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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.10 Braga dez. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4071 

Secção Temática. Nota Introdutória

Estética em Angústia: A Violência de Género e a Cultura Visual. Nota Introdutória

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal/Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal


A Violência de Género

A violência de género, questão social que envolve atos de abuso físico, sexual e/ou psicológico exercido sobre um sujeito com base no género (Boyle, 2019a, pp. 23–25), continua a ser um dos problemas mais antigos e desafiantes do nosso tempo. Da violência doméstica ao assédio nas ruas, da exploração laboral e precariedade ao abuso no local de trabalho, da privação do direito de voto à criminalização, a violência de género é um "continuum" (Kelly, 1987). Refere-se não só à violência física, mas também à violência política, legal e económica contra mulheres, jovens mulheres e aqueles cujo género não obedece às categorias binárias das normas heteropatriarcais, que podem estender-se a homens e rapazes. Tal violência, derivada principalmente da masculinidade hegemónica e heteropatriarquia (Connell, 1995; Connell & Masserschmidt, 2005), muitas vezes persegue e aflige corpos que são ainda mais marginalizados por outros atributos de identidade tais como sexualidade, raça, etnia, religião, idade, deficiências, entre outros (Creek & Dunn, 2011; Crenshaw, 1990).

Esta questão multifacetada precisa, portanto, de ser compreendida para além das dualidades simplistas de mulher/homem e pessoa ofensora/vítima e deve ser tomada em consideração de um ponto de vista interseccional, examinando estruturas de poder sociopolíticas, desigualdades sistémicas e normas em que a violência de género é perpetuada. Além disso, dadas as dimensões proeminentes (hiper)visuais, virtuais e discursivas da nossa cultura contemporânea (Agger, 2004; Hall, 1997; Rose, 2014), é hoje imperativo estudarmos o fenómeno da violência de género tendo em plena consideração as suas representações e imaginários relacionados.

A Violência de Género Entre a Visibilidade e a Ocultação

As últimas 2 décadas testemunharam uma crescente visibilidade e consciencialização pública da violência de género, graças ao ativismo feminista, queer e trans*, aos esforços antiviolência por parte da sociedade civil, às mobilizações nos média sociais, às promulgações da justiça transformadora e à importante mudança incitada pelo movimento #MeToo (Boyle, 2019b; Clark-Parsons, 2019; Romito, 2005/2008).

O recente reconhecimento da violência de género na esfera da comunicação, dos média e do discurso político mainstream, conquistado pelas feministas contemporâneas, é resultado de um trabalho transgeracional e árduo que os movimentos feministas e teóricos têm vindo a realizar desde o final dos anos 60 do século passo. Este trabalho centrou-se primeiro e principalmente na necessidade de concetualizar e, posteriormente, de dar um nome aos atos patriarcais de violência contra as mulheres e sujeitos não conformes com um determinado género, o que é demonstrado pelos marcos que assinalam o caminho feminista para o desenvolvimento de um entendimento comum e de um vocabulário partilhado sobre o tópico do abuso sexista. Entre estes, a publicação de Against Our Will (Contra a Nossa Vontade) de Susan Brownmiller (1975); a elaboração por Liz Kelly (1987) da ideia de que a violência de género é um "continuum" de fenómenos interrelacionados (por exemplo, discriminação patriarcal mais branda, assédio sexual, violência doméstica, etc.); a adaptação feminista do termo "feminicídio" introduzido por Diana E. H. Russell e Jill Radford (1992) com o seu livro editado Femicide: The Politics of Woman Killing (Feminicídio: A Política de Matar Mulheres). Estas são opiniões notórias de feministas segundo as quais o ato de nomear é a primeira prática essencial para garantir o reconhecimento das experiências das mulheres como sendo reais, comuns e diferentes das transmitidas pela linguagem androcêntrica (Spinelli, 2008, pp. 54–61). Além disso, as igualmente notórias controvérsias feministas e as constantes ruminações sobre o uso de expressões como "violência de género" e "violência contra as mulheres" (Boyle, 2019a; Frazer & Hutchings, 2020) mostram claramente o papel central desempenhado pela dimensão linguística e textual na revelação deste tipo de violência.

