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População e Sociedade

versión impresa ISSN 0873-1861versión On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.31 Porto jun. 2019  Epub 15-Jun-2021

 

Dossier Temático

O contrato de fretamento de navios entre os tempos medievais e modernos - breves notas de investigação

Amândio J. M. Barros1 

1Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de Educação, Porto, Portugal


Resumo:

Este texto pretende estudar aspetos da evolução da carta de fretamento marítimo entre finais da Idad e Média e início da Época Moderna. Essa tarefa será concretizada através do estudo de um fretamento medieval e vários documentos do mesmo teor produzidos nos cartórios notariais da cidade do Porto durante o século XVI. Todas as referências documentais remetem para o segundo volume do meu trabalho Porto. A construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, disponível no repositório aberto da Universidade do Porto. Suscitado por questões em redor da fiscalidade medieval, que não parecer ser relevante nos textos aqui citados, o fretamento remete para a evolução de uma certa ‘consciência’ do mar, da necessidade de gestão dos riscos marítimos e de eventuais jogos de interesses de mercadores, muito mais nítidos nos diplomas modernos.

Palavras-chave: fretamento; taxas; riscos marítimos; Porto; Portugal

Abstract:

This text intends to study the evolution of the shipping chart between the Middle Ages and the Early Modern Period. That task will be achieved by comparing the contents of one chart dated back from the fourteenth century and the ones produced in Porto during the sixteenth century which are available in the second volume of my work intitled Porto. A construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, accessible online in the Porto’s University repository. Raised by issues around the medieval fiscality - which don’t seem to be very relevant in the texts here under scrutiny - the shipping charts otherwise point for the evolution of a kind of awareness of the sea, the need for maritime risk management, and potential merchant strategies, which are especially evident in the Early Modern documents.

Keywords: ship or shipping-charts, tax, maritime risks; Porto; Portugal

1. Em 1996 Filipe Themudo Barata publicou um texto intitulado «Os fretes marítimos: de negócio a política do Reino», no qual faz uma síntese da história e significado deste tipo de contrato no Portugal medievo, reconhecendo a importância do fretamento para a história da política comercial portuguesa na Idade Média1.

No presente reunirei um conjunto de notas de investigação - não mais do que isso - sobre os fretamentos portugueses entre finais da Idade Média e o início da Época Moderna. Apresentarei dados retirados dos 125 contratos marítimos (predominantemente fretamentos mas também as suas variantes, tais como conhecimentos de embarque, obrigações de transporte, fianças, testamentos e constituição de parcerias de navegação, sempre relacionadas com o frete de navios) recolhidos nos cartórios notariais do Porto, confrontando esses dados com as informações contidas no fretamento de um navio medieval da mesma cidade, datado de 1386. Pretendo que seja um primeiro passo para um estudo mais alargado que contemple a compilação dos contratos da mesma natureza, celebrados nos diferentes portos nacionais, na referida cronologia.

A prática da navegação criou aquilo que se convencionou chamar «costumes de mar»2. Com eles foram introduzidas normas de regulação da atividade marítima que circularam pelos portos e pelos reinos, tornando-se familiares a todos os que faziam do mar o seu modo de vida. Nelas se incluíam os contratos de fretamento e as obrigações das partes envolvidas nos negócios. Duraram séculos. Por tais motivos, se este texto tivesse um subtítulo, ele mencionaria a questão das permanências e das inovações, sendo que penso que é a primeira ideia que deve prevalecer quando analisamos esses contratos. A de permanência. A de perpetuação de costumes e uso inteligíveis para os mareantes e mercadores europeus medievais e modernos. Como aconteceu com os fretamentos. Se o primeiro passo foi a divulgação, o seguinte foi a aceitação destes documentos - sobretudo a nível internacional - e isso significou o aparecimento e consolidação de instituições comerciais e administrativas estruturadas e reconhecidas nos diversos espaços portuários europeus. Ao mesmo tempo que se fomentava o comércio marítimo (e as relações económicas em geral) a longa distância, buscavam-se mecanismos de segurança do negócio. Admitir a validade dos diplomas e recebê-los em tribunal em caso de conflito constituiu um progresso assinalável e prova de uma articulação de interesses económicos que foi também caraterística do mundo medieval3.

Portugal integrou este movimento. Inicialmente a partir do seu principal centro portuário, Lisboa, mas em seguida, convocando os restantes portos (que não eram muitos, diga-se) a participar, desenvolvendo-se, a partir de finais do século XIII, uma marinha mercante muito ativa e evoluída4. Neste aspeto não havia grandes diferenças entre esta realidade e as realidades europeias. Pelo contrário, F. Themudo Barata considera mesmo que havia «um conjunto de costumes comuns a toda a Península Ibérica, ou limitados a Portugal e Castela» (BARATA, 1996, p. 302). Sinteticamente, direi que as primeiras cartas de fretamento que conhecemos em Portugal datam do século XIV e mostram uma prática marítima consistente, a que não estará alheia a experiência adquirida pelos mercadores e mareantes nos portos europeus e regulada por esses documentos. Se lermos uma do século XVII não notaremos grandes diferenças na estrutura do documento e nas cláusulas formais. Penso, igualmente, que a introdução do costume de afretar navios, bem como a evolução do frete e as formas de gestão da atividade marítima, aconteceram nos portos, por via dos contactos internacionais desenvolvidos, e dos portos passaram à prática do Reino e do rei, fazendo parte do seu modo de operar enquanto agente marítimo, quando colocava os seus navios no comércio ou quando requisitava navios das frotas portuárias. Nesse sentido, a carta de fretamento entrará na legislação geral e, de novo citando Themudo Barata, passará a ser «negócio do Reino».

Parece-me, igualmente, que embora pressuponha custos, taxas e obrigações para os que a ela recorreram nos tempos medievais e modernos, a carta de fretamento não nos ajuda muito a esclarecer aspetos da fiscalidade medieval, tema dominante neste dossier temático5. Tal como já referi, as que aqui utilizarei são, na sua maioria, do início da Época Moderna, mas pretendo mostrá-las em comparação com uma das primeiras conhecidas no Reino, do século XIV, e que serviu de padrão à legislação medieva sobre o tema6. A generalidade dessas cartas passa por alto o assunto da fiscalidade7 e as taxas que presumivelmente se pagavam por elas, ou pelas transações nelas descritas, não são discriminadas; apenas se registam os valores das mercadorias, o montante a pagar pelo seu transporte e dinheiros entregues aos mestres para apresto dos navios.

Para o período compreendido entre o século XIV, os últimos tempos medievais e os séculos XVI e XVII apenas podemos conjeturar, admitindo que cada fretamento equivalia a pelo menos uma taxa que era paga pelo armador do navio à autoridade portuária que, no caso português, era sempre o município, por acordo com o senhorio do lugar sendo caso disso8 - tal como se pagavam assentos de navios pela utilização dos estaleiros, para a sua construção e reparação.

