a última palavra do poder é que a resistência tem o primado [ênfase adicionada], na medida em que as relações de poder se conservam por inteiro no diagrama, enquanto as resistências estão necessariamente numa relação direta com o lado de fora, de onde os diagramas vieram. De forma que o campo social mais resiste do que cria estratégias, e o pensamento do lado de fora é um pensamento de resistência. (p. 96)
É este “pensamento de fora” que destoa dos caminhos escolhidos pelos grupos hegemônicos que desejo destacar neste texto por meio do filme Boi Neon, como procurarei aprofundar no próximo tópico. O filme, como parte da nova safra de produções do cinema pernambucano4, opera nesse duplo entre a tradição de uma geografia marcada por representações calcificadas das identidades sociais, como as de gênero e de sexualidade, e a modernidade que toma os territórios sem pedir licença. Vemos surgir diante das telas o encontro entre águas, o abraço, nem sempre harmonioso, entre as forças que insistem na manutenção das normas, do conservadorismo das linhas familiares e aquelas que rompem a aurora na vontade de afirmar a vida, deslocar os sentidos estabelecidos e produzir searas de alegria. Vemos aí a manifestação de um certo diagrama, conceito trazido por Deleuze sob inspiração de Foucault, que nos diz muito das conexões que podem se dar em meio a naturezas distintas, sejam elas humanas ou não-humanas, produzindo novas formas de subjetivação. Para Deleuze (1986/2005), “o diagrama, enquanto determinação de um conjunto de relações de forças, jamais esgota a força, que pode entrar em outras relações e dentro de outras composições” (p. 96).
Como parte desta cultura visual que aqui tenho discutido, o cinema se evidencia como um lugar de aprendizagem (Ellsworth, 2005), onde uma força pedagógica se manifesta ensinando determinados hábitos, provocando experimentações de várias ordens. O cinema, em toda a sua carga narrativa e imagética, no esplendor de uma imagem-movimento, é um currículo cultural, onde um texto pode ser lido em meio a sua construção discursiva, operando no posicionamento de sujeitos, na inspiração de outros modos de vida. Um currículo cultural, pois, como argumenta Marlécio Maknamara (2020), “quando informações, aprendizagens, sentimentos e pensamentos são articulados, está-se compondo o texto de um currículo” (p. 59).
Ao destacar a experiência-cinema como um acontecimento filosófico e pedagógico quero me referir à invocação de Jorge Larrosa (2001/2002) da experiência como um “território de passagem”, isto é, “o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las” (p. 28), mas também uma situação filosófica, nos termos de Alain Badiou (2015), “um encontro, uma junção. Um encontro de termos estranhos uns aos outros” (p. 31). O cinema é este acontecimento da conexão entre heterogeneidades, pois as imagens na sua força de espetáculo, de indagação, de reflexão crítica, de deslocamento do senso comum, podem nos impulsionar na descoberta de novos territórios. Estar diante das imagens-movimento de um filme, como Boi Neon, nos desconcerta ao ponto de refletirmos sobre nós mesmos/as e de entendermos que os caminhos que temos trilhado podem ser outros.
A possibilidade é aberta justamente por meio do encontro cotidiano – imaginário, pois a potência da imagem nos libera, ainda que provisoriamente, das correntes que nos prendem aos cristais subjetivos que insistem em se naturalizar. É o que Suely Rolnik (1989) nomeia de “cristalização existencial”, esta “configuração mais ou menos estável, repertório de gestos, procedimentos, figuras que se repetem, como num ritual” (p. 27). Pensar o cinema como um currículo, ou seja, como uma prática de significação, nos abre para uma analítica diferenciada da imagem, para uma maquinaria não-escolar que atribui “significados a lugares, coisas, fenômenos, práticas e sujeitos” (Maknamara, 2020, p. 60). Como uma arte visual, o cinema é um duplo real, “uma arte das massas, porque aciona poderosos mecanismos de identificação” (Badiou, 2015, p. 39). Por meio dele, desta composição imagética carregada de desejos e sonhos, somos transportados/as, sacudidos/as, inquietados/as, mobilizados/as a uma desterritorialização, inclusive identitária, nos abrindo para a diferença e para a possibilidade de um certo entre, um devir assignificante.
