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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão impressa ISSN 1647-4090versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.12  Lisboa dez. 2019  Epub 30-Jul-2021

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2019.12/pp.17-34 

Artigo Original

A Separação entre a Sociedade Civil e o Estado e a Crise do Estado Soberano

Samuel de Paiva Pires1 

1 Universidade da Beira Interior Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Portugal.


RESUMO

Resumo A separação entre a sociedade civil e o Estado é um produto da modernidade que tem no seu cerne a dicotomia entre esfera pública e esfera privada. Esta marca o liberalismo e subjaz à contestação do papel do Estado soberano nas últimas décadas, resultado da ascensão do neo-liberalismo incorporado nos processos da globalização económica assentes nas ideias liberais de comércio livre, livre circulação do capital, desregulação e privatização. Para compreendermos esta problemática, inquirimos sobre como se processou a separação entre os conceitos de sociedade civil e Estado e por que razão esta se encontra na origem da contestação contemporânea ao papel do Estado soberano, uma das dimensões da crise do Estado soberano. Como tal, traça-se a origem e evolução do conceito de sociedade civil desde Aristóteles e evidencia-se que, após a vigência do entendimento do integracionismo aristotélico, a modernidade produziu duas conceções de sociedade civil, uma liberal e outra marxista, que fundamentaram as respetivas correntes político-ideológicas, cujos confrontos na praxis política tiveram como desfecho a prevalência da corrente liberal. Esta prevalência é apontada como um dos principais fatores subjacentes à contestação contemporânea ao papel do Estado e, consequentemente, à crise do Estado soberano, demonstrando-se o seu impacto nos processos de globalização e de complexificação da vida internacional e deixando patentes as formas como estes contribuem para a contestação do papel do Estado

Palavras-chave: crise do Estado soberano; Estado; globalização; liberalismo; marxismo, sociedade civil

ABSTRACT

Abstract The separation between civil society and the state is a product of modernity that is centered in the dichotomy between the public and the private spheres. Liberalism is marked by this separation which has underlied challenges to the role of the sovereign state in the last decades, resulting from the rise of neo-liberalism embodied in the processes of economic globalization based on liberal ideas of free trade, free movement of capital, deregulation and privatization. In order to understand this issue, it is inquired how the separation between the concepts of civil society and the state took place and why it is at the origin of the contemporary challenge to the role of the sovereign state. As such, the origin and evolution of the concept of civil society since Aristotle is traced and it is evidenced that, after the Aristotelian conception, modernity produced two conceptions of civil society, a liberal on the one hand, and a Marxist on the other. They underlie the respective political-ideological currents, whose clashes in political praxis had as a result the prevalence of the liberal perspective. This prevalence is pointed out as one of the main factors underlying the contemporary challenge to the role of the sovereign state and, consequently, its recent crisis, its impact on the processes of globalization and the complexification of international life is demonstrated and the ways in which these contribute to the challenge of the role of the State are illustrated

Keywords: civil society; globalization; liberalism; marxism; sovereign state crisis; state

1. Introdução

Se a forma como um filósofo encara a natureza humana permite, até certo ponto, antecipar boa parte dos seus argumentos e ideias (Ketcham, 1958), também não deixamos de poder vislumbrar que a forma como se perspectiva a sociedade tem influência direta na consequente conceção de Estado (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 233).

No âmbito da teoria política contemporânea, onde o liberalismo é a perspectiva dominante, importa abordar a questão da separação entre o Estado e a sociedade civil, porquanto esta tem no seu cerne a dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada que marca o liberalismo contemporâneo, oposição esta que tem sido um dos fatores subjacentes à contestação ao papel do Estado moderno. O que se observa atualmente, segundo Francis Fukuyama, é uma tendência para

reduzir a dimensão dos sectores do Estado e entregar ao mercado ou à sociedade civil funções que tinham sido anexadas de forma inadequada. Ao mesmo tempo, o crescimento da economia global tem provocado um desgaste acentuado na autonomia dos Estados-nação soberanos, ao aumentar a mobilidade da informação, do capital e, em menor grau, do trabalho (2006, p. 127).

Perante esta problemática, afigura-se particularmente oportuno inquirir sobre como é que a separação entre a sociedade civil e o Estado contribui para a contestação contemporânea ao papel do Estado e, por esta via, para a crise do Estado soberano?

O nosso objectivo geral será o de evidenciar que a separação entre a sociedade civil e o Estado é uma das variáveis que contribui para a contestação contemporânea ao papel do Estado e, consequentemente, para a crise do Estado soberano, ao passo que os objetivos específicos serão, em primeiro lugar, analisar as origens da separação entre a sociedade civil e o Estado; em segundo lugar, mostrar que a separação entre estes tem no seu cerne a dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada; e por último, demonstrar de que formas a dicotomia entre a sociedade civil e o Estado contribui para a contestação contemporânea ao papel e funções do Estado e, por esta via, para a crise do Estado soberano.

2. A Separação entre a Sociedade Civil e o Estado

O conceito de sociedade civil, pese embora a evolução histórica e filosófica que sofreu desde a Antiguidade Clássica, ainda hoje é disputado e pode ser perspetivado de diversas formas. Podendo intuir-se que se refere a uma esfera social distinta da família e do Estado e marcada pela ausência de coerção e pela liberdade de associação, há, todavia, divergências quanto aos elementos que a compõem, especialmente quanto à inclusão da economia ou de empresas (Chambers & Kopstein, 2006, p. 363).

