Introdução
Compreendemos a expressão “violência de gênero” como toda forma de agressão respaldada nas expectativas socialmente construídas sobre os papéis previstos para “homens” e “mulheres”, as quais, a um só tempo, tanto sancionam determinadas posturas e comportamentos quanto prescrevem punições com base na não conformidade a essas normas. Conforme explicam Henry Ferguson et al. (2004/2005), “a maior parte da violência é ‘de gênero’ – tanto porque é cometida ‘em nome do gênero e da ordem de gênero’, como porque seus alvos são selecionados em função do gênero” (p. 19).
Propomos neste artigo refletir sobre o poder das imagens e suas maneiras escorregadias de manter ou questionar os discursos que impõem formas de performar os gêneros a partir de um referente binário, entendendo que as visualidades participam ativamente dos processos nos quais damos significados àquilo que nos atravessa enquanto sujeitos políticos.
A discussão sobre as violências de gênero se faz urgente no contexto brasileiro. No país, no ano de 2021, uma mulher foi agredida a cada 2 minutos e uma vida foi ceifada em decorrência de feminicídio a cada 7 horas, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Bueno & Lima, 2022). Nem mesmo dando à luz a uma criança, as mulheres deixam de estar vulneráveis à violência, como evidencia o caso do anestesista acusado de abusar sexualmente de 30 parturientes (Haidar et al., 2022). Essas acusações vieram à tona após, na cidade do Rio de Janeiro, um médico ser preso em flagrante por ter estuprado uma paciente na sala de parto do hospital1, enquanto a mulher ainda estava anestesiada para o procedimento de uma cesariana. A detenção do anestesista ocorreu em virtude da ação de um grupo de enfermeiras, que desconfiaram de sua conduta e conseguiram filmar o ato. Se não houvesse o vídeo, mas apenas a denúncia das profissionais, é provável que as enfermeiras fossem acusadas de falso testemunho e recebessem sanções do hospital. Por outro lado, o trato com o registro da violência durante a cobertura midiática desse caso gerou debates sobre como a reprodução de imagens nas notícias constituiu uma forma de revitimizar a parturiente agredida2. Relatos como esses comprovam a naturalização da violência de gênero no Brasil, que atinge estatísticas alarmantes3. Diante da gravidade do problema, são necessárias iniciativas em diversas frentes que contribuam para seu enfrentamento.
Ainda que os homens sejam, predominantemente, os perpetradores das violências de gênero, o senso comum, de forma corriqueira, atribui às mulheres a responsabilidade de prevenir ou evitar possíveis violências, enquanto a mensagem que chega para os homens é de que eles não precisam se preocupar com essa questão (Katz, 2019).
Em uma entrevista realizada pela revista Nexo, a professora e pesquisadora feminista Debora Diniz (2022) mencionou que “a persistência da violência existe como um regime de poder de controle normatizador dos corpos das mulheres” (para. 4). Para ela, parece existir uma “cumplicidade perversa” (para. 4) entre os homens, que usualmente toleram atos violentos contra as mulheres. Diz Diniz (2022): “há um pacto silencioso para se evitar escândalos, que acredita que algumas coisas se resolvam com conversa, que não leva a sério quando outras mulheres levantam uma suspeita” (para. 8).
No mesmo sentido, Henry Ferguson et al. (2004/2005) apontam que “uma das razões pelas quais a violência de gênero continua tão tragicamente alta é o silêncio dos homens. Os homens são silenciosos, e silenciados sobre sua participação e experiência na violência de gênero” (p. 33). A partir dessa constatação, os autores ponderam:
desenvolver estruturas analíticas para entender gênero e violência e políticas que envolvam homens é crucial. O desafio maior é implementá-las na prática e engajar os homens nos esforços para acabar com a violência masculina. Isso tem que incluir não só os “homens maus” violentos, mas todos os homens. São necessárias estratégias distintas, que, para serem eficazes, precisam ser sensíveis à localização social e aos graus de responsabilidade de meninos e homens em relação à violência. (Ferguson et al., 2004/2005, p. 34)
A naturalização da violência está associada ao conjunto de normas que visam regular corpos e mentes com base em expectativas sociais distintas para homens e mulheres. Gênero e sexualidade são elementos estruturantes das identidades, cujos significados são aprendidos performativamente “no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (Butler, 1990/2020, p. 69). Este “imperialismo epistemológico” (Butler, 1990/2020, p. 37) impõe adotar uma suposta naturalidade às práticas sociais, e é justamente o processo de naturalização dos papéis sociais o motivo pelo qual as práticas violentas cometidas em nome da manutenção da ordem de gênero são banalizadas.
No interior dessa estrutura de controle dos corpos, as visualidades muitas vezes funcionam como combustível para a manutenção dos discursos heteronormativos4. Elas dão sustentação e legitimação aos discursos de poder, propagando e multiplicando as narrativas que conformam realidades e mantém atualizados os padrões hegemônicos de gênero e de sexualidade.