Um Devir-Mulher no Homem: Masculinidades Fora da Curva em Boi Neon
Boi Neon (2015), como já mencionado, se destaca entre as produções do cinema pernambucano que ganham força no final da década de 1990, apoiadas, principalmente, pelas políticas públicas de incentivo à cultura no Estado, bem como pela calorosa recepção do público nos cinemas alternativos da cidade de Recife, capital de Pernambuco. Nas palavras de Aline Lisboa (2018), vemos como esta nova fase do cinema pernambucano “se mostra como algo visceral e autêntico, explorando gêneros e linguagens diferenciadas, transgredindo narrativas em cenários particulares do cinema brasileiro, Pernambuco urbano e rural” (pp. 106–107). Narrando a história de um grupo de homens vaqueiros que cortam o estado levando bois para os espetáculos de vaquejada, o diretor Gabriel Mascaro lança um olhar sensível a um homem, em específico. Inspirado na história real de um vaqueiro que se divide entre o ofício com os animais e a confecção de roupas no polo industrial do interior do estado, surge o personagem de Iremar. Comentando o roteiro de Boi Neon, Mascaro (2017) relembra que “assim foi o ponto de partida para criar um personagem ficcional que acumula esta dupla jornada que mistura no ofício a força e a delicadeza, a bravura e a sensibilidade, a violência e o afeto” (p. 4).
A vida de um vaqueiro nordestino em seu devir-estilista já nos mobiliza a pensarmos os deslocamentos de gênero propostos pela narrativa fílmica. A todo momento somos confrontados/as com uma representação fugidia das masculinidades nordestinas por meio da vida de Iremar, bem como de feminilidades das personagens, ainda que não seja o foco deste texto. Interessante notar que a emergência de outros modos de vida no nordeste brasileiro se harmoniza com a decadência da produção açucareira, fonte econômica e cultural para a sociedade pernambucana. No filme, temos o fortalecimento de uma indústria da confecção de roupas que chega desconstruindo os antigos padrões sociais estabelecidos junto ao patriarcado do açúcar, os senhores de engenho e suas submissas mulheres. De uma vida calcada nos territórios existenciais de gênero bem delimitados, temos o rompimento de uma crise social e cultural, evidenciando metamorfoses. Tal cenário é analisado por Albuquerque (2005) ao fazer referência ao romance Fogo Morto (1943) do escritor paraibano José Lins do Rêgo. No livro, encontramos a decadência da economia açucareira na vida de três personagens homens, em especial, o que provoca Albuquerque (2005) a assinalar que uma crise dos padrões tradicionais de masculinidade nordestina começou a ser mobilizada desde então. Para o autor:
é o discurso sobre a crise de uma forma hegemônica de ser pai, de ser marido, de ser homem, de ser macho que estava ficando impossibilitada pelo desenvolvimento e progressiva hegemonia de padrões urbanos de sociabilidade e pelas mutações nas relações de gênero trazidas pela sociedade moderna. (Albuquerque, 2005, pp. 155–156)
Neste contexto, Boi Neon atiça-nos quanto às metamorfoses da máquina social produzidas nos acoplamentos que se dão em novos cenários culturais, incitando outros posicionamentos de sujeito que não mais coadunam com antigas práticas resistentes ao estado de abertura sensível da contemporaneidade. Na cena 1, Figura 1, que trago abaixo, vemos o primeiro deslocamento promovido pela existência de Iremar. Após a vaquejada, o personagem dedica-se ao ofício de cuidar dos animais, guardando-os no curral com um semblante cansado, desanimado. Em seguida, dirige-se a um amplo espaço, um lixão da moda onde retalhos de tecidos coloridos são jogados. Recolhendo-os, como que enxergando riqueza e sonho onde muitos/as apenas veem destroços, Iremar também apanha pedaços de manequins utilizados pela indústria de confecção local (Figura 2). Para ele, afirmar a vida por meio de escombros coloridos passa a ser uma linha de fuga.
Nesta primeira cena, o território existencial ligado à masculinidade hegemônica do homem nordestino, que organiza as formas, os olhares, as disposições, os desejos, é balançado por uma linha de afeto diferenciada. O diagrama de forças que começo a desenhar por meio desta cena nos mostra um certo “operador de intensidade” (Rolnik, 1989), uma vontade de remoção das máscaras sociais que, insistentemente, são colocadas na mais tenra idade à nossa disposição com teor de destino irrevogável. Iremar, mesmo ainda vivenciando um território familiar culturalmente dedicado a ele, decide por traçar rotas de fuga, caminhos abertos que lhe devolvem movimento de vida5. Percebo uma desterritorialização no sentido vaquejada — lixão da moda, um desejo que “consiste também num movimento contínuo de desencantamento, no qual, ao surgirem novos afetos, efeitos de novos encontros, certas máscaras tornam-se obsoletas” (Rolnik, 1989, p. 33).
