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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versión impresa ISSN 1647-4090versión On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.17  Lisboa jul. 2022  Epub 28-Sep-2022

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2022.17/pp.39-52 

Artigo Original

Ética ou Moral, ou Ética e Moral?

Ethics or Morals, or Ethics and Morals?

Manuel Morgado1 

1 Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Portugal; manelmorgado97@gmail.com


Resumo

A ética e a moral são conceitos que se veem hoje simultaneamente mergulhados em dois fenó menos que se contradizem mutuamente. Por um lado, assume-se na literatura científica uma total separação e distinção entre os conceitos. Por outro, permanecem corrente e indiscrimi nadamente utilizados como sinónimos. Ora, o que se vem neste exercício de reflexão defender é que tanto esta contradição como a própria separação são o mais explícito resultado de uma, realmente profunda, e por isso crucial, crise - ou inversão - de valores, acrescentando que a contradição deriva da própria separação operada no mundo intelectual; que, por sua vez, tem como manifestações últimas a turbulência social e o conjunto de reivindicações justiceiras que se multiplicam pelos vários campos de atividade da sociedade. Nesse sentido, sempre com um recurso aos contributos e autores clássicos distantes dos modernistas e pós-moder nistas que cometem essa fratura, é rematada a tese de que, em ordem à assunção e resolução dessa que acaba por ser uma tensão psicossocial, será sempre, de alguma maneira, necessária a recuperação dos próprios pilares civilizacionais que aglutinam as várias dimensões na com plexidade do real; lógica corporizada, no final de contas, pela própria genética etimológica que funde ética e moral.

Palavras-chave: autores clássicos; crise de valores; ética; modernistas; moral; pós-modernis tas

Abstract

Ethics and morals are concepts simultaneously immersed today in two phenomena that con tradict each other. On the one hand, the scientific literature assumes a total separation and distinction between them. On the other hand, they remain, currently but indiscriminately, used as synonyms. Now, what we defend in this exercise of reflection is that both this con tradiction and the separation itself constitute the most explicit result of a truly profound and thus crucial crisis - or inversion - of values, adding that the contradiction derives from the separation itself engineered in the intellectual world; which, in turn, has as its ultimate man ifestations the social turmoil and the set of demands for justice that multiply in the various fields of activity throughout society. In this sense, always resorting to classical authors and contributions distant from the modernists and postmodernists who commit this fracture, the thesis is concluded by suggesting that, in order to assume and resolve what turns out to be a psychosocial tension, it will always be, somehow, necessary to recover the civilizational pillars that bring together the various dimensions rooted in the complexity of reality; logic which is embodied, after all, in the very etymological genetics that fuse ethics and morals.

Keywords: classical authors; crisis of values; ethics; modernists; morals; postmodernists

Permitir-se-á a qualquer indivíduo consciente da verdade que regularize a vida a seu bel-prazer, consoante os princípios novos… como Deus e a imor talidade não existem, consente-se ao homem novo que se torne homem -deus. Daí por diante poderá, livremente, despojar-se das normas… Onde quer que se encontre, está em sua casa; assim o homem. Tudo é permitido. Fedor Dostoievski (n.d., p. 287), em Os Irmãos Karamazov

1. Introdução

1.1 Nietzsche e Kant

Na antecâmara do século XX, foi declarado que Deus estava morto. Mas esse anúncio não vem livre de alguns alertas que o próprio Friedrich Nietzsche estabeleceu (Bou cher & Kelly, 2003, p. 438). Primeiro, estava morto porque nós, humanos, o matámos, tornando-nos no maior dos assassinos. Segundo, que esse «deicídio» constituía um vazio. Terceiro, que desse nada, um novo conjunto de valores teria de ser formulado, porquanto, como referia François Guizot (Morgado, 2017, p. 58), “é uma lei da natu reza termos de adorar num altar novo quando os antigos altares foram derrubados”, e esses descendiam (no ocidente) justamente dos agora deteriorados cânones «judai co-cristãos». Portanto, da moral.

O que o alemão sugere é que, através da «vontade» [1], se supere qualquer elemento e mecanismo repressivo, «submissivo» e «decadente» (Maltez, n.d.), corporizando uma conduta purificada e superior.

Ora, este processo, a que Nietzsche chama übermensch, estilhaça a interdepen dência harmónica da «boa vida» e do «bem comum» como pensada pelos antigos. E impulsiona o que, aos olhos de hoje, constitui o processo ético por excelência, de soberano juízo do sujeito individual (Sarmento, 2020, p. 323).