Diante o exposto, neste artigo adotamos que as noções de masculinidade e de feminilidade são construções discursivas, engendradas performativamente, através de aprendizagens culturais e sociais que se dão ao longo da vida. Esse processo é fortemente influenciado pelas visualidades, sejam elas provenientes de imagens dos universos artístico, pedagógico, científico ou midiático.
Buscando colaborar com o debate sobre violências de gênero e cultura visual, apresentamos algumas reflexões sobre as relações entre visualidades e construções de gênero. Para desenvolver as reflexões, nos situamos desde um marco pós-estruturalista, a partir das contribuições dos estudos da cultura visual (Mirzoeff, 2003, 2011/2016; Mitchell, 2005/2015; Sturken & Cartwright, 2017); das pedagogias críticas pensadas desde os estudos visuais (Abreu, 2017; Hernández, 2005, 2007, 2011, 2013; Loponte, 2002, 2010; Martins, 2008); e dos estudos de gênero (Butler, 1990/2020), sobretudo aqueles que enfocam as masculinidades e suas relações com a violência (Acosta et al., 2004; Connell, 2005; Ferguson et al., 2004/2005; Flood, 2019; Funk, 2006; Katz, 2019; Pease, 2019). Para corroborar com a discussão, descrevemos uma ação pedagógica que buscou tratar das relações entre gênero, masculinidades, visualidades e violências junto a duas turmas de estudantes universitários de artes visuais da Universidade Federal de Goiás. Esses eventos visaram criar espaços discursivos para compreender as complexidades, contradições, negociações e tensões que emergem das noções de gênero e sexualidade nos imaginários sociais.
Imagens foram utilizadas para incentivar o debate, considerando o papel das visualidades como mediadoras na configuração das identidades de gênero (Hernández, 2007, p. 74). No decorrer da ação, foram abordadas representações visuais que medeiam tanto as concepções sobre gênero e sexualidade, quanto as práticas de significação que se dão a partir das formas como aprendemos a ver o mundo. Com isso, pretendemos construir um espaço para a problematização e superação do silêncio de sujeitos masculinos, considerando que a omissão dos homens no que tange às violências de gênero contribui para a manutenção do problema (Pease, 2019).
Uma vez que as práticas sociais que dão forma às noções de masculinidade refletem as prescrições culturais que definem os códigos relativos aos significados de ser e agir como homem – inclusive produzindo, de modo relacional, padrões de feminilidades como uma materialização desses mesmos discursos –, optamos por realizar a ação pedagógica com grupos mistos, constituídos por estudantes que se identificam com masculinidades e feminilidades plurais. Essa estratégia, conforme explica Michael Flood (2019), cria “oportunidades de diálogo entre mulheres e homens no que diz respeito a gênero, sexualidade, violência e relacionamentos” (p. 205), incentivando os homens tanto a se manifestarem sobre essas questões quanto a escutarem e aprenderem com as mulheres. Desse modo, partimos do pressuposto de que homens e mulheres podem e precisam unir forças para enfrentar a violência de gênero (Funk, 2006).
Ao fazer essa opção, adotamos a ideia de que a violência de gênero é um problema estrutural e, portanto, atinge todos os indivíduos. Como destacou Raewyn Connell (2005, p. 203) no seu referenciado estudo sobre masculinidades, a hegemonia do modelo dominante influencia a todas as pessoas nos processos de socialização, e ocupa um lugar estruturante nas relações simbólicas e sociais. Desvelar os caminhos epistemológicos através dos quais a masculinidade hegemônica se torna um imperativo político e cultural é importante para esta pesquisa porque colabora na criação de possibilidades que ajudam nas lutas em favor da justiça social nas relações de gênero, no sentido proposto por Connell (2005):
em vez de tentar definir a masculinidade como um objeto (um tipo de caráter natural, uma média comportamental, uma norma), precisamos nos concentrar nos processos e relacionamentos através dos quais homens e mulheres conduzem gendradas. A “masculinidade”, na medida em que o termo pode ser brevemente definido, determina simultaneamente um lugar nas relações de gênero, as práticas pelas quais homens e mulheres ocupam esse espaço no gênero e os efeitos de tais práticas na experiência corporal, na personalidade e na cultura. (p. 71)
Uma vez que todas as pessoas estão, indubitavelmente, inseridas nesse complexo sistema de fixação das identidades e a cultura visual produz e difunde expectativas em relação aos papéis sociais a serem cumpridos pelos indivíduos, o fazendo muitas vezes desde uma perspectiva heteronormativa, propomos neste artigo refletir sobre o poder das imagens e suas relações com discursos que impõem performar o gênero a partir de uma lógica binária. Buscamos promover, a partir do trabalho com imagens, rupturas com normativas que fomentam ideias e práticas violentas, promovendo diálogos que favoreçam “a compreensão de como as situações de violência são construídas nas relações interpessoais e reforçadas no cotidiano pela cultura em que vivemos” (Acosta et al., 2004, p. 15).
O que as Visualidades Têm a Ver com as Violências de Gênero?