Norberto Bobbio (1997) assinala que na dicotomia entre sociedade civil e Estado é “impossível fixar o significado e alcance da sociedade civil sem fazer o mesmo para o Estado.” Negativamente, aquela pode ser definida como “o domínio das relações sociais não reguladas pelo Estado,” que, por sua vez, pode ser entendido de forma redutora como “o complexo de aparelhos que exercem o poder coercivo num sistema social organizado” (p. 22).

Todavia, esta separação é um produto da modernidade, já que durante séculos a ideia de sociedade civil designava “o conjunto de instituições que, em regra, hoje constituem o Estado” (Bobbio, 1997, p. 40). Para o compreendermos, impõe-se uma genealogia do conceito de sociedade civil.

Na Grécia Antiga, a polis corresponde, de certa forma, ao que hoje chamamos Estado. Em Roma a civitas é a sucessora da polis e é dela que emerge a respublica. Para Aristóteles, a polis resulta da agregação de aldeias (kome), i.e., um conjunto de casas (oikos) (Maltez, 1996, p. 327). A polis é uma sociedade perfeita marcada pelo objectivo de se bastar a si mesma, a autarquia, ou seja, pelo viver, mas exigindo o bem viver, e é esta segunda exigência que a diferencia das associações infrapolíticas, tornando-a superior, na medida em que visa um bem superior ao destas (Maltez, 1996, p. 336). É na polis que se realizam a lei e a justiça (Maltez, 1996, p. 333), a liberdade e a participação política, sendo tanto autarcia como comunhão, ou seja, a “mistura de uma terra, de um povo e de uma ideia, onde a ideia faz da multidão um povo e trata de espiritualizar um determinado território” (Maltez, 1996, p. 336).

Em Aristóteles, a sociedade civil é a koinonía politiké, a comunidade política, a polis, que é uma associação natural, tal como a família (Bobbio, 1997, p. 36). Há uma dicotomia entre a família e o Estado, entre a societas domestica e a societas civilis, em que civilis vem de civitas e corresponde exactamente a politikós, originada a partir de polis (Bobbio, 1997, p. 31). Ou seja, sociedade civil designava precisamente sociedade política.

Já em Roma, esta vai ser concebida por Cícero como civitas, desta emergindo a ideia de respublica, aquilo “que os gregos chamavam polis, considerando-a como coisa do povo, como a sociedade formada pelo amparo do direito e com o fim da utilidade comum” (Maltez, 1996, p. 337). Mas a respublica viria a ser “expropriada pelo princeps, sendo esmagada pelo peso do Imperium” (Maltez, 1996, p. 338). Só na época medieval é que a ideia renasce, pela mão de São Tomás de Aquino, que restaura e cristianiza a ideia de política e para quem a civitas era precisamente a polis, a sociedade política. Efectivamente, “Onde o grego fala de koinonía politiké, o dominicano refere a expressão sociedade política” (Maltez, 1996, p. 186).

Há, portanto, uma indistinção entre o civil e o político, correspondendo a civitas romana à polis grega (Maltez, 1996, pp. 186-187). Mas, se em Aristóteles, Cícero e São Tomás de Aquino sociedade civil significa sociedade política, eis que, por volta de 1415, Leonardo Bruni incorreu num erro de tradução quando, “ao proceder à adaptação moderna da Política de Aristóteles, traduziu koinonía politiké, equivalente à civitas dos romanos e à communitas civilis dos autores medievais, por sociedade civil, e não por sociedade política, como corretamente o fizera São Tomás de Aquino” (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 246).

Suarez, Hobbes, Locke e Rousseau falam em sociedade civil, mas atribuem-lhe o mesmo significado de sociedade política. Para os autores que seguem a inspiração aristotélica e tomista, esta seria uma sociedade perfeita capaz de unificar todas as outras numa sociedade total, tendo um “bem comum pleno diferente do bem comum existente nas sociedades particulares” (Maltez, 1991, pp. 246-247), sendo dotada de uma autonomia intrínseca e de uma autonomia extrínseca e na qual o Estado é apenas uma parcela, já que a sociedade civil é, como salienta Suarez, o mesmo que povo e que república, uma esfera maior que abrange o Estado (Maltez, 1991, p. 247).

Para este integracionismo aristotélico, que não absolutizou o Estado, não existe dualismo entre sociedade civil e sociedade política. Será “com Hegel, na linha de A.L. Von Schlötzer, dos fisiocratas, de Adam Ferguson e de Fichte” que se vai contrapor “sociedade civil e sociedade política, e absolutizar-se o Estado” (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 242).

Todavia, Bobbio (1997, p. 41) faz remontar a origem do dualismo a Maquiavel, assinalando que a partir deste só por razões escolásticas é que se pode equacionar o Estado com a societas civilis, embora a definição se torne crescentemente incongruente, especialmente com o advento da sociedade burguesa. Com efeito, o Estado moderno começa a tomar forma a partir do Renascimento, com a invenção do seu nome por Maquiavel e o estabelecimento, por Jean Bodin, do seu “princípio gerador, a soberania, entendida como o poder absoluto e perpétuo de uma república” que não reconhece um superior na ordem externa, e que Hobbes viria, posteriormente, a desenvolver, reclamando também a ideia de soberania interna e consagrando o absolutismo (Maltez, 1996, pp. 342-343).

