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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.10 Braga dez. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4057 

Varia. Artigos

O Vídeo Como Tecnologia e Meio de Expressão Artística

1Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, Portugal


Resumo:

O presente trabalho procura refletir sobre o surgimento da tecnologia do vídeo e a sua utilização como meio de expressão artística. Concentrando-nos, sobretudo, no período entre a década de 1960 e a de 1990, analisamos a relação da televisão e outras instituições com a esfera artística cultural e o seu papel no desenvolvimento de práticas artísticas através do vídeo. Com efeito, estabelecemos exemplos internacionais e exemplos portugueses para uma análise plural e diversa. Por conseguinte, este trabalho elabora algumas das teorias, ideias principais e análises relativas ao papel do vídeo e da televisão na sociedade do final do século XX. Confere-se especial atenção a alguns traços ideológicos e filosóficos transversais às diversas práticas artísticas, autores e agentes da esfera cultural contemporânea para refletir sobre alguns elementos estéticos que constituem as obras deste período. A partir de uma seleção de obras e artistas, este estudo procura explorar a dimensão social do vídeo, que muitas vezes funcionou como meio democrático, instrumento de contestação social e política e meio para a reflexão pessoal do artista. Desta forma, articula-se uma abordagem à presença e representação do corpo nas obras de vídeo e outros elementos técnicos e estéticos para compreender dimensões teóricas envoltas na produção imagética deste meio.

Palavras-Chave: vídeo; televisão; vídeo arte; arte contemporânea

Abstract:

This paper seeks to reflect on the emergence of video technology and its use as a medium for artistic expression. Focusing mainly on the period between the 1960s and 1990s, we analyse the relationship between television and other institutions within the cultural-artistic sphere and their role in developing artistic practices through video. Thus, we have established international and Portuguese examples for a plural and diverse analysis. Therefore, this work elaborates on some theories, main ideas and research concerning the role of video and television in late 20th-century society. Special attention is given to some ideological and philosophical traits transversal to the different artistic practices, authors and agents within the contemporary cultural sphere to reflect on some aesthetic elements of the works from this period. Based on a selection of works and artists, this study seeks to explore the social dimension of video, which has often operated as a democratic medium, an instrument of social and political contestation and a medium for the artist's personal reflection. In this way, an approach to the presence and representation of the body in video works and other technical and aesthetic elements is articulated to understand the theoretical dimensions involved in the imagery production of this medium.

Keywords: video; television; video art; contemporary art

Introdução

A 4 de janeiro de 1927, Boris Rtcheouloff preencheu uma patente para o desenvolvimento de um aparelho para gravação e reprodução de sinais de televisão em materiais magnéticos. Através de correntes fotoelétricas, o aparelho desenvolvido por Rtcheouloff seria capaz de scanear imagens, converter os pontos luminosos em corrente elétrica e registá-los em materiais magnéticos (Nmungwun, 1989). Esta seria das primeiras e mais significativas sugestões de uso da gravação magnética para o registo e preservação da imagem. Paralelamente, os mesmos princípios e motivações seriam utilizados para o desenvolvimento de equipamentos para a gravação e registo de texto, de informação e de som1. Através dos sistemáticos avanços nestas áreas da ciência e da tecnologia, a partir de 1950, os grandes e sofisticados equipamentos de gravação magnética começaram a ser operados, essencialmente, em instituições governamentais e estações televisivas. Estes são os primeiros contextos de utilização do que conhecemos como a tecnologia do vídeo.

Em 1952, a BBC desenvolveu o aparelho VERA (Vision Electronic Recording Apparatus) para gravação e registo em fita magnética. No mesmo ano, a Ampex fabricou um dos seus primeiros aparelhos de gravação de vídeo, operando com o formato de fita pioneiro "quadruplex". Este fenómeno significou, primeiro, o lento fim do uso da película pelas estações televisivas e permitiu, também, uma crescente sofisticação e acesso aos novos equipamentos. Somente na década de 1960, foram introduzidos no mercado os primeiros equipamentos independentes e portáteis de vídeo, desenvolvidos especialmente pela indústria japonesa, por exemplo, pela Sony e a Panasonic (Bensinger, 1981). Estes primeiros sistemas independentes e portáteis, conhecidos regularmente como "portapaks"2, seriam os primeiro retratos do vídeo doméstico. Significariam, contudo, não só o acesso do cidadão comum a estes equipamentos para a sua utilização e exploração em contexto doméstico, mas significariam, também, o acesso dos artistas e a exploração deste meio no contexto das práticas artísticas.

Estamos perante um mundo em transformação, envolto em avanços da ciência, da tecnologia e da indústria. A influência e rastro que a televisão deixa a um nível global, na sociedade, na esfera artística e noutros contextos foi retratada por Gene Youngblood (1970) como "videosphere" ou "videosfera" (p. 260). Este termo ajuda-nos a caracterizar um mundo em transformação: a televisão cada vez mais presente no espaço doméstico, um sistema de satélites para a transmissão de informação e o vídeo nas mãos do profissional, do cidadão comum e do artista.