Os estudos da cultura visual têm como foco não apenas as imagens, mas, especialmente, as práticas pelas quais elaboramos as experiências em relação à visão, isto é, eles se preocupam em entender as maneiras pelas quais o mundo está organizado visualmente em função das relações de poder, tratando de examinar os efeitos das visualidades na vida cotidiana. As estruturas de poder, se valendo do senso comum que atribui à visão uma espécie de comprovante da realidade, se apropriam da crença de que “ver é saber” e, por meio da organização que propõem do visível, pretendem instituir o que é normal, natural e correto (Mirzoeff, 2011/2016). Esse posicionamento é um dos enfrentamentos dos estudos da cultura visual, cuja área de conhecimento afirma que o ato de ver não implica, necessariamente, na credibilidade daquilo que é visto, nem em sua recepção e aceitação passiva (Mirzoeff, 2003).
Os estudos da cultura visual propõem uma distinção entre visão (como a capacidade física de ver) e visualidade, um conceito que se refere “às formas como a visão é moldada por meio do contexto social e da interação” (Sturken & Cartwright, 2017, p. 22). As visualidades, portanto, incluem códigos sociais que indicam o que pode ser visto e quem pode olhar, quem deve estar representado e quem deve ficar fora do espectro das representações, criando estruturas visuais que organizam nossas práticas de olhar.
Nicholas Mirzoeff (2011/2016), uma referência importante dentro da área dos estudos visuais, examinou as maneiras como o visual é privilegiado no exercício do poder. Para este autor, a visão é usada para normatizar e exercer controle, dentro de uma intrincada estrutura que ele denomina como “complexos de visualidade”. Ao examinar essas estruturas visuais, Mirzoeff aponta que, a partir de reivindicações do “direito a olhar”, emergem contravisualidades como formas de romper com o olhar normatizado e desafiar o poder das visualidades. Dessa forma, as contravisualidades possibilitam realizar intervenções na política das imagens, sendo usadas para denunciar violências e combater as desigualdades e as injustiças sociais.
As experiências com as visualidades envolvem uma variedade de mídias e artefatos visuais, que instituem redes de significados a serem aprendidos e consumidos. Porém, os significados não são fixos. Ao contrário, flutuam a depender dos contextos socioculturais nos quais as ideologias, através de uma série de interações e experiências situadas, utilizam as visualidades para defender pontos de vista e difundir os códigos que desejam propagar. Dessa forma, as imagens exercem um papel decisivo na construção discursiva da realidade cotidiana.
No que tange ao gênero, ainda que os focos das visualidades sejam plurais e dirigidos a determinados públicos, as representações visuais usualmente apresentam visões fortemente estereotipadas da masculinidade e da feminilidade, e as imagens que minam os discursos socialmente legitimados são minoria (Fixmer-Oraiz &Wood, 2019). A análise desse padrão visual também forma parte dos esforços investigativos dos estudos da cultura visual, que se preocupam em compreender como as imagens participam e são incorporadas nos imaginários coletivos, definindo comportamentos através dos quais os sujeitos se posicionam nos grupos sociais, no sentido proposto por W. J. T. Mitchell (2005/2015) quando destaca que as imagens
são marcadas por todos os estigmas próprios à animação e à personalidade: exibem corpos físicos e virtuais; falam conosco, às vezes literalmente, às vezes figurativamente; ou silenciosamente nos devolvem o olhar através de um abismo não conectado pela linguagem. Elas apresentam não apenas uma superfície, mas uma face que encara o espectador. (p. 167)
É sabido que as visualidades são usadas para a propagação e assimilação de ideias que contribuem “para a construção e modelagem de corpos, subjetividades e estereótipos, e para a legitimação das relações binárias e desiguais de poder” (Belausteguigoitia & Lozano, 2019, p. 148). Em culturas permeadas pela lógica patriarcal, é usual que os homens sejam representados por corpos impenetráveis, associados à força, dureza, competitividade, controle, autoridade e, também, à violência. Já as mulheres são construídas como seu oposto: corpos receptíveis e permeáveis, capazes de assimilar as hierarquias e inclusive de serem compreensivos e tolerantes com a violência masculina.
A exposição sistêmica dessas visualidades sustenta a noção de que as relações de poder e as diferenças associadas ao gênero são naturais e razoáveis. Desde essa perspectiva normalizadora, o exercício da violência contra as mulheres se torna parte das características definidoras dos homens, naturalizado e mantido através de práticas sociais, políticas, jurídicas e institucionais.
Há de se ressaltar, entretanto, que nem todas as imagens são coniventes com a perpetuação da violência de gênero. Como destacam Ece Canlı e Nicoletta Mandolini (2022), “as artes e os média visuais ( ... ) melhoraram significativamente a construção de um imaginário feminista da violência de género, apoiaram a prática da denúncia social e facilitaram a visibilidade real (e não apenas metafórica) do fenómeno” (p. 3). Portanto, é possível constatar que “a modalidade visual foi sempre crucial para a perpetuação, mas também para a resistência à ordem simbólica patriarcal, de onde é originária a violência sexista” (p. 5).