Vem-nos, esta tese, nos antípodas de Immanuel Kant, que apontara a moral como genética axiológica. Isto é, que só através de uma herança de determinada tradição moral é possível qualquer orientação ética, já que a razão e a mente humanas não são geradoras de valores, mas antes participantes (no máximo, cocriadoras) em todo o processo que responde à existencial incógnita de como agir. Dizia David Hume (Boucher et al., 2003, p. 201) que esta capacidade de razoar, precisamente para de sempenhar um papel de temperamento, surge após os instintos e as paixões huma nas, não antes. E, nesse sentido, do mesmo modo que não o fazem as sensações e os sentimentos, nunca essa capacidade poderia representar uma substância criativa e autossuficiente.

É no sentido dessa impossibilidade que, por exclusão de partes, a tradição moral, os costumes, transportados pelo tempo em determinada comunidade política como elementos sobreviventes de uma espécie de «darwinismo histórico» (Hayek, 1978, p. 59), contêm a metafísica, a ontologia, ainda que parcialmente intangível e incomen surável. E é, em consequência, forçada uma deontologia, que gera o seu «imperativo categórico», onde a conduta ética é aquela que coincide com o que se poderia tornar lei universal, em todo o tempo e lugar (Maltez, n.d.).

Então, o que Kant afirma, por oposição a Nietzsche, é que a ética deriva necessa riamente da moral, que não é autónoma, nem deve, por isso, tentar sê-lo.

Contudo - fazendo-lhe justiça -, o próprio Nietzsche deixou também o alerta para a destruição, para a violência iminente que essa metamorfose provocaria. Con siderem-se o que são os eventos da primeira metade do século XX: o alemão fica a eles - e, por isso, a nós - ligado, entre vários motivos, pelo facto de ter sido precisa mente o autor desse tão lúcido aviso sobre a mais fundamental disrupção cometida e as proporções civilizacionais das suas consequências.

Não obstante, o que Nietzsche nunca conseguiria prever é que toda essa violência não se circunscrevia a um momento de transição, mas seguiria antes toda a posição que não se consciencializasse da impossibilidade indicada por Kant e por Hume, de que os valores não se criam, mas descobrem-se, ou, se quisermos, valem (Maltez, 2009; Maltez, 2018, p. 88) [2].

Nesse caso, o que Nietzsche representa é muito uma inauguração teórica do pós-modernismo, sendo ele próprio um «anti-tudo», que deixa um novo mundo (o tempo em que vivemos) marcadamente relativista como herança.

Curioso é verificar que o próprio «pós-humanismo» de Nietzsche incorre na tentativa de criação de uma metaética, não obstante o seu sentido ascendente (de génese em cada sujeito individual, para o todo), comprovando inconscientemente a inevitabilidade do homem como animal simbólico, como homo religiosus (Morgado, 2017, p. 31), de uma natureza que sempre desliza para a vontade de ordenação, har monização, de perfeição, de um todo que é sempre algo mais do que a soma das suas partes (Maltez, n.d.). Até Nietzsche tenta essa idealização, ilustrada na sua «moral dos senhores» (Maltez, n.d.), cometendo, porém, o fatal erro de querer extrair algo completo e perfeito, do que é incompleto e imperfeito, como é o indivíduo e o próprio homem, tornando o superior escravo do inferior (Maltez, n.d.).

E é a impotência desse movimento, sinónimo de ausência, e, por isso, desconhe cido e caos, que se vem revelar o mais fértil dos campos para a formulação de novos fundamentalismos, dogmatismos e ortodoxias. A esse respeito surge, no final do sé culo XIX, o fenómeno da ideologia (marxismo, nacionalismos, etc.), como patologia, deturpação, corrupção da filosofia política (Morgado, 2010, p. 488), guardando as suas máximas expressões para a primeira metade do século XX. Trata-se da macro-narra tiva sistematizada, e, por isso, em posição pioneira na história, secularista, laicista, verdadeiramente temporal, já que, se não há Deus, o homem toma a medida de to das as coisas (tornando-se «Homem»). Não devem, assim, surpreender, mais do que as ideias, os adjacentes «cultos de personalidade» aos novos líderes «endeusados». Posteriormente, o período do pós-II Guerra, marcado pelo trauma civilizacional, cristaliza-se nas soluções da «neutralidade tecnocrática», desincentivadoras de qual quer regresso ao esboço de grandiosos projetos provindos da megalómana ilusão de omnisciência humana. Todavia, a referida neutralidade, vertendo invariavelmente para a imparcialidade e para a esterilidade da descaracterização, constitui a diame tralmente oposta ilusão de que o que está se garante sem se pensar sobre o que deve ser. Porque a nau para nada serve se para destino nenhum navega (Maltez, 2018, p. 188, 190)[3]. E, não resolvida a problemática exposta por Nietzsche, novas morfologias tomarão as tentativas de o fazer. Neste caso, apresentam-se mais como micronarrati vas, no âmbito de propósitos conjunturais e insurreições de circunstância. Como que uma nova «geração de ideologias» (adiando o «fim da história» [4]) como mantas de retalhos que sintetizam a ruína das anteriores ideologias e as novas causas [5].

