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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão impressa ISSN 1647-4090versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.13  Lisboa jun. 2020  Epub 18-Maio-2021

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2020.13/pp.143-147 

Recensões

A Era dos Muros

Diogo Moreira1 

1Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Portugal.


Marshall, T. (2019). A Era dos Muros. Como as Barreiras Entre Nações Estão a Mudar o Nosso Mundo. Lisboa: Desassossego

Tim Marshall é um jornalista britânico conhecido pelo seu trabalho na área de Relações Internacionais. Trabalhou na BBC e foi editor de diplomacia no canal Sky News. Cobriu uma série de conflitos em todo o mundo, e escreveu para vários jornais como o The Guardian, o The Times, ou o The Telegraph.

Nesta obra, o autor apresenta o conceito de “muros”, primeiramente, de maneira literal, isto é, como barreiras que funcionam como separadores físicos, tal como acontecia com o Muro de Berlim ou entre Israel e Gaza. Mas para além das barreiras físicas, o autor analisa toda uma narrativa que deve ser explorada, de maneira a evidenciar as causas e os fundamentos dessas mesmas divisões, que para além de materiais “ilustram os desafios de identidade num mundo globalizado” (Marshall, 2019, p. 17).

A obra está dividida em oito capítulos, onde o autor analisa as condições históricas, geopolíticas, económicas ou religiosas de diferentes zonas do mundo. Os casos estudados por Marshall remetem para uma investigação de como as condições supramencionadas influenciam a existência de barreiras, tanto físicas como psicológicas e as implicações no status quo regional e internacional.

No primeiro capítulo, denominado “O Grande Firewall: China”, o autor refere a Grande Muralha como um muro que dividia “aqueles que são chineses e aqueles que não o são” (Marshall, 2019, p. 23), querendo com isto dizer que “de um dos seus lados estava a civilização, do outro estavam os bárbaros” (Marshall, 2019, p. 23). Esta ideia introduzida pelo objetivo e significado da construção da Muralha remete às disparidades atuais que existem dentro da China, nomeadamente, entre as regiões costeiras e o interior (com destaque para Xinjiang e o Tibete), tal como o autor explica ao longo do capítulo (Marshall, 2019, pp. 21-41).

Marshall evidencia a necessidade que o Partido Comunista da China encontra em equilibrar as discrepâncias “entre o urbano e o rural, os ricos e os pobres” (Marshall, 2019, p. 22), de maneira a manter um território unitário através de uma população unida. O autor destaca também o problema do “envelhecimento da população” (Marshall, 2019, p. 34). Para além de diferentes medidas do governo chinês, abordadas por Marshall, este destaca a ferramenta principal da manutenção de estabilidade na China: a “firewall” de informação existente entre a China e o resto do mundo. Esta sim, pode ser afirmada como a maior “Muralha” existente na China, enquanto funciona também como a melhor ferramenta do Presidente Xi no combate à democracia e à liberdade de expressão (Marshall, 2019, pp. 21-41).

Ao longo do segundo capítulo, “Construam Esse Muro!: EUA”, o autor analisa como a própria idealização da construção de um Muro na fronteira EUA/México por Trump e o seu eleitorado, se materializa em divisões acentuadas na sociedade: divisões étnicas e religiosas. Enquanto que no primeiro capítulo o autor sugere a necessidade política de unidade inerente à estabilidade do próprio Estado, no segundo capítulo Marshall analisa quais os efeitos discriminatórios da migração crescente, da diversidade na sociedade norte-americana, e do racismo estrutural. Ao mesmo tempo que realça como a exclusão institucional das minorias não só vai contra o conceito de diversidade assente no lema “E pluribus unum” que se pode ler no Grande Selo dos EUA, mas como provoca exatamente o efeito contrário: a polarização e separação identitária (Marshall, 2019, pp. 47-71).

