1. Em 1996 Filipe Themudo Barata publicou um texto intitulado «Os fretes marítimos: de negócio a política do Reino», no qual faz uma síntese da história e significado deste tipo de contrato no Portugal medievo, reconhecendo a importância do fretamento para a história da política comercial portuguesa na Idade Média1.
No presente reunirei um conjunto de notas de investigação - não mais do que isso - sobre os fretamentos portugueses entre finais da Idade Média e o início da Época Moderna. Apresentarei dados retirados dos 125 contratos marítimos (predominantemente fretamentos mas também as suas variantes, tais como conhecimentos de embarque, obrigações de transporte, fianças, testamentos e constituição de parcerias de navegação, sempre relacionadas com o frete de navios) recolhidos nos cartórios notariais do Porto, confrontando esses dados com as informações contidas no fretamento de um navio medieval da mesma cidade, datado de 1386. Pretendo que seja um primeiro passo para um estudo mais alargado que contemple a compilação dos contratos da mesma natureza, celebrados nos diferentes portos nacionais, na referida cronologia.
A prática da navegação criou aquilo que se convencionou chamar «costumes de mar»2. Com eles foram introduzidas normas de regulação da atividade marítima que circularam pelos portos e pelos reinos, tornando-se familiares a todos os que faziam do mar o seu modo de vida. Nelas se incluíam os contratos de fretamento e as obrigações das partes envolvidas nos negócios. Duraram séculos. Por tais motivos, se este texto tivesse um subtítulo, ele mencionaria a questão das permanências e das inovações, sendo que penso que é a primeira ideia que deve prevalecer quando analisamos esses contratos. A de permanência. A de perpetuação de costumes e uso inteligíveis para os mareantes e mercadores europeus medievais e modernos. Como aconteceu com os fretamentos. Se o primeiro passo foi a divulgação, o seguinte foi a aceitação destes documentos - sobretudo a nível internacional - e isso significou o aparecimento e consolidação de instituições comerciais e administrativas estruturadas e reconhecidas nos diversos espaços portuários europeus. Ao mesmo tempo que se fomentava o comércio marítimo (e as relações económicas em geral) a longa distância, buscavam-se mecanismos de segurança do negócio. Admitir a validade dos diplomas e recebê-los em tribunal em caso de conflito constituiu um progresso assinalável e prova de uma articulação de interesses económicos que foi também caraterística do mundo medieval3.
Portugal integrou este movimento. Inicialmente a partir do seu principal centro portuário, Lisboa, mas em seguida, convocando os restantes portos (que não eram muitos, diga-se) a participar, desenvolvendo-se, a partir de finais do século XIII, uma marinha mercante muito ativa e evoluída4. Neste aspeto não havia grandes diferenças entre esta realidade e as realidades europeias. Pelo contrário, F. Themudo Barata considera mesmo que havia «um conjunto de costumes comuns a toda a Península Ibérica, ou limitados a Portugal e Castela» (BARATA, 1996, p. 302). Sinteticamente, direi que as primeiras cartas de fretamento que conhecemos em Portugal datam do século XIV e mostram uma prática marítima consistente, a que não estará alheia a experiência adquirida pelos mercadores e mareantes nos portos europeus e regulada por esses documentos. Se lermos uma do século XVII não notaremos grandes diferenças na estrutura do documento e nas cláusulas formais. Penso, igualmente, que a introdução do costume de afretar navios, bem como a evolução do frete e as formas de gestão da atividade marítima, aconteceram nos portos, por via dos contactos internacionais desenvolvidos, e dos portos passaram à prática do Reino e do rei, fazendo parte do seu modo de operar enquanto agente marítimo, quando colocava os seus navios no comércio ou quando requisitava navios das frotas portuárias. Nesse sentido, a carta de fretamento entrará na legislação geral e, de novo citando Themudo Barata, passará a ser «negócio do Reino».