Tal como mencionei a propósito do aparecimento de instituições reguladoras do comércio internacional medievo, a armação de navios e o fretamento estiveram intimamente ligados ao aparecimento, no caso português, das bolsas de mercadores nascidas nos principais portos, da conhecida Companhia das Naus, e dos corretores-fretadores, ainda que estas instituições e cargos tivessem inspiração europeia. Indiretamente, ajuda-nos a frequente discussão, nas câmaras municipais e na Corte, sobre o papel dos corretores-fretadores (de nomeação régia e conhecidos desde o século XIV) para tentarmos adivinhar algumas cifras, partindo do salário que cobravam e das taxas que tinham direito a receber por cada navio que despachavam. O cargo era apetecível pois colocava o seu titular em permanente contacto com os mercadores e dava-lhe um grande poder ao reservar-lhe a função de decidir quem tinha lugar nos navios para meter carga. Não foram poucos a aproveitar-se desse lugar privilegiado, sucedendo-se os conluios e conflitos, julgados pelas vereações e pelos tribunais régios9. Mas tirando isso, não há sinal dos livros que cada corretor devia escrever, e assim, para além da perda de uma fonte sem preço para conhecermos a evolução da marinha mercante portuguesa, temos também a lamentar a inexistência de quaisquer registos de cobranças sobre os fretes.

2. Assim expostos os termos da questão, convém dizer o que se pode esperar deste estudo. Primeiramente, a recuperação dos textos dos fretamentos registados nos cartórios notariais do Porto. Depois, a identificação de um conjunto razoável de encargos que oneravam o comércio marítimo, que ficam muito bem descritos nesses documentos - sobretudo, repito, nos de Quinhentos -, a relação entre mercadores e armadores (que, ocasionalmente, se confundiam em parte, porque era em parte que se detinha a propriedade das embarcações) e como se remunerava essa relação, se é que isso pode ser dito dessa forma; finalmente, importa advertir que o próprio pagamento ao notário perante o qual era celebrado o fretamento nos passa em claro, já que estamos a lidar com livros de notas e estas quase nunca indicam o preço do documento final entregue às partes, logo, desconhecemos a quem competia esse pagamento: se ao mestre do navio se aos mercadores que o afretavam.

Estas cartas conferem protagonismo ao mestre do navio, 'entregando-lhe' a responsabilidade dos ajustes e pela assinatura do fretamento, em representação do dono da embarcação. Mas há diferenças a assinalar. Para a Idade Média, e remetendo para o fretamento do baixel de João Ramalho, esse 'poder de representação' não se coloca uma vez que estamos perante o senhorio/dono do navio. Falta-nos muito para conhecer as formas de propriedade das embarcações. A partir de finais da Idade Média começam a vulgarizar-se as parcerias, que serão regra na Idade Moderna, embora não em exclusivo, como se pode ver desta missiva de D. João III, datada de 1536:

Conde Amigo […]. Folguarey de saberdes quãtos navios ha nessa cidade [Lisboa] que sejam dos moradores d'ela; […] e quantos sam de senhorios sem outrem ter parte neles; e, se sam de partes que neles tenham quinhões, quantas sam as partes em cada navio, e que pessoas sam as que tem as ditas partes […] e asy se ha algumas pessoas que estem em preposito de fazer alguns navios, e quantas pessoas sam as que os querem fazer (FORD, 1931, carta n.º 238).

O caminho, contudo, era no sentido da partilha da propriedade dos navios e estas raramente eram constituídas por mercadores - embora ocasionalmente houvesse alguns entre os senhorios - porque nesta centúria houve como que uma 'proletarização' da posse de barcos, partilhada por sociedades de homens do mar10. Feita, assim, esta ressalva - João Ramalho era de um tempo, que correrá até finais do século XV, em que os senhorios de navios eram mercadores, na maior parte dos casos em exclusividade, e exercendo funções de comando - o fretamento, como se disse, salienta o papel do mestre do navio. Incumbe-o de gerir o transporte, assinar os contratos e gerir e assumir riscos e responsabilidades11.

Não é invulgar o contrato de fretamento aludir a impostos. No de 1386 repartem-se assim: «E nos mercadores pagaremos toageens e alamageens pecjtes e custumes por noso auer e uos meestre por uoso bayxel», ao passo que os riscos correm da seguinte forma: «E de todo percalço que nos deus der desta viagem em augua doce ou ssalgada o terço deue seer de nos mercadores e as duas partes de uos mestre». Na Época Moderna, as disposições não passaram a ser muito distintas e cobravam-se taxas, por exemplo, por cada caixa de açúcar que os navios transportavam pelo Atlântico, para as «avarias», tarifas que começaram por ser pagas para ressarcir os armadores prejudicados por algum acidente (no porto ou em plena navegação - «comuns», quando a ocorrência não era grave e grossas, em caso de acidente grave ou lançamento de carga ao mar, ou sua perda). Com o tempo, passaram a ser cobradas como se de um imposto fixo se tratasse. Tipicamente da Época Moderna foi a parte dos pagamentos dos mercadores aos mestres e senhorios dos navios reservada para o «consulado», imposto criado para custear a proteção das rotas marítimas. «Consulado» e «avarias» tiveram bastante significado na vida marítima da Época Moderna. No fim deste texto apresentarei uma breve listagem de impostos, na qual se incluem estes. Tudo isto dito, importa reafirmar o facto de apenas de modo indireto estes dados contribuírem para o aprofundamento das matérias sobre fiscalidade.

3. Os portos nortenhos tiveram um contributo muito forte para a história da marinha mercante portuguesa. A par de Lisboa, o Porto conheceu um certo desenvolvimento das instituições que regulavam o tráfico mercantil e parece ser consensual que a legislação sobre fretamentos de navios plasmada nas Ordenações do reino tem origens portuenses; no primeiro 'código' legislativo medieval português, as Ordenações Afonsinas, transcreve-se uma carta de fretamento que haveria de servir de modelo para as que se fizessem em Portugal: precisamente a que venho citando: a do baixel Santiago, de João Ramalho, datada de 18 de maio de 1386.

Esta relação da cidade com o mar, com os portos europeus (a começar com Lisboa) e com o direito marítimo, traduziu-se numa muito ativa marinha mercante que em breve se transformou numa mais-valia económica a explorar. O seu principal negócio entre finais da Idade Média e início da Época Moderna era o da armação de navios e da sua colocação ao frete. Frequentemente eram postos a trabalhar longe da cidade, na Flandres e no Mediterrâneo. A complexidade dessas relações justificava esta preocupação precoce com a regulamentação do transporte marítimo conduzindo a uma prática continuada e gradualmente estendida a outros portos portugueses.

Logo em 1324 [escreveu Themudo Barata],

‘a cidade do Porto, por acordo entre o Concelho e os homens-bons, o que provavelmente significaria a posição comum dos mercadores e dos proprietários e mestres dos navios, definiram um primeiro conjunto de regras: corretagem obrigatória dos fretes, através da eleição anual de 4 fretadores, os quais receberiam um salário, estando estes ainda obrigados a realizarem uma distribuição equitativa dos fretes pelos diferentes navios. Para que não houvesse problemas de última hora, os mercadores seriam avisados, com antecedência, do número de embarcações disponíveis e da época do ano em que poderiam ser fretadas, embora o frete fosse negociado com os mestres dos navios. Estabeleciam-se ainda as regras básicas da estiva, incluindo o salário dos carregadores, excluindo dessa função os mercadores (BARATA, 1996, p. 299).