Encontram-se aqui as raízes de um “dualismo revolucionário que talvez seja mais uma das heranças recebidas do próprio absolutismo, dado que este tratou de extrair o Estado da Sociedade a fim de poder destacar o povo, como uma entidade especial de súbditos acima da qual dominava um soberano, com um poder superior a qualquer outro” (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 242). Após este entendimento absolutista, com a Revolução Francesa torna-se “existencial a ideia de revolta da sociedade contra o Estado” (Maltez, 1996, p. 298).

Hannah Arendt salienta precisamente a ascendência da esfera social como um fenómeno moderno:

Embora o erro de interpretação e o equacionamento das esferas (realm) política e social sejam tão antigos como a tradução latina de expressões gregas e a sua adaptação ao pensamento romano-cristão, a confusão que deles decorre agravou-se no uso moderno e na moderna concepção da sociedade. A distinção entre uma esfera privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado. Mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem pública no sentido restrito do termo, é um fenómeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e encontrou a sua forma política no estado nacional (2001, p. 43).

Na mesma linha, Bobbio (1997, p. 23) faz notar que o entendimento moderno de sociedade civil deriva de um contraste desconhecido para a tradição clássica entre uma esfera política e uma não-política. Esta distinção é característica do contratualismo, cujos autores, conforme referimos, utilizavam indistintamente os conceitos de sociedade civil e sociedade política (Harris, 2006, p. 134). Aquela, a partir do contratualismo jusnaturalista, vai ser concebida não com base na dicotomia aristotélica entre família e polis, mas sim na oposição entre um imaginado estado de natureza e o estado de sociedade ou sociedade civil.

Se Locke ainda atribuía o significado de sociedade política à sociedade civil, com o desenvolvimento do liberalismo clássico, este passará a ter como elemento central a separação entre a sociedade civil e o Estado, criticada, entre outros, por pensadores integralistas, como Charles Maurras, por democratas-cristãos, como Giorgio La Pira (Maltez, 1991, Vol. 2, p. 186), e por conservadores, como Roger Scruton. Este sublinha que uma completa separação entre a sociedade civil e o Estado é um princípio fundamental do liberalismo, em relação ao qual os conservadores se mostram relutantes (2001, p. 40).

Segundo John Gray (1995), “É nos escritos dos filósofos sociais e economistas políticos do Iluminismo Escocês que encontramos o primeiro estudo abrangente e sistemático dos princípios e fundações do liberalismo” (p. 24), e são precisamente estes autores que teorizam uma ideia de sociedade civil, no cerne da qual se encontra a separação entre esta e o Estado e a distinção entre uma esfera pública e uma esfera privada. Conforme já sublinhámos, Arendt (2001, p. 43) faz notar que esta dicotomia remonta à Antiguidade Clássica, à oposição entre a família e a polis. Mas, modernamente, nas palavras de Bobbio,

Com o nascimento da economia política que levou à diferenciação entre a esfera das relações económicas e a esfera das relações políticas, as relações económicas foram substancialmente entendidas como relações entre desiguais (como o resultado da divisão do trabalho) mas formalmente iguais no mercado. A dicotomia público/privado reaparece sob a forma da distinção entre a sociedade política (de desiguais) e a sociedade económica (de iguais). Do ponto de vista do agente característico de cada uma, realizou-se uma distinção entre a sociedade do cidadão que atende ao interesse público, e a do burguês que cuida dos seus próprios interesses privados em competição ou colaboração com outros indivíduos (1997, p. 5).

Também Adam B. Seligman (1995, p. 5) sublinha que a distinção entre as esferas pública e privada é constitutiva da moderna ideia de sociedade civil desenvolvida pelo Iluminismo Escocês. Fundamentando a ideia de sociedade civil nas “afeições morais e simpatia natural” dos indivíduos, o Iluminismo Escocês sublinha a propensão humana para o reconhecimento mútuo e para a troca, que está no cerne do mercado livre (Seligman, 1995, p. 27). Partindo desta perspetiva, Bernard Mandeville (1988) sustenta que num determinado contexto institucional dirigido por estadistas sagazes (Seligman, 1995, p. 32) os vícios privados podem ser transformados em benefícios públicos, ao passo que Adam Smith (1904, Vol. 1) teoriza a mão invisível, “uma metáfora para descrever o mecanismo pelo qual o interesse próprio dos indivíduos contribui para o benefício de terceiros” (Alves, 2006, p. 43).

Em An Essay on the History of Civil Society de Adam Ferguson (1995) encontramos um entendimento de sociedade civil em que civilis já não significa apenas civitas, mas civilitas, i.e., em que sociedade civil significa também sociedade civilizada, polida, representando um momento do progresso histórico da Humanidade, que passa de uma condição selvagem em que não existe Estado nem propriedade para “a condição barbárica de indivíduos que praticam a agricultura e introduzem os primeiros germes da propriedade” e, finalmente, “para uma condição civilizada caracterizada pela instituição da propriedade, pela troca e pelo Estado” (Bobbio, 1997, p. 38).

