Introdução
A fiscalidade apostólica corresponde, de forma geral, à operacionalização de processos de aquisição de rendimentos destinados a assegurar o funcionamento da Cúria apostólica e o desempenho das funções temporais, políticas, diplomáticas e religiosas adscritas aos pontífices, com um consequente ónus sobre o clero (e alguns leigos) à escala da Cristandade. Com pontos de contato com as fiscalidades dos restantes reinos e principados do espaço cristão ocidental - uma vez que os papas eram os senhores temporais dos Estados pontifícios e, a esse título, cobravam rendimentos decorrentes do domínio jurisdicional sobre esses espaços e sobre as atividades de produção, venda e circulação de bens a eles ligados - a fiscalidade apostólica representava um sistema financeiro particular (CASELLI, 1990, p. 411; JAMME, 2005; JAMME, 2007; FORTEA PÉREZ, 2015; GENEQUAND, 2018). Na qualidade de chefe da Cristandade, os pontífices desenvolveram ao longo do período medieval - sobretudo em períodos de afirmação dos desígnios de teocracia pontifical (século XIII) e do desenvolvimento da «máquina» fiscal apostólica em virtude da saída curial do espaço itálico (século XIV) - a capacidade em recolher réditos adscritos à concessão, transferência, entrega, permuta, demissão e reserva de benefícios eclesiásticos (PETERSEN, 2001; MORELLÓ BAGET, 2009; DÍAZ IBÁÑEZ, 2010). Em grande medida, uma tal capacidade resultou da afinação de práticas escriturárias e contabilísticas, bem como de melhoramentos na organização curial relacionada com a gestão fiscal pontifícia (WEISS, 2003; THEIS, 2006; CASELLI, 2013; BERNARDI, 2015). Ao invés dos reis e príncipes que cobravam as diversas exações unicamente no seu próprio território, o braço financeiro do Papado tinha de resolver as contingências associadas à recolha urbi et orbi de tais réditos, o que obrigou ao desenvolvimento de um sistema misto de perceção, entre pagamentos obrigatórios efetuados na Cúria e recolhas de exações efetuadas in situ, através do estabelecimento de um aparelho burocrático específico a partir do século XIII - as coletorias (BERLIÈRE, 1929; DESPY, 1952; ZUNZUNEGUI, 1956; SCHUCHARD, 1995, 1997 e 2000; LE ROUX, 2010a, 2010b e 2013; FARELO, 2013a, p. 57).
Desse ponto de vista, a fiscalidade apostólica teve impactos evidentes sobre a Igreja «vista do chão». Porque aumentava a pressão fiscal ordinária já existente (episcopal, capitular ou monástica) e reduzia o rendimento líquido disponível, a fiscalidade em favor do papa e das suas instituições era considerada como nefasta ao nível local (sobre esta fiscalidade ordinária, veja-se para o caso português GOMES, 2007; VILAR, 2011; CAMPOS, 2017). Ou seja, o exercício da fiscalidade apostólica a este nível foi sobretudo uma história de resistências: dos clérigos que não queriam pagar, dos padroeiros que não queriam perder os seus direitos de nomeação e de gestão administrativa e das autoridades leigas desejosas de ter uma palavra a dizer em toda a questão (MARTIN, 1927; GUILLEMAIN, 1980, p. 147; ECKERT, 1991; DEBAT, 1999; MONTAUBIN, 2012). Em virtude das suas interligações, o seu estudo constitui assim uma forma privilegiada de perspetivar a relação entre os governos central e locais da Igreja e de perceber os diferentes graus de envolvências e de conhecimento que o Papado dispunha sobre o espaço cristão.
Importa igualmente sublinhar que o elemento fiscal não se esgotava na tecnicidade das formas de perceção ou dos mecanismos de taxação e de controlo desenvolvidos pelos oficiais da Câmara apostólica, pois a fiscalidade em favor dos pontífices encontrava reflexo nas restantes dimensões da atividade curial e na influência exercida sobre os reinos e principados da Cristandade (LUNT, 1909, p. 251; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, 1994-1995).
Tais dimensões encontram, assim, cabimento na análise da fiscalidade dos papas de Avinhão no reino de Portugal. Desde logo, pelo seu carácter técnico, em termos das informações que pode carrear para uma melhor perspetiva do funcionamento das estruturas apostólicas de enquadramento e dos seus agentes, das resistências que estes últimos encontraram e das formas que preconizaram para se adaptarem às circunstâncias locais. Dada a sua interligação com as restantes dimensões da atividade pontifical, o seu estudo permite aduzir importantes argumentos para a sistematização das relações entre a Cúria e a Coroa, através da contextualização do intervencionismo fiscal dos papas avinhonenses no reino de Portugal.
Projetada brevemente na sua utilidade, o recorte metodológico da presente contribuição permite uma avaliação do passado (historiografia), do presente (fontes de informação disponíveis) e do futuro (perspetivas de trabalho) da investigação sobre esta temática específica de trabalho.
1. Uma evolução historiográfica
O estudo da fiscalidade apostólica, como muitos outros temas associados à história do Papado medieval (e não só), encontra-se ligado às fontes de informação conservadas no Arquivo Vaticano. Ainda que a documentação local conservada pelos arquivos centrais e regionais dos diversos países europeus possa esclarecer alguns pontos da questão, não é possível negar que a história da fiscalidade apostólica faz-se fundamentalmente com os documentos ainda hoje custodiados pelo Papado. Por isso, a sua evolução historiográfica só pode ser percebida em função de uma abordagem diacrónica sobre as condições de acesso e de tratamento dessa documentação, algo que, no caso em apreço, se traduz pela análise da produção científica baseada nos documentos relativos ao reino de Portugal produzidos pelo Papado de Avinhão e conservados em Roma.