Entretanto, outras áreas também contribuíram para o processo de reconhecimento, de representação e de denúncia de abusos com base no género. Estas incluem as artes e os média visuais, que melhoraram significativamente a construção de um imaginário feminista da violência de género, apoiaram a prática da denúncia social e facilitaram a visibilidade real (e não apenas metafórica) do fenómeno, ao ponto de se poder agora falar de uma iconografia feminista da violência difundida por artistas, pessoas que criam conteúdo mediático e ativistas. As conceções visuais de tal violência tornaram-se especialmente proeminentes a partir dos anos 1970 através das artes plásticas, acontecimentos e performances, com o acordar de uma crescente politização do discurso artístico e da intensificação do feminismo de segunda onda (Princenthal, 2019). As obras de arte feministas incluem as Three Weeks in May (Três Semanas de Maio; 1977) de Suzanne Lacy, uma série de performances, demonstrações e obras de arte apresentadas para direcionar a atenção do público para as vítimas de violação e de assassinato da chamada "epidemia de violação" em Los Angeles; Rape Scene (Cena de Violação; 1973) de Ana Mendieta, um trabalho de performance e fotografia onde reencenou a violação brutal de uma colega1; peças inovadoras de performance de longa duração como Rhythm 0 (Ritmo 0; 1974) de Marina Abramović e o seu precursor Cut Piece (Peça de Corte; 1964) de Yoko Ono, onde a artista convida o público a intervir fisicamente no seu corpo com determinados adereços (uma tesoura no caso de Ono e 72 objetos diferentes no caso de Abramović) como forma de testar os limites dos atos humanos e de demonstrar como se pode agir violentamente e impiedosamente sobre um corpo feminino. Estas ações desempenharam um papel crucial na representação de um grande espetro visual e material de violência. Exemplos posteriores, como The Battle of Atlanta: Being the Narrative of a Negress in the Flame of Desire (A Batalha de Atlanta: Ser a Narrativa de uma Negra na Chama do Desejo; 1995) de Kara Walker, entre outros, também fizeram ressaltar as experiências de violência sexual sobre corpos negros e escravizados, apontando a interseccionalidade e a representação tendenciosa da violência contra mulheres de cor dentro da arte feminista. Outras práticas artísticas visuais como a fotografia também contribuíram para a visibilização da violência de género, como demonstrado pelos famosos auto-retratos fotográficos de Nan Golding de uma sobrevivente de violência doméstica, que circularam como parte do livro fotográfico The Ballad of Sexual Dependency (A Balada da Dependência Sexual; 1986). Além disso, o potencial incorporado na arte visual feminista é confirmado pelo uso recorrente e crescente que ativistas fazem dela. A profusão de obras artivistas sobre violência de género, que agora faz parte do nosso imaginário visual deste fenómeno, é vasta. Entre outros exemplos, podemos mencionar os murais que retratam vítimas de femicídio e cruzes cor-de-rosa encomendados por movimentos feministas ativos na Ciudad Juarez, a célebre cidade do México famosa pelo seu nível extremo de violência de género, femicídio e desaparecimentos de mulheres e meninas; o símbolo do sapato vermelho introduzido em 2009 pela artista mexicana Elina Chauvet com uma performance destinada a comemorar vítimas de violência de género letal, recriada em centenas de ocasiões em todo o mundo; a reprodução icónica (amplamente utilizada por ativistas na web e demonstrações físicas) de figuras femininas com as roupas usadas pela protagonista da adaptação da série televisiva de Bruce Miller (2017) de The Handmaid's Tale (A História de uma Serva; 1985) de Margaret Atwood, que veio a simbolizar a opressão das mulheres, o totalitarismo e a resistência à violência de género.

Apesar do inegável processo de exposição e de visibilização, a violência de género permanece invisível em algumas circunstâncias e contextos culturais. A crescente transformação da paisagem e extensão desta violência, acompanhada pela amplitude das comunicações digitais, pela crescente precariedade financeira, por turbulências políticas mundiais, crises ambientais, contínuas práticas coloniais de apropriação de terras, conflitos armados e as suas deslocações implacáveis, bem como a recente pandemia COVID-19, expuseram grupos vulneráveis a novas e emergentes formas de ocultação da violência de género em espaços que vão além das casas, ruas e locais de trabalho, chegando ao ciberespaço, centros de detenção, complexos industriais, prisões, fronteiras, entre outros.