Isto é, a declaração desse deicídio permanece um alerta atual, porque andamos constantemente à procura da nova narrativa, fruto de precisarmos, naturalmente, de ter algo em vista, desta feita em convergência com a norma laicizante, que preencha finalmente o vazio que muitos não querem compreender que existe, e que, mesmo quem o faz, não consegue contornar.

2. Ética e Moral

Desde os antiquíssimos mestres gregos que a referência e reflexão acerca dos cardi nais valores e da conduta humana se nos apresentam como protagonistas.

Hoje, navegando sobre as normas relativistas e, por isso, atomísticas do para digma pós-moderno, a ética é privatizada e teorizada para as causas e diversas áreas que se considerem pertinentes. Colocando-a ao serviço, como que escrava das cir cunstâncias (como prova a sua divisão em, no fundo, várias «éticas», como a norma tiva, a aplicada e a descritiva [6]).

Mas serve referir que, em boa verdade, a modernidade é a obreira deste «cata clismo histórico» que, como precedente da sua fragmentação interna, segrega a ética dos outros assuntos, ao separar a Verdade de Deus, justificando o que é uma passa gem para tempos modernos, posteriores a uns antigos. Este fenómeno, que «ensi mesma o homem», é, mesmo que por si imprevisto, tributável ao racionalista René Descartes (Maltez, n.d.).

Nos tempos antigos, a ética não se esgotava na mera composição dessas subáreas. E existia, pelo “exagero cosmológico dos gregos” (Maltez, 2018, p. 337), a inevitabili dade maximalista, e por vezes holista, de encontrar a ética normativa pelo desbravar filosófico. Esse processo era a única forma de achar uma ontologia, que, por sua vez, legitima as respostas éticas.

Nesse caso, a «boa vida» procurada por Aristóteles inscreve já, per se, uma pers petiva de como se deve agir (como, aliás, espelha o cariz arquitetónico da apelidação Magna Moralia que dá a um dos seus tratados éticos [Kraut, 2018]), evitando que essa alternativa da cósmica solidão do sujeito (Maltez, n.d.; Maltez, 2018, p. 65).

Apenas a referida sucessão de mutações conceptuais e culturais permite que a ética se iluda desse luxo de ser autónoma (Maltez, 2018, p. 85), de se banalizar numa «eticidade», num mero “estado de concreção”, como referia Habermas (Sarmento, 2020, p. 322).

Por esta via, a moral fica condenada a um abstracionismo, aparentando constituir um mero alheamento, infrutífero para a realidade prática. Há quase um pressuposto de que ética é práxis ao passo que moral é ideia. Ademais, a ideia fica limitada à uni lateralidade do «ideologismo» [7], apenas posterior e subordinada, nunca gerando a ação - o que demonstra a incapacidade deste pressuposto de se autoconsciencializar da sua própria unilateralidade de análise, já que o que alimenta, o que faz movimen tar qualquer ato, a essência [8] de qualquer “ação é sempre ideia” (Maltez, 2009).

Perante esta atual ortodoxia, a moral é-nos então apresentada como uma subs tância de carácter objetivo, quase aritmético de uma «vontade geral» [9], paralela e independente da realidade subjetiva de cada indivíduo; contrariando, ou pelo menos ignorando, totalmente, a própria etimologia que ambas as determinações partilham. Ética, do grego ethos, e Moral, do latim mores, ambas remetem para os costumes (Sar mento, 2020, p. 322), para “o conjunto de características culturais, de comportamentos, de regras e de crenças próprias de um determinado grupo” (Maltez, 2009), fundamen tando a tal metafísica que Kant lhes confere.

3. Metaética e Filosofia Moral

Mais prova desta contemporânea norma «sectarizante» (e «materializante») é a no ção da metaética situada no plano de subárea da ética sem nisso constatar a mínima contradição.

