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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão impressa ISSN 1647-4090versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.16  Lisboa dez. 2021  Epub 02-Mar-2022

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2021.16/pp.197-201 

Artigo Original

A China é Capitalista?

Miguel Ângelo Remígio Pereira1 
http://orcid.org/0000-0003-0210-3815

1Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Portugal.


Herrera, R. & Long, Z. (2020). A China é Capitalista? Lisboa: Página a Página

“A China é Capitalista?” é um livro da autoria de Rémy Herrera e Zhiming Long, publicado em 2020. Rémy Herrera é economista e investigador do CNRS. Trabalhou na OCDE, no Banco Mundial, e tem uma vasta experiência em assuntos relacionados com a China, tendo publicado vários artigos sobre o assunto. Zhiming Long é professor universitário na Universidade de Tsinghua, em Pequim, e economista. É especialista em teoria do crescimento, estatística e econometria. Este livro aborda questões cruciais da contemporaneidade, como o ressurgimento da China como uma das principais potências do Sistema Internacional, as causas do seu ressurgimento e para onde a mesma se encaminha. É um livro holístico e de leitura recomendada a todos os que se interessam por estas questões.

A principal questão levantada pelos autores, e que questiona as teorias predominantes nesta área, é que, no âmbito do crescimento económico chinês, não se deve descurar o papel da china maoísta, nos períodos 1949-1978. Os autores são inovadores pela forma como rompem com as correntes dominantes e pela informação que adicionam, tendo criado séries temporais de gráficos para justificar vários dos seus pontos (note-se que, no que concerne aos dados estatísticos sobre a República Popular da China, não existe um consenso nem dados oficiais sobre várias questões no período supramencionado).

A obra divide-se em três capítulos: num primeiro capítulo, designado “Características gerais, elementos históricos e comparações internacionais”, os autores pretendem familiarizar os leitores com alguns dados, informações e contextualizações relativamente à República Popular da China contemporânea. Como tal, mencionam o facto de a China ser um país geograficamente extenso, de albergar a maior população a nível mundial (1398 mil milhões de pessoas), encontrando igual apenas no seu país vizinho - a Índia. Rémy Herrera e Zhiming Long fazem várias comparações no sentido de ressalvar a profundidade deste país, referindo, também, a quantidade e diversidade de recursos naturais que a República Popular da China dispõe, as disparidades existentes entre as regiões interiores e as regiões costeiras e várias outras abordagens no sentido de a caracterizar geograficamente.

Para além disso, os autores contextualizam este país historicamente, de forma sucinta e captando os principais eventos que impulsionaram este país a proceder a uma transformação económica sem precedentes na história da humanidade. Encontram dois motivos essenciais pelos quais o povo chinês se sentiu compilado a fazer esta mudança: primeiro, o enraizamento existente de um sentimento de humilhação nacional, patente no século XIX e nas Guerras do Ópio; segundo, a implosão da revolução bolchevique de 1917, e a progressiva implantação do marxismo-leninismo na República Popular da China.

Em 1949, eclode a Revolução Comunista que, para os autores, é o marco essencial que permitirá a este país encetar o seu caminho de evolução económica. A partir desta data, a República Popular da China mudou drasticamente: surgiram os planos quinquenais, a centralização do Estado e um incremento da burocratização. É referido, ainda, que o caminho traçado inicialmente por Mao Zedong foi interrompido, parcialmente, com a subida ao poder de Deng Xiaoping. Os sinais de esgotamento relativamente à economia planificada eram claros, e muitos dos problemas que existiam antes de 1949 continuaram a subsistir após a Revolução. É desta forma que Deng Xiaoping alterará este panorama, sendo que no livro é referido que o socialismo recuou de forma severa na China desde então.

Por fim, para concluir este primeiro capítulo, os autores iniciam-nos naquela que é a tese principal do livro - que o poder e o dinamismo da República Popular da China atuais não são simples resultados da sua abertura à globalização e da sua integração no sistema mundial capitalista. Para corroborar tal tese, utilizaram vários gráficos comparativos que nos permitem perceber o dinamismo da economia chinesa desde 1949, referindo que o período após a Revolução foi, no âmbito das economias socialistas, superior ao que tradicionalmente é referido pelos cientistas. No que concerne à questão agrária, os autores referem que este país foi e continua a ser dos poucos países que garante o acesso à terra para a maioria das suas massas camponesas e, portanto, ao analisar a China, devemos colocar o campesinato no centro dessa análise. São, ainda, feitas algumas comparações no que toca à esperança média de vida com vários países, como a Índia, os Estados Unidos da América e a Europa, e é percetível o enorme esforço levado a cabo pela República Popular da China nesta matéria, tendo passado de uma esperança média de vida, entre 1950-1955, de 40 anos, para 74 anos, em 2010-2015.