O Archivio Segreto Vaticano é considerado a justo título como um dos mais importantes repositórios de informação para o conhecimento do passado medieval. O seu acervo foi mobilizado desde o período moderno para um melhor conhecimento das sociedades medievais ocidentais, nomeadamente através da abertura controlada do seu acervo a investigadores eclesiásticos, como Baronio Raynaldi, Von Pastor, Eubel ou de la Porte du Theil, o que possibilitou a disponibilização de fontes essenciais sobre a história do Papado (MARTINA, 1981; CHIFFOLEAU, 2008, p. 43). Nesse período em que o arquivo constituía um bastião em que somente uns raros privilegiados tinham acesso, mantinha-se, no entanto, a possibilidade de obtenção de cópias de documentos para a história de cada país, geralmente no âmbito de projetos liderados ou com a intervenção dos respetivos governos. Para o caso de Portugal, assinala-se a transcrição de milhares de documentos, por ordem do rei D. João V, no âmbito de um empreendimento que deu origem à coleção Rerum Lusitanicarum ou Symmicta Lusitanica em 226 volumes. Hoje conservada na Biblioteca do Palácio da Ajuda, a sua utilização para o estudo do período medieval é escassa, nomeadamente pela má fama que lhe votou Alexandre Herculano e pelo facto de copiar documentação já anteriormente publicada (HERCULANO, 1903; BRASÃO, 1939). Mais tarde, coube ao Visconde de Carreira ordenar, entre 1841 e 1842, a transcrição de 184 bulas e breves apostólicos, transcrições hoje custodiadas pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (AZEVEDO, 1915).
A abertura do Archivio Segreto ao público, a partir de 1881, possibilitou o aumento da investigação sobre as histórias nacionais e sobre o próprio funcionamento das diversas repartições da Cúria apostólica (MORGEN, 1983; CASAS, 2003; WINDWOLZ, 2008; GARCÍA SÁNCHEZ, 2010, pp. 77-107, para o caso ibérico, veja-se TRENCHS I ÒDENA, 1993; DÍAZ IBÁÑEZ, 1990). No caso da fiscalidade apostólica, o grande protagonismo foi assumido até à Segunda Guerra Mundial, em grande medida, por investigadores alemães, franceses ou mesmo suíços como Joseph de Loye, Emil Göller, Paul Fabre, Adolph Gotlob ou Johan Kirsch, cujas publicações de fontes e respetivas análises adjuvaram a uma profunda renovação dos conhecimentos sobre o funcionamento da Câmara apostólica, dos seus agentes e das atividades de perceção sobre um conjunto de direitos igualmente escrutinados (LUNT, 1909, pp. 254-260).
À semelhança de outras historiografias europeias, também os investigadores portugueses compreenderam rapidamente o potencial do estudo da documentação apostólica para a compreensão da história de Portugal, nomeadamente sobre o respetivo período medieval. Nesse sentido, os primeiros anos depois da abertura do Archivio pareciam ser um tempo de esperança, ainda que já mitigado pelas evidências do atraso da historiografia lusa face às suas congéneres europeias. Lamentando a ausência de investigadores portugueses do Arquivo Vaticano, durante o seu primeiro decénio após a sua abertura, José Maria Rodrigues clamou, desde 1892, a constituição de um centro de estudos, na linha daqueles criados nesse período (ou pouco tempo antes) para sustentar as diversas missões nacionais de investigação em Roma (RODRIGUES, 1892). O que estava em jogo, bem entendido, era o estabelecimento de estruturas perenes de enquadramento, com vista a proporcionar as condições logísticas e científicas indispensáveis a estadas romanas prolongadas, as únicas compatíveis com a publicação sistemática de fontes, começada então de forma sustentada.
A situação não havia melhorado duas décadas mais tarde, quando o Conde de Tovar foi enviado a Roma para proceder ao levantamento nos arquivos italianos dos documentos relacionados em Portugal (TOVAR, 1931 e 1932; ROSA, 1993, p. 380). Para além do resumo dos trabalhos em curso pelas diferentes missões estantes na cidade e de uma breve descrição dos fundos arquivísticos romanos, ele foi o primeiro a tentar o inventário parcial da documentação sobre Portugal custodiada pelo Archivio. Para o período medieval, ele pôde inventariar o fundo Instrumenta Miscellanea, a partir do então recente inventário elaborado a partir de 1910, na altura publicado até ao oitavo volume. Refira-se que ainda hoje se sente a falta da sua continuação, sobretudo que inventários específicos dos Instrumenta foram já produzidos para outros países, como a Inglaterra, Irlanda, Espanha ou mesmo Chipre (DODD, 1956; MILIAN BOIX, 1969; BURNS, 1971; SCHABEL; DUBA, 2018). Este trabalho do Conde de Tovar foi secundado nas décadas seguintes com os estudos realizados por eclesiásticos lusos estantes em Roma (FARIA, 1987; DÍAZ IBÁÑEZ, 1990, p. 470).
As causas desse atraso são conhecidas e relevam, em grande medida, de fraquezas de ordem institucional - a falta de estruturas portuguesas de enquadramento científico da investigação em Roma -, assim como das consequentes limitações da própria investigação realizada sobre o passado medieval português (ROSA, 1993; FARELO, 2013a). Com efeito, pela falta de tais instituições de suporte, a investigação medievalística em Roma manifestou sempre uma grande dificuldade em se libertar de uma produção pessoal e irregular, de acordo com os compromissos institucionais e os gostos pessoais dos investigadores. De facto, no Pós-Segunda Guerra Mundial, o escrutínio da documentação medieval do Arquivo Vaticano relativa a Portugal enquadrou-se largamente no âmbito de projetos colaterais de publicação promovidos pelo Estado Novo, como foram os casos da Monumenta Henricina e o Chartularium Universitatis Portugalensis (ROSA, 1993, p. 380).