A metaética é a superior e máxima reflexão por definição. Inicia a postura ética por excelência, onde se pensa sobre os tais mais elevados valores e, por consequência lógica, como os respetivos produtos dessa reflexão devem influir na conduta. É, ade mais, a atitude que destrinça a própria natureza e legitimidade desses valores (Fieser, n.d.). Dir-se-á o Bem e o Mal, que parecem apresentar-se no limite da «infinita re gressão», dotados de irredutibilidade. E, por isso, de valor inigualável.

De forma tácita, com o nihilismo, é-lhes negado esse estatuto, abrindo uma via que ultrapassa, que vai para além dessa tensão, que rejeita qualquer veracidade e dignidade desses, e de quaisquer outros valores. O que constitui, como por outras palavras já definimos, a negação da própria metaética.

Ora, num plano anterior, a religião (tendo aqui em conta especialmente os gran des monoteísmos) sempre se traduziu na resposta a essa tensão. Sempre designou para si mesma (dando um passo à frente da filosofia) o veredicto de proporcionar uma clarificação, uma construção do que representam, justamente, o Bem e o Mal. Exercício do qual sempre derivará um perfil de conduta. A sua influência sempre acabou por contribuir para a coesão de uma moralidade.

É muito por esse motivo que o mundo helénico fica reconhecido pela supremacia filosófica, onde a resolução metaética se mantinha em estágios preparatórios, for çados pelo próprio politeísmo e por aqueloutras noções demasiado fragmentadas. Ainda não existe uma verdadeira morfologia de perfeição, um vértice, forçosamente uno e permanente, que tudo religasse [10].

A sua filosofia moral é fértil e um prenúncio para a posterior clarividência de um Céu e um Inferno que materializam a solução metaética. A partir daí não deixa, não obstante, de existir reflexão, mas antes uma plataforma preciosa de sustento para a filosofia moral, que, paradoxalmente [11], é o que melhor acaba por valorizar a própria moral.

Se, como já vimos segundo Kant, uma ação nunca se vê independente de um valor (que é, se quisermos, «transtemporal»), o que se clarifica é também que não pode existir uma ética de «imperativos hipotéticos» que não seja forçosamente ordenada pelo imperativo categórico; da mesma maneira que os costumes compõem e deri vam da estrutura moral, naturalmente vocacionada para a hierarquização de certos valores sobre outros, determinando princípios e fins. É a tal deontologia, porque, se consta algo perfeito, consta uma plenitude, uma alteza, que, somente pela sua exis tência, discrimina coisas inferiores, julgando-as sobre o que elas poderiam ser e para onde devem orientar-se.

E é esse carácter filosófico da metaética, sempre alimentado pela moral (que é cumulativa) que fornece coordenadas à ética, porquanto, mais uma vez, sem um dever-ser fica-se sempre onde se está. Só assim se faz movimento e, por isso, ordem.

Chegar a este princípio fundamental é marcar a diferença entre uma visão que parcela e desintegra a realidade e outra que relaciona todas as coisas; que, ao con trário de colectivista (onde se delineia o movimento do conjunto para as partes ab sorvendo-as), é orgânica, à maneira de São Tomás de Aquino, já que reconhece que a essência desta ordem, que liga matéria e espírito, física e metafísica, é a integridade dos seus elementos. E, para o caso, essa dignidade da pessoa humana, que identifica no indivíduo uma unidade transcendental e irrepetível (Maltez, 2018, p. 336, 353), tem de ser o impulsionador desse movimento harmonioso, através do bom uso livre -arbítrio (Maltez, n.d.).

Eis a ética. Aristotélica, tomista e kantiana [12], não a nihilista, que paira sobre a atualidade.

Exemplifiquemos, no seu limite, esta distinção por via de uma abordagem especí fica, que hoje testemunhamos, à linguagem e - precisamente porque as coisas estão ligadas - ao mais estruturante pilar civilizacional ocidental: o Logos.

O Logos (palavra grega para lógica, razão e também discurso), consiste na trans formação de desconhecido em conhecido por via da palavra, porque é precisamente essa que corporiza um certo significado, tornando-a comunicável, transmissível, acessível. Ademais - correndo o risco de «teologizar» a reflexão -, a tradição cristã esclarece-nos que esta é a operação em que consiste, por excelência, a Criação divina, anterior e por isso geradora de qualquer conceptualização (no Seu caso, do inexis tente e do existente, do caos e da ordem). Ele próprio é definição, porque o primeiro a definir o que quer que seja, quem fez sentido de e para todas as coisas. E (para nós, ocidentais, de forma crucial) a Sua Palavra é Cristo, como forma de o corporizar, encarnar, de dar a conhecer porquê e como somos as Suas criaturas, indicando o que isso significa. Só crendo ou, no mínimo, respeitando esta premissa é que pode existir Logos, porque é essa a única que reserva uma réstia divina no homem que dignifica a sua própria palavra.