No terceiro capítulo “Baseemo-nos nos factos: Israel e Palestina” o autor aborda as barreiras entre os israelitas e os palestinianos, tanto políticas como físicas, na Cisjordânia e em Gaza. Marshall recorda como apenas 3% do muro que separa Israel da Cisjordânia é feito de betão, mas que ainda assim o “impacto visual resultante da austeridade de um muro” é impressionante (Marshall, 2019, p. 77). Contudo, tal como nos capítulos anteriores, o autor não se debruça sobre o muro em si mesmo, mas sim em relação ao conflito israelo-palestino e as suas repercussões políticas que se combinam com questões religiosas. Também no quarto capítulo “Linhas na Areia: O Médio Oriente” o autor encara as questões religiosas como fulcrais. Ao longo deste capítulo, Marshall analisa as dinâmicas do Médio Oriente, nomeadamente as tensões e diferenças xiitas/sunitas e como a sobreposição da política e da religião tornam complicadas quaisquer ultrapassagens possíveis de conflitos na mesma zona. Aliás, pela primeira vez, o autor alerta para a necessidade de um muro, “aquele entre religião e política” (Marshall, 2019, p. 118).

“Um íman para migrantes: O subcontinente indiano” é o título do quinto capítulo em que o autor trata diversos problemas associados à migração no subcontinente indiano e ao sistema de castas que gera grandes divisões sociais na Índia. Tal como nos capítulos anteriores Marshall relembra as origens das divisões no subcontinente: “derivam parcialmente das fronteiras traçadas por potências coloniais, compostas por preconceitos religiosos e étnicos regionais e realidades políticas” (Marshall, 2019, p. 126). O autor analisa com detalhe as consequências dos fluxos migratórios Bangladesh/Índia e ainda a existência de “refugiados climáticos” (Marshall, 2019, p. 135).

No capítulo seis, “O Estados Das Nações: África”, o autor persegue uma ideia já apresentada anteriormente, mas cujo impacto é extremamente superior em África, dada a grande concentração dos processos colonizadores ao longo dos séculos. Marshall remete para as consequências das fronteiras instituídas pelos europeus, que ignoraram o contexto identitário das diferentes tribos existentes. O autor aborda a necessidade política existente em África dos Estados-nação se distanciarem do passado colonialista, para que o continente africano conseguir prosperar. Para além dessa análise, o autor evidencia diversas vezes como a pobreza é o grande problema em África, as desigualdades sociais e as suas consequências a nível social: “ao lado dos ricos vivem os incrivelmente pobres, que lutam pela sobrevivência com menos de dois dólares por dia” (Marshall, 2019, p. 166). Esta ideia de pobreza e desigualdade surge, paralelamente, por um lado de uma exposição sobre a criminalidade como consequência de diversos fatores sociais, e por outro, com realce das realidades dicotómicas entre a existência de condomínios fechados em contraste com os bairros pobres. Marshall sugere que para o continente africano prosperar “precisa de equilibrar a redescoberta dos seus sentidos de nacionalidade pré-coloniais com as realidades dos Estados-nação atualmente em funcionamento” (Marshall, 2019, p. 172).

O capítulo sobre a Europa, número sete, “Uma União Cada Vez Mais Próxima?: Europa”, começa com uma pequena análise histórico-sociológica sobre o Muro de Berlim e a Cortina de Ferro. O autor descreve o Muro de Berlim como “a derradeira divisão política do século XX que dividiu a Europa de uma forma que, nos dias que correm, parece inimaginável” (Marshall, 2019, p. 185). Marshall realça diferentes aspetos da queda do Muro e da reunificação que ainda existem, porém com uma tendência decrescente, nomeadamente aspetos que remetem a contrastes regionais.