Tecnologia do Vídeo: A Televisão e a Indústria do Vídeo

Para compreendermos a relação dos artistas com a tecnologia vídeo e como a utilizaram para obter resultados estéticos devemos, primeiro, perceber como e que tipo de acesso tiveram os artistas a esta tecnologia. A partir da década de 1960, os artistas encontrariam nos Estados Unidos da América diferentes instituições, como estações televisivas, ativas no desenvolvimento de programas, workshops e residências que permitiam espaço para exploração e produção através dos novos equipamentos de vídeo. Os Estados Unidos da América estabelecem-se como um grande exemplo no crescimento de redes de transmissão de televisão, e, consequentemente, como um banco de dados sobre a repercussão que os equipamentos do vídeo tiveram no país e no mundo. Para além disto, foram responsáveis pelo fabrico de muitos equipamentos, apesar de serem grandes importadores de equipamentos portáteis fabricados no Japão. Noutra perspetiva, também chegavam ao mercado os novos equipamentos de vídeo portáteis, acessíveis ao cidadão comum e ao artista independente que os poderiam operar e obter resultados estéticos e, subsequentemente, artísticos. Existem, portanto, duas realidades relativas ao acesso à tecnologia vídeo: o acesso em contexto institucional providenciado, nomeadamente, pelas estações de televisão públicas e o acesso permitido pelo mercado.

Durante a primeira metade do século XX, a televisão norte-americana era vocacionada, essencialmente, para o noticiário e entretimento. Contudo, a partir de 1960, começaram a surgir novos espaços para os artistas e os seus projetos. Primordialmente, em 1967, a estação de televisão WGBH (Boston, Massachusetts), com financiamentos da Fundação Rockefeller e da Fundação Ford, desenvolveu um programa de residências artísticas intitulado “New Television Workshops”. Este programa implementava uma parceria com artistas inscritos no Center for Advanced Visual Studies, um centro de artes e pesquisa criado pelo Massachusetts Institute of Technology (Huffman, 1990). Consequentemente, foi possível a produção de vários projetos e programas, como por exemplo, The Medium Is the Medium (O Meio é o Meio), um programa de televisão transmitido em 1969. Com cerca de 30 minutos, este programa funcionou como uma antologia de trabalhos desenvolvidos durante estas residências artísticas (Meigh-Andrews, 2014, p. 297). Desta antologia de trabalhos emergiram nomes de artistas pioneiros na utilização do meio do vídeo para a criação artística, tais como Alan Kaprow, Otto Piene, Aldo Tambellini, Nam June Paik, entre outros.

Ainda no contexto norte-americano, sublinhamos a importância da estação de televisão KQED (sediada em São Francisco) onde foi constituído, em 1967, o Center of Experiments in Television. Mais tarde renomeado National Center of Experiments in Television, foi fundado pela Fundação Rockefeller como um ramo de investigação e desenvolvimento da indústria televisiva (Huffman, 1990). Em Nova Iorque, contrariamente ao caso das estações televisivas de Boston e de São Francisco, a relação da estação televisão WNET com os artistas só se solidificou em 1972, aquando da criação do TV Laboratory. Liderado por David Lexton, o laboratório inspirou-se no trabalho da WGBH, com a qual trocava ideias, fundos e equipamentos. Este seria um espaço não só de trabalho e pesquisa, mas também um centro experimental para a criação artística. Terá sido nestas instalações da WNET que, a exemplo das várias obras aqui produzidas, Nam June Paik e John Godfrey criaram a emblemática obra de vídeo Global Groove (1973; Chiu & Yun, 2014, p. 27; ver starflyer2012, 2010). O TV Laboratory encerrou na década de 1980 por falta de recursos e financiamento.

As audiências em Boston continuaram a ver transmissões de teor mais experimental até à década de 1980. A WGBH transmitiu, por exemplo, um especial de 4 horas chamado The Very First On-The-Air Half-Inch Videotape Festival Ever (O Primeiro Festival de Fita de Vídeo de Meia Polegada Com Transmissão ao Vivo), onde se apresentavam trabalhos de vídeo de diversos artistas. Por sequência, Fred Barzyk, produtor da estação, dirigiu o workshop “New Television” (Nova Televisão) que resultou na transmissão semanal do Artists Showcase (Mostra de Artistas), que durou até 1982. Denota-se, desta forma, a importância desta relação transdisciplinar entre o universo televisivo e a esfera artística.

Graças a grandes investimentos, fosse de entidades privadas como a fundação Rockefeller ou de serviços públicos como o PBS, Public Broadcasting Service, as estações televisivas norte-americanas proporcionaram um ambiente exploratório, de experiência e desenvolvimento de múltiplos projetos (Huffman, 1990). Deste modo, vários artistas foram inclusive capazes de desenvolver os seus próprios aparelhos, algo que denota, nomeadamente, a necessidade prévia pelo manuseamento, pela exploração e pelo controlo das componentes técnicas para obter resultados estéticos. Nam June Paik e Shuya Abe construíram o seu sintetizador "Paik/Abe" (Meigh-Andrews, 2014, p. 136), com o qual produziram o programa Video Commune - The Beatles From Beginning to End (Video Commune - Os Beatles do Começo ao Fim), na WGBH, em 1970. No mesmo ano, Eric Siegel construiu o seu aparelho electronic video synthesizer e Stephen Beck criou o seu direct video synthesizer no National Center of Experiments in Television (Sturken, 1990, p. 101).

Em 1969, no mesmo ano da transmissão de The Medium Is the Medium na WGBH, foram produzidos os primeiros programas de televisão por artistas na Alemanha. A 15 de abril de 1969 foi transmitido na WDR 2 (Westdeutscher Rundfunk, Rádio da Alemanha Ocidental) o programa pioneiro Land Art, comissariado a Gerry Schum (Meigh-Andrews, 2014, p. 20). Neste projeto participaram artistas como Richard Long, Barry Flanagan, Dennis Oppenheim, Marinus Boezem, Robert Smithson, Jan Dibbets, Walter de Maria e Mike Heizer. Por um lado, Schum manteve uma relação próxima com as redes de televisão alemãs para manter este espaço aberto e acessível aos artistas. Por outro lado, criou, ainda em 1969, a famosa Fernsehgalerie3, que se tornou num símbolo de perseverança das disciplinas experimentais e um refúgio como lugar alternativo aos museus e outras instituições. O papel de Schum como produtor, curador, programador cultural permitiu o crescimento de criações de obras fílmicas e videográficas usando a televisão como meio e objeto artístico e, consequentemente, permitiu a progressão das práticas independentes e artísticas do vídeo.