Um sítio em que é possível verificar a circulação dessas contradições discursivas, exploradas em nosso trabalho para deflagrar a ação educativa, é a internet. Hoje, as ferramentas digitais desempenham papéis centrais em nossas vidas. O rápido desenvolvimento tecnológico possibilitou mudanças pragmáticas nas formas como nos relacionamos com as imagens. As redes sociais, em particular, sítios de novas formas de interação e trocas entre as pessoas, constituem poderosos canais de socialização nos quais atribuímos significados, reproduzimos comportamentos e vivenciamos práticas de subjetivação individual e coletiva, as quais influenciam as formas como nos constituímos e nos relacionamos nos grupos sociais (Abreu, 2014a).
Se valendo do poder da auto-evidência das imagens e da dificuldade enfrentada por muitos indivíduos para interpretar criticamente o que veem, os discursos do patriarcalismo encontraram na internet um território livre para propagar e atualizar seus ideais. Desde uma perspectiva de gênero, é notório que muitas imagens que circulam nas mídias digitais reproduzem e multiplicam visualidades que naturalizam padrões e papéis sociais, atualizando os discursos que propagam a ideia de que os corpos femininos servem para ser usados e abusados. Além disso, é comum o uso de redes digitais tanto para a disseminação de ideias quanto para a perpetração de ataques de cunho sexista e misógino (Bertagnolli et al., 2020; Zanello, 2020).
Por outro lado, com a digitalização das práticas sociais, a internet constituiu territórios heterogêneos de socialização, as redes sociais digitais, nos quais os conflitos e as discussões acaloradas fazem parte do cotidiano. Essas características, junto à fluidez própria da internet, favoreceram a visibilidade de identidades mais plurais e possibilitaram criar oportunidades de ação e aglomeração, especialmente para sujeitos que historicamente foram pouco representados (ou mal representados) pelos meios midiáticos (Abreu, 2014b).
Assim, certas imagens que circulam nas vias digitais favorecem o enfrentamento das práticas sociais que limitam o devir das identidades e, de forma isolada ou em grupos, muitas mulheres e pessoas LGBTQIA+ fazem uso destas tanto para denunciar ações de violências e injustiças, quanto para criar e compartilhar modos de vida e vivências insubordinados às normativas sociais que pretendem controlá-las e marginalizá-las.
Em se tratando dos ambientes digitais, eles são, simultaneamente, palco de avanços e territórios férteis para a propagação de ideais de masculinidades e feminilidades hegemônicas. Assim, seus canais de comunicação são lugares onde ocorrem embates de narrativas conflitantes, algo que torna ainda mais complexa a disputa das políticas do olhar.
Cultura Visual e Educação: Abordagens Para Promover o Deslocamento do Olhar
A perspectiva analítica e crítica da cultura visual nos processos de ensino busca examinar os efeitos das visualidades sobre os sujeitos, com o objetivo de identificar “os discursos que naturalizam o olhar e conformam subjetividades e espaços para a ação” (Hernández, 2013, p. 73). A crença de que as imagens visuais são neutras e descrevem supostas realidades envoltas em uma espécie de auto-evidência esconde as formas complexas como as estruturas de poder utilizam esses artefatos para naturalizar as diferenças e normatizar os comportamentos, como descreve a professora e pesquisadora Alice Fátima Martins (2008):
imagens, concepções estéticas e obras de arte não são neutras, inocentes, mas integram as redes de tensões inerentes às relações de poder das estruturas sociais em que são realizadas, circulam, e articulam sentidos. Desse modo, a eleição de certas imagens, concepções estéticas e obras de arte para integrarem os conteúdos veiculados na educação escolar resulta da interação de diversos fatores, por trás dos quais prevalecem interesses os mais diversos, econômicos, políticos, dentre outros. (p. 99)
A abordagem da cultura visual na educação, especialmente no ensino de artes visuais, estabelece um compromisso com a valorização da diversidade e das diferenças. É uma perspectiva epistemológica de trabalho cuja ênfase está nas experiências dos sujeitos e nos significados subjetivos que cada pessoa constrói na relação com as visualidades. Dessa forma, é uma perspectiva empenhada em “revelar as operações invisíveis de poder que sustentam a rede de privilégios e direitos desiguais, através da reflexão crítica e de práticas atentas às especificidades locais” (Abreu, 2017, p. 326). Apesar de existirem cada vez mais docentes que atuam desde essa abordagem,
lamentavelmente, as questões que envolvem sexualidade e gênero ainda configuram um terreno arenoso e, muitas vezes, o professorado prefere não mostrar essas referências visuais para evitar potenciais conflitos com o alunado, os pais, ou com a própria instituição. Evitando o conflito, esse comportamento gera uma espécie de cumplicidade com os discursos conservadores que pensam o sexo como pecado e, a sexualidade não heteronormativa, como um distúrbio moral. (Abreu, 2017, pp . 328–329)
A educação pensada a partir da perspectiva da cultura visual é uma forma de desconfigurar esse contexto, a qual ainda enfrenta muitos obstáculos. Propor aprender com as experiências vividas e as construções de sentido que configuram as relações consigo mesmo, o outro e os contextos sociais colabora para o reconhecimento de que as visualidades, como mediadoras de narrativas e representações identitárias, são, também, dispositivos potentes para problematizar as formas como definimos valores e comportamentos. A ênfase está nos jogos de poder e nos discursos sociais que buscam normalizar identidades e corpos segundo determinados pressupostos.