Era um dos grandes problemas dos portos. Desde o século XIV tanto se fala de conluios como de disputas entre armadores e mercadores, multiplicando-se os protestos contra a falta ou os abusos dos corretores-fretadores e discutindo-se a intervenção do rei nesta matéria. As queixas do Porto e de todo o Entre Douro e Minho em geral levaram D. Afonso IV intervir. Fê-lo em 1355. Tentava combater a especulação, leia-se, a revenda, com lucro, das partes que cada mestre disponibilizava na nau, e a manipulação do mercado, penalizando «os fretadores que não observavam a repartição equitativa das cargas e os mestres que favoreciam mercadores, dando-lhes mais espaço nos navios do que aquele a que teriam direito» (BARATA, 1996, p. 300). Estas medidas, no fundo, para além de procurarem moralizar o mercado naval, visavam o aumento da oferta de transporte. Sem qualquer alteração de fundo, o modo de funcionamento do porto do Porto passa a ser regra no «código comercial português» medieval integrando-se, tanto o acordo de 1324 (eleição dos primeiros corretores-fretadores) como a retificação de 1355, na lei geral do Reino.

António Castro Henriques tem-me comunicado informações sobre a existência de fretamentos, dispersos em variados cartórios (que trabalharei no futuro12), como seria de esperar em Reino que se voltava decisivamente para o mar. Mas um dos primeiros integralmente conhecidos em Portugal é o contrato que tenho vindo a citar: o que mercadores de Santarém e de Setúbal fizeram com o conhecido armador e mestre de navios do Porto, João Ramalho, fretando-lhe o baixel Santiago para transportar cereais, nos termos que se podem acompanhar no documento que está em apêndice. Comprovando também que o costume dos armadores nortenhos de explorar navios com o frete se fazia não só na cabotagem europeia como nas próprias águas portuguesas e ao dispor de mercadores nacionais13.

4. A maior parte das cláusulas contidas no contrato deste baixel figuram, com poucas alterações de fundo, nas posteriores cartas de fretamento. Entre outras:

  • Prazos estipulados de entrega das cargas por parte dos mercadores (afretadores);

  • Prazos relativos à partida do navio, tempos de escala, definição do lugar de descarga, período em que esta decorre, forma e prazo de pagamento do frete;

  • Existência de penhores como garantia do cumprimento do contrato. Registo alguma diferença entre este 'primeiro' fretamento e os do século XVI; neste, a natureza do penhor parece lógica: reserva-se, ou retém-se, uma parte da carga na embarcação, em caução, enquanto os mercadores não pagassem ao mestre. Na Época Moderna, os penhores também eram vulgares nos fretamentos e nas obrigações ou conhecimentos de carga. Tanto comprometiam armadores como afretadores, sócios de uma parceria de exploração de navio, ou mestres e os financiadores dos aprestos e mantimentos. Estas fianças eram dadas a priori, isto é, na altura da assinatura do contrato, e sobre peças de valor, habitualmente de ourivesaria, descritas e avaliadas no contrato

  • , ou bens imobiliários. A hipoteca de casas e propriedades é praticamente regra nos fretamentos referentes ao tráfico de escravos, facto que se justifica pelo elevado montante dos capitais empregados e dos riscos inerentes a este negócio. Curiosamente, nos contratos do século XVIII, a retenção de partes da mercadoria volta a incluir as Ordenações da Marinha;

  • As obrigações do mestre são, também, muito semelhantes nos dois períodos históricos. O mestre devia dar o navio bem aparelhado e como «cumpria para tais viagens fazer», com equipamentos adequados e estanque de quilha e costado, e zelar pelo cumprimento dos prazos;

  • Da mesma forma, e apenas com diferenças nas expressões, como seria de prever (a linguagem mais arcaica do documento medieval é evidente, mas basicamente e na generalidade diz o mesmo que a mais 'evoluída' do século XVI), na moeda corrente e nos prazos (variáveis conforme o estipulado entre as partes), prevêem-se penas pelo incumprimento do contrato de parte a parte;

  • Finalmente, a presença do tabelião como figura pública que abaliza o contrato perante testemunhas, dando solenidade e força de direito ao ato.

Podemos 'fixar' a seguinte ideia estrutural: começava a haver uma prática continuada de celebração de fretamentos (embora muitos ajustes continuassem a ser verbais e assentes apenas na boa-fé), com preços diferentes consoante o tempo em que foram feitos, perfeitamente estabelecida desde a Idade Média, e que passou para os «livros de estilo» da prática notarial. As Ordenações manuelinas definem estas competências no Livro 1, título, LIX: «Dos tabeliães das Notas e do que a seus Officios pertence». Destacarei apenas duas ou três ideias.

  • - No diploma devia estar sempre indicado o dia, mês, ano e local onde era feito. A prática de ressalvar algumas condições escrituradas prova aquilo a que Braudel chamou «o tempo dos mercadores». Por vezes celebrava-se um contrato para logo a seguir se anular, percebendo-se que ainda não estavam reunidas as condições indispensáveis para ele se fazer ou quando algum interveniente se 'arrependia' ou não obtinha o capital requerido para participar. Anulava-se. Retomava-se. Voltava-se a anular ou modificava-se algum dos termos. Num dos documentos - contrato de parceria de exploração de um navio - diz-se «e posto que atras diga que foy fecta esta escriptura aos xxbii dias do mes de Outubro nas casas da morada de mim tabaliam foy outorgada e asinada per ellas dictas partes e testemunhas em Miragaya arrabalde da dicta cidade nas casas da morada do dicto Martim Ramos aos quatro dias do mes de Novembro do dicto ano de mill e quinhentos e sesenta e oito anos»; noutro, o documento é pura e simplesmente anulado e recuperado (noutros termos) quando foram reunidas as condições necessárias para se fazer o negócio; encontram-se inúmeros exemplos deste tipo, de resto, como acontecia com a generalidade dos documentos feitos perante notário.

  • - Leitura do documento perante as partes, o que pressupõe a sua presença. Há contratos de fretamento referindo, em nota final que, apesar de se nomearem inicialmente afretadores dispostos a carregar mercadorias num determinado navio, como se estivessem junto dos restantes (pró-formas a confirmar), o facto de não terem estado presentes - e sem referência a qualquer procuração - não os obrigava aos termos do estipulado na carta de fretamento14. É possível conjeturar. Tal como nas anulações ou adiamentos, citados atrás, imaginar que os sócios ainda esperassem a chegada de um parceiro que não aparecia; que os parceiros eram nomeados apenas para se obrigarem e mais tarde assinariam o documento, ou qualquer outra situação e motivo que nos escapavam.

  • - Obrigatoriedade das assinaturas das partes presentes e das testemunhas.