De igual modo, uma simbiose entre «moda» historiográfica e gostos pessoais levaram a que a atenção dos poucos medievalistas lusos com acesso aos arquivos romanos tivesse privilegiado, nessa mesma altura, o estudo dos séculos XII e XIII - correspondendo ao período de formação do Reino português - e de uma centúria de Quatrocentos dominada pelos assuntos associados aos Descobrimentos, em detrimento de uma investigação sustentada sobre um século XIV, então pouco conhecido e com um acesso restrito a fontes pontifícias publicadas sobre o caso português.
Relativamente aos séculos XII e XIII, os esforços direcionaram-se, desde cedo, para a constituição do bulário português, para o estudo biográfico dos protagonistas da cultural letrada portuguesa no século XIII e para um melhor esclarecimento das relações entre Portugal e o Papado nessa mesma centúria. A questão do bulário iniciou-se nos anos 1920 com o lançamento e operacionalização do projeto Gottingen papsturkunden, a partir do qual Carl Erdmann disponibilizou, a partir de 1927, o volume consagrado a Portugal com a publicação das bulas, datada até 1198 e conservadas pelos arquivos portugueses (ERDMANN, 1927; HERBERS, 2015). A ideia da prossecução do bulário, necessária para o período seguinte àquele coberto por Erdmann, foi reativada nos anos 1940 por António Feio, então diretor da Biblioteca de Braga (COSTA, 1980, p. 517; 1985; VASCONCELOS, ARAÚJO, 1986). Na impossibilidade da sua conclusão, o projeto não deixou de suscitar émulos, como evidencia o trabalho realizado na década seguinte por Avelino de Jesus da Costa (COELHO, 1990, 2000-2001, 2003; MARQUES, 1993 e 2007). Este último conseguiu reunir um corpus de 1672 transcrições de documentos, datados de 1198 a 1303, hoje depositado enquanto documento de trabalho na Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian (COSTA, 1962). Este trabalho heurístico permitiu dar à estampa, juntamente com Maria Alegria Marques, o bulário português de Inocêncio III (COSTA, MARQUES, 1989), ao mesmo tempo que inviabilizou a colaboração portuguesa ao projeto Index Actorum Romanorum Pontificum, lançado nos anos 1950 pela Comissão Pontifícia dos Arquivos Eclesiásticos da Itália. De facto, quando o autor foi convidado para participar na referida coleção, já tinha terminado o seu levantamento documental, efetuado com critérios que não atingiam o detalhe desejado pelos líderes do referido projeto. Dessa forma, caía mais uma vez por terra a possibilidade da publicação do bulário português do século XIII, apesar das contribuições posteriores de Maria Teresa Nobre Veloso e de Maria Alegria Marques, as quais nunca não cessaram de fazer valer nos seus trabalhos a utilização e o seu domínio da documentação pontifícia (MARQUES, 1974, 1980, 1983, 1990a, 1990b, 1997, 2001; VELOSO, 1990, 1992, 2000; MARQUES; VELOSO, 1984).
Posteriormente, o austríaco Gerhard Sailler procurou paliar essa lacuna, com a elaboração do regesta da maior parte da documentação sobre Portugal datada desde o início do pontificado de Inocêncio III ao final do de Bento XI (1198-1304), com o recurso exclusivo às bulas conservadas em arquivos portugueses (SAILLER, 2008 e 2013). A questão do bulário português beneficiou, mais recentemente, de um avanço definitivo, com a publicação por Peter Linehan do seu Portugalia Pontificia (LINEHAN, 2013). Culminando décadas de trabalho em torno da localização e da publicação da documentação pontifícia sobre Portugal, esta obra de referência comporta o regesta das bulas originais identificadas pelo autor até 1417, complementado de várias dezenas de transcrições que permitem caracterizar tipologicamente o largo escopo do material recolhido.
Atualmente, assistimos de certa maneira a uma renovação da investigação, especialmente através da interligação de dois projetos. Um, intitulado Regesten Iberia Pontificia, inserido no projeto mais global dos Papsturkunden des fruhen und hohen Mittelalters, sob os auspícios da Akademie der Wissenschaften zu Gottingen, tem como objetivo a publicação da totalidade da documentação apostólicas relativos à Península Ibérica, até em 1198. Esta mesma data foi escolhida igualmente como termo ad quem pela equipa liderada por Fernando Lopez Alsina, da Universidade de Compostela, para o estudo da intervenção pontifícia do espaço noroeste da Península no âmbito do projeto El Pontificado Romano: relaciones con el noroeste peninsular y bases documentales para su estudio hasta el año de 1198, com financiamento entre 2007-2010 (primeiro de dois outros projetos de temática conexa, o último dos quais com financiamento assegurado até finais de 2019). A participação portuguesa nestes projetos tem sido assegurada por Maria Cristina Cunha e Maria João Branco, as quais têm vindo a propor novas perspetivas de análise sobre práticas escriturárias associadas aos impactos in partibus da documentação pontifícia e sobre a dinâmica das solidariedades tecidas em torno das cortes ibéricas durante a primeira metade do século XIII (BRANCO, 2007 e 2010; CUNHA, 1999 e 2018).
Para além disso, os agentes da cultura portuguesa no século XIII foram o tema da eleição de António Domingues de Sousa Costa, justamente considerado por muitos como o maior investigador da história medieval portuguesa em Roma até ao presente (RODRIGUES, 2001-2002; ARAÚJO, 2003a, 2003b). Reconhecido em particular pela sua edição de súplicas dirigidas ao papa entre 1342 e 1431 em 4 volumes (COSTA, 1968-1982) (ele deixou preparadas para edição ainda mais cerca de 7500 súplicas, respeitantes ao período 1432 e 1485), uma grande parte de seu trabalho relacionou-se com o esclarecimento das biografias de prelados portugueses ou agindo em Portugal no período medievo (com uma listagem completa em ARAÚJO, 2003b). As suas obras são facilmente reconhecíveis pelas copiosas notas, constituídas pela transcrição de milhares de documentos, a maioria dos quais conservados no Arquivo do Vaticano. Mesmo se a sua produção nesta matéria, elaborada maioritariamente nos anos 1960 e 1970, possa ser taxada de demasiado casuística e com preocupações analíticas e conceituais limitadas, os seus trabalhos permanecem o testemunho de uma sólida formação de seu autor e, principalmente, mantêm seu valor como autênticos vademecum, de recurso obrigatório para vários temas da história medieval portuguesa.