Por exemplo, estudos recentes mostram como as tecnologias digitais em desenvolvimento catalisaram e agravaram a violência sexual e de género contra mulheres, indivíduos LGBTQI+ e raparigas através de ciberstalking, monitorização, imitação, assédio verbal e disseminação não consensual de materiais visuais íntimos, a maioria dos quais reduzem as vítimas sobreviventes ao silêncio, criando o medo da segurança física e psicológica (Dunn, 2020). Os confinamentos resultantes da propagação da COVID-19, que provocaram tensões económicas, coabitação baseada no confinamento, isolamento forçado e dependência virtual, agravaram não só tais ataques online, como também exacerbaram, dentro de portas, a violência doméstica e o abuso de crianças a nível físico, mental e económico, tanto em famílias heterossexuais como LGBTQI+ (Almenar, 2021; Drotning et al., 2022). Entretanto, os contínuos crimes de ódio anti-trans* em todo o mundo fizeram de 2021 o ano mais mortífero para as pessoas trans* e para as pessoas de género diverso, de acordo com o projecto Trans Murder Monitoring (TMM Update TDoR 2021, 2021). Muitos destes crimes interrelacionam-se com o racismo, a xenofobia, a misoginia e o ódio para com pessoas que vivem do trabalho sexual, enquanto outros permanecem não declarados ou não documentados. Esta violência que ameaça a vida de indivíduos LGBTQI+ tem sido extremamente intensificada, mas tem vindo a tornar-se ainda mais imperceptível em locais "longe da vista", tais como instalações correccionais, centros de detenção e campos fronteiriços, onde os detidos sem direitos de cidadania têm sido ainda mais expostos a abusos sexuais e de género, tais como strip-search (ato de revistar que implica a tirar peças de roupa), violação e assédio, bem como a outras técnicas de punição, que vão desde o policiamento extra e a privação de necessidades materiais até ao confinamento solitário (Canlı, 2020; Luibhéid & Chávez, 2020). Numa outra frente, a aceleração da injustiça climática e o extrativismo contínuo como extensão da exploração antropocêntrica colonial têm efeitos prejudiciais sobre as mulheres e raparigas indígenas, cuja sobrevivência depende de fontes naturais, especialmente em regiões onde ainda permanecem fora do radar os conflitos ambientais, os cuidados comunitários em função do género e a pobreza (Desai & Mandal, 2021; Santisteban, 2020; Vergès, 2021). Por último, mas não menos importante, embora o assédio sexual e a discriminação de género nos locais de trabalho tenham atingido adeptos na sequência das revelações #MeToo, as relações de poder androcêntricas e o chauvinismo masculino ainda dominam as instituições públicas e académicas e há mesmo casos de violência denunciados a continuarem a ser varridos para debaixo do tapete (Ahmed, 2021).

Para além das suas diferenças contextuais, a característica comum de tais formas multifacetadas de violência de género é a sua natureza disfarçada e intrincada e o seu profundo enraizamento na tríade opressiva da heteropatriarquia, do capitalismo e do colonialismo. É por isso que maioritariamente caem por entre as fendas da atenção, continuam a ser difíceis de vislumbrar ou são cobertos apenas por um número limitado de organizações ativistas e de meios de comunicação. Por isso, a visibilização é mais importante e urgente do que nunca, como forma de, por todos os meios possíveis, detetar, abordar e contrariar a matriz do domínio sistémico e estrutural, desde as expressões linguísticas até às visuais, estas últimas moldando o desígnio da secção temática desta edição da Vista.

A Violência de Género, a Representatividade e o Visual

A modalidade visual foi sempre crucial para a perpetuação, mas também para a resistência à ordem simbólica patriarcal, de onde é originária a violência sexista. As artes visuais e os média, filmes, pintura, artes plásticas, banda desenhada, publicidade e design, foram notoriamente reconhecidos como espaços de reprodução da violência de género através da representação tendenciosa de categorias de género binárias, do infame olhar masculino (Mulvey, 1989; Oliver, 2017), da objectificação de corpos femininos/não conformes com o género e da fetichização/espectacularização da violência (e.g., Lopez, 2018; Ussher et al., 2022). Simultaneamente, o visual atingiu, no último meio século, o estatuto de campo de batalha privilegiado para intervenções culturais levadas a cabo por artistas feministas, LGBTQI+, interseccionais e decoloniais, bem como por ativistas dos média com interesse em confrontar e possivelmente subverter o referido regime sexista de representação (e.g., Rovetto & Camusso, 2020; Slivinska, 2021).