Para além do exemplo alemão, denota-se o crescimento das relações entre as estações de televisão e a esfera artística noutros países europeus, tais como Inglaterra, Polónia e, nomeadamente, Portugal.

A televisão pública portuguesa começou emissões regulares a partir de 1957 e foi, de imediato, um instrumento essencial para a propaganda política a partir do qual "o regime apostaria forte como veículo privilegiado de ocupação dos tempos livres da população" (Cunha, 2015, p. 110). Apesar da vasta produção da Radiotelevisão Portuguesa, a produção cultural até 1974 é marcada, essencialmente, pela documentação de conferências, inaugurações de exposições, festivais internacionais de arte, bienais e programas de homenagem a artistas, como o caso do programa 50 Anos da Morte de Amadeo Souza Cardoso (Rádio Televisão Portuguesa, 1969)4, de 11 de janeiro de 1969. Apesar disto, só no contexto revolucionário do 25 de abril de 1974 foi possível repensar os modelos de produção de forma a integrar artistas e outros agentes culturais na esfera televisiva e, consequentemente, expandir as formas de utilização destes equipamentos para fins artísticos. Neste contexto revolucionário, marcado pela própria restruturação do sistema político português, também verificamos o crescimento e reabilitação da Radiotelevisão Portuguesa, a partir da atualização de equipamentos e das suas instalações. Já em 1982, o então Diretor Técnico Franco Dias recordava que

em 1976 houve necessidade de implementar todo um plano de substituição dos equipamentos ( … ) porque estavam obsoletos e desatualizados, mas também porque houve a necessidade de reconversão da televisão a preto e branco para a televisão a cores. (Caio, 1982, 00:23:26)

Este processo de modernização, à semelhança das redes de televisão internacionais, permitiu à televisão pública portuguesa começar a substituição dos equipamentos de película através da compra e utilização de equipamentos de vídeo.

A partir de dados recolhidos de fontes audiovisuais, nomeadamente das imagens de arquivo da RTP Arquivos (https://arquivos.rtp.pt/), especulamos que a Radiotelevisão Portuguesa já utilizaria equipamentos de vídeo em 1972 e 1973. Em Meios Técnicos da RTP de 1973, por duas vezes conseguimos observar dois equipamentos da Ampex nos estúdios da estação (Rádio Televisão Portuguesa, 1973, 00:00:57, 00:01:58), aludindo, portanto, à utilização de equipamentos de vídeo pela Radiotelevisão Portuguesa. Não obstante, é possível que a introdução destes equipamentos seja anterior à data deste programa. Por outro lado, estas imagens revelam ainda um espaço que operava essencialmente com equipamentos de filme (película), como podemos observar através da lavagem da película de filme ou a colocação da película nas bobinas para filmagem (Rádio Televisão Portuguesa, 1973, 00:00:24, 00:01:30). Outras fontes audiovisuais posteriores demonstram o desenvolvimento e modernização das estações de televisão, nomeadamente o programa de 1974 Sabe Onde Fazemos Televisão?…, onde já é evidente a grande utilização de equipamentos de vídeo, aos quais o locutor se refere como as "bobinas de videotape" (Ferrão, 1974, 00:35:00).

No que diz respeito à relação entre a televisão pública portuguesa e a esfera artística, para além de transmissões relevantes sobre as artes e cultura contemporânea, destacamos o programa Obrigatório Não Ver. A cargo e produzido por Ana Hatherly, este programa foi emitido semanalmente, durante a madrugada, entre 1978 e 1979. A programação desta transmissão envolveu contato com diferentes disciplinas de vanguarda (filme, performance, vídeo, etc.) e artistas contemporâneos como Fernando Calhau, Salette Tavares, Melo e Castro, Ernesto de Sousa, Emília Nadal, entre outros (Hatherly & Melo e Castro, 1981). Que importância têm estes elementos? Isto evidencia, efetivamente, a crescente proximidade de artistas independentes com o universo da televisão nacional e alguns resultados obtidos através desta interação.

Existe, porém, um momento crucial, anterior a 1974, a ter em conta neste contexto de relação entre a televisão pública portuguesa e a esfera artística. Em dezembro de 1968, Eduíno de Jesus, convidou Ernesto Manuel de Melo e Castro a participar num programa de literatura da Radiotelevisão Portuguesa com um “poema experimental’’. Deste convite nasceu Roda Lume (1968), a primeira obra de videopoesia do artista que teria, originalmente, 2 minutos e 43 segundos (António, 2014). O trabalho do artista já apresentava interações e produções nas diferentes disciplinas da poesia e da crítica e em campos de vanguarda como a performance, a poesia visual e poemas cinéticos. O seu trabalho com a tecnologia do vídeo inicia-se exatamente aquando da realização de Roda Lume (1968) nas instalações da Radiotelevisão Portuguesa, cuja transmissão ocorreu em janeiro de 1969. A obra original desapareceu, sendo que a cópia disponível, restaurada em 1986, foi intitulada Roda Lume Fogo (Melo e Castro, 1968). Este trabalho denota o papel essencial da televisão para o crescimento da produção artística através da tecnologia do vídeo. Aliás, no contexto português isto é evidente no caso especial da videopoesia, que surge da exploração da poesia visual e das novas tecnologias, como o vídeo e a computação, como instrumentos para a criação artística.