A concepção de sociedade civil do Iluminismo Escocês influenciou os alemães Kant, Fichte e Hegel. O primeiro segue uma linha de continuidade, em certas matérias, em relação ao pensamento dos moralistas escoceses, em especial de David Hume (Seligman, 1995, pp. 41-42), mas redefine sociedade civil como uma ideia “baseada nos direitos humanos universais que supera todas as ordens legais e particularísticas” (Cohen & Arato, 1994, p. 90) e distingue o Estado enquanto sociedade política da sociedade civil, à qual atribui o papel de uma arena pública onde o debate racional e a crítica têm lugar (Seligman, 1995, pp. 43-44). Fichte chama a atenção para que o Estado e a sociedade civil não sejam confundidos, sendo o primeiro uma espécie particular de sociedade, ao passo que a segunda é um fim em si mesmo onde a espécie é aperfeiçoada (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 243).

Mas é com Hegel “que a ideia de sociedade civil atinge as culminâncias” (Maltez, 1996, p. 298). Com este “vai contrapor-se sociedade civil e sociedade política, e absolutizar-se o Estado” (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 242) e elaborar-se uma terceira concepção de sociedade civil, que tanto difere do integracionismo aristotélico como do contratualismo liberal, considerando a sociedade civil como o “segundo estágio no processo de desenvolvimento do «espírito do mundo» (weltgeist), depois da família, considerada como a sociedade natural, e antes do Estado, identificado com a sociedade política” (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 243).

Hegel (1991, pp. 220-274) divide a sociedade civil em três momentos: o sistema de necessidades, a administração da justiça e a polícia (em conjunto com a corporação). As relações económicas são abrangidas apenas pelo primeiro momento (Bobbio, 1997, p. 31). De acordo com Maltez (1991, Vol. 1, p. 243), a sociedade civil é a “sociedade dos particulares ou sociedade dos burgueses (bürgerlich), que apenas tem como objectivo a prossecução dos interesses dos mesmos particulares, dedicando-se preferentemente a actividades económicas.” Já a sociedade política é a sociedade dos cidadãos que “Constitui um todo orgânico que absorve e integra as respetivas parcelas, desde a sociedade civil ao próprio poder político exercido pelos funcionários do Estado” (p. 243).

É também Hegel quem prepara o terreno para “o reavivar do interesse dos filósofos pela política, cuja primeira expressão se encontra nos escritos de Karl Marx” (Scruton, 2010, p. 274). Este, tendo estudado Hegel, conclui que as “instituições legais e políticas têm as suas raízes nas relações materiais da existência,” cujo complexo designa por sociedade civil, quando, na realidade, esta é uma interpretação parcial e redutora de Hegel. A sociedade civil de Marx é apenas o primeiro momento da sociedade civil de Hegel (Bobbio, 1997, p. 27). Assim, Marx considera que a “anatomia da sociedade civil só pode ser feita através da economia política” (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 244). Mas Marx e Engels “vão instrumentalizar o conceito hegeliano de sociedade civil, entendendo-a como sociedade das classes: «a sociedade civil, na sua totalidade, é esta guerra de todos os indivíduos uns contra os outros»” (Maltez, 1991, p. 243). Ou seja, a sociedade civil de Marx é a sociedade burguesa, composta por homens egoístas, que assume um sentido de classe e é tratada como um sujeito histórico (Bobbio, 1997, pp. 28-29).

Para Marx, a ideia de sociedade civil enquanto mero complexo das relações económicas no qual se alicerça a superestrutura legal e política significa que a sociedade civil está fora ou antecede o Estado, tratando-se, segundo Bobbio (1997), “da mesma esfera pré-estatal que os jusnaturalistas e, em certa medida na senda destes, os primeiros economistas, começando pelos fisiocratas, chamaram de estado de natureza ou sociedade natural” (pp. 27-28).

Marx subverteu Hegel, como o próprio admite (Seligman, 1995, p. 52). Enquanto para Hegel a sociedade civil é um estágio intermédio, inferior, que se realiza plenamente na concretização do Estado, em Marx, não só a sociedade civil é apenas o primeiro momento da sociedade civil de Hegel, como também lhe é atribuída uma conotação pejorativa, ao ser a sociedade dos burgueses egoístas, e ainda é profetizado o seu desaparecimento por via da reunificação entre a esfera social e a esfera política (Seligman, 1995, pp. 56-57), uma unidade que viria a produzir, historicamente, regimes políticos totalitários.

O entendimento de sociedade civil como domínio das relações económicas a que Marx chegou, não obstante ser uma interpretação parcial de Hegel, tornou-se dominante na tradição hegeliana-marxista (Bobbio, 1997, pp. 30-31), ainda que não seja totalmente consistente dentro da própria tradição marxista. Nesta, tem particular relevo a conceção de Antonio Gramsci, para quem o “momento da sociedade civil é ele próprio superestrutural” (Bobbio, 1997, p. 29), sendo “o conjunto dos organismos vulgarmente ditos privados que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade” (Maltez, 2018, pp. 473-474).

3. A Contribuição da Dicotomia entre a Sociedade Civil e o Estado para a Crise do Estado Soberano

Feita a genealogia do conceito de sociedade civil e evidenciada a separação entre esta e o Estado, cumpre salientar a sistematização de Bobbio (1997, p. 24) de três ênfases quanto à definição de sociedade civil enquanto domínio não-estatal, podendo ser entendida como pré-estatal, anti-estatal ou pós-estatal. No primeiro caso, trata-se de uma ênfase cronológica, no segundo, de uma ênfase valorativa, e no terceiro, de uma ênfase simultaneamente cronológica e valorativa.