Apesar de, na cultura contemporânea, ser inegável a proeminência do modelo de representação baseado no uso de referências descritivas e/ou simbólicas do fenómeno da violência de género, este modo não é o único possível no campo do visual. Certamente, não é o menos controverso. Há décadas que os estudiosos debatem sobre os riscos incorporados na prática da representação, que tem sido frequentemente lida como inerentemente violenta, dada a sua inevitável propensão para manipular, distorcer e excluir (Burfoot & Lord, 2006, p. xv; de Lauretis, 1987). Os críticos que trabalham na intersecção dos traumas e dos estudos de género na cultura visual têm mostrado opiniões diferentes sobre este assunto. Para alguns, o envolvimento em práticas de representação é essencial no contexto da arte feminista, ativismo e artivismo, porque permite denunciar a omnipresença do abuso patriarcal e derrubar os seus mecanismos discursivos (e.g., Chute, 2010; Mandolini & Williamson Sinalo, no prelo). Para outros, como a historiadora de arte Griselda Pollock (2013), é necessário identificar os perigos do modelo de representação, que podem contribuir para a (re)vitimização da pessoa que sobreviveu e para a consolidação de padrões ou simbolismos patriarcais. Baseando-se na ideia do trauma como uma ruptura da ordem simbólica (Hartman, 1995, p. 543), Pollock (2013) elogia as obras de arte visual que salientam a dimensão afetiva, aquela que permite, na sua opinião, reconfigurações estéticas afirmativas que fomentam a compaixão e a mudança para além do simples reconhecimento (pp. 153–156).

Longe de terem chegado ao fim, estas discussões precisam de ser mais investigadas à luz das recentes tendências, acontecimentos e controvérsias, tais como a pandemia da COVID-19, a intensificação da transição digital e a literacia visual da geração Z, tudo no campo da comunicação e da produção artística. Por exemplo, qual é o significado afetivo e político dos atuais memoriais digitalizados e inteiramente visuais dedicados às vítimas da violência de género2? Quais são as implicações da colocação de uma imagem negra ou de uma bandeira com as cores do arco-íris nos média sociais na sequência de um ato de violência racista ou homofóbica? Como reage a nossa consciência coletiva à disseminação inadvertida — e mesmo à superexposição — a conteúdos de violência sexual que surgem nos nossos ecrãs de forma galopante e circulam livremente nas profundezas da dark web? Em tempos em que a experiência ocular é cada vez mais materializada e tridimensional através de realidades aumentadas e virtuais, é possível criar e ser o espectador/a de novas narrativas visuais de violência e de sobrevivência a partir das lentes do olhar feminino, queer e oposicionista3 (hooks, 1992)?

Este Número da Vista

Para a secção temática desta edição, pretendemos selecionar contribuições de pessoas feministas, ativistas, académicas, artistas, investigadoras independentes, e outras que trabalham sobre a violência de género, as pessoas culpadas e as suas vítimas/sobreviventes, em todos os tópicos que fundem a violência de género e a cultura visual. Estes incluirão estudos de caso e estudos mais amplos de produtos artísticos e mediáticos destinados a conter ou desafiar a violência de género nos domínios do simbólico, do discursivo, do afetivo e do material. Ao reunir contribuições que tocam diferentes campos de investigação e ao investigar produtos culturais ou mediáticos distribuídos em vários contextos culturais, sublinhmos o interesse em promover uma reflexão transdisciplinar e transcultural sobre a violência de género e os desafios da nossa cultura visual contemporânea.