Ora, tendo justamente sido esse o cânone negado a partir do momento em que é relativizado, como avisou Nietzsche, a correia de transmissão do Logos rompe-se e surge esta recente conceção que torna passível de possessão e privatização a lin guagem, como é - sem pretensão de por aqui nos alongarmos - a problemática da reivindicação individual de pronomes, derivada da questão do «género». Só por essa disrupção, em que se concebe que são as palavras a produzir conceitos, sendo-lhes estes posteriores, por oposição à assunção de que primeiro estão coisas e só depois as suas nomeações, e que as significâncias se formam sobre os significados já prefacia dos, é que se possibilita esta noção de apropriação da linguagem. Insuspeitamente, esta coincide com a perspetiva pós-moderna que, em termos gerais, profere que a realidade se confunde com a linguagem, que as suas extensões são correspondentes, tornando a realidade absolutamente maleável através do discurso, do texto (Martins, 2004, p. 393). Desse modo não existe Logos, existe um inócuo conjunto de letras ou sons, desvirtuado aquilo a que chamamos discurso e comunicação (Maltez, n.d.), condescendente com a exclusiva capacidade humana para a fala, e, consequente mente, banalizando a própria humanidade.

Só acreditando num caos onde está matéria prima é que se pode equacionar um estágio harmonioso posterior onde ela foi transformada, ordem foi estabelecida, neste caso, através do Logos.

Sublinha-se então que, como a ética e a moral, antes a metaética e a filosofia moral se complementam pela dialética, numa interdependência simbiótica, como órgãos de um organismo vivo.

4. Da Filosofia Moral à Filosofia Política

É, aliás, assim que nasce a política. Ela não é, como pela mesma lógica nos nossos tempos se assume, uma dimensão autónoma e muito menos o fim último dos ho mens. Se tem um berço tem progenitores, e é através dessa descodificação que se compreende o valor-fim em que está compreendida, em que ela, no máximo, coopera.

É mais um paradoxo que comprova a superioridade da «força normativa dos fac tos» (Lara, 2017, p. 53) em relação à lógica racional especulada: é quando mais se sobrevaloriza a política sobre as outras coisas que mais ela se esvazia, porque, des ligada das suas raízes na ilusão de autossuficiência, positiviza-se, e, com isso, mais impositiva e absoluta se torna. É assim que assistimos ao que Zizek identifica (Al meida, 2012, p. 966) como uma «inversão» onde «o Homem passa a ser construído pela cidadania». Verifica-se a supremacia da sociedade de Estado de Direito sobre a comunidade política, ou a substituição da profunda conceção profunda de dignidade humana pela formalidade dos direitos humanos, que faz esquecer a sua verdadeira fonte e que, lançados na velocidade da ultrapassagem desse ponto de inflexão, fazem sumir por completo da equação quaisquer tipos de deveres.

Já no magistral exercício de análise sociopolítica que é a obra Da Democracia na América, bem verificava Alexis Tocqueville que este mundo moderno constitui real mente o novo reino da patológica tentação igualitária, da dogmática atração pela «se melhança humana» (Morgado, 2010, p. 482). E, em contexto de democracia (o regime moderno), essa materializa-se na igual liberdade, de opiniões e comportamentos. De mais a mais, esse alerta é-nos deixado com um timbre ainda mais alarmante quando o jovem autor francês nos confidencia a curta distância que se percorre (Morgado, 2010, p. 480) entre esse absolutismo da igual consideração à homogeneização e uni formização, e, por isso, à disformização e descaracterização social e intelectual (de que posteriormente nos falou Ortega y Gasset com a noção da «sociedade/homem -massa»). O que precipita o problema sobre como exercer, então, a necessária discri minação de condutas virtuosas e superiores a outras, em ordem aos valores absolutos e universais, perante este ambiente que tudo nivela em prol da democraticidade total, substituindo o mais pelo melhor?

Compreende-se o fio que conduz aos tempos atuais, sendo, por coincidência ou não, o mesmo período em que se multiplicam reivindicações e insurreições contra condutas tidas como injustas e inaceitáveis, e se apela a um regresso a algo que cha mam «ética».