Parece-me, igualmente, que embora pressuponha custos, taxas e obrigações para os que a ela recorreram nos tempos medievais e modernos, a carta de fretamento não nos ajuda muito a esclarecer aspetos da fiscalidade medieval, tema dominante neste dossier temático5. Tal como já referi, as que aqui utilizarei são, na sua maioria, do início da Época Moderna, mas pretendo mostrá-las em comparação com uma das primeiras conhecidas no Reino, do século XIV, e que serviu de padrão à legislação medieva sobre o tema6. A generalidade dessas cartas passa por alto o assunto da fiscalidade7 e as taxas que presumivelmente se pagavam por elas, ou pelas transações nelas descritas, não são discriminadas; apenas se registam os valores das mercadorias, o montante a pagar pelo seu transporte e dinheiros entregues aos mestres para apresto dos navios.
Para o período compreendido entre o século XIV, os últimos tempos medievais e os séculos XVI e XVII apenas podemos conjeturar, admitindo que cada fretamento equivalia a pelo menos uma taxa que era paga pelo armador do navio à autoridade portuária que, no caso português, era sempre o município, por acordo com o senhorio do lugar sendo caso disso8 - tal como se pagavam assentos de navios pela utilização dos estaleiros, para a sua construção e reparação.
Tal como mencionei a propósito do aparecimento de instituições reguladoras do comércio internacional medievo, a armação de navios e o fretamento estiveram intimamente ligados ao aparecimento, no caso português, das bolsas de mercadores nascidas nos principais portos, da conhecida Companhia das Naus, e dos corretores-fretadores, ainda que estas instituições e cargos tivessem inspiração europeia. Indiretamente, ajuda-nos a frequente discussão, nas câmaras municipais e na Corte, sobre o papel dos corretores-fretadores (de nomeação régia e conhecidos desde o século XIV) para tentarmos adivinhar algumas cifras, partindo do salário que cobravam e das taxas que tinham direito a receber por cada navio que despachavam. O cargo era apetecível pois colocava o seu titular em permanente contacto com os mercadores e dava-lhe um grande poder ao reservar-lhe a função de decidir quem tinha lugar nos navios para meter carga. Não foram poucos a aproveitar-se desse lugar privilegiado, sucedendo-se os conluios e conflitos, julgados pelas vereações e pelos tribunais régios9. Mas tirando isso, não há sinal dos livros que cada corretor devia escrever, e assim, para além da perda de uma fonte sem preço para conhecermos a evolução da marinha mercante portuguesa, temos também a lamentar a inexistência de quaisquer registos de cobranças sobre os fretes.
2. Assim expostos os termos da questão, convém dizer o que se pode esperar deste estudo. Primeiramente, a recuperação dos textos dos fretamentos registados nos cartórios notariais do Porto. Depois, a identificação de um conjunto razoável de encargos que oneravam o comércio marítimo, que ficam muito bem descritos nesses documentos - sobretudo, repito, nos de Quinhentos -, a relação entre mercadores e armadores (que, ocasionalmente, se confundiam em parte, porque era em parte que se detinha a propriedade das embarcações) e como se remunerava essa relação, se é que isso pode ser dito dessa forma; finalmente, importa advertir que o próprio pagamento ao notário perante o qual era celebrado o fretamento nos passa em claro, já que estamos a lidar com livros de notas e estas quase nunca indicam o preço do documento final entregue às partes, logo, desconhecemos a quem competia esse pagamento: se ao mestre do navio se aos mercadores que o afretavam.