Nesse sentido, a perspectiva da cultura visual em contextos de aprendizagem contribui para tornar visível o problema das violências de gênero, incentivando a reflexão, a criticidade e a desconstrução de ideias que as fundamentam, uma vez que é importante não esquecer que
quando olhamos (e produzimos) as manifestações que fazem parte da cultura visual, não estamos olhando apenas para o mundo, mas para as pessoas e suas representações e as consequências que elas têm em suas posições sociais, gênero, classe, raça, sexo, etc.(Hernández, 2005, p. 29)
Ainda que as imagens visuais não sejam a causa direta de atos violentos5, elas podem contribuir para legitimá-los e banalizá-los, pois a visualidade é uma “prática discursiva para representar e regular o real que tem efeitos materiais” (Mirzoeff, 2011/2016, p. 748). Portanto, não se refere apenas aos códigos visuais, mas também à construção de realidades a partir da formatação de modos de ver e viver.
Trabalhar a questão da violência de gênero na educação a partir de uma abordagem da cultura visual envolve considerar experiências que se sobrepõem, examinando o que se pensa e diz sobre aquilo que se vê e os efeitos que isso produz no interior das relações interpessoais. Isso significa observar como as imagens e os artefatos culturais constroem um sentido de realidade e quais posicionamentos são adotados mediante o conhecimento que se cria sobre aquilo que se olha. Trata-se de operacionalizar um possível reposicionamento dos sujeitos, de forma que possam entender que as identidades pré-fixadas, protegidas pelo escudo das diferenças demarcadas, podem ser desestabilizadas e questionadas como promotoras de preconceitos, opressões, intolerâncias e violências. Como nos ensina Fernando Hernández (2007), os trabalhos educativos conduzidos desde a perspectiva da cultura visual se utilizam da estratégia de “introduzir suspeitas”, tais como:
o que nos dizem estas representações sobre a construção da subjetividade (de gênero, de classe social, de etnia, de subcultura, do global e do particular, da família, etc.)? O que falam sobre nós mesmos e sobre nossa posição hegemônica ou subordinada? (p. 86)
É evidente que as imagens “estão continuamente, constantemente, produzindo significados ( ... ), tendo efeitos diretos em nossas práticas cotidianas e, mais especificamente, em como vivemos e percebemos nossas próprias identidades sexuais e de gênero” (Loponte, 2010, p. 153). Mediante o fato que os estudos da cultura visual se concentram em compreender os efeitos das visualidades na vida das pessoas, é importante considerar que
uma proposta educativa a partir da cultura visual pode ajudar a contextualizar os efeitos do olhar e mediante práticas críticas (anticolonizadoras), explorar as experiências (efeitos, relações) de como o que vemos nos conforma, nos faz ser o que os outros querem que sejamos e poder elaborar respostas não reprodutivas frente ao efeito desses olhares. (Hernández, 2011, p. 44)
No que diz respeito às práticas discursivas e representacionais, teóricas e teóricos de diversos campos de conhecimento que se debruçam sobre a expressão de questões de gênero nas imagens já escreveram efusivamente sobre as convenções que regem as formas de representar homens e mulheres, e as atribuições de significados que são produzidas nesses encontros. Analisando as questões de gênero nas artes visuais, Diana Newall e Grant Pooke (2021) mencionam que as oposições binárias socialmente construídas entre masculino/feminina influenciam o trabalho artístico, motivo pelo qual, historicamente, é possível notar a representação de homens como poderosos e agressivos, e a de mulheres como fracas e submissas. Tratando da publicidade, Anthony Cortese (2008) afirma que “as imagens masculinas são dominantes, intimidantes e violentas, enquanto as imagens femininas são subordinadas, receptivas e passivas” (p. 84).
Para a professora e pesquisadora Luciana Gruppelli Loponte (2010), a arte e outros produtos culturais desempenham “um papel fundamental na criação e difusão de alguns estereótipos femininos” (p. 156). A autora propõe o conceito “pedagogia visual do feminino” (Loponte, 2002) para abordar a forma através da qual os corpos das mulheres são usualmente representados em imagens, sendo posicionados, muitas vezes, no papel de objetos passíveis de contemplação e disponíveis ao olhar e consumo masculino. No cerne da discussão proposta por Loponte (2002) está o poder exercido pelos discursos das e sobre as imagens, cujos reflexos se evidenciam nas formas de construir, perceber, controlar e performar o gênero e a sexualidade. Diante desse cenário, a autora destaca ser salutar o questionamento à “neutralidade” das imagens e a “naturalidade” dos olhares.
Se a “pedagogia visual do feminino”, concebida por Loponte (2002), estabelece prescrições para e sobre as mulheres, é possível perceber também a existência de uma “pedagogia visual do masculino”, que institui papéis específicos a serem desempenhados pelos homens frente aos corpos femininos: observadores, dominadores, agentes. A construção simbólica da “masculinidade” reflete as prescrições culturais que normatizam o que significa ser e agir como homem, cujos sinais e comandos engendram formas de violências que exteriorizam imaginários também violentos.