Por outro lado, o século XV foi durante décadas um campo fértil de observação nesta área, marcado pela omnipresença de Sousa Costa e dos seus estudos sobre prelados e estudantes portugueses residentes no estrangeiro. Neste contexto, é possível recordar o seu imenso trabalho realizado sobre as biografias dos bispos de Lamego e Viseu (COSTA, 1986), patamar de um episcopológio medieval português que o autor tinha planeado desde o início da sua carreira, mas que nunca viria a desenvolver. Concomitantemente, desenvolveram-se trabalhos sobre o Grande Cisma ou sobre as bulas respeitantes aos Descobrimentos portugueses, carreados pelas investigações levadas a cabo, nos anos 1950 e 1960, respetivamente por Júlio César Baptista e Charles-Martial de Witte, sem contar com a ajuda prestada por Sousa Costa aos grandes projetos editoriais supracitados (Monumenta Henricina e Chartularium Universitatis Portugalensis) (BAPTISTA, 1956; WITTE, 1953-1954 e 1956).
Deve-se admitir que a prevalência por estes dois tempos-fortes contribuiu para a pouca representatividade da análise dos impactos do Papado de Avinhão na medievalística portuguesa. Mas não só. A renovação da historiografia eclesiástica portuguesa efetuada sobre as instituições seculares do Reino, a partir dos anos 80 do século passado, proporcionou a elaboração de análises mais ou menos diacrónicas centradas nas dioceses portuguesas a partir do estabelecimento das biografias dos Ordinários e do estudo socioinstitucional dos respetivos cabidos catedralícios (MARQUES, 1998; RODRIGUES, 2000; SARAIVA, 2003; VILAR, 2007; RODRIGUES et al, 2005; FARELO, 2003). A insistência sobre o esclarecimento da hierarquia funcional e do recrutamento social de tais instituições subordinou - e continua a subordinar - o estudo das relações por elas tecidas ao inevitável binómio Mitra-Cabido ou ainda às ligações destas últimas instituições com a Coroa portuguesa. Este questionamento histórico secundarizou o papel do Papado em tais institutos, como aliás é percetível na sua quase ausência - não pela falta da exaustividade das análises propostas, mas pela real parcimónia de tais estudos - nos balanços historiográficos realizados sobre a história da Igreja portuguesa no período medieval (VILAR, 2001-2002, 2009; COELHO, 2006; VILAR; ROSA, 2011).
Neste sentido, o estudo do intervencionismo apostólico dos papas de Avinhão carece de uma abordagem diacrónica, com capacidade para sintetizar e contextualizar as abordagens parciais efetuadas até ao momento ao nível da presença de clérigos estrangeiros em benefícios eclesiásticos do Reino (DEPEYRE, 1893; DAVID, 1943; BOURDON, 1948; PRADALIÉ, 1982; RODRIGUES; VILAR, 2004; CUNHA; SILVA; 2005; JORGE ET AL., 2005; MORUJÃO, 2005; FARELO, 2010), das relações político-diplomáticas mantidas entre a Coroa portuguesa e o Papado de Avinhão (COSTA, 1965 e 1968; MAHAUT, 1978; FARELO, 2010b; LINEHAN, 1983 e 2019; com raízes no período anterior escrutinadas em BRANCO, 2000 e 2007; FLEISCH, 2006 e 2008), das redes de solidariedade tecidas pelos Portugueses na Cúria, geralmente reduzidas a alguns protagonistas (LOPES, 1962-1963; TEIXEIRA, 2001; COELHO; SARAIVA, 2005; SARAIVA, 2005 e 2006; FARELO, 2013b e prelo3) e aos curiais avinhonenses com interesses beneficiais no Reino (FARELO, 2010a e 2016).
A investigação da fiscalidade apostólica em Portugal, igualmente objeto de uma mesma abordagem parcial, constitui, no entanto, uma área em que o trabalho efetuado é o mais efetivo e as hipóteses de investigação assumem-se como mais promissoras.
Pelas razões já evocadas, a documentação cameral nunca beneficiou de uma atenção da parte daqueles que, como Avelino de Jesus da Costa e António Domingues de Sousa Costa, poderiam ter assumido essa tarefa, ao contrário do que aconteceu nas restantes historiografias ibéricas, as quais beneficiaram do trabalho de investigadores «especializados» na questão, como no caso da historiografia castelhana (José Zunzunegui Aramburu), navarra (José Goñi Gaztambide) e aragonesa (José Trenchs Odena) (elenco da produção destes autores em DIÁZ IBÁNEZ, 2010; FARELO, 2013a, p. 57).
Dessa forma, é com naturalidade que a fiscalidade dos Papas de Avinhão relativa ao Reino português acabou por ser abordada, ao longo da década 1940, por investigadores estrangeiros que beneficiavam de laços mais ou menos ténues com Portugal e que, por isso, sem deixar de abordar o caso lusitano, fizeram-no de forma acessória no âmbito de estudos de caso mais globais ou a partir das series documentais que trabalhavam. Neste particular, destaca-se o caso de Yves Renouard e da sua chamada de atenção para o caso português através do trabalho clássico que dedicou às relações entre as companhias comerciais italianas e o Papado de Avinhão (RENOUARD, 1941). Concomitantemente, as missões de agentes pontifícios em Portugal motivaram a realização de trabalhos monográficos de Jean Glénisson (Bertrand du Mazel) e do mesmo Yves Renouard (Theobaldo de Castillon), estudos propiciadores de bastantes dados sobre as transferências de dinheiros da coletoria portuguesa para a Câmara apostólica (GLÉNISSON, 1947; RENOUARD, 1949). Baseados na documentação deixada pelos referidos oficiais apostólicos, estes autores privilegiaram abordagens sintéticas, estruturadas de forma cronológica, em que a exploração da riqueza do conteúdo «fiscal» das fontes encontrava-se subalternizada em função do conhecimento biográfico dos indivíduos em estudo.