Para Seligman (1995, p. 5), as diferentes conceções que analisámos subjazem a duas tradições políticas, a liberal e parlamentar e a socialista de índole marxista. Estas permeiam a teoria política contemporânea e estão também no centro do embate entre os totalitarismos do século XX e os regimes demo-liberais. Todavia, Jose Harris (2006, p. 137) salienta que o debate sobre a ideia de sociedade civil teve um papel mínimo, quase inexistente, neste embate, com referências por parte, por exemplo, de Jacques Maritain, a serem marginalizadas do mainstream do debate político, e a ideia de sociedade civil a ser simplesmente ignorada ou apenas abordada por via da concepção marxista. A sua abordagem enquanto antecedente ou antítese do Estado é dominante no debate político contemporâneo (Bobbio, 1997, p. 40).

Historicamente a tradição marxista produziu o totalitarismo comunista e foi derrotada com a dissolução da União Soviética. Mas a sua influência faz-se sentir no debate político ainda hoje, até porque partilha com a tradição liberal a concepção da sociedade civil como pré-estatal, ainda que, valorativamente, a tradição liberal tenha um entendimento positivo da sociedade civil, e a marxista a perspetive negativamente. Este é um ponto-chave para compreendermos a contribuição da dicotomia entre o Estado e a sociedade civil para a contestação contemporânea ao papel do Estado e, consequentemente, para a crise do Estado soberano.

Durante a Guerra Fria as tradições liberal e marxista confrontaram-se na praxis política, numa competição entre tradições adotadas por diferentes grupos, que levou a que os que seguiram a tradição liberal prosperassem e os que escolheram a tradição marxista deixassem de prosperar. Assistiu-se a um processo hayekiano de seleção natural de tradições em competição (Feser, 2003; Gray, 1998, p. 41; Hayek, 1991, pp. 11-28; 135-140). Com a vitória do Ocidente, subsistiu a tradição liberal enquanto tradição dominante, embora a tradição marxista continue presente quer na teoria política, quer na praxis política, ainda existindo regimes políticos que adotam as suas ideias e também partidos políticos em regimes demo-liberais que se revêem no marxismo.

Conforme Steven Scalet e David Schmidtz (2002) salientam, “Os liberais clássicos estão comprometidos com as liberdades civis e económicas, e com o governo limitado,” sendo a sociedade civil “a comunidade que delega autoridade no governo, (…) e o corpo no qual reside a autoridade última” (pp. 26-27). O liberalismo procura fixar limites à ação do governo e expandir o raio de atuação da esfera da sociedade civil, argumentando que o primeiro é inerentemente coercivo (Palmer, 2002, p. 61) e, logo, um mal, enquanto a sociedade civil se caracteriza por relações voluntárias, sendo, portanto, um bem. O mesmo é dizer que dá primazia à esfera privada e tende a desconfiar da esfera pública ou política.

Foram precisamente estas ideias que fundamentaram as políticas de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América, na década de 1980. Nas palavras de Gideon Rachman (2011), as políticas mais importantes de Thatcher “foram desenvolvidas a partir da sua convicção fundamental nas virtudes de um governo pequeno, redução de impostos, privatização, desregulamentação, combate à inflação e ao poder dos sindicatos. Todas tinham a intenção de enfraquecer o Estado e estimular a iniciativa privada” (p. 44).

Reagan, por seu lado, definiu o seu próprio mandato quando, ao tomar posse, afirmou que “Na presente crise o governo não é a solução dos nossos problemas, o próprio governo é o problema.” Thatcher tinha por alvo o que considerava como o consenso socialista que existia no Reino Unido “desde o fim da Segunda Guerra Mundial.” Reagan estava “determinado a inverter aquilo que ele considerava ser uma tendência histórica e debilitante em relação a um governo cada vez mais manipulador e intrusivo” (Rachman, 2011, pp. 51-52).

Em ambos há uma clara contestação do papel e das funções do Estado assente na dicotomia entre o Estado e a sociedade civil. Ora, de acordo com Maltez,

Esta dicotomia Estado-Sociedade Civil, patente nos recentes slogans políticos de libertação e autonomia da sociedade civil e de menos Estado e melhor Estado, traz o equívoco de se identificar com a divisão entre o mundo administrativo e mundo das empresas ou entre o princípio da legalidade e o princípio da concorrência, entre a hierarquia e a igualdade, quando não entre o mal e o bem ou, então, entre o arcaísmo e a modernização. Uma dicotomia crescentemente maniqueísta que, naturalmente, não conduz à verdade (1991, Vol.1, p. 235).

E o mesmo autor acrescenta:

Diga-se, de passagem, que este tópico clássico, que distingue o Estado e a Sociedade se transformou, nos últimos tempos, num instrumento de propaganda de muitas forças políticas ocidentais que tanto falam na «autonomia da sociedade civil», como em «menos Estado e melhor Estado», gerando-se, ao mesmo tempo, uma reacção «desreguladora» e «privatizadora» face ao Welfare State. Resta saber se em vez de «menos Estado se pretende apenas «menos governo» e se, em vez de «melhor Estado», se quer dizer, sem o rigor da terminologia tomista, «melhor sociedade política» (Maltez, 1991, Vol. 1, p. 249).