As ações pedagógicas que descrevemos a seguir formaram parte do projeto de pesquisa "Pedagogias de resistência: Gêneros e visualidades"6, vinculado à Universidade Federal de Goiás. Neste projeto, são discutidas e analisadas estratégias que visam promover relações mais heterogêneas e inclusivas nos processos de ensino e aprendizagem de artes visuais, com ênfase nas questões de gênero e sexualidade. Para tanto, o projeto envolve alguns subprojetos, com o objetivo de estabelecer novas articulações e ampliar redes de investigação e discussões. No caso das atividades descritas neste artigo, estas estão integradas ao projeto de pesquisa intitulado "Lutar contra certas imagens com a ajuda de outras imagens: Cultura visual e o enfrentamento à violência de gênero junto a um grupo de homens"7 , desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás, a nível de mestrado.
Nestas atividades, nos interessou desenvolver processos epistemológicos que possam romper com a retórica dominante e criar espaços de mediação com potencialidade de construir narrativas mais expansivas sobre os papéis de gênero. Isso implicou adotar um posicionamento que reconhece as pessoas como sujeitos produtores de conhecimento e com capacidade de autodeterminação e agência. Ao explorar as visualidades, nosso foco foi desenvolver uma prática de mediação que criasse processos relacionais, como ponto de partida para reflexões mais amplas sobre os efeitos das imagens para a produção de significados, a fim de incentivar considerações sobre “o que seria um olhar cultural (visualidade) e os processos de subjetividade (o que diz de quem olha e constrói a história visual) que são derivados” (Hernández, 2013, p. 77).
A metodologia adotada no desenvolvimento das ações foi inspirada na metáfora da constelação de imagens, formulada por Aby Warburg (2000/2010), cujas ideias foram ampliadas pelo filósofo Georges Didi-Huberman (2002/2013, 2011/2018) a partir do conceito de montagem. O procedimento pressupõe reunir e contrastar imagens múltiplas que, ao serem postas lado a lado, possibilitam perceber ou imaginar relações, bem como instigam a pensar e a tomar posição.
A partir dessa abordagem, convidamos jovens estudantes a refletirem sobre as diferentes maneiras pelas quais as imagens interpelam e constituem identidades, estruturas sociais e percepções sobre si e seus contextos sociais. A proposta requisitou o lançamento de olhares curiosos e críticos sobre o universo das visualidades, exercício que permeou os atos de reunir e contrastar imagens, possibilitando deslocamentos subjetivos sobre as normas de gênero e, em especial, as violências que destas culminam.
A Cultura Visual Como Práxis na Educação
No segundo semestre de 2021, convidamos estudantes universitários, matriculados em disciplinas ministradas nos cursos de bacharelado e licenciatura em artes visuais, intituladas, respectivamente, “teorias da imagem e cultura visual” e “compreensão e interpretação da imagem” — ambas ofertadas pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás —, a trazer, juntar e confrontar imagens que pudessem contribuir para pensar e discutir sobre as construções de gênero e as violências que elas usualmente embasam e respaldam.
A ideia foi produzir constelações visuais que ajudassem a compreender o papel das imagens na normalização ou contestação de masculinidades violentas e de feminilidades a serem violentadas, com a intenção de incentivar o pensamento reflexivo sobre a construção social e visual do gênero e os modos pelos quais ela está implicada tanto no fomento e manutenção, quanto na denúncia e subversão de ideias das quais culminam violências.
Ao longo do semestre, dentro do conteúdo planejado das disciplinas, foram discutidas algumas possibilidades de articulações entre imagens visuais e as questões de gênero e sexualidade, buscando refletir sobre os modos como as visualidades influenciam na elaboração das subjetividades contemporâneas.
O objetivo específico da montagem dos painéis foi discutir as formas pelas quais a arte e a cultura visual estão implicadas na construção e desconstrução de ideias sobre gênero, com foco específico na problematização das masculinidades, visando a desnaturalização e o combate de práticas sociais que as idealizam a partir de referenciais nocivos, causando sofrimentos e danos aos próprios homens e às pessoas que com eles se relacionam.
Participaram das atividades, na turma de bacharelado em artes visuais, 22 estudantes (11 homens e 11 mulheres) e, na turma de licenciatura em artes visuais, 12 estudantes (três homens e nove mulheres). Esta amostra compôs um cenário plural e heterogêneo de repertórios culturais e de identidades de gênero e orientações sexuais. Antes de iniciarmos as montagens dos painéis visuais, relembramos alguns pressupostos teóricos trabalhados em aulas anteriores que embasam o desenvolvimento de estudos e pesquisas engajadas nas discussões de gêneros, da arte e da cultura visual, e as e os estudantes mostraram-se bastante interessados em ampliar o intercâmbio de experiências e discussões a partir da composição das montagens visuais.