Entre os estudos de outras áreas visualmente orientadas (por exemplo, artes, design, arquitetura, cinema, performance, média, etc.), acolhemos com particular agrado as contribuições que se dedicam à investigação baseada na arte (ABR). “ABR” ou “investigação artística” são expressões guarda-chuva que descrevem a utilização pelos investigadores de práticas artísticas como ferramentas metodológicas em várias fases do seu trabalho: produção/recolha de dados, análise e interpretação, representação e divulgação dos resultados. Apesar de não ser uma tendência particularmente recente, a ABR é ainda um campo em expansão que pode contribuir para a compreensão de fenómenos sociais complexos que requerem uma abordagem holística (Leavy, 2015, pp. 20–21) e uma política de divulgação cativante (Leavy, 2015, p. 32), bem como um tratamento cuidadoso de participantes vulneráveis (Ward & Shortt, 2020, p. 2) e um interesse específico por práticas anti-opressivas (Capous-Desyllas & Morgaine 2018, pp. xiv-xvi). A violência de género está entre as áreas de investigação que mais beneficiam das abordagens de investigação baseadas nas artes. Isto porque a investigação sobre abuso sexista é inerentemente interdisciplinar (Mandolini & Williamson Sinalo, no prelo) e exige uma abordagem metodológica que ultrapasse as fronteiras das divisões disciplinares tradicionais. Além disso, os teóricos têm argumentado que a violência de género está profundamente enraizada na (re)produção da divisão cultural e hierarquização entre géneros (Bourdieu, 1998/2002; Goldner et al., 1990), o que torna relevante a inclusão de metodologias artísticas que refletem necessariamente sobre a dimensão simbólica/afetiva deste fenómeno crucial na conceção de projetos de investigação empírica destinados a estudar a violência sexista. Com estes meios, métodos e abordagens em mente, nesta secção temática, propomos expor, analisar, abordar e visibilizar as manifestações contemporâneas da violência sexual e de género através da arte e da comunicação visual em geral.

Os possíveis objetivos e implicações de tal empreendimento são múltiplos. O primeiro é continuar a desafiar representações problemáticas e enviesadas de mulheres, queer, trans* e corpos não binários, que servem como uma extensão e perpetuação da violência simbólica. Isto inclui um olhar crítico sobre as representações visuais da violência de género nos média, cinema, artes e cultura material, mesmo aquelas que sendo (re)produzidas com as melhores intenções ainda não conseguiram fornecer uma crítica construtiva. A segunda é contribuir para os debates em curso em torno da mudança das formas e condições da violência sexual e de género, perguntando de que forma a sua crescente visibilidade abriria potencialmente o caminho para uma maior consciencialização e uma eventual diminuição das taxas de violência a nível social. O terceiro motivo é fornecer mais uma "zona" académica, artística e ativista "temporária" para ouvir, partilhar, cuidar e apoiar, um local coletivo e intelectual através do qual as experiências existentes podem ser trocadas, enquanto novas ideias podem ser fomentadas e aproveitadas para mais entendimentos e mobilizações. Mais genericamente, o objetivo é mudar o foco de "o que tem sido" para "o que mais poderia ser", especialmente quando se trata dos múltiplos aspetos e agentes que a prática da violência pode abranger. Embora a maioria dos estudos (mesmo a maioria das coberturas mediáticas) sobre violência de género, por exemplo, se concentrem na pessoa que sobreviveu/vítima, a questão do que acontece/deve acontecer à pessoa que agrediu continua, na sua maioria, sem resposta ou contestada, embora o moderno sistema de justiça punitiva tenha provado durante muito tempo que as instalações "corretivas" não são capazes de corrigir ou reabilitar as pessoas que agrediram, mas frequentemente testemunham a reincidência (Heiner & Tyson, 2017). Portanto, partilhando dos olhares abolicionistas feministas e ativistas da justiça transformadora, o objetivo desta edição é também abrir um espaço para discutir e perspetivar novos modelos visuais e de expressões artísticas que possam servir não só como crítica e como meio de tornar a violência visível, mas também como estratégia de (re)imaginação, reaprendizagem e reparação destinada a reformular a forma como lidamos com a violência — possivelmente até permitindo projetar um sistema de justiça diferente (Davis et al., 2022; Levine & Meiners, 2020; Vergès 2021). Esperamos que estas discussões acabem por contribuir para os maiores esforços das feministas (brancas, negras, latinas, decoloniais, trans*, queer, e indígenas...), cuja luta e dedicação têm sido mais destemidas, fortes e ferozes do que a própria violência4.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

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Notas

1Ana Mendieta é uma das figuras mais mencionadas na história da arte feminista e da violência de género, uma vez que a sua morte súbita ainda suscita controvérsias. Em 1985, Ana Mendieta foi encontrada morta fora do apartamento do seu parceiro e artista Carl Andre, que, segundo muitos, a empurrou para fora da janela após uma luta. Andre alegou que foi suicídio e foi absolvido das acusações. Contudo, até hoje, as suas exposições são contestadas por aqueles que estão convencidos do contrário, dados os testemunhos e provas do incidente.