Um homem afastado de qualquer representação do feminino. Esta seria uma definição curta de uma masculinidade nordestina hegemônica. Alguém que não chora, que é violento, que está sempre pronto para prover a sua família, não dado aos detalhes da vida privada, às sensibilidades do mundo e que vivencia a sua (hetero)sexualidade na potência de um macho viril. Iremar, diante de um contexto masculino avassalador e carregado de estereótipos, consegue nos detalhes explorar todo um devir-mulher, ou seja, se deslocar no entre lugar das identidades de gênero, o que se mostra ainda mais potente quando pensamos que este devir explode em um corpo inteligível como de um macho: forte, viril, peludo, não afeminado.
Na cena 2 (Figura 3), Iremar, em seu devir-estilista, tira as medidas de Galega, a motorista do caminhão que transporta os bois para os vaqueiros — mais uma dilatação de gênero promovida pelo diretor Gabriel Mascaro. Vemos aí um homem que, mesmo no contato íntimo com o corpo de uma mulher, não a objetifica. Ao analisar as músicas de forró eletrônico6 nordestino, Maknamara (2011) nos mostra como regulações de gênero, que ora afirmam continuidades, ora descontinuidades, são pedagogias que nos ensinam modos de sermos homens e mulheres no Nordeste. No caso das canções analisadas pelo pesquisador, ainda podemos perceber no forró eletrônico traços de uma masculinidade ligada ao desempenho sexual e às aventuras sexuais ligadas à honra de um homem. Quanto a Iremar, o que vemos é um sujeito que vai diluindo aos poucos os estereótipos atribuídos ao homem nordestino, dando passagem aos novos modelos de subjetividade provocados pelas demandas sociais contemporâneas. O filme a todo momento nos sinaliza para as rupturas de gênero tanto entre os homens como também entre as mulheres, evidenciando a situação filosófica provocada pelo cinema, como bem argumenta Badiou (2015).
Em um outro momento do filme, cena 3, conforme Figura 4, aproveitando que Zé, seu amigo, dormia na rede, Iremar pega uma revista pornográfica e começa a rabiscar o desenho de uma roupa em cima do corpo desnudo da mulher após se irritar com o colega, pois as páginas da revista estavam coladas umas nas outras, provavelmente por conta do esperma pós-masturbação. Destituído ali de um comportamento que desejaria a nudez da modelo, ele cobre, veste aquele corpo, assumindo em seu devir-estilista uma outra faceta da sua masculinidade. Este posicionamento, ainda que visto como uma prática sem importância para muitos/as, nos mostra que a socialização masculina que produz os homens em toda a sua liberdade sexual, os ensinando a objetificarem o corpo da mulher, não é livre de resistências e pode se dar nas práticas cotidianas, nos relances da vida privada. Segundo Zoboli et al. (2018):
no imaginário popular, as revistas eróticas ou pornográficas possuem vínculos com a prática da masturbação, especialmente comum no universo social da masculinidade. A prática do onanismo é historicamente marcada por um sem fim de tabus, inclusive alguns tratados médicos foram escritos com a intenção de regular os comportamentos ligados à contingência dessa prática sexual desviada de suas funções ligadas à constituição familiar por procriação. (pp. 445–446)
Como bem argumenta Foucault (1976/1998), a sexualidade é um dispositivo regulador das condutas, dos modos de vida, das inclinações de desejo. Porém, inscrita em um marco histórico, pode ser desconstruída, revista, desmobilizada rumo a outros territórios, como o exemplo acima tentou localizar. Inclusive, a própria heterossexualidade pode ser reconsiderada, assumindo outras maneiras de se desejar e de se vivenciar os prazeres. Tais reflexões nos apontam que por mais que as pedagogias de masculinidades ou que o currículo cultural da cultura imagética se invista de uma vontade de governo das condutas, neste caso, uma vontade de posicionar homens em uma situação confortável e naturalizada ao modelo heterossexual e todos os estereótipos daí advindos (virilidade, potência, gana e liberdade sexual), sempre há a possibilidade de uma disputa de forças neste diagrama subjetivador. No caso aqui discutido, o cinema opera como um acontecimento perturbador, pois, “diante de um filme, vivemos um contato particular com o ‘outro’” (Fischer & Marcello, 2016, p. 17), inspirando-nos em uma nova ética desatada em meio às imagens.