Voltemos às formas de acesso à tecnologia vídeo e ao segundo contexto apresentado. O acesso à tecnologia do vídeo é possível, também, através do mercado de venda e compra de equipamentos, em larga escala provenientes e fabricados pela indústria japonesa. Enquanto as indústrias norte-americana e inglesa desenvolveram grandes e compactos aparelhos usados em estúdios de alta produção e transmissão, a indústria japonesa dedicou-se, substancialmente, ao fabrico de equipamentos de vídeo portáteis, independentes e economicamente viáveis para o mercado. Ao contrário dos sofisticados aparelhos que exigiam grandes despesas, os equipamentos concebidos pela indústria japonesa seriam economicamente acessíveis e, consequentemente, capazes de serem comercializados a uma escala global (Bensinger, 1981).

Os sistemas de gravação portáteis japoneses conduziram também a novas formas de operar no seio do universo televisivo, porém, significaram, essencialmente, uma grande inovação para uma sociedade em transformações políticas, sociais e culturais. Desta forma, começaremos por observar contextos políticos de diferentes pontos geográficos pertinentes e analisar certas ideologias, traços filosóficos e contextos sociais que irão desencadear uma vasta e particular produção artística.

O Vídeo Como Meio de Expressão Artística: Apontamentos Ideológicos e Elementos Estéticos

A grande revolução do meio do vídeo mostrou ser extremamente promissora dado o crescente interesse e curiosidade do cidadão comum pelos vários tipos de equipamentos. No final da década de 1960, a tecnologia do vídeo crescia exponencialmente nos diferentes campos de produção, no entanto, esta atmosfera de mudança e crescimento tecnológico é justificada também por uma ramificação ideológica na sociedade da época. Marita Sturken (1990) fala-nos do desejo da captura do "tempo real" (p. 101) e do crescente fascínio pela captura de eventos e momentos com a câmara, não só pelo indivíduo mas também pelas instituições e corporações públicas e privadas. A partir disto, a tecnologia do vídeo foi explorada e operada por uma sociedade fascinada pelas suas potencialidades. É desta forma que o meio se expande para os diferentes nichos sociais e políticos, largamente através das redes de transmissão de imagem televisiva e de uma crescente rede de comunicação global. Para estes novos paradigmas sociais, Marshall McLuhan (2006) desenvolve a ideia e conceito de "global village", aldeia global, para se referir a uma sociedade de consumo e partilha de informação nas suas variadas formas (imagética, sonora, textual, etc.), interligada por essa mesma rede global de comunicação. Segundo o autor, os meios tecnológicos forçaram uma nova avaliação e reestruturação dos padrões de interdependência social e o repensar de todos aspetos da vida social (coletiva) e da vida pessoal (do indivíduo).

No seio artístico atentamos, precisamente, no desenvolvimento das práticas artísticas através da utilização dos novos meios tecnológicos, como é caso do vídeo. Mas como podemos relacionar certas ideologias e traços filosóficos inerentes ao contexto cultural e artístico com o novo paradigma social de uma certa invasão tecnológica e imagética? Consideremos o seguinte: no despertar de grandes agitações e tumultos provocados pelos eventos do maio de 1968 em Paris, um grande número de artistas direcionou a sua prática artística para questões sociais e políticas, para a documentação destas ruturas e desordens, para a criação como meio político, ativista e catalisador de mudança e transformação social. No que toca ao papel do vídeo neste contexto, há a mencionar a sua integração nas práticas artísticas de diferentes artistas como Jean Luc Godard, Chris Marker e Alain Jacquier, e ainda de coletivos que surgiram neste período, nomeadamente, o grupo Immedia, o grupo Vidéo Out, o grupo Video OO e o grupo SLON (Service of Launching of New Works) fundado por Chris Marker e André Delvaux (Meigh-Andrews, 2014, p. 28).

Muitos destes primeiros utilizadores viam-se a si próprios assumindo um gesto de profunda crítica social, uma crítica dirigida especificamente à dominação de grupos e indivíduos tipificados pelas emissões televisivas e talvez toda a cultura ocidental institucionalizada, industrial e tecnológica. Este ato de crítica foi levado a cabo através de um meio tecnológico cujo potencial para a comunicação interativa e com vários intervenientes aparece ironicamente como ilimitado. (Sturken, 1999, p. 454)

O contexto norte-americano sugere, novamente, múltiplos exemplos de relevo dentro desta ótica. Entre 1968 e 1972, surgiram distintos grupos e coletivos interessados nas novas tecnologias e outros meios de vanguarda a partir dos quais proporcionaram uma extensa atividade artística no território. Assim, destacamos o grupo Ant Farm (fundado em 1968), o Videofreex (1969), o Raindance Corporation (1970), o TVTV (Top Value Television, 1972) e o Video Free America (1972; Rush, 2007). Efetivamente, estes grupos procuraram estabelecer uma alternativa à televisão comercial, pelo que o seu interesse não residia somente na exploração técnica e estética do meio, mas também nas suas possibilidades como catalisador de mudança na comunidade e sociedade. O tecido cultural ocidental e oriental ficou gravemente marcado por revoluções políticas, por guerras e conflitos armados. Também se destacam as marchas antirracistas, manifestações e lutas por direitos civis e por igualdade de género, portanto, lutas essencialmente humanistas e sociais. Assim, e à semelhança do projeto Canada’s Challenge for Change (O Desafio de Mudança do Canadá; Meigh-Andrews, 2014, p. 37), essencial para a investigação e produção de trabalhos em vídeo dedicados às comunidades do Quebec, estes grupos norte-americanos operaram numa ótica de melhoria e evolução social. Por exemplo, o grupo Videofreex concentrou-se em documentar a contracultura, produziram vídeos sobre movimentos antirracistas como os Black Panthers, vídeos antiguerra e de outros aspetos de contestação social e de sistema (Sturken, 1990). Do seu vasto trabalho, podemos destacar obras de vídeo como: Fred Hampton: Black Panthers in Chicago (Fred Hampton: Black Panthers em Chicago; 1969) em forma de entrevista a Fred Hampton, cerca de 1 mês antes do seu assassinato pela polícia de Chicago; e Curtis's Abortion (Aborto de Curtis; 1970), um vídeo em que Mary Curtis Ratcliff descreve o seu primeiro aborto, após a legalização do procedimento no Estado de Nova Iorque, em 1970.