  • - Presença de duas testemunhas conhecidas do tabelião, sabedoras das partes quando ele as não conhecer. Raramente assistiam menos de três testemunhas (por vezes incluindo o criado do tabelião) e, num caso, foram enumeradas sete. Há escrituras em que parece ser aproveitada a pessoa que estaria presente na ocasião, o seguinte a tratar de assuntos no cartório - ou no paço dos tabeliães (testemunhando alguns notários) - e que atestava o ato. Regra geral há a menção expressa àquele dado: o do reconhecimento; obrigando-se as testemunhas a declarar se ou que conheciam pelo menos uma das partes envolvida. Este facto é significativo acerca das relações alargadas de muitos mercadores e homens do mar. Regra geral, quase todos os intervenientes, mesmo contando com as testemunhas, estão, de alguma maneira, implicados e interessados no negócio que ali se celebra. Conhecer alguém e declará-lo tem ou pode ter significado15. Tem mais, claro, quando alguns dos intervenientes eram estrangeiros.

  • - O espaço neste artigo não me permite desenvolver estas notas como seria desejável, designadamente fazendo o cotejo entre as cláusulas dos contratos e a matéria legal que regulava o trabalho dos notários, seja a que está nas Ordenações, como a que vinha publicada nos manuais, que começavam a circular. Um desses aspetos incide sobre a validação do ato, por assinatura. Havia, por exemplo, recomendações sobre as assinaturas a rogo, que o tabelião devia aceitar, «fazendo mençam como assina pola parte ou partes, por quanto elas não sabem assinar». Também devem ser mencionadas condutas conhecidas na documentação antiga, a da utilização dos sinais, usual entre gentes com um grau de analfabetismo ainda muito elevado, embora pareça haver casos de gente que saberia escrever mas que preferia não assinar (a acreditar no que acontece com mestres portugueses no estrangeiro que invariavelmente alegam não saber ler nem escrever16. Todos estes, e muitos outros dados, podem ser acompanhados nos livros de notas.

  • - O tabelião deveria entregar as escrituras às partes num determinado prazo, consoante o tamanho das mesmas. Também aqui teríamos campo para uma boa investigação sobre a prática notarial. Há anotações que mostram os documentos que se escreveram: «feita», «feita às partes», «feita ao mercador», «feita ao mestre», «feita uma» e, por vezes noutra tinta e claramente algum tempo depois, «feita outra», etc., o que pode ser muito significativo quanto ao uso do documento e por quem, e da necessidade de ele ser copiado numa e noutra ocasião, quando era preciso cobrar uma dívida, reafirmar direitos, perante conflitos comerciais, cobrança de seguros em caso de acidente, prova em juízo, etc.; ou que nem todos eram objeto de escritura definitiva ou, como já disse, que o eram várias vezes, por variados motivos.

  • - Uma vez que não possuímos, na generalidade, o documento definitivo, pouco se pode dizer quanto aos custos das escrituras.

5. Tal como foi dito, os elementos de fundo constituintes do contrato de fretamento estavam estabelecidos desde a Idade Média e, com a introdução de alguns elementos que foram precisando determinadas matérias, permaneceram pelo tempo fora, como pode ser visto nos «manuais de tabeliães», correntes em Portugal pelo menos até ao século XIX (TELLES, 1823; DUARTE, 1869). No manual de Corrêa Telles, para além de se apresentar a minuta do diploma, refere-se: «Este contrato he huma espécie de locação, e regularmente deve conter: 1.o O nome do navio, e lotação delle. 2.o O nome do Mestre ou Dono do navio, e do Fretador. 3.o O lugar, e tempo da carga, e descarga. 4.o O preço do frete. Nas terras em que ha Corretores de numero, convém fazer menção do que interveio no fretamento». Em seguida, dispõem-se as obrigações principais do mestre do navio. Os direitos e deveres do afretador. Finalmente, o pagamento do frete e os procedimentos que os intervenientes devem ter para garantir este mesmo pagamento e, também, os meios legais de protesto. Como atrás se viu, temos neste particular a faculdade de o mestre reter parte da mercadoria que carregou como garantia de pagamento do frete.

Salvo a questão da lotação do navio - bem como outros pormenores concretos da atividade dos homens do mar e dos mercadores interessados tanto na preparação do navio como no decurso da viagem os quais, eventualmente, fariam parte da prática mercante desde há muito tempo, mas são matéria agora explicitada - há aquilo que afirmei inicialmente: uma relativa estabilidade nos termos destes documentos.

Para que servia o fretamento? O rei, e isso é bem claro, tanto na Idade Média como na Época Moderna17, utilizou-o quando precisava de navios e os não tinha. Tal como acontecia nos portos, onde a prática era corrente. Celebrado entre o mestre de um navio (nem sempre seu dono mas com poder do dono para o fazer - questão interessante que não pude aqui desenvolver) e os interessados em utilizá-lo para despachar carga ou para nele viajar (a Compostela, a peregrinar, por caminho marítimo, à Flandres, ao Mediterrâneo e, mais tarde, para o ultramar) implicava deveres e direitos de cada uma das partes. E facilitava a prática comercial; logo, abria caminho a transações, pagamento de impostos e enriquecimento da Fazenda.

Quem poderia enriquecer - por meios mais ou menos claros - desde a Idade Média, eram os corretores-fretadores (designação que perde a segunda parte da mesma na Época Moderna); especulando com a função, dando lugar (dando praça, como se dizia no documento) a quem mais lhes pagasse (de preferência sem declarar). Por isso houve tanta discussão em seu redor, em todas as épocas.

6. Quanto pesaria o fretamento nos custos do comércio? É uma questão que me interessa muito mas, mais uma vez, não me parece que se possa falar de fiscalidade a propósito dela. É um custo de transações que, porventura, pode justificar que os mercadores sejam também proprietários de partes dos navios; o problema é que nem sempre são (de resto, nem sequer é regra que o sejam, pelo menos na Época Moderna) e isso deve querer dizer que o custo do frete (e, sobretudo, o que o frete podia revelar ao fisco) era suportável. Mas, outra vez, a única questão que se levanta é a de saber se não fazer fretamento - e os pequenos investidores nunca o faziam - era uma forma de fugir aos cobradores de impostos. Talvez não o fosse; porque na Alfândega, a dízima e a redízima eram contribuições efetivamente cobradas, salvaguardando a parte que competia à Coroa e ao Concelho (e à Igreja, no caso da redízima). Melhor era quando se desviavam os navios (prática corrente e incluída no fretamento, até ao último quartel do século XVI) para outros portos - Corunha, Pontevedra, Vigo - facto que a máquina fiscal do 'estado' tenta combater (com algum sucesso, diga-se) obrigando ao pagamento de direitos à saída dos navios (a medida dirigia-se aos que cruzavam o Atlântico e vinham do Brasil com açúcar, pau-brasil e algodão - que tinham regimes fiscais diferentes - e foi posta em vigor em 1573). Enfim, ainda sobre este assunto: temos poucos autos de justiça referentes a contrabando nos portos nortenhos, mas muitas referências a descaminhados e a essa prática de «comércio oculto»; isso quer dizer que os mestres e mercadores eram bons contrabandistas? Ou contribuintes obedientes?