Em todo momento no filme vemos o contraste entre a masculinidade esperada de um vaqueiro nordestino e aquela vivenciada por Iremar. Seu ofício não é bem visto por seus colegas que zombam dele nas oportunidades que surgem. Na cena 4, apresentada na Figura 5, enquanto remenda uma roupa, é interpelado por um outro vaqueiro que diz que ele costura como uma mulher, depois de ter reclamado, em cenas anteriores, que Iremar tinha utilizado a revista pornográfica que tinha lhe custado dinheiro para desenhar em cima dos corpos das mulheres nuas. Vemos a operação do que Guacira Lopes Louro (2001) chama de “pedagogias de gênero e de sexualidade”, pois tanto as identidades de gênero como as sexuais são “compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade” (p. 11). Aprendemos a sermos homens e mulheres, inclusive as profissões entendidas como adequadas para um gênero ou outro, por meio de rituais de socialização que não se localizam apenas na escola, família ou igreja, mas também nos filmes, nas novelas, nas peças publicitárias, na moda da estação, entre tantos outros artefatos da cultura visual. No contexto machista do Nordeste brasileiro de Boi Neon, portanto, ser estilista estava fora do hall de possibilidades inteligíveis para um homem. Um vaqueiro em seu devir-estilista seria um ponto fora da curva digno de problematização e suspeita.
Mas também gostaria de ressaltar, antes de avançarmos, que vivenciamos as nossas subjetividades de formas contingentes, não rígidas, sendo focos também de negociação, de disputa. Na mesma cena citada acima, ao ser questionado pelo seu colega por estar costurando, Iremar responde esbravejando homofobia ao dizer: “mas, quem bebe e tira a roupa não sou eu não, seu frango7!”. Aí vemos que por um momento Iremar se posiciona nos traços ligados às masculinidades hegemônicas, procurando estabelecer a maior distância possível da homossexualidade: o perigo, o assombro para a manutenção da heterossexualidade. Para manter a matriz heterossexual intacta, ou melhor, a coerência entre identidade de gênero e sexualidade (Butler, 1990/2018), Iremar lança mão do poder da linguagem, visto que nas suas práticas sociais cotidianas poderíamos conferir a ele aproximações com o universo cultural feminino ou homossexual, com os códigos e os significados naturalizados para estes corpos. Assim, destaco junto com Jeffrey Weeks (1996/2001), que “os códigos e identidades sexuais que tomamos como dados, inevitáveis e ‘naturais’, têm sido frequentemente forjados nesse complexo processo de definição e auto-definição, tomando a moderna sexualidade central para o modo como o poder atua na sociedade moderna” (p. 42).
Percebo que estas alternâncias, o contraste entre a masculinidade de um homem nordestino e aquela apresentada/vivenciada por Iremar, são mostradas no filme, como tenho mostrado, seja de uma forma mais aberta ou explícita, como no caso da vontade de ser estilista ou da preferência pelos retalhos coloridos e manequins à agressividade do boi nas vaquejadas, como também de forma mais sutil (Figura 6), ainda que muito potente para discussão, onde vemos a toalha rosa utilizada por Iremar para seu autocuidado ao acordar. No Brasil, o enunciado “meninos usam azul e meninas usam rosa” ganhou enormes proporções quando foi declarado festivamente por Damares Alves, pastora evangélica e ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo ultraconservador do presidente brasileiro Jair Bolsonaro (G1, 2019). Na ocasião, a ministra declarou que o Brasil estava entrando em uma nova era, o que sinaliza para os enfrentamentos reacionários às políticas de combate às desigualdades de gênero e à promoção do respeito às diferenças sexuais.
O enunciado “meninos usam azul e meninas usam rosa” é uma função de existência, conforme Foucault (1969/1997), ganhando espaço mediante conexões nos jogos históricos e sociais. Para o autor, “não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição de funções e de papéis” (Foucault, 1969/1997, p. 114). Falo isso, pois compreendo que esses enunciados não estão isolados e se ganham força produtiva é porque se agrupam junto a outros, nas mais diferentes práticas discursivas e não discursivas. Um exemplo disso é a pesquisa realizada por Natália Belarmino (2015) ao analisar capas de cadernos escolares de meninas e meninos de Recife, capital de Pernambuco. Segundo a pesquisadora, há marcas do discurso de gênero e de sexualidade nestes artefatos culturais/visuais e “é por meio, também, dos enunciados que estão nessas capas, produtos, embalagens que as crianças são convidadas a dar sentidos e significados a suas construções identitárias” (Belarmino, 2015, p. 117). Ainda segundo Belarmino (2015), “com um rápido olhar sobre os cadernos escolares, vemos duas cores se sobressaírem: cor rosa nos materiais das meninas e cor azul nos materiais dos meninos” (p. 118). Trago isso para apontar que Iremar vivencia uma linha de fuga às masculinidades hegemônicas nordestinas, cavando caminhos para a afirmação das diferenças e dos afetos alegres em busca de modos novos de agir, conforme Spinoza (2019).