Ora, isto torna evidente vários aspetos: (1) a dificuldade que existe, exatamente perante esta tendência jurisdicista, onde a legitimidade se subordina à legalidade, de esboçar uma crítica ética que tenha reais repercussões sobre uma conceção moral dominante; (2) na medida em que a atual norma ética se esgota na subjetividade e absoluta tolerância sobre o que cada um tem o direito a fazer, comprova-se a dificul dade em reivindicar um sentido deontológico, verificando-se o crescente desprezo para com as tradições e os costumes; (3) não obstante o claro fenómeno reivindica tivo de insurgência espontânea, fica também evidente a impossibilidade da presente norma ética, porque colide com valores, no final de contas, colectivamente idealiza dos. E é exatamente por isso que, na nebulosidade da moral, pela sua negação preme ditada, a reivindicação ética será expectável, como que alertando para a usurpação hierárquica do objetivo e perfeito pelo subjetivo e imperfeito.

Independentemente do que se diga e queira, vai sempre materializar-se na sensa ção de falta de ética o comportamento que divirja da moral dominante, mesmo que esse se considere, segundo os atuais critérios teorizados, ético; porque existe esta natureza humana que nos faz aludir a uma conceção mestra, a algo acima, à frente e mais amplo do que nós, e, por isso, perfeito, que nos ilumina sobre o que é a conduta virtuosa.

Portanto, só daí se poderia também alguma vez discernir a reta conduta política e os seus fins.

Miguel Morgado relembra que

Cícero, numa passagem que faria história, disse que Sócrates fez a filosofia descer dos céus e colocou-a nas cidades dos homens e trouxe-a também para as suas casas e forçou-a a falar da vida e da moral (Cícero, 1989, v. 10). A acre ditar em Cícero, Sócrates foi, portanto, o primeiro filósofo político. A filosofia política é, no mesmo sentido, originariamente socrática; pretende falar dos homens, da cidade, da vida humana e da moral. E fá-lo indiretamente, isto é, através do exame do que os homens dizem acerca de si próprios, da cidade, da vida humana e da moral (Platão, 1947b, 99e). Neste movimento, Sócrates fixou no mundo humano o contexto mais adequado à atividade filosófica, que é, por assim dizer, sobre-humana. E, na medida em que a filosofia socrática pode ser descrita como a obediência ao imperativo divino conhece-te a ti mesmo, a filosofia política corresponde ao movimento natural do autoconhe cimento, quer dizer, do conhecimento da realidade prática em que o homem vive e age. (Morgado, 2010, p. 469)

Ou seja, da filosofia, da reflexão moral, nasce a política por via da filosofia po lítica. Porque, como dizia Daniel Bell (Maltez, 2018, p. 655), “a polis continua a ser pequena demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida”. O bem comum e a boa vida, alicerçados à Justiça, à Verdade e ao Bem, só fazem sentido para a política porque anteriores a ela (Maltez, 2018, p. 57). É, aliás, muito nessa medida que Aristóteles declara (Maltez, 2018, p. 49) que «o homem é por natureza um animal político». Porque, na sua exclusiva capacidade de razoar, reside o seu, igualmente exclusivo, desígnio moral, e esse, entre outras coisas, é que o faz tender para a identificação da necessidade política, sobre o engenho de princípios que melhor ordenem a comunidade que é cronicamente mais imperfeita do que po dia ser (Maltez, n.d.; Maltez, 2018, p. 52).

É interessante verificar alguma coincidência cronológica, considerando a segunda metade do século XX, entre a atual emergência da ética e o ressurgimento (ou mesmo renascimento) da teoria e filosofia políticas. Na imagem, autores como Leo Strauss, Hannah Arendt e mesmo John Rawls (que elabora uma nova teoria de «contratua lismo»). Também não deixa de ser curioso que, especialmente os dois primeiros re feridos, sejam em simultâneo recuperadores do pensamento antigo, clássico e meta político. Se se pensa sobre o que deve ser, é-se automaticamente reconduzido para os contributos dos grandes mestres do passado, estabelecendo a linha e o movimento espiritual, supra-histórico, com que Edmund Burke dotava o seu ideal societário [13].

É um fator que apenas reflete que o dever-ser deixou de ser pensado, ou, pelo menos, mediático; desde logo, quando Maquiavel afirma (1976, p. 82) a inutilidade dos principados e repúblicas imaginados. É Maquiavel quem, numa verdadeiramente contundente primeira vez, isola, para o caso, a política da moral, que significa a cria ção, como todos conseguimos reconhecer n’O Príncipe, do primeiro manual de uma ética própria do meio político.

