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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão impressa ISSN 1647-4090versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.14  Lisboa dez. 2020  Epub 30-Mar-2021

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2020.14/pp.159-164 

Recensões

Os Desafios do Pós-Pandemia: Democracia, Globalização e Rearranjos Geopolíticos

Samuel Caetano Vilela1 

1 CES/FEUC, Universidade de Coimbra, Portugal.


Krastev, I. (2020). Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the Pandemic. London: Penguin Books

Ivan Krastev, politólogo, é internacionalmente considerado um dos mais respeitados analistas. É investigador no Instituto de Ciências Humanas de Viena, colunista no The New York Times e autor de vários livros dedicados ao estudo da Democracia e a um conjunto de temáticas relacionadas com a Europa.

Em Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the Pandemic, Krastev analisa os processos de tomada de decisão na resposta à pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, as consequências que esta, assim como a crise que lhe sucederá poderão ter nos regimes democráticos, no processo de globalização e, claro, no projeto europeu. É uma obra assinalável, que contribui para uma reflexão crítica sobre muitas das decisões tomadas ao longo dos últimos meses pelos diversos atores e agentes políticos. Não obstante, Krastev alerta que o livro - que qualifica como um ensaio - “não é uma previsão de como será o mundo pós-COVID-19, nem é um manifesto sobre como deverá ser esse mundo”. O objetivo é “analisar a calamidade da COVID-19 como fenómeno novo” (Krastev, 2020b, p. 31).

Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the Pandemic visita e revisita diversos temas e conceitos-chave ao longo das secções em que se encontra organizado. Para esta recensão, que tem como propósito evidenciar o valor da obra para o estudo da ciência política, afigura-se pertinente sequenciar as várias hipóteses e argumentos avançados por Krastev de forma distinta da original.

1. A ação política entre a incerteza e o risco

O surto de Covid-19 terá começado em dezembro de 2019, tendo a primeira morte sido registada a 9 de janeiro. No entanto, a gravidade da situação apenas foi assumida pelas autoridades chinesas no final desse mês, a 22. Este hiato temporal terá sido determinante para o evoluir da epidemia. Ainda assim, quando a 11 de março, a Organização Mundial de Saúde, elevou o estado de contaminação para pandemia, os Estados já tinham sido avisados para a necessidade de se prepararem, designadamente no que respeita à aquisição de dispositivos médicos e equipamentos de proteção individual. Mas, apesar dos sucessivos avisos, a impreparação foi notória.

O primeiro paradoxo identificado por Krastev tem justamente a ver com a resposta global à pandemia. Embora tenha havido vários avisos e alertas, por parte da comunidade científica, ao longo das duas últimas décadas, a reação imediata da maioria dos governos não foi a cooperação, mas antes o isolamento, como tentativa de controlar a situação. Todavia, esse comportamento não significa que as estratégias adotadas tenham diferido significativamente entre os diferentes Estados. Conforme o autor sinaliza, houve uma “lógica da imitação”, independentemente do regime político, ou da capacidade dos sistemas de saúde.

Perante o desconhecimento sobre o novo vírus e, muito provavelmente influenciados pela experiência dos países asiáticos que se depararam inicialmente com a Covid-19, a maioria dos governos ocidentais optou por avançar com políticas de distanciamento social e de limitação da atividade económica. Como é evidente, o descontrolo da situação no norte de Itália também terá sido um fator determinante para o processo de tomada de decisão que se sucedeu.

Ainda assim, Krastev, na dimensão da análise política, traz-nos uma segunda leitura que é bastante interessante, sobretudo quando numa fase onde o conhecimento sobre o novo coronavírus ainda era muito incipiente. Os diversos governos, ao adotarem medidas semelhantes, procuram beneficiar do efeito da comparação, reduzindo o risco de mais tarde serem questionados pelos seus cidadãos, cada vez mais atentos às estratégias implementadas no estrangeiro. Hipoteticamente, se tivesse havido um número significativo de Estados a seguirem a estratégia da Suécia, segundo Krastev, ter-se-iam formado dois blocos e a dúvida, assim como a desconfiança, acabariam por dividir sociedades e criar tensões políticas para que a conduta adotada fosse alterada.

Porém, há uma outra dimensão que se justifica aprofundar: a dureza, sem precedentes, das medidas de confinamento adotadas. Para o seu sucesso, cada governo dependeu do efeito da comparação, como referido, mas beneficiou também da paz social gerada. Assistiu-se a “um estado de união nacional que muitas sociedades não experimentavam há já vários anos” (Ibidem, 2020b, p. 94). Na maioria da Europa, talvez com exceção para Espanha, no início, onde se registaram algumas tensões políticas, as oposições mostraram-se disponíveis para cooperar, apoiaram muitas das medidas adotadas e viabilizaram a aprovação de estados de emergência.