Mais recentemente, foram ainda os historiadores estrangeiros que conseguiram produzir os desenvolvimentos mais importantes sobre a questão, através de estudos sobre a coletoria portuguesa, que ficaram infelizmente inéditos, como os de Daniel Williman e de Trenchs I Òdena (FARELO, 2013a, p. 60). O primeiro destes autores forneceu informações preciosas sobre livros e bibliotecas - ainda por explorar na sua justa medida - contidas nos processos de espólios de prelados lusitanos ou de estrangeiros beneficiados em Portugal, ao passo que algumas das fontes camerais relativas a Portugal foram estudadas por José Luis Martín y Martín, no âmbito de uma comparação das características de povoamento das dioceses de Lisboa e de Coimbra no século XIV (WILLIMAN, 1972, 1980; MARTÍN Y MARTÍN, 1996). Há, ainda, que sublinhar o trabalho de Stéphane Boissellier em torno da análise dos registos fiscais produzidos pelos oficiais camerais em Portugal, com resultados significativos ao nível da compreensão da estruturação e funcionamento da coletoria portuguesa, assim como dos processos de escrituração e dos mecanismos fiscais associados à sua produção (BOISSELLIER, 2005 e 2011). Importa sublinhar que todo este trabalho de análise alicerçou-se num importante esforço de publicação de fontes inéditas (BOISSELLIER, 2012; LINEHAN, 2013; WILLIMAN; CORSANO, 2014), de enorme proveito para a comunidade científica em geral.
A medievalística lusa tem procurado acompanhar e contribuir para esse avanço, nomeadamente através do estudo dos processos de espólio de clérigos portugueses ou com interesses beneficiais em Portugal (SARAIVA, 2001-2002 e 2005), da mesma forma que se tem procurado aprofundar o conhecimento sobre os processos construtivos e o recrutamento da coletoria portuguesa (FARELO, 2013a), analisar de forma detalhada algumas das missões dos oficiais camerais (FARELO, 2018) e historiar, na diacronia, as modalidades e a eficácia da perceção de alguns dos direitos pertencentes à Câmara apostólica como as décimas e as anatas (FARELO, 2013a, prelo1 e prelo2). Por último, registe-se a utilização feita por António Castro Henriques, com grande mestria e sagacidade, de tais fontes nos seus trabalhos sobre os mecanismos, direitos e conjunturas fiscais ao longo da tardo-medievalidade portuguesa (HENRIQUES, 2013 e 2015).
Não é despiciente sublinhar que esta produção baseia-se na exploração de um manancial importante de documentos inéditos, em grande medida poucos conhecidos, pelo que se impõe uma análise das fontes disponíveis, até para melhor perceber, em seguida, as suas potencialidades para o aprofundamento do tema em apreço.
2. Para um arrolamento das fontes apostólicas disponíveis no Arquivo do Vaticano
Restringindo o propósito às fontes «romanas» conservadas pelo Arquivo Vaticano, ou seja, às principais fontes de informação para o estudo da fiscalidade dos Papas de Avinhão em Portugal, a investigação teria sempre que começar pela massa documental produzida e conservada nos fundos pertencentes à Chancelaria e Câmara apostólicas (TRENCHS I ÒDENA, 1971; apresentação de uma síntese fundamentada com um grande aparato bibliográfico em TELLO HERNÁNDEZ, 2017, pp. 109-115; descrição das potencialidades para a medievalística portuguesa em TOVAR, 1931; BRÁSIO, 1957; COSTA, 1988; ROSA, 1993; MARQUES, 2001-2002; COSTA, 2002). Relativamente aos primeiros, destacam-se os Registra Avenionensia e Vaticana. Compostos maioritariamente por cartas enviadas por autoridade apostólica, a informação aí contida permite reconstituir as carreiras beneficiais e funcionais dos clérigos portugueses e daqueles que, no estrangeiro, retiveram lucros e exerceram funções administrativas ou fiscais em Portugal. Conhecidas a partir de transcrições in extenso ou por análises efetuadas pela École Française de Rome, a sua utilização permanece laboriosa para os registos que não foram objeto dessa análise ou de publicação integral, obrigando a uma consulta presencial ou através das digitalizações dos registos (uma abordagem dessa massa documental em VALLIÈRE, 2010). Encontram-se neste caso as letras secretas e curiais (documentos que carreavam as orientações políticas do Papado na sua relação com os outros poderes) preservadas nos Registra Vaticana: de João XXII (Reg. Vat. 109-117), de Inocêncio VI (5º ano de pontificado (Reg. Vat. 244-244N) e de Urbano V (Reg. Vat. 245-250) (um exemplo recente das potencialidades dos registo de João XXII para o caso luso em LINEHAN, 2019). Regista-se um ainda maior desconhecimento sobre as letras comuns (com conteúdo de natureza beneficial, administrativo, entre outros) de Clemente VI (1342-1352) e de Inocêncio VI (1352-1362), também elas desprovidas, até ao momento, de análises ou publicação na integra.