Por fim, Mascaro utiliza-se de uma atmosfera surrealista no filme para compor um cenário de experimentações de gênero e de sexualidade nos modos de vida dos personagens. Um dos seres que surge é o próprio boi que se em algumas cenas mostra-se cumprindo o papel esperado nas arenas da vaquejada de forma viril, corajosa, robusta, em outras aparece com cores neon, brilhando, destacando-se como uma miragem, um fantasma inesperado, uma figura mágica no meio da noite escura, reluzindo vida, força, diferença. Segundo o diretor do filme:
apesar de o código de registro se aproximar do olhar documental, se trata de um filme completamente ficcional, onde o próprio surrealismo estético presente no filme é parte da cultura do excesso, e às vezes normalizados como se fossem registrados em olhar "observacional". Por vezes o espectador se pergunta se o Boi Neon existe de verdade, se os tratadores penteiam os cabelos dos cavalos... O surrealismo estético se fundiu com os excessos da cultura do espetáculo. Não saber onde termina um mundo e começa outro é o jogo de suspensão que o filme provoca. (Mascaro, 2017, p. 4)
Essa suspensão, ou labirinto do imaginário, emerge como uma força carnavalesca, uma liberação inesperada de sentidos múltiplos que podem ser construídos apenas em conexão, quando modos de vida distintos se aproximam e cantam algo novo. O boi neon simboliza o próprio Iremar que, em meio aos retalhos coloridos e aos destroços do lixão da moda, emerge com sua potência transformadora de mundos cotidianos, ainda que resguardados na localização de uma existência lida como insignificante. Iremar é o boi neon do agreste pernambucano, aquele que por meio do corpo bruto, da couraça aparentemente inquebrável, revela a sensibilidade e a ternura de um modo de vida masculino em seu devir-mulher. Para Félix Guattari (1981/1985), um homem que “se desliga das disputas fálicas, inerentes a todas as formações de poder, se engajará, segundo diversas modalidades possíveis, num tal devir mulher. É somente sob esta condição que ele poderá, além do mais, devir animal, cosmos, carta, cor, música” (p. 35).
Considerações Finais
O filme Boi Neon (2015), dirigido por Gabriel Mascaro e fruto da nova safra do cinema pernambucano, nos mostra a força dos artefatos da cultura visual como currículos, como práticas de significação que ensinam modos de vida. Rompendo as paredes institucionais das escolas, aprendemos não apenas encerrados/as nas fileiras da sala de aula, mas diante das imagens, da moda, das narrativas fílmicas, dos roteiros de uma novela, dos versos de um poema, dos conflitos de um romance. Aprendemos a sermos homens e mulheres e, inclusive, a não nos reconhecermos nestas caixas identitárias, por meio de muitos artefatos culturais, pedagogias visuais operadoras de subjetividades, de modos de ser e estar no mundo.
Iremar, personagem principal de Boi Neon (2015) nos ensina que vivemos em um território de disputas de significados que constroem nossas feminilidades e as nossas masculinidades, operando a dilatação de gênero pensada por Mascaro para a película. Se o esperado (e desejado) para um homem nordestino é o abrigo seguro de sua virilidade, de sua força, de sua violência, Iremar nos apresenta uma outra possibilidade de existência, revelada no movimento de seu devir-mulher. Em meio às vaquejadas do agreste pernambucano, ele prefere o lixão da moda, os retalhos coloridos, sonhando em se tornar estilista apesar das condições que, a todo momento, o convidam para o esperado e o recomendado para um homem nordestino. Assim, como símbolo das mudanças sociais e culturais deste século, Boi Neon nos convida a pensarmos os deslocamentos das masculinidades contemporâneas que são celebradas pelos encontros inesperados, pelas forças rizomáticas que se encontram, pelas vivências desterritorializadas promovidas pelos trânsitos de corpos.