Segundo Matthew Flinders (2006), nos últimos 25 anos do século XX assistimos a “mudanças significativas na estrutura e governação do Estado, mudanças imbuídas da crença de que os serviços ou funções públicos não têm de ser necessariamente realizados ou conduzidos por instituições puramente públicas.” Esta é uma ideia que subjaz ao new public management, que tem por objectivo tornar o sector público mais eficiente através do alargamento da lógica do mercado àquele, uma perspectiva que levou à criação de agências governamentais “híbridas e a um concomitante obscurecimento da distinção público-privado num grande número de países” (pp. 223-224).

Friedrich Hayek, em quem Thatcher e Reagan muito se inspiraram, ainda que reconheça a importância do Estado e repudie a concepção do Estado mínimo que alguns liberais adotam, dedica um capítulo de Law, Legislation and Liberty (1982, Vol.3) a esta temática, onde argumenta que não existe justificação para que alguns serviços estejam reservados ao governo.

Mas a contestação contemporânea ao papel do Estado em favor da expansão da esfera de atuação da sociedade civil, em especial do mercado livre, não se fez nem faz sentir apenas no plano interno de alguns Estados. Uma das características do liberalismo é o universalismo, a afirmação “da unidade moral da espécie humana e o ser atribuída uma importância secundária a associações históricas ou formas culturais específicas” (Gray, 1995, p. xii). Daí que, com a vitória do bloco Ocidental sobre a União Soviética, Francis Fukuyama (1992) tenha recuperado a ideia de fim da história de Hegel e Alexandre Kojève para afirmar que o advento da democracia liberal assente numa ordem económica capitalista representaria precisamente o culminar da história. Segundo John Gray (2008), esta convicção é uma “expressão da fé iluminista de que a humanidade evolui para uma civilização universal que, de forma diferente, moldou regimes comunistas” e “foi mais reforçada do que enfraquecida pelo colapso soviético” (p. 105).

Numa época marcada pela “adoração do privado e, em particular, pelo culto da privatização” (Judt, 2011, p. 107), o fim da Guerra Fria expandiu esta adoração para lá do bloco Ocidental, com os países da antiga União Soviética a adotarem economias baseadas no mercado livre (Gilpin, 2001, p. 5). Nestes países a concepção de sociedade civil do Iluminismo Escocês ganhou particular relevância (Seligman, 1995, p. 7).

Assistiu-se à globalização de um modelo político, a democracia liberal, e de um modelo económico, o capitalismo assente no livre mercado. Robert Gilpin (2001, pp. 5-8) assinala que a globalização económica fez aumentar rapidamente o comércio internacional, subjazendo-lhe também a eliminação de barreiras ao comércio livre e, a partir da década de 1970, os processos de desregulação e privatização que abriram as economias internacionais às importações e estimularam diversas economias a aumentar o seu sector exportador. Em conjunto com a criação de novos instrumentos financeiros e avanços tecnológicos nas comunicações e transportes, a globalização económica contribuiu para aumentar significativamente o nível de integração do sistema financeiro internacional. Neste panorama, ganharam especial relevância as empresas multinacionais e transnacionais, responsáveis por elevados fluxos de investimento direto externo em diversos países e pelo aumento do comércio internacional, contribuindo para transformar significativamente a economia internacional.

Desempenham também um papel essencial na globalização económica instituições como a Organização Mundial do Comércio ou o Fundo Monetário Internacional. Como Maltez (2002) assinala, ainda que o mundo não se tenha concretizado como sociedade e esteja longe de constituir uma comunidade, “sempre podemos detetar nele imensos sinais de instituições económicas globais e de uma espécie de governação (governance), mesmo que não haja Governo (government), enquanto aparelho de Estado) ” (pp. 104-106). As organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas, bem como organizações de âmbito regional, como a União Europeia, são parte essencial desta governação sem governo, no âmbito da qual tanto os Estados pressionam aquelas organizações, como estas pressionam os Estados. Conforme assinala Fukuyama (2006), “A soberania do Estado tem sido desgastada também a partir de um outro sector. Surgiram várias organizações internacionais e multilaterais que foram concebidas para assumir algumas das funções governativas dos Estados-nação.” Mas a sua capacidade para atuar eficazmente possui variações significativas. “Algumas, como a confusa diversidade de organizações técnicas e normativas, criam de facto regras internacionais que são cumpridas e contribuem para melhorar muito a eficiência global.” Mas outras organizações, “de natureza mais política, têm tendido a desgastar a legitimidade dos Estados-nação sem colocar no seu lugar instituições internacionais eficazes” (p. 125).

A globalização e a complexidade crescente da vida internacional (Moreira, 2005, p. 155) têm levado alguns observadores a acreditar que o Estado-nação se tornou “um anacronismo e está em retirada” (Gilpin, 2001, pp. 8-9). Todavia, as opiniões dividem-se. Gilpin (2001, p. 18), considera que os Estados continuam a ser os principais atores das relações internacionais, embora o Estado soberano esteja claramente sob ataque abaixo e acima de si, e salienta que as consequências da globalização económica para o “Estado-nação têm sido consideravelmente exageradas. Para o melhor ou para o pior, este ainda é um mundo dominado por Estados” (pp. 362-363).

Sandra Balão (2011) partilha da mesma perspectiva e não só assinala que “as diferentes características da Globalização contemporânea não parecem, de todo, pré-figurar a demissão e/ou o desaparecimento do Estado-Nação, nem sequer a erosão do próprio Estado,” como ainda sublinha que muitos Estados “se tornaram mais ativos e dinâmicos, quer na Política Externa quer na Política Interna” (p. 217).