Certo é que, pouco depois destes autores neoaristotélicos e neotomistas nos virem relembrar a crucialidade desta substância aglutinadora e harmonizadora que pro duz uma real polis (Maltez, 2009), vêm as reclamações de retorno a uma tal «ética», empregue em direta e indiscriminada substituição do termo «moral». E de defender que a ética não é individual, mas existe antes em nome da Justiça pela qual colectiva mente, humanamente exasperamos, mesmo que por intuição e que não gostemos de o dizer pelo prejuízo de ser apelidados de moralistas, como refere Spitz (Sarmento, 2020, p. 321). Ou, talvez com maior rigor, por estarmos num ponto em que não conse guimos aceitar, culturalmente e como civilização, o desconforto de que, novamente, o dever-ser implica, como o próprio termo indica, deveres.

Há um confronto explícito entre a norma, a vontade progressista, secularista de relativizar, individualizar e «destradicionalizar», e a natureza humana de propósito, ordem, interdependência, e por isso dever, hierarquização e costume; que resulta nesta exaltação de que algo não está como devia.

E é a (classe) política que se surge em primeiro plano nessa reclamação de falta de ética (como alvo ou como recurso à sua resolução), seja pela sua, já referida, so brevalorização, tendencial na era pós-moderna [14], seja pela real ausência de filosofia política no seu meio, pelo esvaziamento da retórica política, carente da articulação transmissível de sonho e destino comuns para as comunidades [15], pelo que se abre, em demasia e insustentavelmente, uma fenda entre este mundo humano e o mundo objetivo e absoluto dos valores.

5. Conclusão

Assim, esse “mal-estar ético” não é em si uma explicação, mas uma consequência da “crise social de valores” (Sarmento 2021, p. 1) que, apesar de lhe ser antecedente, gera tudo o que Nietzsche prospetivou. Não pode existir ética na política, ou mesmo polí tica, se não existir filosofia política, que, por sua vez, descende da moral, da filosofia e da metaética.

A tomar este totus ordinis [16], que é exatamente, apesar das suas nuances, a norma predominante até ao tal «deicídio» (ou à descrença numa «ordem natural»), com preende-se o binómio fundacional da fusão da filosofia grega com a teologia cristã, assim como a contradição implantada pela modernidade e sentida na pós-moderni dade.

No fundo, e porque cabe à consciência de cada um, só acreditando que a reali dade é sempre algo mais extensa do que nós, humanos, evitando o «endeusamento» próprio que, secando qualquer dever-ser, nos orienta para o ócio das superficialida des e prazeres existenciais, conduzindo à fraqueza e pequenez (Morgado, 2010, p. 482), é que existe realmente ética. Eis que, para continuar a ser ocidentais, devemos compreender e resolver essa contradição por forma a cumprir o paradoxo que define a civilização. Só sabemos que nada sabemos (sabendo, assim, pelo menos uma coisa).

Agradecimentos

Tomo, por este meio, a oportunidade para agradecer à Professora Cristina Montal vão Sarmento por ter aberto, com um módulo de ética, no âmbito do curso de La boratório I (Análise de Política Interna) que lecionou, uma janela de oportunidade para pensar acerca da conduta humana e exercer, portanto, uma verdadeira reflexão. Através da mesma, pelo recurso e orientação para o que são contributos clássicos e milenares da filosofia política, promoveu o que será certamente um enriquecimento académico, como estudante, mas também, assim desejo, como pessoa.

Referências

1. Almeida M V. (2012). Direitos humanos e cultura: Velhas e novas tensões. Análise Social, 47(4), 956-970. [ Links ]

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1. Conceção que denomina regularmente de (vontade de poder), como plena autossuperação individual para a verdade (Maltez, n.d.)

2. Tomemos o exemplo que Platão forneceu, da matemática: os homens não inventam os números nem con¬seguem alterá-los, mas antes, como refere Husserl (Maltez, 2009), veem-nos e contemplam-nos; existindo, portanto, uma inegável essência universal, eterna e, por isso, perfeita na conceção matemática (Fieser, n.d.).

3. Veja-se a perspetiva da cibernética de Karl Deutsch, onde o governante é o homem-do-leme, que faz a pilo¬tagem do futuro (Maltez, 2018, p. 190).