Como se viu - e nem era preciso dizer isto - o tema dos fretamentos justifica-se pela atividade marítima e, especialmente, pelo seu desenvolvimento e pelo desenvolvimento dos portos. Mas só faz sentido falar deles e de todas as questões que eles levantam quando percebemos o quadro geral do comércio, dos seus intervenientes, das estratégias de cada grupo nele participante e nas instituições reguladoras do trato: como eram constituídas, em que sectores intervieram, como e com que meios intervinham, se eram eficazes ou não - no sentido de uma nova história institucional do comércio que balança entre as interpretações de Douglass C. North e Oscar Gelderblom18. O desenvolvimento dos portos e dos tratos atlânticos coincidiu, por exemplo, com os sucessivos arrendamentos das alfândegas pelos cristãos-novos, desde o início do século XVI. Alguns contratos parecem absurdos porque condenados a dar prejuízo - alguns rendeiros foram parar à cadeia por algum tempo, mas o problema que tinham entre mãos resolvia-se através da solidariedade entre esta elite ou o puro e simples perdão régio da dívida - e retomar a função de rendeiros com novo contrato. Isso pode levar-nos a pensar que a cobrança de direitos nas alfândegas era eficaz - porque os rendeiros sabiam o que era o comércio e como iludir o fisco… Mas será isso o que verdadeiramente importa? Talvez não. Perder dinheiro - e perder dinheiro com a Coroa - era praticamente uma inevitabilidade (tanto para os rendeiros das alfândegas como para os contratadores da Armada) - mas era, ao mesmo tempo, um investimento noutras áreas e uma salvaguarda para outros perigos que ameaçavam o grupo: a Inquisição, por exemplo, ou a concorrência desleal, que a simpatia do rei para com aqueles que o ajudavam a suportar as despesas podia resolver.

Fecho com uma ideia que já mencionei atrás. O fretamento vulgarizou-se. Mas era condição sine qua non um mestre aceitasse carregar mercadoria no seu navio? Não era! Os acordos verbais, a informalidade, a confiança, continuavam a valer. Nas sociedades medievais e modernas, o aperto de mão e a palavra dada valiam tanto como o contrato assinado perante notário e testemunhas. No dia em que o navio S. João chegou ao Porto (31 de julho de 1578) e correu a notícia de que tinha sido assaltado por corsários franceses, apresentaram-se a reclamar indemnizações mais de vinte pequenos investidores como hoje lhes chamaríamos; dois terços desses pequenos mercadores não tinham feito fretamento, porém, as suas petições foram todas, sem exceção, recebidas (BARROS, 2005). Então, porque é que o fretamento é tão importante e se tornou uma instituição indispensável no funcionamento da atividade marítima? Por vários motivos, sem dúvida, e alguns deles para controlo e gestão (por parte dos mercadores) de uma fiscalidade que se tornava cada vez mais agressiva (declarando uma parte do contrato poder-se-ia, eventualmente, fugir ao fisco com outras…) mas, acima de tudo, porque com estes contratos, assinados e validados, fazia-se prova nos tribunais onde os conflitos marítimos eram dirimidos e junto dos seguradores que haviam arriscado proteger carga e navio. Com o fretamento, e com a uniformização de práticas, a vida do mar tornava-se, cada vez mais, universal.

Fontes e bibliografia

ACEMOGLU, Daron; JOHNSON, Simon; ROBINSON, James, 2005 - “The Rise of Europe: Atlantic Trade, Institutional Change, and Economic Growth”. The American Economic Review. 95(3), 546-579. Disponível em: https://economics.mit.edu/files/4466. [ Links ]

Arquivo Distrital de Braga - Col. Cronológica, 1263. [ Links ]

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1BARATA, 1996, p. 297-329. Não se trata do único estudo sobre este tema publicado em Portugal. Veja-se, com proveito, MAIA, 2001, p. 87-99, e FERREIRA, 2015, p. 75-91.

2Os costumes eram um conjunto de práticas que regiam a atividade dos mercadores e os contratos comerciais; vinham da Antiguidade, foram abundantes no Mediterrâneo durante a alta Idade Média, e eram a principal fonte de direito marítimo. A par deles surgiram no norte da Europa os chamados Rôles d'Oléron (nome de uma ilha do Golfo da Gasconha), datados do século XII, recolha, num código, de sentenças marítimas, contendo artigos sobre a atividade dos mareantes, mercadores, mestres de navios, carga, manobra nos portos e navegação; são também uma espécie de proteção social para os homens do comércio marítimo em geral e tiveram enorme influência em toda a Europa.

3As relações entre os diferentes espaços europeus com fins comerciais começaram cedo e culminaram, no fim da Idade Média, com aquilo que se convencionou designar «Ascensão do Ocidente» (Rise of the West), conceito que tem sido bastante discutido nos últimos tempos no estrangeiro e não tanto em Portugal; Avner Greif (2006) propõe uma interpretação institucional deste fenómeno, considerando, mesmo, que as instituições do comércio foram as principais responsáveis pela sua concretização, recuperando textos que havia produzido desde 1992; na mesma linha, embora estabelecendo diferenças acentuadas entre o período antes e depois de 1500, e centrando a análise no comércio atlântico da Época Moderna, ver o estudo de ACEMOGLU; JOHNSON; ROBINSON, 2005, p. 546-579. A Europa medieval, como se sabe, conheceu um grande impulso em termos de comércio marítimo a longa-distância de que resultou uma «Revolução Comercial», conforme literatura já clássica (De Roover, 1965, 3, p. 70-86; LOPEZ, 1976 (edição inglesa de 1971); NORTH; THOMAS,1973). A acompanhar essa expansão, as referidas inovações institucionais que tornaram compreensíveis para todos os agentes envolvidos os mecanismos de funcionamento do negócio. Entre as principais funções destes tribunais, guildas, confrarias, sistemas portuários e regulamentos quanto ao seu funcionamento, imposição de regras de direito, diálogos entre poderes e papel das próprias monarquias, contam-se, como nos dizem Diego Puga e Daniel Trefler (2012), a proteção da propriedade, a segurança da circulação de gentes, navios e mercadorias, e o desenvolvimento de um corpus jurídico (Lei Mercatória) que, em conjunto, procuravam garantir o cumprimento dos contratos.

4 MARQUES, 1984, p. 156 e seguintes. Não entrarei, neste estudo, na análise das razões que terão possibilitado o progresso da marinha medieval portuguesa, que terão combinado a capacidade tecnológica dos mestres construtores navais nacionais com os contextos políticos e militares que percorreram a Europa de finais da Idade Média, designadamente a Guerra dos Cem Anos, que pode ter constituído uma oportunidade para os armadores nacionais; como aconteceu com os homens de negócios do Brabante: BOFA (2005, p. 219) e, em geral, o referido capítulo; que a guerra tenha constituído um bloqueio geral para o negócio, como tradicionalmente se interpretou, é visão revista por Maryanne Kowaleski (1995) a propósito de Exeter - Local markets and regional trade in medieval Exeter.

5E do colóquio de que ele resulta.