Ao longo do capítulo, o autor refere diferentes desafios associados à União Europeia, desde logo com o fim da URSS a integração com os países da Europa de Leste, que provocou grandes fluxos migratórios vindos dessa zona. A crise financeira de 2008, o ressurgimento da Rússia com a anexação da Crimeia, uma onde crescente de nacionalismos desvalorizados numa primeira instância por Bruxelas, e uma divisão cultural crónica entre o Ocidente e o Leste são outros desafios enumerados por Marshall no contexto da estrutura supranacional. Mas sobretudo, o autor discute a crise dos refugiados como momento-chave de uma série de problemas que se vivem na União Europeia, nomeadamente, um aparente problema de diversos Estados da União com migrantes muçulmanos. Finalmente, Marshall remete para o problema principal que assombra a UE nos últimos anos: o crescimento da extrema-direita e das “democracias iliberais” (Marshall, 2019, p. 203).

O último capítulo “Os lamentos dos bretões: Reino Unido” centra-se, numa primeira fase, nas questões relacionadas com nacionalismos regionais. Nomeadamente, o autor aborda as dinâmicas identitárias da Escócia e os seus recuos e avanços da centralização do poder ao longo da história, introduzindo a questão através do Muro de Adriano. Posteriormente, foca-se na Irlanda do Norte, nas perspetivas unionistas ou nacionalistas, realçando os aspetos relacionados com os muros em Belfast, e como a perda das condutas religiosas podem influenciar o futuro da Irlanda do Norte no Reino Unido (Marshall, 2019, pp. 209-219).

Na segunda parte do capítulo, Marshall explora algumas origens possíveis para o voto a favor do Brexit, debatendo a questão das desigualdades de classe no Reino Unido: “Apenas 7% da população do Reino Unido frequentaram escolas privadas, mas são eles que dominam os mais altos níveis do sistema judicial, das forças armadas, da BBC, das grandes corporações, da administração pública e dos principais partidos políticos”. (Marshall, 2019, p. 221). O autor evoca a falta de representatividade que os cidadãos britânicos podem sentir, e a isso junta um desconforto pela mudança, desprezado pelos políticos, nomeadamente, no que diz respeito a uma população heterogénea em termos culturais e religiosos (Marshall, 2019, pp. 220-230).

Por fim, Marshall sumariza diferente soluções e contrapartidas das mesmas nos diferentes problemas abordados ao longo da obra, muros físicos ou psicológicos, mas baseados nas realidades da pobreza, das desigualdades sociais, e dos nacionalismos religiosos ou não. O autor evidencia a necessidade de canalizar dinheiro para as zonas mais pobres, onde está a maioria das pessoas, uma vez que uma solução de “fronteiras abertas”, apresentado por Nathan Smith na Foreign Affairs em 2017 não seria sustentável num longo prazo com os países pobres a tornarem-se países sem população se as condições de vida não melhorassem. O autor aponta também para os perigos associados às mudanças climáticas e aos refugiados climáticos, como foi abordado anteriormente no capítulo relativo ao subcontinente indiano, e como esse problema se pode vir a conjugar num futuro próximo com os perigos da automação (Marshall, 2019, pp. 233-243).

Marshall conclui aquilo que será um mundo de muros, caso não exista aceitação universal do Homem:

“(…) até que haja a aceitação da irmandade universal do homem, e um mundo em que não haja competição pelos recursos, limitar-nos-emos a construir muros. Foi sempre assim. Somos animais. Maravilhosos, por vezes belos, por vezes feios, com capacidades incríveis, infinitos na nossa imaginação, mas mesmo assim criaturas deste mundo e, tal como qualquer outra criatura, precisamos do nosso espaço.” (Marshall, 2019, p. 242)

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Referências

1. Marshall, T. (2019). A Era dos Muros. Como as Barreiras Entre Nações Estão a Mudar o Nosso Mundo. (L. C. Real, Ed., & S. Gonçalves, Trad.) Lisboa: Desassossego. [ Links ]

2. A expressão é aplicada por Marshall, e como o mesmo explica, foi utilizada por Viktor Orbán em 2014, tratando-se de uma aspiração para a Hungria pelo primeiro-ministro húngaro. (Marshall, 2019, p. 203) [ Links ]

3. A Muralha de Adriano foi construída em 122 d.C. pelos romanos, no intuito de defender os territórios conquistados das partes por conquistar. (Marshall, 2019, pp. 209-210) [ Links ]

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