Na elaboração coletiva das constelações visuais, foi utilizada a ferramenta digital Padlet8, que possibilita o acesso e a participação de várias pessoas simultaneamente. Convidamos as e os estudantes a compartilharem imagens que “desdobrassem”, em diversos sentidos, o tema da violência de gênero. A orientação inicial foi de que as imagens incluídas pelas e pelos participantes pudessem estabelecer relações com outras já postadas, servindo cada imagem para estimular memórias e imaginários visuais, culminando na inclusão de outras imagens. As visualidades gradualmente adicionadas nos painéis, procedentes do universo da arte, da publicidade, de frames de filmes ou videoclipes e das redes sociais, foram coletadas sobretudo a partir de buscas em ferramentas de pesquisa online, sendo representativas, portanto, dos múltiplos discursos que constroem, desconstroem e reconstroem ideias sobre gênero em circulação nos meios digitais.
As montagens produzidas pelos grupos, se olhadas de forma distraída, podem aparentar ser apenas conglomerados de imagens não conectadas. No entanto, o ato de reunir imagens despertou a possibilidade de perceber ou imaginar entre elas relações não aparentes, as quais suscitaram outros olhares e ideias. Isso viabilizou a análise das perspectivas e posicionamentos emergentes a partir da experimentação de uma prática pedagógica interessada em problematizar os discursos visuais. A mediação realizada por nós buscou estabelecer pontes para pensar como as visualidades estão relacionadas com as construções de gênero e como se infiltram no sistema para amplificar ou desmantelar os discursos que naturalizam violências.
Foram reunidas e tensionadas imagens que descrevem papéis sociais “aceitáveis” aos homens e às mulheres, bem como outras que desestabilizam as noções tradicionais de gênero e sexualidade. Nas constelações visuais, os signos que marcaram as formas de ser masculinas ou femininas hegemônicas construíram um espaço de exploração para compreender como a violência — como discurso e experiência social — se constitui. Esse modo de pensar com as e a partir das imagens permitiu estabelecer relações e discutir sobre as normas reducionistas da identidade e a longevidade das práticas de violência na constituição das relações de gênero.
Algumas das ideias que apareceram a partir das relações feitas pelas e pelos participantes expuseram como as masculinidades são atreladas à invulnerabilidade, à força, ao poder, à violência, às guerras, às armas. Em outras, aparece a fragilidade da asserção da masculinidade, a qual está sob constante risco de ser posta em xeque (porque, no senso comum, meninos não brincam de boneca, homens não vestem rosa, homens não choram, etc.). Muitas das imagens trazidas desviavam das normas, sobretudo aquelas insubordinadas à cisheteronormatividade, mas também outras que, apesar de inscritas nos códigos culturais de masculinidade hegemônica, apresentavam formas saudáveis de ser homem, demonstradas através de gestos de amizade, afeto, amor e cuidado.
Haja vista que o gênero é produzido de maneira relacional, enfocar a construção das masculinidades não exclui a consideração das feminilidades. No que tange às representações femininas, as imagens trazidas propuseram, sobretudo, uma reflexão sobre a subordinação das mulheres. Elas evidenciaram como as representações visuais dos corpos femininos construídas com base no patriarcalismo causam sofrimento, através das objetificações, das piadas, dos assédios e das agressões implicadas em suas construções e compartilhamentos. Por outro lado, também demonstraram a resistência ativa de mulheres, que não se conformam a serem reduzidas a meras vítimas ou objetos, rejeitando e subvertendo as imposições da cultura e das normas tradicionais de gênero.
Algumas Reflexões Sobre a Atividade
Uma das principais dificuldades encontradas nestes encontros foi fazer com que os homens dos grupos se engajassem nas discussões que permearam a produção e a interpretação das montagens, principalmente nos momentos iniciais. Identificamos algumas causas possíveis deste comportamento, tais como: o desconforto diante do tema das relações entre gênero e violência, a forma estrutural pela qual a cultura do silêncio entre os homens está enraizada nas subjetividades coletivas, bem como o esforço de realizar uma reflexão introspectiva genuína sobre os privilégios adquiridos simplesmente por serem homens. Vale ressaltar que a participação feminina desde os primeiros instantes não aparentou ter sido prejudicada por nenhum obstáculo, o que torna ainda mais importante refletir sobre o que pode dizer o silêncio dos homens e de buscar formas de romper com ele.
Apesar desta dificuldade, a experiência de construção coletiva de constelações visuais pode ser considerada exitosa, no sentido não apenas da quantidade de imagens incluídas, ou da qualidade das relações estabelecidas entre elas e a partir delas, mas, sobretudo, em função dos debates que ocorreram durante e após o processo de elaboração dos painéis. A partir do momento em que as e os participantes se abriram para o diálogo, a construção das montagens se tornou mais fluida e as discussões foram adensadas. As constelações visuais despertaram nos grupos de estudantes a vontade de compartilhar experiências vividas e expressar opiniões sobre as formas pelas quais a normatização do gênero desencadeia violências.
Tiveram destaque as discussões sobre as conturbadas relações entre homens e artefatos, tais como uma camiseta cor de rosa, uma boneca, um brinquedo nas cores do arco-íris, um copo com estampa de unicórnio, ou uma sandália unissex produzida por uma marca tradicionalmente reconhecida como voltada ao público feminino. Os comentários giraram em torno de como essas visualidades, para algumas pessoas, desqualificam a “masculinidade”, com base na normatização que incita à identificação exclusivamente com os símbolos “apropriados” para cada gênero de acordo com uma divisão binária.