2Ver por exemplo http://anitsayac.com/, um balcão online e monumento sempre em crescimento construído para comemorar as mulheres cis e trans* assassinadas por homens na Turquia desde 2008. O monumento assinala não só a ultraje do vasto número de casos, mas também presta homenagem às vítimas, nomeando-as e descobrindo as suas histórias que, de outra forma, são anonimizadas em histórias escondidas no meio das páginas de um jornal ou de outro meio.

3O olhar oposicionista é um termo cunhado por bell hooks (1992) para definir a possibilidade de uma posição insurgente e ativa contra o olhar masculino branco e uma táctica para o direito de olhar das espectadoras negras.

4Um atributo a "eu sou forte como qualquer homem" de Sojourner Truth, parte do seu famoso discurso "Ain't I a Woman?" (Não sou uma Mulher?), proferido na Convenção das Mulheres em Akron, Ohio, a 29 de maio de 1851.

Tradução: Marisa Mourão e Sofia Salgueiro

Ece Canlı é artista e investigadora júnior da Fundação para a Ciência e a Tecnologia dentro do grupo de estudos culturais do Centro de Investigação em Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (Portugal). É doutorada em design pela Universidade do Porto (Portugal) e foi investigadora visitante no grupo de investigação Empirica na Escola de Artes, Design e Arquitectura da Universidade de Aalto (Finlândia). O seu trabalho situa-se na intersecção de regimes materiais e políticas corporais, especificamente, constituições sócio-espacio-materiais de género, sexualidade, raça e outras categorias de identidade. No seu projeto atual intitulado "Prison Heterosexual Complex” (Complexo Prisional Heterossexual), investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do encarceramento queer do ponto de vista da materialidade - design, arquitetura e tecnologias emergentes em particular. Foi professora no programa de mestrado em sociologia do género na Universidade do Minho e no programa de design na Universidade Lusíada do Porto. Publicou em volumes editados pela SAGE, Bloomsbury e Spector Books e em revistas como Design&Culture e The Design Journal. É membro fundador do coletivo de investigação Decolonising Design Group.Email: ececanli@ics.uminho.pt. Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 4710-057 Gualtar, Braga, Portugal

Nicoletta Mandolini é investigadora júnior da Fundação para a Ciência e a Tecnologia no Centro de Investigação de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (Portugal), onde está a trabalhar no projecto Sketch Her Story and Make It Popular. Using Graphic Narratives in Italian and Lusophone Feminist Activism Against Gender Violence (Esboçar a Sua História e Torná-la Popular. Usando Narrativas Gráficas do Ativismo Feminista Italiano e Lusófono Contra a Violência de Género; https://www.sketchthatstory.com/). Trabalhou como investigadora pós-doutorada FWO na KU Leuven (Bélgica) e é doutorada pelo Universidade College Cork (Irlanda). É autora da monografia Representations of Lethal Gender-Based Violence in Italy Between Journalism and Literature: Femminicidio Narratives (Representações da Violência Letal de Género em Itália Entre Jornalismo e Literatura: Narrativas de Feminicidio Routledge, 2021). Entre outros artigos sobre o abuso sexista na literatura e nos média contemporâneos, co-editou o volume Rappresentare la Violenza di Genere. Sguardi Femministi tra Critica, Attivismo e Scrittura (Representar a Violência de Género. Perspetivas Feministas entre Crítica, Ativismo e Escrita; Mimesis, 2018). É membro ativo do grupo sobre violência, conflito e género do Centre for Advanced Studies in Languages and Cultures, que foi co-organizadora desde 2016 até 2019. É membro fundador do Studying'n'Investigating Fumetti. Email: nicoletta.mandolini@ics.uminho.pt. Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 4710-057 Gualtar, Braga, Portugal

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