6Todos os documentos aqui citados, incluindo o fretamento do «baixel» Santiago, de João Ramalho, datado de 1386, fazem parte do II volume do estudo de Amândio Barros (2014), e para o qual remeto a consulta, evitando a multiplicação de notas de rodapé neste texto.

7Existe um fretamento de 1585 no qual se refere o pagamento de taxas, mas essas têm relação com as mercadorias carregadas e não com o frete propriamente dito: «E dise mays elle Jorge de Coymbra que por ho compellerem em Pernambuquo ha paguar sete mill e dozentos reais por elle nam mandar certydam de como descarreguara neste reyno dezoito caixois d'açuquer que mandou na naao Esperansa…».

8No Porto, até ao início do século XV (1405-1406) a cidade pertencia ao bispo. O mordomo de São Nicolau supervisionava o trânsito de navios para efeitos de cobrança de impostos.

9Dispenso-me, para já, de analisar a evolução deste ofício nos principais portos portugueses, e as discussões que o desempenho desta função suscitou, remetendo para a consulta do estudo de F. Themudo Barata, que venho acompanhando, bem como o seguinte trabalho: ULRICH, 2011, p. 124 e seguintes.

11Mesmo nas sociedades/parcerias há um responsável, escolhido, nem sempre de nomeação definitiva uma vez que todos são mestres de navios ou mareantes e podem 'rodar' no comando, pelos sócios, para o fazer.

12Deixo aqui o meu agradecimento a António Castro Henriques que, entre outras informações valiosas me forneceu a referência de um fretamento de uma nau medieval carregada de vinho - notoriamente uma das cargas mais usuais nos navios portugueses daquele período, juntamente com os couros, o pescado e, evidentemente, os cereais - com destino ao porto de Tavira (Arquivo Distrital de Braga - Col. Cronológica, 1263).

13Igualmente como seria de esperar.

14Num dos fretamentos diz-se: «E posto que atras diga que estavam presentes Pedro Homem, Manuell Jorge, Jorge Estevez e Pêro Fernandez nam asynaram por nam estarem presentes nem fiquam obrigados por este fretamento e os mais fretadores asynaram».

15Inclusivamente porque, noutros contratos, vemos homens que mudam da condição de testemunha para a de sócio e parte no novo fretamento.

16Para não se comprometerem? Falta um estudo que indague sobre estas hipóteses e nos esclareça. Os mestres portugueses que operavam no sul da Península, em portos da Andaluzia, por exemplo, declaravam sempre que não sabiam escrever. Ver ROJAS VACA, 1996.

17As cartas de quitação e outras missivas que enviava aos concelhos e aos seus funcionários/oficiais assim o mostram.

18 GELDERBLOM, 2013, especialmente a introdução e o primeiro capítulo sobre a ascensão das cidades. O livro aborda temas pertinentes sobre a estrutura do comércio no Norte da Europa durante as épocas medieval e moderna, insistindo na tese muito cara a uma nova historiografia: a da institucionalização do comércio e funcionamento institucional do mesmo. Partindo da análise do modelo de Douglass C. North sobre o papel do 'Estado', ou dos poderes centrais, considerando o protagonismo das suas instituições como fundamentais para o funcionamento do comércio; Gelderblom interpreta o processo de outro modo, considerando que os modelos institucionais criados pelas cidades e autoridades urbanas foram muito mais eficientes nesse campo de fomento e facilitação do comércio (e, mesmo, da resolução dos conflitos); trata-se de uma boa proposta de investigação mas estas posições difíceis de aceitar na Península e difíceis de aplicar, uma vez que não conseguimos descartar o poder da Coroa e da sua capacidade interventiva, nem o das cidades, que foram muito mais pragmáticas; finalmente, porque no caso português, as cidades medievais, com exceção de Lisboa, não tinham peso que justificasse a sua notoriedade na Europa.

19O período filipino foi, como se sabe, essencial na evolução da fiscalidade em Portugal. Sobre a natureza, valor, discussão da sua licitude e debate sobre a tributação ao longo da Época Moderna, ver HESPANHA, 2013.

20Ou a redízima, que consistia no pagamento, na Alfândega, de um por cento dos dez por cento da dízima (também não explicitada nesta lista) e que revertia para a Igreja da cidade do Porto; estava em vigor desde a compra da cidade por D. João I ao bispo, em 1405-1406, como no texto referi.

21Pago com o «crescimento das sisas» e a «imposição do vinho». Ver BARROS, 2016, p. 54 e seguintes.

Apêndice documental

Documento n.º 1

1386, maio, 18, Porto Carta de fretamento do baixel Santiago, do Porto. Fretador e mestre: João Ramalho, do Porto. Afretadores: Vasco Martins, de Santarém e Afonso Rodrigues [e João Eanes], de Setúbal, mercadores. O baixel deveria estar bem toldado, aparelhado e equipado de âncoras, cordas, cabres, marinheiros e pajens, carregaria no Porto 57 moios de pão, aportaria ao Restelo e a Lisboa e descarregaria dentro de 8 dias. Frete: 20 libras de Portugal e mais 3 soldos por cada moio de pão. Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa - Místicos de Reis, liv. 2, n.° 8; original. Publicado em Descobrimentos Portugueses, supl. vol. I, doc. n.° 50. Em nome de deus amen. Sabham quantos esta carta de ffretamento virem que Eu Vaasco martinz morador em santarem por mjm por trijnta moijos de pam E eu johane anes E eu affonso rrodriguiz moradores em setuual por vijnte e sete moijos de pam cada hûu por a sua parte como dicto he afretamos a nos [sic] Joham rramalho morador na Çidade do porto o uoso bayxel que chamam de santjago de que uos sodes meestre E deus querendo o dicto bayxel começara a tomar Carrega do dicto pam de nos dictos mercadores enna Çidade do Porto hu ora esta ata vijnte e hûu dyas de mayo que ora anda commo seia carregado e prestes ao treu pêra syngrar do dya que esta carta he fecta ata oyto dyas primeiros ssegjntes E deus qurendo o dicto bayxel syngrara com a dieta carrega E hira a rrestelo que he no Ryo do teio E estará hj dous djas E a cabo desses dous djas hira deuante a vila de lixboã E do dja que hj chegar a cabo de oyto djas deue seer descarregado da dieta carrega do dicto pam E uos mestre pagado de todo uoso frete conuem a saber vijnte libras de Portugueses] por cada hûu moyo de pam de saseenta e quatro alqueires o moyo que no dicto bayxel leuarmos Carregado e três ssoldos de cada hûu moyo pêra uossas calças E sse conteçer que em nos dictos oyto dyas em que o dicto bayxel ha de sseer descarregado uos nõ pagarmos o dicto frete nos mercadores deuemos a leyxar no dicto bayxel a quarta parte do dicto pam que em el for carregado em penhor do dicto frete E tanto que do dicto pam fordes entrege uos meestre nos deuedes dentregar todo o dicto pam pêro todauija pagarmos nos o dicto frete acabados os dictos oyto dyas E uos meestre daredes o dicto bayxel bem toldado e bem aparelhado e bem esquepado dancoras e Cordas e Caabres e de marinheiros e paies e de todolos outros aparelhos commo perteençe pêra bayxel que tal vyagem ha de ssegjr E deytaredes ancoras e cordas e caabres em costa de mar e em porto estando pêra ssaluar o dicto bayxel e os aueres que em el fforem Carregados E nos mercadores pagaremos toageens e alamageens pecjtes e custumes por noso auer e uos meestre por uoso bayxel E de todo percalço que nos deus der desta viagem em augua doce ou ssalgada o terço deue seer de nos mercadores e as duas partes de uos meestre E a parte que contra esto veer page de pena aa parte que o guardar e teuer mil libras de Portugueses] a qual pena pagada ou nõ esta carta e fretamento deue ficar firme e estaujl como suso he contheudo das quaes cousas os dictos mercadores pedirom hûa carta E o dicto meestre outra dûu teor jsto foy fecto na Çidade do Porto dez e oyto dias de mayo Era de mil / e quatrocentos e vijnte e quatro anos testemunhas que a esto forom presentes afomso de mujugãães marinheiro antonjnho martinz chichjm aluaro dominguez marinheiro Stevam stevez mjdjdor do sal E eu antonjnho dominguez tabeliõ de noso Senhor El Rey na Cidade do Porto que a esto presente ffuj e per outorgamento dos dictos mercadores e meestre esta carta e outra tal screuj e aqui meu Sjnal pugj que tal he (sinal público).