No ano de 1970, é criado o Raindance Corporation, um laboratório de ideias fundado por Frank Gillette, Paul Ryan (assistente de McLuhan na Free University em Nova Iorque) e Michael Shamberg (Meigh-Andrews, 2014). Também em forma de coletivo, o Raindance Corporation cresceu, substancialmente, a par das ideias de Marshall McLuhan no âmbito das tecnologias e a sua relação com a sociedade. Apoiando uma comunidade dedicada ao vídeo como forma experimental de arte, este coletivo foi responsável pela difusão de novas formas criativas e autores pioneiros. Isto resultou, nomeadamente, de publicações organizadas e editadas pelo grupo que explorava exatamente as suas preocupações e filosofias principais. Primeiramente surgiu a Radical Software (https://www.radicalsoftware.org/), uma publicação destinada a refletir sobre ideias de contracultura e a necessidade de desligar o meio da televisão e o meio do vídeo das grandes corporações e instituições, criando também uma área de conhecimento sobre a tecnologia como uma "força cultural’" (Meigh-Andrews, 2014). Em 1971, Michael Shamberg continuou a desenvolver estas ideias numa nova publicação intitulada Guerrilla Television5.

O conceito de Guerrilla Television tornou-se um reflexo do tempo e das agitações sociais do final do século XX. Marita Sturken (1990) observa que Guerrilla Television tornou-se, consequentemente, num termo que "(com as suas implicações de agressão e subversão) significava uma específica criação de vídeo ativismo — activist videotape — que funcionava como uma observação irónica da insensatez, assim como uma revolta estilística contra as convenções da televisão" (p. 121). À semelhança do próprio meio do vídeo, estes traços filosóficos e formas de operar a tecnologia espalharam-se pelo globo, nomeadamente, através dos tumultos políticos e sociais que estariam em erupção, em intensidade diferentes, neste período. Este carácter ativista atribuído ao vídeo e às praticas artísticas contemporâneas procura, essencialmente, reformular o medium, assegurando uma certa descentralização e democratização do mesmo. Efetivamente, a crescente acessibilidade ao meio do vídeo permitiu, com o passar do tempo e os desenvolvimentos da tecnologia, a sua própria omnipresença.

Como referido, a tecnologia do vídeo surge em Portugal já no final da década de 1960 e início da década de 1970. Porém, no que toca à produção artística independente, notamos um número escasso de obras de vídeo, algo que se solidifica somente a partir de década de 1980 em diante. Não obstante, nas primeiras décadas, as peculiaridades do meio do vídeo permitiram interesse e um certo crescimento entre o cidadão comum e os artistas, como é o caso já mencionado de Melo e Castro e de Julião Sarmento, que começa a trabalhar com vídeo em 1977. À semelhança de exemplos internacionais, a produção de vídeo em Portugal revela um interesse pela representação e clausura do corpo, bem como um especial interesse em utilizar o meio para registar e documentar performances e acontecimentos, como seria o caso de Helena Almeida e Ção Pestana.

Relativamente às ideias de subversão e contestação que marcam a época, devemos notar na produção artística gerada no ambiente revolucionário do 25 de abril de 1974. Neste contexto não se destacam obras de vídeo, pelo que surgem, essencialmente, diferentes propostas estéticas no campo das artes plásticas. Não obstante, consideramos de grande importância a obra simbólica Revolução (1975) de Ana Hatherly que, apesar de realizada em super8 (película de filme), demonstra desde já a preocupação na documentação como ato subversivo e na utilização de tecnologias de gravação como instrumentos políticos. Os mesmos gestos de irreverência seriam notáveis mais tarde, desde a exposição "Alternativa Zero" de 1977 até à obra Merda (2006) de Alexandre Estrela.

Já em 1980, a vaga de produção artística através do vídeo cresceu significativamente, principalmente a partir das práticas de artistas como Ernesto de Sousa, Helena Almeida, João Vieira, António Palolo, Leonel Moura, José Vasconcelos e Cerveira Pinto. No mesmo ano, surge o grupo videOporto, pioneiro na prática coletiva de produção artística através do meio. O grupo fora fundado por Ção Pestana, Silvestre Pestana, Henrique Silva, Abel Mendes e, posteriormente, contaria com a colaboração de artistas e agentes culturais como Adriano Rangel, António Barros, Borges Brinquinho, Fernando Ribeiro, Rui Orfão e Mineo Aayamagushi (Dias, 2016, p. 290).