As e os estudantes também discutiram as práticas socioculturais que indicam usos “adequados” dos artefatos para cada gênero, determinando quais objetos um menino ou um homem “de verdade” jamais utilizaria, sob o risco de parecer “afeminado”, como se essa condição fosse algo que o diminuísse como ser humano, deixando-o vulnerável. O policiamento contra qualquer traço de “feminilidade” é coercitivo e violento, traz consigo um ensinamento algo perigoso aos homens: que há algo de inferior em quem performa a feminilidade. Esse pensamento sustenta hierarquias de poder ilegítimas, as quais, por sua vez, também fomentam violências espúrias.
Outro ponto importante a destacar é que todas e todos nos grupos, sobretudo as mulheres, manifestaram forte indignação frente às imagens impregnadas de violência com base no gênero. Essa reação, previsível e desejada, foi canalizada para estabelecer conversas nas quais os papéis exercidos pelas imagens na manutenção e subversão desse problema social foram questionados: como elas contribuem para a subjugação de pessoas femininas ou feminilizadas? Como elas prescrevem aos homens o exercício do poder, da dominação, da violência? Como questionar, repudiar e desconstruir essas ideias?
Com relação ao desconforto inicial, demonstrado pelo silêncio da participação dos rapazes e pelo tempo que levaram para se engajarem nas discussões, concluímos que o reconhecimento do “outro” e o território demarcado pelas diferenças se torna um desafio para descontruir as aprendizagens socializadas das masculinidades ao longo da existência, algo que demanda a atenção de quem desejar trabalhar a questão das violências de gênero em contextos educativos. Apesar disso, as incoerências que revitalizam constantemente os padrões de masculinidade vieram à superfície, materializadas nas imagens selecionadas e nas discussões que se sucederam, de forma democrática, entre todas as pessoas que participaram da atividade proposta.
Comentários Finais
Aprendemos com as ações realizadas que as e os participantes percebem como as visualidades tendem a conformar e naturalizar os discursos hegemônicos de masculinidade e feminilidade, que reforçam as violências verbais, gestuais e muitas vezes físicas diante de tudo que não se enquadra às normas convencionadas aos gêneros binários. Entretanto, as imagens de resistência frente a esse cenário trazidas para os painéis produzidos durante os encontros com os grupos permitem vislumbrar como as visualidades vêm sendo reivindicadas para questionar, denunciar e desestabilizar as normativas que fomentam essas violências.
Percebemos também que os rapazes fizeram em seus comentários, sobretudo, relações com os comportamentos de outros homens, se posicionando de forma distanciada diante do problema da violência. Mesmo que não se reconheçam como sujeitos violentos ou misóginos, eles pouco problematizaram as “cumplicidades perversas” (Diniz, 2022, para. 8) e silenciosas entre os homens, que contribuem para que a violência de gênero não seja investigada ou combatida. Enquanto isso, as alunas relataram ter tido experiências próximas com situações de assédio e violência, nas quais elas mesmas ou outras mulheres conhecidas delas foram vítimas.
Entretanto, vale ressaltar que muitas das manifestações dos homens, sobretudo os que apresentam dissidências com relação à heteronormatividade, demonstraram de forma contundente que a incorporação e o exercício da masculinidade é uma imposição, e os modos pelos quais essa coerção é exercida de formas violentas pela família, pelos pares e pela sociedade de forma geral. Essas reflexões contribuem sobremaneira para tornar evidente que os prejuízos fomentados pela rígida ordem de gênero binária também afetam os homens, o que pode servir como forma de despertar seu interesse e fomentar seu engajamento em discussões sobre o tema.
Na mediação realizada durante a elaboração das constelações visuais, os padrões que normatizam gênero e sexualidade foram problematizados de forma enfática a partir dos confrontos entre as imagens que iam sendo pouco a pouco adicionadas ao painel. As discussões que tiveram lugar nos encontros permitiram vislumbrar que formas diversas de violências têm como origem o estabelecimento arbitrário e coercitivo de normas acerca do gênero e da sexualidade. Também trouxeram à tona práticas que resistem a essas normas, reivindicam novas visibilidades e constroem outras possibilidades de ser e estar.
A proposta de ação pedagógica baseada na montagem das constelações visuais demonstrou ser uma estratégia que incentiva a reflexividade e as discussões, rumo à desmontagem de normas e estereótipos de gêneros que fomentam as violências. Esse estímulo tem a potencialidade de provocar deslocamentos nas formas como se aprende a olhar a si mesmo e perceber o outro, ressignificando práticas e aprendizagens que colocam as pessoas, em função do gênero e da sexualidade, em patamares sociais diferenciados. A sugestão de colocar imagens em confronto permitiu, assim, criar espaços de diálogo que promoveram pensar em “rupturas com representações sociais negativas e estereótipos, criando oportunidades de elaboração de novos sentidos sobre o que se vê” (Santos Junior & Abreu, 2022, p. 229).