Documento n.º 2

1574, outubro, 29, Porto, Rua de S. Miguel, casas de Diogo de Pina. Carta de quitação entre Miguel Fernandes, mercador e seu genro Gaspar Homem, mercador, ambos moradores no Porto relativas a uma companhia comercial por eles mantida com negócios em várias praças europeias e no Brasil para os quais foram utilizados meios marítimos da cidade como a nau Santa Cruz, mestre João Álvares, Porto. Arquivo Distrital do Porto - Po. 1 o , 3a série, liv. 51, fl. 26v-29 [fl. 26v] Comcerto e quitaçam d'antre Miguell Fernandez e Guaspar Homem seu genro feita a Gaspar Homem Em nome de Deus amem. Saybaom os que este estormento de tresauçam e amygavel composyçaom <e quitaçaom> vyrem que no ano do nascimento de Noso Senhor Jhesus Christo de myll e quynhentos e setenta e quatro anos aos vinte e nove dias do mes de Outubro em a muy nobre e sempre lyall cydade do Porto na rua de Sa'Mygel nas casas da morada de Dioguo de Pyna hy perante mim tabaliam e testemunhas todo ao diante nomeado pareceram presentes Myguel Fernandez e seu genro Guaspar Homem ambos mercadores e moradores na dieta cidade e na dicta Rua e loguo por elles foy dicto que antre elles pendya demanda perante ho juiz desta cidade de que he escripvão Sallvador da Fonsequa taballiam do judiciall em a dieta cidade sobre e por rezão de elle Guaspar Homem demandar ao dicto seu sogro mercadoryas que hem seu poder lhe tinha e dividas de dinheiro que lhe devia e outras peças de allfayas de casa de que de todo tinha vimdo com libelo nos autos que sobre yso pendiam ao que ho dicto Miguell Fernandez tynha vyndo com contraryadade dando desconto em muyta parte do que asy [fl. 27] lhe demandava e por ser sogro e genro e por bem de paz e concordya e hatalhar ha demandas cujos fins sam incertos elles ambos hacordaram de fazerem <d'antre> sy contas com respeito e vontade que cada hum houvese ho seu e pelas contas que fezeram por seus lyvros do dinheiro que hum ao outro devyam vyeram em hacordo per remate das dietas contas que ho dicto Guaspar Homem houvese e cobrase em seu poder cem myll reaes que elle Miguel Fernandez imvyou desta cidade a Syvylha a seu irmão Manuel Homem pêra hy fazer empreguo em hazeytes e outras mercadoryas mistiquamente com outra fazenda d'elles Guaspar Homem e Manuel Homem que asy toda junta se invyou ha Bordeos ha poder de Symão Diaz porquanto pelo dicto Mygel Fernandez foy dito haver recebydo do dicto Guaspar Homem hos ditos cem myll reaes e asy mays corenta myl reaes de ganho d'elles que asy sam cento e corenta myl reaes que ho dicto Myguell Fernandez comfesôu e dise lhe entreguar <o dito Gaspar Homem> nestas contas que ora fezeram elle e o dito Guaspar Homem pelo que loguo pelo dicto Miguel Fernandez foy dicto que cedia e trespasava todo ho direito, rezam e auçam que tinha e podya ter no empreguo que foy fecto com os dictos cem myl reaes por que ao dicto Guaspar Homem pertencia hos cobrar e aver com todolos intereses que guanhos que delle remanecerem e pêra todo cobrar e aver em seu poder do dicto Manuel Homem seu irmão e Symão Diaz e cada hum délies ho fazya como de feito fez procurador em cousa sua propia por bem do que dise elle Myguel Fernandez que semdo entregue ho dicto Guaspar Homem dos dictos cem myll reaes e intereses que com elles se avançaram dava por quytes e lyvres [fl. 27v] de todo ao dicto Manuel Homem e Symão Diaz. E loguo pelo dito Guaspar Homem foy dicto que elle tynha ynvyado ao Brasyll aa Baya de Todos os Santos certa fazenda de mercadoryas que foram na naao Santa Cruz de que hera mestre Joan'Allvarez comsynadas ha Ercolles Bravo em conpanhia doutras mercadoryas que pertemcião ao dicto Myguel Fernandez e na parte das delle Guaspar Homem montavam no custo delias cinquoenta e cinquo myll reaes que lhe haprazya ha larguar ha dieta carreguaçam pelo propio custo dos dictos cinquoenta e cinquo myll reaes ao dicto Myguel Fernandez pêra que elle haja e cobre todo ho rendimento dela porquanto confesava elle Guaspar Homem que nas contas que ora fezeram lhe entreguara ho dicto seu sogro hos dictos cynquoenta e cinquo myll reaes e que pêra elle aver e cobrar ha seu poder do dicto Ercolles Bravo ho rendimento délies lhe cedya e trespasava todas suas auções e se necesaryo hera ho fazia seu procurador em cousa sua propia e por esta maneira diseram elle Myguel Fernandez e Gaspar Homem que tomavaom cada hum has partidas asyma declaradas ha sua conta e tomavam cada hum ho risquo e ventura que nellas sobcedesem e com ysto houveram por finydas todas as contas que antre elles havya porquanto toy dicto pelo dicto Guaspar Homem que ter (sic?) recebydo em sy has mercadoryas de quanjantes e papell e outras cousas que em poder do dicto seu sogro estavam e hum ao outro davaom como deraom por quytes e livres d'oje pêra todo sempre <de todas suas contas que ate o dia d'oje antre elles ouve> com decllaraçam que has peças de vystidos e joyas d'ouro que elle Guaspar Homem demandava ao dicto seu sogro que tinha dado ha [fl. 28] sua molher que elle Myguell Fernandez tem em sua casa fycavam em seu poder delle dito Miguel Fernandez pêra delas dar conta ao dicto Guaspar Homem tanto que ouver determinaçam na causa e demanda que elle Guaspar Homem traz com sua molher e pelo dicto Myguel Fernandez toy dicto que asy lhe aprazia e que era verdade que em seu poder estam has peças seguyntes convém a saber huas contas d'ouro que pezam dezaseys myll reaes e asy mais dous anéis d'ouro hum délies de hua esmerallda fyna e outro de hua çafira e asy huns pemdentes d'ouro d'orelhas de pynha com pérolas d'alljofar e asy hum roupão digo e asy mais hua cryspina de fio d'ouro corn alljofar e asy hum roupão de tafetá verde com debruns de velludo e asy hua vasquynha de tafetá allaranjado com debruns de velludo e asy hum gybaom de sytim cramesym com rendylhas d'ouro e três corpinhos de seda e asy mays hum roupão de molher de Lomdres de Brystoll florentino e vasquynha do mesmo todo guarnecydo de veludo e asy houtra vasquynha e hum manteo de Londres hallaranjado com debruns de velludo has quaes peças todas acyma declaradas dyse elle Myguel Fernandez que se obryguava por sua pesoa e bens entreguar como dicto he ao dicto Guaspar Homem sem elle Guaspar Homem ter mays conta que com elle Miguel Fernandez e por aquy çafaram suas contas e has ouveraom por hacabadas e asy ho diseram ambos e deraom hum ao outro e ho outro ao outro por quytes e livres deste dia pêra todo sempre de todo salivo ho dote que lhe tem ho dicto Miguell Fernandez que nam entra aquy nehua cousa delle [fl. 28v] porquanto haimda esta em poder delle Miguell Fernandez salivo as casas em que pousa ho dicto Guaspar Homem e pêra ho asy todo comprirem diseram que hobryguavam todos seus bens moves e de raiz ávidos e por haver e por iso responderem perante ho juiz desta dieta cidade pêra ho que renunciaram juizes de seu foro e liberdades e privillegeos que contra yso queiram alleguar e como se nesta escriptura contem asy ho pormeteram terem e manterem e conprirem e contra yso nam hirem em parte nem em todo em juizo nem fora delle por sy nem per outrem sob pena de paguar de pena e em nome de pena a parte que contra yso for pêra a parte tente e agoardante dozentos cruzados d'ouro per hos dictos seus bens que pêra elo obrigaram e outorguaram que levada a pena ou não que todavia se cunpra e goarde como se nesta escriptura contem e pêra contra yso nam hirem dyseram que renunciavam todas leis, direitos e ordenações ha que se posam chamar e ha ley que diz que ha gerall renunciaçam nam valha e asy ho outorguaram e aceitaram elles partes cada hum délies por sua parte e eu tabaliam como pessoa pubrica extepullante e aceitante ho extepulley em nome das pessoas ou pessoa a que tocar pode quanto com direito poso e devo e em fee e testemunho de verdade asy ho diseram e outorguaram e desta nota pidiram cada hum seu estormento e os que lhe mais comprisem que hua parte a outra houtorgou. Testemunhas que presentes estavam ho dicto Dioguo de Pyna e Anrique Rodriguez cunhado do dicto Diogo de Pina filho que foy do Licenciado Duarte Estevez morador na dieta rua de Sam Miguell da dieta cidade e Jeronymo da Costa morador na cydade de Bragua [fl. 29] e Tome Gonçalvez cryado de mim tabaliam e eu Rui de Couros tabalyam que esto escrepvy. E nam faça duvida nas antrellinhas que dizem quytaçam / antre / o dicto Guaspar Homem / de todas suas contas que atee ho dia d'oje antre elles ouve / e nos riscados que dizyam e decllarou mais elle Myguell Fernandez que fora desta escriptura ficava a ele Guaspar Homem hum conhecimento / e qualquer outra justiça que o / e pera / e nos concertados que dizem per / dito que todo se fez por verdade e eu sobredicto tabaliam ho escrepvi. 6 assinaturas.