Também Maltez faz notar que

Se o Estado soberano está em crise, verifica-se, pelo contrário, que tal forma institucional tem continuado a fomentar a sua própria ultrapassagem. Primeiro, ele está em crise quando é contestado por grupos subestaduais que querem autodeterminar-se, de acordo com o princípio das nacionalidades, mas estes, quando o conseguem, a primeira coisa que fazem é constituir-se em Estados soberanos. Segundo, o Estado soberano pode ver-se ameaçado pela globalização, mas é através dele que esta se tem fomentado. Basta assinalar que, desde 1945, foram depositados na ONU cerca de 50 000 tratados bilaterais e multilaterais. (…) São, aliás, os próprios Estados que dão corpo às grandes cimeiras globais, até admitindo que nelas participem organizações não-governamentais. (2002, p. 169)

Parece, por isso, ter razão David Held (2006) quando afirma que vivemos uma época de transição em que “Por um lado, existem tendências claras que se combinam para enfraquecer a democracia e a responsabilização dentro e para lá do Estado-nação” existindo uma “progressiva concentração de poder nas mãos do capital multinacional (produtivo e financeiro) ” e observando-se “o papel enfraquecido dos Estados em face dos processos e forças do mercado global.” Por outro lado, a ONU tem uma elevada suscetibilidade às agendas dos Estados mais poderosos, resultando num sistema multilateral desproporcional. Por isso, a política internacional parece estar dependente da economia global e do multilateralismo conduzido por clubes ou diretórios como o G7 ou o G8 (p. 304).

Observa-se, assim, como James Rosenau assinala Em Turbulence in World Politics, segundo Maltez (2002), que o Estado “começa a ser cercado por outros influentes atores, situados por dentro e acima dele,” sendo o mundo marcado por “uma espécie de bifurcação a nível das estruturas globais, situando-se, de um lado, o soberanismo e o mundo centrado nos Estados e, do outro, um multicêntrico espaço, com atores livres da soberania” (p. 222).

Entre os atores não-soberanos assumem particular relevância as Organizações Internacionais Não-Governamentais (OING’s). Estas compõem a chamada sociedade civil global. Os elementos mais visíveis desta sociedade civil global são os movimentos sociais e as referidas OING’s, como a Greenpeace ou a Cruz Vermelha, que procuram responder a desafios e problemas que atravessam as fronteiras dos Estados soberanos. Rainer Forst (2007) sublinha que “Ao contrário do que acontece no modelo clássico de sociedade civil, existe uma muito maior pluralidade de atores e interesses nesta esfera, desde organizações de direitos humanos a movimentos ecológicos, grupos culturais, sindicatos e igrejas,” e acrescenta ainda que “Estas têm uma verdadeira (…) função intermediária, pois estabelecem relações (de crítica ou solidariedade) entre pessoas individuais e grupos particulares, regiões, instituições públicas e privadas, Estados, atores transnacionais e organizações supranacionais (especialmente a ONU) e públicos nacionais e transnacionais” (p. 460).

A título de sistematização, observamos que a dicotomia entre a sociedade civil e o Estado, e em particular a concepção de sociedade civil da tradição liberal, que valoriza a sociedade civil enquanto principal domínio da ação humana e desconfia do exercício do poder político, contribui para a contestação contemporânea ao papel do Estado e, por esta via, para a crise do Estado soberano em três níveis.

Primeiro, abaixo do Estado, a reprodução da dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada, em favor da segunda, está na base de políticas que pretendem não só limitar o âmbito de atuação do Estado como reduzi-lo. Esta visão procura devolver à sociedade civil funções desempenhadas pelo Estado, em especial aos agentes económicos privados, mormente através do processo de privatização do público e/ou do político.

Em segundo lugar, num nível que tanto pode ser considerado acima, como ao lado, ou até atravessando os Estados, por via da globalização económica e do desenvolvimento das relações económicas internacionais amplificou-se o processo mencionado em primeiro lugar. Ainda que não exista um Estado global e, portanto, não haja lugar a uma devolução de funções deste para uma sociedade civil global, a concepção liberal universalista procura expandir o sistema capitalista a todo o mundo de uma forma que conduz a que a sociedade civil entendida como domínio das relações materiais extravase as fronteiras dos Estados. Efectivamente, os mercados financeiros, o comércio internacional e as empresas transnacionais, ou seja, o capitalismo global, têm contribuído para um enfraquecimento do poder dos Estados ou, pelo menos, para uma reconfiguração do papel destes no que à economia concerne, em virtude das pressões que sofrem por parte dos agentes económicos.

Por último, também atravessando os Estados, assiste-se ao estabelecimento de uma sociedade civil global enquanto domínio das relações associativas não-governamentais e não económicas, de que as OING’s são a face mais visível, embora esta esfera se caracterize por uma pluralidade e multiplicidade de atores, associações e movimentos sociais. No fundo, enquanto o processo anterior se refere àquela parcela da sociedade civil entendida como o domínio das relações materiais, como acontece com a tradição marxista, este último processo diz respeito à outra parcela da sociedade civil das relações associativas não económicas.