Se voltarmos ao exemplo francês, encontraríamos, na década de 1960 e 1970, três mulheres vocacionadas para o ativismo através do vídeo, Carole Roussopoulos, Delphine Seyrig e Ioana Wieder, fundadoras do Simone de Beauvoir Audiovisual Center, em 1982. Para Rossopoulos e Seyrig, tornaram-se claras as potencialidades da tecnologia do vídeo como instrumento político e social que poderia ser utilizado, no caso das suas práticas, ao serviço do movimento feminista. Já na década de 1970, a partir do seu coletivo Les Insoumuses (Defiant Muses), realizaram diferentes obras como SCUM Manifesto6 (1976) e Maso et Miso Vont en Bateau (Maso e Miso Vão de Barco; 1976). Para as artistas, o vídeo tornou-se numa tecnologia crucial para tornar visível a complexidade das experiências femininas, para documentar e partilhar as suas reflexões, exigências e problemáticas (Pretesin-Bachelez & Zapperi, 2019). Estes atos, partilhas e documentos corporizam a ideia de Guerrilla Television que surge, então, como força de combate às convenções e ao conservadorismo social e político que recusa qualquer progresso.

Dado o exemplo do vídeo como forma de subversão, de contestação, pelo seu papel nas lutas por direitos civis e igualdade de género, é importante mencionar alguns nomes de artistas independentes e os seus contextos. Começando por incluir exemplos de produção oriental, destacamos as práticas de artistas japoneses que, apesar de um profundo interesse nas capacidades do vídeo como meio documental, também recorreram ao mesmo para trabalhar as suas inquietações sociais, incluíndo as preocupações face ao papel da mulher em sociedade. Em 1973, Kyoko Michishita, detentora de uma vasta obra de vídeo e filme, criou a sua obra Being Women in Japan: Liberation Within My Family (Ser Mulher no Japão: Libertação Dentro da Minha Família). As suas obras demonstram um caráter irreverente contra as convenções sociais e os arquétipos criados sobre a mulher. A artista concentrou-se nos desafios de explorar o papel da mulher e sua perceção pela sociedade, algo que se articula com outras criações da época, nomeadamente, com as obras de Mako Idemitsu. Da artista destacamos duas obras, What a Womem Made (O Que Faz uma Mulher; 1973) e Another Day of a Housewife (Mais um Dia de uma Dona de Casa; 1977-1978; ver The Museum of Modern Art, 2020). Num cenário alusivo a uma cozinha, a personagem feminina da obra Another Day of a Housewife concentra-se nas suas tarefas domésticas, numa rotina cansativa e repetitiva. Encontramos estes mesmos elementos na obra Semiotics of the Kitchen (Semiótica da Cozinha; 1975; ver Everything has its first time, 2017) de Martha Rosler, onde a artista, de forma cómica e de sátira às convenções sociais, enclausura o seu corpo (novamente) num cenário doméstico (a cozinha). Tal como Mako Idemitsu descreve:

comecei a usar o vídeo para registar o quotidiano das mulheres. Passei a lidar com o dia a dia das mulheres, que também incluía as não-rotinas. Desta forma, o vídeo tornou-se um meio que usei para explorar o comportamento consciente e inconsciente das mulheres. Another Day of a Housewife acompanha uma dona de casa nas suas atividades diárias enquanto um olho sempre presente, retratado num aparelho de televisão portátil, observa suas rotinas. Deixo isto em aberto para o espectador interpretar. O que eu achei interessante foi explorar a noção de observação. (Idemitsu, como citada em London, 1979, p. 14)

Estas obras apresentam, efetivamente, um certo ato performativo, dada a gravação e observação do seu corpo, da sua própria rotina, dos seus movimentos e atividades. A presença do corpo sugere uma proximidade e intimidade entre artista, câmara e o observador. Observamos então um elemento estético transversal a estas obras: o corpo, ou a sua representação.

A câmara como confessionário permitiu um espaço para a vocalização das ideias, das inquietações, sátiras e retratos quotidianos que funcionariam como espelho coletivo. Muitas obras de vídeo, criadas especialmente em 1960 e 1970, revelam a procura por uma espécie de "humanização" da tecnologia contra a sua robustez e frieza, sobretudo, através destas preocupações conceptuais e estéticas reflexivas. Numa perspetiva ocidental, estas características são evidentes nas práticas artísticas de diferentes artistas, tais como Joan Jonas, John Baldessari, Bruce Nauman, Sanja Ivekovic, Martha Rosler, Vito Acconci, entre muitos outros. Debrucemo-nos, então, sobre alguns elementos estéticos que compõem obras destes artistas e atentaremos na obra Left Side Right Side (Lado Esquerdo Lado Direitom 1972, ver Chymefti Bozini, 2012) de Joan Jonas e na obra Violin Tuned D.E.A.D. (1969) de Bruce Nauman.

O pequeno ecrã surge como confessionário, como espaço íntimo do artista, do seu corpo e das suas análises. No caso da obra de Joan Jonas, a artista enclausura o corpo num espaço claustrofóbico onde explora a extensão da sua pele enquanto explica (ao espectador ou a si mesma) os traços e contornos corporais que a constituem. "Este é o meu lado direito. Este é o meu lado esquerdo" (00:01:44), afirma a artista enquanto toca nas duas metades da sua face. O processo explicativo, que decorre durante cerca de 20 minutos, varia entre: olhos, cara, pescoço e é frequentemente interrompido por outras ações ou imagens como desenhos de espirais que a artista faz no chão, auxiliada por outros objetos como o material riscador e o espelho. Este caráter performativo e de exploração entre o corpo e o espaço surge, também, na obra de Bruce Nauman. Novamente o corpo enclausurado, em Violin tuned D.E.A.D. (1969), Nauman forma um exercício longo, repetitivo e exaustivo. Durante, aproximadamente, uma hora, a ação performativa consiste na afinação lenta e demorada de um violino. O nosso olhar reconhece já este espaço, o estúdio do artista, de trabalhos anteriores como Playing A Note on the Violin While I Walk Around the Studio (Violin #1) (Tocar uma Nota Sobre o Violino Enquanto Ando pelo Estúdio; 1967-1968) em que Bruce Nauman toca, repetidamente, uma só nota no seu violino.