Para o tema da fiscalidade pontifícia, os fundos mais importantes são obviamente aqueles gerados no âmbito da Câmara apostólica, ou seja, da repartição curial que assegurava a gestão financeira da Cúria (Fondo camerale) (TRENCHS I ÒDENA, 1982a; DOMÍNGUEZ SÁNCHEZ, 1997). No fundo Collectoriae encontram-se registadas as espécies documentais produzidas pelos agentes camerais no âmbito das suas missões ou os diplomas julgados úteis para substanciar as ações judiciais relevantes para a Câmara apostólica. Este fundo tem sido pouco trabalhado pelos investigadores portugueses, especialmente no que respeita a análise e a edição da documentação sobre as diferentes missões dos coletores apostólicos em Portugal entre os anos de 1320 e 1370. Valorizado a partir da informação sobre os processos de espólio (WILLIMAN, 1972 e 2014; ROSA, 1993; SARAIVA, 2001-2002), a organização geralmente «geográfica» da maior parte desses volumes resultou na concentração da documentação sobre a coletoria portuguesa. Em dois desses volumes, o Coll. 112 e o Coll. 179, foi possível identificar os manuais dos coletores e núncios Guillaume Bos (1329-1331), Arnaud de Sancto Vincentio (1333-1337), Jean Guarrigue (1355-1357, 1359-1360) ou Bertrand du Mazel (1368-1372).
Estes manuais são de grande importância, pois registam as diversas atividades do coletor durante a sua missão, em termos da tipologia e os montantes dos direitos recebidos e as despesas incorridas durante as mesmas (TRENCHS I ÒDENA, 1982b; FARELO, 2013a, p. 57). Com o propósito de levar a bom porto tais responsabilidades, tais manuais continham muitas das vezes outras peças necessárias à respetiva perceção, como listas de benefícios vacantes (para que o coletor pudesse identificar os benefícios sob provimento apostólico ergo taxáveis) ou processos de vacaturas episcopais (essenciais para calcular os montantes devidos à Câmara apostólica durante a vacatura de bispado), particularmente significativos para o caso da diocese de Lisboa em meados do século XIV. Pela massa de informação inédita que cada um deles carreia, estes manuais tornam-se excelentes fontes para conhecer as atividades, a eficácia e os impactos do trabalho dos coletores junto dos poderes instalados no Reino (GLÉNISSON, 1947; FARELO, 2018).
Os informes registados pelos coletores constituíam somente uma parte do exercício da fiscalidade apostólica. Com efeito, vários réditos à Câmara apostólica deviam ser pagos in curia, pelo que a instituição mantinha registo do respetivo «deve» e «haver»: os registos hoje conhecidos como Obligationes e Solutiones compilavam as promessas feitas pelos clérigos para o pagamento dos serviços comuns devidos ao papa, ao colégio dos Cardeais e respetivos funcionários pelo provimento apostólico de arcebispos, bispos e abades, ao passo que Introitus e exitus registavam as diversas entradas e saídas contabilísticas da instituição (a bibliografia é imensa; recentes abordagens em TELLO HERNÁNDEZ, 2017; GENEQUAND, 2018). Importa sublinhar que as notas de promessas e de pagamentos lançadas nos registos pelos escribas da Câmara apostólica comportam informações substantivas, não somente para uma melhor calibragem do episcopológio e abadológio trecentista português, como também para estabelecer as respetivas cronologias de permanências na Cúria e identificar os curiais portugueses e mercadores italianos, envolvidos muitas das vezes nos respetivos pagamentos.
Outras informações dignas de registo podem ser recolhidas noutros fundos do Archivio. O repositório composto pelos Instrumenta Miscellanea, conhecido parcialmente pelo inventário do Conde de Tovar, comporta alguns documentos importantes para caracterizar a atividade dos agentes pontifícios e camerais em Portugal, nomeadamente quitações de coletores apostólicos (n.º 1192 [1331], 2199 [1360], 2601 [1332]), documentos relativos à gestão de benefícios abrangidos pela colação apostólica (n.º 1213 [1332], 1612 [1342]); inventário de bens (n.º 7288 [1356]); contas e relatórios aos coletores agindo em território português (n.º 1723 [1346]; 4592 [1349-1350]) ou ainda documentação associada a missões específicas como as de Jean Guarriga e de Bertrand du Mazel (n.º 2495, 2498-2500 [1368]. Em paralelo, foram conservadas neste fundo diversas bulas que tipificam a presença estrangeiros em Portugal, tanto no âmbito da posse de episcopados no Reino, como no caso de Renaud de Maubernard na Sé de Lisboa (n.º 2058, 2085 [1356-1357]), quanto da colação apostólica de benefício (n.º 2322 [1363], 2485 [1367]). Uma última tipologia documental presente neste fundo respeita as procurações de prelados portugueses para a tramitação de assuntos de natureza fiscal e judicial na Cúria (n.º 2137 [1358], 2368 [1364], 2653 [1371], 2771 [1373]).
Ao contrário do anterior, o fundo Archivum Archis é relativamente pobre para o estudo da fiscalidade dos papas de Avinhão em Portugal, assinalando-se sobretudo duas cartas de quitação associadas à missão de Jean Guarriga, assim como um acordo passado entre o bispo de Évora e o comissário Bertrand du Mazel (Armadio C, n.º 79 [1356], n.º 379-380 [1371]; FARELO, 2018). Colaterais à temática, aí se encontram documentos já conhecidos sobre a fundação da Ordem de Cristo (Armadio C, n.º 102-103) e a inquirição, em péssimo estado de conservação, sobre os bens dos Templários na arquidiocese de Compostela (Armadio D, n.º 220; SANS I TRAVÉ, 1996). Destaca-se ainda a existência nesse fundo de dois atos de processo matrimonial estabelecidos em Évora em 1368-1369 (Armadio I-XVIII, n.º 4274-4276 [1368-1369]). Ainda que a tipologia destas atas processuais, instauradas no âmbito do tribunal episcopal, não esteja ausente dos arquivos portugueses, muito raramente estas tratam de temas associados ao matrimónio. Com particular relevância para a história processual da justiça eclesiástica associada a este sacramento, as mesmas foram objeto recente de publicação e cuidada análise (VITÓRIA, 2016).