4. Conclusão

Para respondermos à nossa pergunta de partida tornou-se mister proceder a uma genealogia da ideia de sociedade civil, dando cumprimento ao primeiro objectivo específico a que nos propusemos, analisar as origens da separação entre a sociedade civil e o Estado.

Assim, evidenciámos a evolução histórica do conceito de sociedade civil desde a Antiguidade Clássica, ficando patentes três conceções: a do integracionismo aristotélico, a do contratualismo liberal e a hegeliano-marxista. É a partir da segunda, especialmente com os desenvolvimentos do Iluminismo Escocês, que se diferencia a esfera das relações económicas da esfera das relações políticas, passando a sociedade civil a ser o domínio das primeiras por excelência, assim reaparecendo a dicotomia entre as esferas pública e privada, que na Antiguidade Clássica subjazia à dicotomia entre família e Estado, o que consubstancia o nosso segundo objectivo específico, evidenciar que à separação entre a sociedade civil e o Estado subjaz a dicotomia entre a esfera privada e a esfera pública.

Dentro da concepção hegeliano-marxista, tornou-se dominante o entendimento de Marx, para quem a sociedade civil é o domínio exclusivo das relações económicas, que em Hegel apenas compreendiam um primeiro momento daquela. Marx e os Iluministas Escoceses partilham o entendimento da sociedade civil como pré-estatal, diferenciando-se por, para os últimos, a sociedade civil ser o domínio das relações associativas tanto económicas como não-económicas e ser moralmente perspetivada como um bem, ao passo que, para Marx, é a sociedade dos burgueses egoístas, sendo entendida como moralmente má.

A concepção dos Iluministas Escoceses e a conceção marxista fundamentam as correntes políticas liberal e comunista, que se enfrentaram politicamente durante o século XX. Deste confronto resultou a vitória da primeira, simbolizada pela dissolução da União Soviética. Para este desfecho da Guerra Fria, muito contribuíram Reagan e Thatcher. Estes, no plano doméstico, aplicaram políticas assentes na dicotomia entre a sociedade civil e o Estado, confundida com a esfera privada e a esfera pública, sendo os primeiros termos das dicotomias valorizados, e os segundos, ou seja, a noção do político, desvalorizados. Visaram, assim, enfraquecer o Estado e promover a iniciativa privada. Estas ideias expandiram-se, após a Guerra Fria, a diversos países ex-comunistas, que procuraram adotar o modelo político da democracia liberal e o modelo económico do capitalismo.

Com a globalização económica, o capitalismo global aprofundou-se e muitos observadores concluíram pelo enfraquecimento do papel do Estado. Todavia, outros salientam que estas observações são exageradas e que o Estado não só se mantém como o ator mais importante das relações internacionais, como é um dos principais fomentadores da globalização. Por outro lado, no atinente às relações associativas não-económicas, assistiu-se à emergência da chamada esfera da sociedade civil global, no âmbito da qual os atores mais visíveis são as OING’s.

Para finalizar, concretizando o último objectivo específico, que consubstancia o nosso objectivo geral de evidenciar que a separação entre a sociedade civil e o Estado é uma das variáveis que contribui para a contestação contemporânea ao papel do Estado e, consequentemente, para a crise do Estado soberano, e respondendo à nossa pergunta de partida, demonstrámos que esta dicotomia contribui para a erosão da soberania do Estado em três níveis: no plano doméstico, em que se tem procurado reduzir o papel, funções e tamanho do Estado, atribuindo funções deste à sociedade civil, especialmente aos agentes económicos privados; acima, ao lado e atravessando o Estado, em resultado da globalização económica que reforçou o papel das empresas transnacionais e dos fluxos de capital e enfraqueceu a autoridade e a legitimidade do Estado para intervir em matérias que se concebe como da exclusiva competência do mercado livre; por último, emergiu a sociedade civil global, onde se desenvolvem relações associativas não económicas, composta por OING’s, movimentos sociais transnacionais, clubes, igrejas, sindicatos e afins, acabando muitos destes atores por desafiar a autoridade do Estado em diversas matérias.

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Sobre o autor SAMUEL DE PAIVA PIRES é Professor Auxiliar Convidado na Universidade da Beira Interior (UBI) e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-UL). Licenciado em Relações Internacionais, Mestre em Ciência Política e Doutorado em Ciências Sociais, na especialidade de Ciência Política, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-UL). Investigador na PRAXIS - Centro de Filosofia, Política e Cultura (UBI), no Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP do ISCSP-UL) e no Observatório Político, versando sobre nas áreas da Teoria Política, Teoria das Relações Internacionais, Política Externa e Política Internacional.

About the author SAMUEL DE PAIVA PIRES is a visiting Assistant Professor at the University of Beira Interior (UBI) and at the Higher Institute of Social and Political Sciences of the University of Lisbon (ISCSP-UL). Bachelor in International Relations, M.A. in Political Science and PhD in Social Sciences, specializing in Political Science, from ISCSP-UL. Researcher at PRAXIS - Center for Philosophy, Politics and Culture (UBI), the Center for Administration and Public Policy (CAPP of ISCSP-UL) and the Political Observatory, focusing on the areas of Political Theory, International Relations Theory, Foreign Policy and International politics.

Recebido: 26 de Novembro de 2018; Aceito: 16 de Dezembro de 2019

Autor correspondente: Samuel de Paiva Pires. Universidade da Beira Interior | Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Portugal; samuelppires@gmail.com.

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