A segunda parte deste livro designa-se “O enigma do crescimento económico chinês”. Rémy Herrera e Zhiming Long, neste capítulo, procuram desmistificar algumas crenças relativamente ao crescimento económico chinês. Fala-se de enigma, segundo, os autores, porque o fenómeno da ascensão económica deste país é fruto de sérios debates no seio académico, da direita à esquerda, sendo um assunto sobre o qual não existe consenso. Uma das ideias, contudo, que surge como mais consensual no que toca a esta matéria, particularmente no ocidente, é o facto de a emergência chinesa se ter executado a partir do final da década de 1970, com a consequente abertura do país ao exterior.

Contudo, para os autores, a evolução da China em matéria económica deve-se, em grande parte, às conquistas feitas durante o período maoísta, anteriores à década de 1970 e à entrada da China no sistema económico internacional. Ao aceitar a visão ocidental, segundo os autores, estamos implicitamente a aceitar que a economia chinesa estaria estagnada durante o período maoísta e que a mesma só teria iniciado o seu processo de descolagem a partir de 1978. Os autores referem, também, que aceitar tal ideia excluiria três realidades fundamentais: primeiramente, que a República Popular da China tem uma profundidade milenar, logo, o debate sobre a mesma ter surgido apenas há 40 anos é falso; segundo, que quando a República Popular da China começou a exceder a marca dos 10% do PIB, durante a década de 1980, ainda existia o essencial das instituições e estruturas do socialismo; terceiro, que o PIB chinês, durante o período de Mao Zedong, crescia, de forma generalizada, a um ritmo estonteante. Os autores referem que entre 1970 e 1980 o PIB da China já atingia 6,8%, ou seja, mais do dobro dos Estados Unidos no mesmo período. Os autores analisam ainda vários dados do Instituto Nacional de Estatística deste país (no período temporal 1952-2015), que demonstram, mais uma vez, o ritmo acelerado com que a economia chinesa já crescia durante a era maoísta.

Para além do crescimento do PIB nesta era, os autores criaram séries temporais de stocks de capital físico e verificaram que as taxas de crescimento médias do stock de capital foram muito semelhantes nos subperíodos 1952-1978 e 1979-2015. Fica, assim, novamente, claro que a acumulação de capital físico não é um fenómeno recente na República Popular da China. Um outro dado que devemos ter em consideração, segundo os autores, no que toca à ascensão deste país, são as despesas de educação e investigação. Foram criadas, também, séries temporais longas (1949-2015), uma vez que os dados estatísticos existentes não permitem determinar com precisão estas questões. Assim, é referido que no período 1949-1978, o stock total de recursos educativos era de 4,19%, ao passo que no período 1979-2015 foi de 4,22%. Observa-se, deste modo, que estes valores são muito próximos nestes dois subperíodos, e que os primeiros esforços neste ramo, que visaram a massificação da educação, foram cruciais para atingir os níveis de escolaridade apresentados pela população chinesa hoje.

Acresce que, no que toca às despesas com investigação e desenvolvimento, embora a China só tenha integrado o sistema internacional de contabilização das atividades de I&D em 1986, tal não significa que este país não o fazia anteriormente a esta data. Por isso, face aos constrangimentos da falta de dados estatísticos, Rémy Herrera e Zhiming Long compilaram novamente séries temporais originais e selecionaram várias massas orçamentais, provenientes de instituições públicas e entidades económicas privadas. Segundo os cálculos dos autores, as taxas de crescimento das despesas de I&D são de cerca de 14,5% no período 1949-2015, sendo que o ritmo médio dessas despesas foi superior no subperíodo 1949-1978. O esforço inicial, de construção de uma base tecnológica, permitiu à República Popular da China tornar-se líder em vários setores no âmbito da quarta revolução industrial na hodiernidade.