Das práticas artísticas portuguesas destaca-se o trabalho de Helena Almeida, no qual o vídeo surge na sua forma documental ou de registo. Atentemos na sua obra Ouve-me (1979; ver Esquizofrenia das Artes, 2021), que parte originalmente de uma obra fotográfica sequencial e se transforma num momento performativo captado em vídeo. Ouve-me, produzida em conjunto com Artur Rosa, apresenta o corpo da artista que, escondido e capturado por uma tela branca, tenta fugir e gritar através da camada têxtil. Os elementos estéticos, anteriormente referidos, refletem-se perfeitamente nesta obra que enclausura o corpo consciente de si mesmo e da sua condição. A clausura e o corpo são traços evidentes no trabalho de Helena Almeida, bem como os elementos da exploração da identidade e da autorrepresentação que tantos outros artistas exploram nas diversas áreas. A representação do corpo, do grito e de uma certa angústia encontram-se também em trabalhos de vídeo de Cristina Mateus, nomeadamente, em Grito (1997), no qual se apresenta um grande plano de uma boca recortada do resto do corpo. Nesta obra, na qual os gritos estridentes são interrompidos por breves momentos de silêncio, o loop serve de mecanismo que permite a sua repetição imediata e constante, fazendo deste um exercício repetitivo e perturbador.

Devido à ideia de que o vídeo tinha surgido com pouca herança estética e poucos constrangimentos narrativos, este era um suporte favorito para trabalhos que fossem ao mesmo tempo pessoais e confessionais e também explicitamente políticos na desobstrução do corpo. Pode dizer-se também que a flexibilidade da câmara de vídeo, o facto de as cassetes vídeo serem pouco dispendiosas (ao contrário dos filmes de 16mm) e a possibilidade que o vídeo oferecia aos artistas de verem a imagem enquanto gravavam, tudo contribuiu para o trabalho experimental sobre o corpo. (Sturken, 1999, p. 557)

As potencialidades técnicas e as possibilidades estéticas da tecnologia do vídeo permitiram, assim, um novo olhar do artista sobre si mesmo e sobre o seu corpo. O trabalho experimental sobre o corpo surge, também, como consequência da exploração das propriedades do vídeo. Como observado, estas são ações longas e repetitivas de exploração do corpo, pelo que contemplam elementos performativos e documentais. Para além disso, estas ações constituem um elemento estético particular da imagem em movimento: a duração. Os vários sistemas e formatos de vídeo permitiam, efetivamente, a criação de obras com diferentes durações. O vídeo impôs, então, uma atenção rigorosa ao espectador, pelo que exigia a atenção e uma resposta do mesmo baseada no tempo. Enquanto a duração surge como um desafio ao ritmo das estações televisivas, o tempo do vídeo também permitiu explorar a sua materialidade, permitindo ao artista ter em conta, ou recusar completamente, as limitações temporais da fita e da cassete ou a atenção das audiências (Sturken, 1999).

Outro elemento estético que devemos ter em conta e que se articula com a duração é a rejeição da narrativa. A estrutura convencional de contar uma história foi largamente ignorada ou subvertida pelos artistas de vídeo, que procuraram alternativas para a exploração da imagem em movimento. Efetivamente, as artes plásticas colocavam já em causa a narrativa tradicional filiada, substancialmente, ao teatro e ao cinema. Desta forma, para além do trabalho sobre o corpo, o vídeo permitiu também a exploração da abstração na imagem em movimento e das próprias questões da perceção imagética e sonora, como é mais evidente no trabalho de Anthony McCall, Michael Snow, André Sier, Alexandre Estrela, entre outros. Assim, a duração e a rejeição da narrativa, seja nas suas formas imagéticas abstratas ou em ações e movimentos corporais repetitivos, transformaram-se em elementos estéticos que surgem como matéria da vida real, monótona, repetitiva e fugaz.

Para concluir, atentemos nas referidas potencialidades estéticas do vídeo e consideremos o seguinte: como elaborado na primeira parte deste trabalho, a tecnologia do vídeo revelou ser extremamente promissora e viável em termos económicos. Isto permitiu a sua expansão para novos formatos e suportes devido ao crescente interesse do cidadão comum pelo meio. Comercializado a uma escala global, a tecnologia do vídeo permaneceu em crescimento no seio doméstico e social. Parece-nos, portanto, considerável e importante relacionar este aspeto com o modus operandi na esfera artística. O artista utiliza o vídeo e o corpo através dos quais apresenta as suas reflexões, pensamentos e discursos sejam de caráter político ou pessoal. A presença do corpo, da representação da rotina e do quotidiano sugerem uma crescente inter-relação entre as práticas artísticas e as práticas do cidadão comum (práticas domésticas), algo que revela, em parte, o caráter democrático e social do meio. Tal como previsto por McLuhan e outros teóricos, os meios tecnológicos forçaram a restruturação das relações sociais e os vários aspetos da vida coletiva e individual, de forma que, à semelhança dos diversos meios tecnológicos emergentes nas últimas décadas, o vídeo estabeleceu-se como elemento totalmente presente e essencial na sociedade do século XXI.