Este arrolamento pode ser completado com outras peças documentais identificadas noutros trabalhos especializados (ROSA, 1993). Mas, pese embora o seu carácter sumário, o mesmo parece suficiente para justificar as perspetivas de trabalhos relacionadas com a sua utilização.
3. Perspetivas de trabalho
A publicação das fontes ainda inéditas constitui uma das prioridades da investigação sobre o tema. Prosseguindo o trabalho realizado nas últimas décadas, esta etapa, passível de ser operacionalizada em estudos monográficos ou num «programa» de edição específico, afigura-se como um patamar essencial para o desenvolvimento de monografias e sínteses, pré-requisitos para a introdução do tema nas futuras sínteses sobre a história da Igreja medieva em Portugal.
A disponibilização de um tal manancial de informação permitiria aprofundar um largo escopo de assuntos. Fiquemo-nos pelas possibilidades de trabalho em torno do aparelho de perceção fiscal estabelecido pela Câmara apostólica e das possibilidades desta documentação para o estudo da economia eclesial.
3.1. A coletoria portuguesa
Caracterizado na generalidade ao nível do seu processo constitutivo (BOISSELLIER, 2005 e 2012; FARELO, 2013a), haveria que afinar a história da presença de oficiais camerais durante o papado de Avinhão, a qual parece ter evoluído ao longo de três períodos distintos, aqui apresentados pela primeira vez com algum detalhe (veja-se a lista de núncios e coletores em anexo). Um primeiro período do funcionamento da «coletoria» portuguesa, entre o início do pontificado de João XXII e os finais do de Bento XII, foi caracterizado pela existência de núncios (mais raramente designados de coletores) enviados e nomeados ad hoc, com dois perfis distintos de missão. Assim, detetam-se oficiais que se deslocaram a Portugal no âmbito de uma só missão, de duração mais ou menos limitada no tempo, geralmente inferior a três anos (Petrus Danroqua, Arnaldus de Roseto e Guillelmus de Bos). Em paralelo, identificam-se agentes, geralmente designados de núncios (e coletores de exações específicas), os quais permaneceram vários anos no reino português, com hiatos causados por viagens regulares a Avinhão e que puderam intervir em assuntos outros que aqueles exclusivamente financeiros (Johannes de Solerio, Raimundus Ebrardi I, Petrus de Labrunia).
O segundo período corresponde à década em que a atividade cameral em Portugal foi dominada pela figura do arcebispo de Braga Gonçalo Pereira em torno da recolha do conjunto de direitos pertencentes ao Papado e a Câmara apostólica (sobre o seu percurso, veja-se COELHO, 2018). Iniciada aparentemente a relação com esta última em 1324 com a liquidação das contas dos coletores Raimundus Ebrardi I e nos anos seguintes com a perceção de diversos espólios de bispos pertencentes à província bracarense, a Câmara encarregou-o de recolher os direitos que a mesma usufruía em Portugal, após a saída do Reino do núncio Arnaldus de S. Vicencio em 1339, uma tarefa que ele desempenhou até à sua morte, nos finais de 1348.
A terceira etapa, situada cronologicamente a partir dessa data até aos alvores do Grande Cisma, assistiu a um desdobramento das estruturas camerais em Portugal. Por um lado, o papa Clemente VI institucionalizou um oficial permanente, à semelhança do efetuado à escala da Cristandade. Este oficial, agora tendencialmente designado de coletor, dirigiu uma estrutura permanente formada por agentes autóctones ou estrangeiros - subcoletores e oficiais -, detentores de um conhecimento sobre o tecido eclesiástico diocesano e com responsabilidade na recolha física das perceções. Pelo outro lado, esta rede, do coletor aos subcoletores e seus dependentes, foi igualmente colocada à disposição de uma estrutura «periódica», formada por um comissário e sua família durante um período limitado de tempo. Com poder para agir ao nível do reino como João Guarriga ou Bertrand du Mazel, a nomeação destes comissários teve lugar no quadro de conjunturas excecionais relacionadas com problemas de funcionamento das coletorias, como a substituição de coletores ou a perceção de exações específicas como subsídios, sendo estes igualmente os derradeiros responsáveis pela acumulação, conservação das espécies recolhidas - geralmente na cidade de Lisboa - e do seu transporte a Avinhão através dos circuitos estabelecidos pela Câmara.
Um conhecimento efetivo destas estruturas ajudaria a caracterizar e a contextualizar as diversas facetas da missão destes agentes, em termos das dimensões da sua mobilidade geográfica, da organização da perceção, das contingências do transporte conservação das espécies e do seu relacionamento com os poderes instituídos. De facto, os documentos camerais indiciam a existência de uma eventual praxis nas ações dos coletores, uma praxis que não é apenas documental, mas também contabilística e relacional (vejam-se, por exemplo, os pagamentos efetuados por esses oficiais aos membros das suas famílias, à chancelaria régia para a concessão de cartas e aos reis para os necessário salvo-condutos, entre outros). Tais práticas in situ seguem um modelo ou os coletores agiam de acordo com as condições que se lhes deparavam? Quais as ações consideradas legítimas e ilegítimas pelas autoridades camerais (uma vez que os clérigos da Câmara, aquando do exame das despesas dos coletores, nem sempre aceitaram as despesas por estes efetuadas) (MOLLAT, 1908)?