Os autores, neste capítulo, identificam, ainda, alguns períodos de crise na economia chinesa. Vários desses períodos encontram justificação em choques externos, como o ano de 1962, em que a economia chinesa sofreu uma quebra de -9,2%, associado ao choque da rutura das relações com a URSS, ou a crise do subprime (2007-2008).

O último capítulo do livro designa-se “Sobre a natureza do sistema político-económico chinês. Primordialmente, os autores contextualizam a opinião de alguns marxistas relativamente a este sistema. Alguns designam-na de “neoliberalismo com características chinesas”, outros referem que as elites chinesas utilizam “o mercado como uma ferramenta de governo”. Ainda, por vezes de forma consensual, vários autores referem que o sistema chinês se insere no “capitalismo de Estado”.

No entanto, para Rémy Herrera e Zhiming Long, o sistema político-económico chinês é um “socialismo de mercado”, sendo que os autores identificam 10 pilares essenciais que sustentam esta teoria: a perenidade de uma planificação poderosa e modernizada; uma forma de democracia política; a existência de serviços públicos muito alargados; uma propriedade da terra e dos recursos naturais que permanece do domínio público; formas diversificadas de propriedade; uma política geral de aumento das remunerações do trabalho; a vontade declarada de justiça social; uma prioridade dada à preservação do meio ambiente; uma conceção das relações económicas entre os Estados baseada num principio de vantagem mútua e relações políticas entre os Estados baseadas na busca sistemática da paz;

Para fundamentar estes pontos, os autores analisam-nos de forma mais aprofundada, como o papel das empresas públicas na economia, enumerando alguns aspetos positivos como o facto de as mesmas poderem distribuir mais aos seus empregados ou o facto de as mesmas terem a possibilidade de serem inseridas, com mais facilidade, em projetos coletivos. Ao contrário das empresas ocidentais, que são cotadas na Bolsa e orientadas para a maximização do lucro, a maioria das empresas públicas chinesas são rentáveis porque estimulam o resto da economia, ordenando interesses estratégicos superiores. Um outro fator importante no âmbito destas empresas é que as mesmas permitem a participação, embora limitada, do seu pessoal na gestão, por intermédio do Conselho de Supervisão e no Congresso dos Operários.

Para além disso, neste capítulo é, ainda, realçado outro aspeto importante: o papel dos serviços públicos alargados e da planificação económica. Os serviços sociais encontram-se, na sua grande maioria, nas mãos do Estado chinês, nomeadamente os bens considerados estratégicos como a energia, as infraestruturas, entre outros. Também a planificação, que embora se tenha alterado ao longo dos anos, continua bastante premente na sociedade e no sistema político chinês, tendo um papel essencial. São estabelecidos objetivos previamente e, posteriormente, discute-se a materialização e concretização dos mesmos. Esta realidade é controlada maioritariamente pelo Partido Comunista Chinês, que efetua essas escolhas em nome dos cidadãos chineses, embora se aplique o princípio da consulta.

Por fim, neste capítulo é ainda feita uma menção ao controlo do sistema bancário e dos mercados financeiros por parte do Estado da República Popular da China, no qual os autores argumentam que estes setores deverão continuar a ser marcados, futuramente, por um carácter estadual e público.

Rémy Herrera e Zhiming Long concluem reforçando a seguinte ideia: o regime de “socialismo de mercado” permitiu à China ressurgir no Sistema Internacional e, neste contexto, o período maoísta foi fulcral para desenvolver a China economicamente. Para os autores, a China é um país não capitalista, mas com capitalistas.

Referências

1. Herrera, R. & Long, Z. (2020). A China é capitalista? Lisboa: Página a Página. [ Links ]

1. MIGUEL PEREIRA é estudante de mestrado em Economia Internacional e Estudos Europeus, pelo ISEG, tendo-se licenciado em Relações Internacionais pelo ISCSP-ULisboa. Estagiou no Instituto do Oriente e no Observatório Político e colaborou com estas organizações em vários domínios da investigação científica, com particular enfoque nas áreas da geopolítica e da economia. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0210-3815.

2. MIGUEL PEREIRA is a student of the master’s degree in International Economics and European Studies from ISEG, and he also has a bachelor’s degree in International Relations from ISCSP. The author did an internship in Orient Institute and in Political Observer, and collaborated with these organizations in several domains of scientific investigation, with particular focus on geopolitics and economics. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0210-3815.

Recebido: 09 de Abril de 2021; Aceito: 21 de Outubro de 2021

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