Anexo

Alguns impostos que incidiam sobre o comércio marítimo na Época Moderna20 21

Esta lista, bastante sintética e, porventura, demasiado sucinta, adiciona aos elementos colhidos nas cartas de fretamento os que encontramos nas restantes operações mercantis realizadas pelos mercadores portugueses do século XVII. Uns são da Época Moderna, em pleno desenvolvimento daquilo a que alguns historiadores chamam o «estado fiscal» (receitas essenciais para que os 'estados' pudessem criar e manter uma máquina de guerra e uma marinha permanente, por exemplo)19, outros - como as sisas, que aqui não integro20- acompanham o comércio praticamente desde o início da nacionalidade. Exceptuando as inúmeras (e, desejavelmente, ocasionais) «talhas» e «fintas», que eram imposições sobre um ou outro produto para pagar uma despesa extraordinária - como aconteceu com a que se cobrou no Porto no último quartel do século XVI para a obra do cais21- vejamos os mais importantes, que faziam parte de um grupo vasto, agrupando-se entre os «tributos das alfândegas, sisas, dízimas, portagens e aduanas», e ainda alguns estancos (HESPANHA, 2013, p. 88, 105) (monopólios de alguns produtos de forma legal) como o dos naipes (isto é, a produção de cartas de jogar). «Consulado». O consulado consistia numa taxa de 3% que tinha de ser paga sobre a entrada e saída de mercadorias ultramarinas transacionadas nos portos de Portugal. Foi criado por ordem régia de 30 de outubro de 1592 - Filipe I de Portugal - e serviu para suportar uma esquadra de navios que tinha por missão a proteção das armadas do Brasil e para proteção das costas de Portugal. Embora de criação moderna, o consulado era conhecido noutros locais da Europa, ainda na Idade Média, sendo um dos mais importantes, na Península Ibérica, o Consulado do Mar de Barcelona, que serviu de modelo a muitos outros. Este tributo será mais tarde - sobretudo com a instalação de colónias de mercadores estrangeiros em Lisboa (a maior de todas), Porto e Viana - estendido às transações efetuadas por aqueles mercadores, especialmente pelos Flamengos, que se haviam transformado nos mais ativos, como se sabe. Avaria. Outra taxa que se transformou em 'imposto' permanente no Portugal Moderno. Tal como o «consulado», e tal como referi antes, tratou-se de um tributo cobrado inicialmente para indemnização em caso de acidentes. No início do século XVII a avaria - imposto que, tal como o consulado, era cobrado a nível nacional - era cobrada por cada caixa de açúcar metida nos navios que cruzavam o Atlântico (especialmente do Brasil, mas também das ilhas) e variou no tempo entre quatro tostões/patacas/vinténs. A avaria foi cobrada desta forma para organizar a defesa contra corsários e piratas, que, entretanto, atacavam no mar como em terra. Tipicamente moderno foi o chamado «imposto de artilharia», com uma parte da receita a ser retirada do fretamento; competia aos mercadores - e mais uma vez apenas sabemos que ele existia, mas não conhecemos o seu montante - constituindo a contribuição de cada interveniente nos negócios marítimos para a defesa da nau, navio ou galeão, pois era de gastos de defesa e de armamento do navio que se tratava.

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