Um segundo enfoque do estudo da coletoria no Reino não deveria fazer economia do estudo da sua componente humana. Com recurso aos métodos biográfico e prosopográfico, haveria que prosseguir a análise sobre o perfil sociológico das agentes camerais no Reino, nomeadamente em termos das respetivas origens, preparação académica, percursos beneficiais ou as inserções funcionais, nomeadamente aquelas ao serviço do Papado (BAÑARES MAESO, 1968; FARELO, 2010, 2012, 2013a). Haveria que perceber, de igual modo, a respetiva ação ao serviço da Câmara apostólica. No que respeita o grupo de oficiais permanentes, importaria aferir o seu grau de penetração beneficial nos capítulos catedralícios e igrejas paroquiais do Reino. Importaria igualmente que perceber até que ponto a coletoria poderia funcionar como elemento intercessor na hora de adquirir um benefício eclesiástico do Reino, uma vez que não restam dúvidas sobre a capacidade da Câmara apostólica, à semelhança do Colégio cardinalício, em utilizar em seu favor o sistema beneficial existente nos espaços de acolhimento dos seus oficiais e, concomitantemente, em exercer uma atividade efetiva na gestão beneficial dos seus membros (FARELO, 2016). No caso dos oficiais ad hoc, nomeadamente dos comissários referidos no terceiro período, era importante identificar a existência ou não de um modelo de atuação em termos de direitos a perceber, das tarefas impostas aos respetivos subordinados, das relações com os poderes eclesiásticos e leigos estabelecidos nos seus espaços de atividade, assim como aquilatar a existência de estruturas de enquadramento que pudessem auxiliar a respetiva ação.
Ainda ao nível da coletoria, o material constante dos manuais de coletoria possibilitaria uma visão mais circunstanciada sobre os meios utilizados e a história de perceção dos vários réditos camerais no Reino. Definidos desde há muito e diferenciados de acordo com diferentes tipologias (modos de perceção, local de pagamentos) (NINA, 1929; LUNT, 1943, p. 57-136; SAMARAN; FAVIER, 1964, p. 104; MOLLAT, 1968, p. 11-68; MOREROD, 1990, p. 340-350; GENEQUAND, 2018, entre muitos outros), o estudo monográfico destes direitos no caso português possibilitaria perceber melhor a operacionalidade da fiscalidade apostólica in partibus (KIRSCH, 1908; GOÑI GAZTAMBIDE, 1966; LEROUX, 2010). Tendo como fio condutor os casos analisados de alguns espólios, das décimas e das anatas (SARAIVA, 2001-2002; FARELO, 2013a e prelo2), haveria que prosseguir o inquérito a outros réditos como os vacantes, os subsídios ou mesmo os censos, ainda que estes últimos tenham sido objeto de abordagens mais ou menos recentes, ainda que para cronias anteriores (PACHECO, 1964-1966; WIEDEMANN, 2015).
3.2. A economia eclesiástica
Em paralelo com a história da coletoria, a informação cameral pode revelar-se muito importante para o estudo fiscal das instituições eclesiásticas do Reino (BOISSELLIER, 2012), aprofundando recentes abordagens (VILAR, 2011) e sem esquecer a sua mais-valia para um melhor conhecimento sobre a atividade administrativa e fiscal das casas episcopais no Portugal de meados do século XIV (SARAIVA, 2001-2002 e 2005).
Neste particular, avanços significativos podem ser efetuados ao nível da compreensão e contextualização das lógicas operantes na aquisição e transmissão de benefícios eclesiásticos, através de róis de taxação, de listas de benefícios vacantes e de processos de vacatura. E, ainda que os benefícios eclesiásticos submetidos à colação apostólica sejam em menor número do que tradicionalmente se pensava - uma vez que o provimento apostólico incidia sobretudo sobre benefícios capitulares -, a informação contida nestas fontes viabiliza a constituição de uma «geografia beneficial» e a identificação das formas de gestão dos referidos benefícios, como aliás tem sido provado pelos trabalhos desenvolvidos em torno das décimas (BOISSELLIER, 2012; MEUNIER, 2012).
De igual modo, a sua mobilização facilitaria o conhecimento prosopográfico destes agentes envolvidos na economia eclesial, uma vez que a documentação apostólica
aduz preciosas informações biográficas relativas aos percursos beneficiais, académicos e funcionais dos clérigos, sem esquecer as referências sobre as suas origens geográficas ou mesmo a identificação dos respetivos progenitores (sobretudo em caso de ilegitimidade). Neste particular, a documentação avinhonense pode contribuir para esclarecer ainda vários pontos menos conhecidos dos perfis biográficos do episcopado português na segunda metade do século XIV.
Róis, listas, e manuais de coletoria podem ainda ter um impacto significativo para a história fiscal, dado que estas fontes consignam as avaliações adscritas aos rendimentos dos benefícios eclesiásticos, apesar da sua utilização para determinar rendimentos brutos das instituições eclesiásticas requerer redobradas precauções e permanecer fortemente desaconselhada sem a contribuição de outras fontes que permitam a aferição dos dados em análise (FAVIER, 1964). Em paralelo, os manuais de coletoria são particularmente importantes para a identificação de uma geografia monetária, dado que os coletores recebiam em muitos casos as moedas dos reinos onde permaneciam, trocando-as pelos florins e demais espécies usadas na Cúria. Tais movimentos são devidamente consignados por escrito, o que viabiliza um estudo sobre as flutuações das taxas de câmbios e a sua comparação entre diversos espaços económico-fiscais, como se evidencia do caso recentemente estudado da missão de Du Mazel em Portugal (FARELO, 2018).
Em suma, a fiscalidade apostólica tem potencial para se afirmar na historiografia portuguesa, o que não aconteceu ainda pela falta de investigação, falta de investigadores e um acesso às fontes nem sempre fácil. Ainda assim, cremos que o futuro será mais risonho, à medida que se avançará na disponibilização das fontes existentes e que os seus editores - ou outros - valorizá-las-ão em encontros científicos nacionais e internacionais, de modo a que a fiscalidade apostólica em Portugal possa servir, simultaneamente, para uma melhor compreensão da história medieval portuguesa e para que o caso português possa ser substantivamente considerado no atual panorama da historiografia europeia sobre a fiscalidade dos Papas de Avinhão.