Sobre este ponto, Krastev não deixa de sinalizar que, no longo prazo, este apoio acabará por ter custos e, muito provavelmente, acentuar divisões sociopolíticas. Se por um lado é verdade que os partidos e movimentos nacionalistas, assim como o populismo, estiveram remetidos ao silêncio durante os últimos meses, por outro lado, será natural que estes possam ser os primeiros a capitalizar com a crise económica e com as consequências sociais que, inevitavelmente, vão suceder à pandemia.

2. O populismo e o nacionalismo podem sair reforçados?

O sociólogo Zygmunt Bauman explica o medo como um ativo para a condução do “jogo do poder” (Bauman, 2001). Krastev também alude ao medo como explicação para as elevadas taxas de aprovação dos governos durante a gestão da pandemia. Confrontados com o medo de um vírus sobre o qual se sabe muito pouco, os cidadãos preferem confiar nos seus governos, acreditando que estes dispõem de mais informação e que, por se encontrarem no exercício do poder, serão quem melhor pode lidar com a pandemia.

No entanto, com o passar do tempo, o medo vai sendo diluído - ou porque passa a existir mais informação, ou porque o vírus se revela menos mortífero, ou, mais tarde, porque a pandemia acaba. O crescente impacto das medidas de distanciamento social e das limitações à atividade económica, quer na vida individual, quer na sociedade, também são fatores que contribuirão para o regresso da ansiedade, em substituição do medo.

Krastev alerta que o populismo tem emergido por via do aproveitamento da “raiva dos ansiosos” (Krastev, 2020b, p. 65). São muitos os analistas políticos que temem uma amplificação do populismo e também do nacionalismo, porque o contexto social que poderá emergir desta pandemia será o de uma sociedade dilacerada pelo desemprego e pela frustração de expectativas. Em simultâneo, a perceção de que o Estado deve evoluir no sentido de prover aos seus cidadãos tudo aquilo que é essencial, designadamente em matéria de saúde, também poderá, inadvertidamente, alimentar derivas nacionalistas.

O autor salienta que “os partidos populistas têm estado em ascensão no seio de sociedades agastadas e frustradas” (Ibidem, 2020b, p. 58). Se esse for o contexto, os cidadãos poderão acabar por ceder a políticos que, tendo ficado de fora do estado união nacional, se apresentem com bons intérpretes das frustrações provocadas pela pandemia.

3. Regimes democráticos vs. Regimes autoritários

A emergência do populismo e do nacionalismo poderá interferir com os equilíbrios políticos que caracterizam os regimes democráticos ocidentais. Neste ponto, interessa recordar a comparação, mediática e política, que a dado momento da pandemia foi feita entre as capacidades de resposta dos regimes democráticos e dos autoritários.

Rachel Kleinfeld sustenta que “apesar das tentativas dos políticos para usar a crise como meio de angariar apoio para o modelo político da sua preferência, até agora os dados não mostram uma correlação forte entre a eficácia e o tipo de regime” (Kleinfeld apudKrastev, 2020, p. 22). Em Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the Pandemic, Krastev concretiza alguns exemplos: autocracias como Singapura apresentaram bons resultados, mas outras não, como é o caso do Irão. Democracias como a Itália, ou mesmo os EUA, não conseguiram abordar convenientemente a pandemia, mas a Coreia do Sul, ou a Alemanha, foram bem-sucedidas.

Aliás, este é um ponto muito importante. O autor recorda a pressão exercida pela China sobre a diplomacia alemã para que fosse elogiada a resposta chinesa à pandemia. Também poderia ter referido a pressão exercida sobre o Serviço Europeu de Ação Externa. Todavia, existe outra perspetiva que pode complementar as visões de Krastev e de Kleinfeld. Apenas um regime autoritário como o chinês, que exerce controlo sobre os media e sobre as redes sociais, poderia conseguir esconder a dimensão que a epidemia estava a tomar durante várias semanas. Um acontecimento semelhante, a acontecer num regime democrático, poderia ter espoletado vários alertas e ações mais atempadamente, sobretudo junto da comunidade internacional.

Não obstante, as experiências anteriores vividas pelos Estados, com situações semelhantes, serão o fator com maior preponderância para o êxito na contenção da pandemia. A China, a Coreia do Sul, Singapura ou Taiwan, apesar de regimes e sistemas de saúde bastante diferentes, terão conseguido lidar, relativamente bem, com a gestão da pandemia, porque já dispunham de legislação e procedimentos de emergência preparados desde a epidemia de SARS em 2002/03.