4. Tese de Francis Fukuyama que sugeria, perante o ambiente de optimismo e paz vivido no ocidente no final do século XX, que a humanidade teria chegado à sua última (e melhor) forma política na democracia liberal, com base na economia de mercado e no motor da ciência, justificando-se o desprezo por quaisquer outros modelos (Lara, 2017, pp. 436-443).

5. Estabeleça-se o paralelismo com as evoluções das forças políticas, onde o que antes eram movimentos so¬ciais e manifestações ativistas se tornam hoje partidos de novas estirpes e até de poder (caso paradigmático de partidos ecologistas) (Lara 2017, p. 536-443).

6. Ética normativa: investiga a questão de como se deve agir no seu sentido mais prático, inclinando-se, de forma prescritiva, sobre o padrão acerca do que constitui uma boa ou má ação, culminando, por isso, na personalização de tal exame. Ética aplicada: preocupa-se com as implicações morais das diversas questões particulares impostas pelas atividades e ofícios em sociedade (inseminação artificial, transplantes de ór¬gãos, eutanásia, etc), gerando os respetivos códigos deontológicos. Ética descritiva: debruça-se, descritiva¬mente, de forma comparativa, sobre as crenças morais das pessoas, sobre o que elas acham que constitui a conduta certa.

7. Os “pensamentos desligados da ação”, “imaginações do pensamento”, que, conforme Emmanuel Mounier, “correm o risco permanente de fazer passar… ao lado da história, as forças espirituais com que nós [a] que¬remos animar… tomam a forma de um racionalismo mais ou menos rígido. Constroem então com ideias ou, mais recentemente, com considerações técnicas de teóricos, um sistema coerente que pensam impôr à história unicamente pela força da ideia. Quando a história viva ou a realidade do homem lhes resiste, creem ser tanto mais fiéis à verdade quanto mais aperram ao sistema, tanto mais puros quanto mantém a sua utopia em imobilidade geométrica.” (Maltez, 2009)

8. Porque - contrariando Jean-Paul Sartre com recurso a Platão (Maltez, 2009) - é a (essência) (ideia) que permite qualquer (existência) (neste caso, ação). A substância que permite qualquer instância.

9. Noção lançada por Jean-Jacques Rousseau no seu Contrato Social, distinta da (vontade de todos) (e, por isso, do pluralismo), na tentativa de desenhar a solução para a colisão inevitável entre o multilateral pro¬cesso democrático e a unicidade da decisão de que a governabilidade necessita. A diversidade de perspeti¬vas, aspirações e interesses acaba, segundo o autor, por ter de se vergar perante a média, essa generalização, em que se materializa a (vontade geral).

10. Santo Agostinho recupera a interpretação de que religio deriva de religere, ou seja, (reeleger), traduzindo a reeleição que a humanidade proporcionaria a Deus, após se ter Dele separado. Consagra, em simultâ¬neo, uma religação. Cícero também ronda esta perspetiva ao sugerir que a (releitura) (de relegere) era necessária nas (coisas dos deuses), porquanto o fenómeno intelectual ao fenómeno religioso ia ligar.

11. Porque, apesar de não ter, por definição, coerência lógica, o paradoxo constitui a essência do revelatório, como referia Emmanuel Mounier (Maltez 1991, vol.1 , p. 145).

12. Porque a sua tentativa de ética formal (que designa um único princípio prático adequado a qualquer ação) acaba por não conseguir libertar-se realmente do ontologismo axiológico (Maltez, 2009), já que um desvio de comportamento não altera os valores nem esse carácter objetivo e eterno, transtorna antes a dignidade moral da ação, subjetiva e efémera; mantendo, ademais, suficientemente ambíguo o modo como o homem acede àquela esfera.

13. “Society… becomes a partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born.” (Boucher & Kelly, 2003, p. 374)

14. Michel Foucault não se coíbe de referir (Boucher & Kelly, 2003, p. 525), em traços gerais, que, no final de contas, tudo são relações de poder, portanto encontrar-se a primazia do jogo político, como veículo para a mais crua versão do poder, fica a um raciocínio de distância.

15. Fenómeno já por diversas vezes identificado, chamemos-lhe (apaziguamento) ou (crepúsculo ideoló¬gico), (fim da história e último homem), ou apenas (tecnocracia) (Lara, 2017, pp. 52, 53, 540, 541).

16. Conceção de São Tomás de Aquino (Maltez, 2018, p. 539) para o movimento que tudo liga e ordena1. Conceção que denomina regularmente de (vontade de poder), como plena autossuperação individual para a verdade (Maltez, n.d.)

Recebido: 13 de Fevereiro de 2022; Aceito: 12 de Maio de 2022

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