Considerações Finais

Ao contemplar a produção na esfera artística através do meio do vídeo observamos elementos particulares que sugerem uma complexa dinâmica em que o meio surge como instrumento para diversas formas de utilização. O vídeo, que se propagou internacionalmente como um produto comercial, desempenhou um papel substancial em movimentos de contestação, primeiramente, dos sistemas políticos e dos arquétipos sociais. Para tal contribui um simples fator: o vídeo, cujos avanços tecnológicos o transformaram num medium acessível e barato, tornou-se num meio dirigido para as massas. Assim, o conceito de vídeo doméstico revolucionou a forma de registo e consumo de imagem e de som, largamente possível através da cassete de vídeo (introduzida na década de 1970) e da sua estrutura compacta e portátil. Efetivamente, esta característica de acessibilidade permitiu, também, a expansão da atividade criativa contemporânea. Para os artistas ativos a partir da década de 1960, o vídeo surgiu como meio experimental com o qual puderam desafiar os cânones e tradições da imagem e da imagem em movimento.

Relembremos, também, o papel das instituições e das redes de televisão para o crescimento do vídeo como forma de arte. Estas estruturas permitiram espaço de exploração, criação e estabeleceram formas de difusão das obras produzidas, o que por si só se reconhece como medidas importantes para o desenvolvimento da historiografia deste meio, a partir da agregação e partilha de conhecimento. Isto revela uma certa ambiguidade e paradigma: embora a produção de arte independente seja uma fonte importantíssima para estes estudos, é devido às instituições que o vídeo alcançará um novo estatuto social e artístico. Rosalind Krauss (1976) reflete que, para a geração que amadureceu com este meio desde a década de 1960, os meios de comunicação social tornaram-se o único meio de validar as obras feitas em vídeo como arte. A ambiguidade surge, portanto, através da institucionalização do vídeo por macro instituições que projetaram uma imensa sombra na produção artística independente. Desta forma, muitos artistas independentes e coletivos seriam conhecidos como artistas ou grupos de contestação de sistema, não necessariamente opondo-se à produção no mundo da televisão, mas opondo-se à extrema desvalorização da produção independente. Apesar desta aparente oposição, verificamos o natural contágio e intersecção entre estas duas realidades. Não obstante, seja na sua forma institucional, integrado no universo televisivo, ou na sua forma independente e artística, o vídeo demonstrou ser, tal como Rancière (2014) afirma, "uma matéria infinitamente maleável" (p. 119).

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Notas

1Ao nível da gravação e registo do som, já em 1928, Luigi Marzocci, um inventor, teria preenchido uma patente para cabeças rotativas feitas para a gravação analógica de som (Nmungwun, 1989, p. 99).

2"Portapak" é o nome comum para os sistemas portáteis de gravação de vídeo. Consiste num conjunto de câmara de vídeo portátil com microfone integrado e um visor eletrónico, um gravador de vídeo e um monitor (Bensinger, 1981).

3Fernsehgalerie ou Television Gallery foi um suporte de transmissão criado por Schum para divulgação de diferentes obras de vídeo (ver Electronic Arts Intermix, s.d.).

4Este e outros programas pode ser vistos em https://arquivos.rtp.pt/. Algumas das referências aqui utilizadas foram disponibilizadas posteriormente em arquivos digitais, como o Arquivo RTP e Arquivo Digital da PO.EX (https://po-ex.net/). Nesses casos, é disponibilizado o link na referência para que o leitor possa aceder ao mesmo, mesmo não sendo parte da referência original.

5No site oficial de Raindance, a história das publicações relata sobre aspetos de Guerrilla Television: "Guerrilla Television delineou uma filosofia e prática sobre meios alternativos, criou um texto instrutivo com ensaios, ilustrações e conselhos práticos escritos em linguagem apropriada para jovens ativistas. Embora os números exatos de distribuição não sejam conhecidos, podem ter sido vendidas 25.000 cópias, talvez mais. Criado por Ant Farm, um grupo de vídeo e design da costa oeste americana com o qual Shamberg teve contato por meio do seu amigo de faculdade, Allen Rucker, a Guerrilla Television foi dividida em duas seções: 'Meta Manual', que consistia numa destilação das ideias dos seus associados transferidas por Shamberg, e 'Manual', que continha informações mais práticas" (Gigliotti, 2003, Secção "Guerrilla Television").

6SCUM Manifesto é uma obra baseada no manifesto feminista e homónimo de Valerie Solonas publicada em 1967. Sentadas frente a frente, Carole Roussopoulos e Delphine Seyrig, uma lê o manifesto enquanto a outra escreve. Temos acesso a uma cópia digital desta obra na base de dados do Simone de Beauvoir Audiovisual Center (Roussopoulos & Seyrig, 1967).

Recebido: 15 de Maio de 2022; Revisado: 29 de Maio de 2022; Aceito: 30 de Maio de 2022

Mauro Gonçalves (nascido em 1997) é mestre em história da arte, património e cultura visual (2021) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Realizou um estágio na Fundação de Serralves durante o qual desenvolveu a investigação patente no relatório O Vídeo nas Práticas Artísticas Contemporâneas — Um Estudo a Partir da Coleção da Fundação de Serralves e do Museu de Arte Contemporânea. Na mesma instituição concluiu a especialização em cinema e cultura visual (2019) e ainda é licenciado em artes visuais e tecnologias artísticas (2018) pela Escola Superior de Educação. Em 2022, ingressou no 3º ciclo (doutoramento) em estudos do património, onde pretende continuar investigação relativa à imagem em movimento e os meios tecnológicos. Email: mauro.santosg@gmail.com. Morada: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n 4150-564 Porto, Portugal

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