A generalidade dos países europeus, apesar de as suas Constituições nacionais preverem estados de exceção, designadamente o “estado de emergência”, não dispunham de experiência, nem de legislação e processos burocráticos dela decorrentes, para lidar de imediato com uma pandemia como esta. Krastev conclui, assim, que “é a qualidade da burocracia que é decisiva e não a grandeza do orçamento ou até o montante despendido com a saúde” e acrescenta que “ficou claro que os governantes autoritários estavam tão interessados nas reações do seu povo como os políticos democráticos que receiam as próximas eleições” (Krastev, 2020b, p. 24). Esta última afirmação é confirmada, quer pela informação que foi sendo ocultada no início da epidemia, quer pela recruta de mais funcionários para os serviços de censura chineses durante os meses que se seguiram (Woo, 2020).

4. O futuro da Geopolítica e da globalização

No tabuleiro da geopolítica, antes da pandemia, o principal foco de tensão entre grandes potências mundiais era a guerra comercial entre os EUA e a China. Não deixou de o ser, mas a tensão política entre as duas superpotências ganhou novos contornos. Trump continua a apelidar o coronavírus de “chinesevirus” e, mesmo que a Administração norte-americana mude, Krastev acredita que a cooperação sino-americana na resposta aos diversos problemas globais terá acabado. Em vez disso, o politólogo aponta para o multilateralismo e, muito provavelmente, para a regionalização.

Neste cenário, que é também marcado pela erosão da liderança americana, a rivalidade entre os EUA e a China, pode ser uma oportunidade para a União Europeia (UE), desde que esta consiga debelar problemas internos e sair reforçada desta crise. Embora Krastev o considere, alerta também para a necessidade aprofundamento do processo de integração europeia. A pobreza que a pandemia virá a causar irá agudizar a crise migratória para a qual a UE ainda não encontrou consenso em torno de soluções, e os fenómenos populistas e nacionalistas também poderão constituir-se enquanto fortes obstáculos.

A UE não será a mesma depois da pandemia, mas pode beneficiar de uma “desglobalização” cuidadosa. A Comissão Europeia tem defendido a necessidade de encurtar cadeias de abastecimento e distribuição e pretende canalizar fundos para uma reindustrialização da Europa. Krastev, a propósito das fundações do projeto europeu, recorda que “a interdependência é a fonte mais fiável de segurança e prosperidade” (Krastev, 2020b, p. 32) e acredita que a proteção dos Estados-membros reside no protecionismo oferecido pela sua associação no continente.

Recentemente, a Comissão Europeia apelou aos Estados-membros para que tomassem medidas no sentido de protegerem setores e empresas estratégicas de aquisições extracomunitárias. Esta é uma medida que, claramente, visa as pretensões chinesas. Nos primeiros meses da pandemia generalizou-se a ideia de que a China poderia ser a principal beneficiária da nova crise e, muito provavelmente, acabará por ultrapassar os EUA na liderança mundial mais rapidamente. Porém, Krastev oferece uma outra ótica de análise. Ainda que a China não tenha entrado em recessão, o crescimento abrandou muito significativamente. Conforme o autor sinaliza, “no primeiro trimestre de 2020, a China sofreu a sua primeira grande queda do PIB desde a Revolução Cultural de MAO” (Krastev, 2020b, p.68).

Se a UE for bem-sucedida na sua estratégia e as tensões sino-americanas permanecerem, o mundo pós-pandemia será menos recetivo às ambições globais de Pequim. Contrariamente ao período que opôs os EUA à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a tensão entre os norte-americanos e a China, segundo Krastev, não conduzirá a uma nova Guerra Fria, na medida em que o modelo chinês não é uma alternativa ideológica ao capitalismo, mas antes seu beneficiário.

Referências

1. Bauman Z. (2001) Community: Seeking Safety in an Insecure World. Oxford: Policy Press. [ Links ]

2. Krastev I. (2020a) Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the Pandemic. London: Penguin Books Ltd. [ Links ]

3. Krastev I. (2020b) O Futuro Por Contar - Como a Pandemia vai mudar o nosso Mundo. Carnaxide: Objetiva. [ Links ]

4. Kleinfeld R. apud Krastev, I. (2020) O Futuro Por Contar - Como a Pandemia vai mudar o nosso Mundo. Carnaxide: Objetiva. [ Links ]

5. Woo G. (2020) Coronavirus: The Silent Killer. [documentário]. EUA: Discovery Channel. [ Links ]

1.Sobre o autor SAMUEL CAETANO VILELA é assistente parlamentar no Parlamento Europeu, responsável pela área da comunicação política e pelo acompanhamento das relações da União Europeia com a República Popular da China. Colabora com a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, com experiência na certificação de sistemas internos de garantia da Qualidade em Instituições de Ensino Superior e na formação de novos peritos em avaliação e auditoria. É licenciado e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra, onde se encontra a concluir o programa de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação. Dedica-se à investigação nas áreas dos estudos europeus, relações internacionais e política pública, em particular na dimensão da política educativa e de ciência. [https://orcid.org/0000-0002-2551-2286].

Recebido: 10 de Setembro de 2020; Aceito: 13 de Outubro de 2020

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