Estas cartas conferem protagonismo ao mestre do navio, 'entregando-lhe' a responsabilidade dos ajustes e pela assinatura do fretamento, em representação do dono da embarcação. Mas há diferenças a assinalar. Para a Idade Média, e remetendo para o fretamento do baixel de João Ramalho, esse 'poder de representação' não se coloca uma vez que estamos perante o senhorio/dono do navio. Falta-nos muito para conhecer as formas de propriedade das embarcações. A partir de finais da Idade Média começam a vulgarizar-se as parcerias, que serão regra na Idade Moderna, embora não em exclusivo, como se pode ver desta missiva de D. João III, datada de 1536:
Conde Amigo […]. Folguarey de saberdes quãtos navios ha nessa cidade [Lisboa] que sejam dos moradores d'ela; […] e quantos sam de senhorios sem outrem ter parte neles; e, se sam de partes que neles tenham quinhões, quantas sam as partes em cada navio, e que pessoas sam as que tem as ditas partes […] e asy se ha algumas pessoas que estem em preposito de fazer alguns navios, e quantas pessoas sam as que os querem fazer (FORD, 1931, carta n.º 238).
O caminho, contudo, era no sentido da partilha da propriedade dos navios e estas raramente eram constituídas por mercadores - embora ocasionalmente houvesse alguns entre os senhorios - porque nesta centúria houve como que uma 'proletarização' da posse de barcos, partilhada por sociedades de homens do mar10. Feita, assim, esta ressalva - João Ramalho era de um tempo, que correrá até finais do século XV, em que os senhorios de navios eram mercadores, na maior parte dos casos em exclusividade, e exercendo funções de comando - o fretamento, como se disse, salienta o papel do mestre do navio. Incumbe-o de gerir o transporte, assinar os contratos e gerir e assumir riscos e responsabilidades11.
Não é invulgar o contrato de fretamento aludir a impostos. No de 1386 repartem-se assim: «E nos mercadores pagaremos toageens e alamageens pecjtes e custumes por noso auer e uos meestre por uoso bayxel», ao passo que os riscos correm da seguinte forma: «E de todo percalço que nos deus der desta viagem em augua doce ou ssalgada o terço deue seer de nos mercadores e as duas partes de uos mestre». Na Época Moderna, as disposições não passaram a ser muito distintas e cobravam-se taxas, por exemplo, por cada caixa de açúcar que os navios transportavam pelo Atlântico, para as «avarias», tarifas que começaram por ser pagas para ressarcir os armadores prejudicados por algum acidente (no porto ou em plena navegação - «comuns», quando a ocorrência não era grave e grossas, em caso de acidente grave ou lançamento de carga ao mar, ou sua perda). Com o tempo, passaram a ser cobradas como se de um imposto fixo se tratasse. Tipicamente da Época Moderna foi a parte dos pagamentos dos mercadores aos mestres e senhorios dos navios reservada para o «consulado», imposto criado para custear a proteção das rotas marítimas. «Consulado» e «avarias» tiveram bastante significado na vida marítima da Época Moderna. No fim deste texto apresentarei uma breve listagem de impostos, na qual se incluem estes. Tudo isto dito, importa reafirmar o facto de apenas de modo indireto estes dados contribuírem para o aprofundamento das matérias sobre fiscalidade.
3. Os portos nortenhos tiveram um contributo muito forte para a história da marinha mercante portuguesa. A par de Lisboa, o Porto conheceu um certo desenvolvimento das instituições que regulavam o tráfico mercantil e parece ser consensual que a legislação sobre fretamentos de navios plasmada nas Ordenações do reino tem origens portuenses; no primeiro 'código' legislativo medieval português, as Ordenações Afonsinas, transcreve-se uma carta de fretamento que haveria de servir de modelo para as que se fizessem em Portugal: precisamente a que venho citando: a do baixel Santiago, de João Ramalho, datada de 18 de maio de 1386.
Esta relação da cidade com o mar, com os portos europeus (a começar com Lisboa) e com o direito marítimo, traduziu-se numa muito ativa marinha mercante que em breve se transformou numa mais-valia económica a explorar. O seu principal negócio entre finais da Idade Média e início da Época Moderna era o da armação de navios e da sua colocação ao frete. Frequentemente eram postos a trabalhar longe da cidade, na Flandres e no Mediterrâneo. A complexidade dessas relações justificava esta preocupação precoce com a regulamentação do transporte marítimo conduzindo a uma prática continuada e gradualmente estendida a outros portos portugueses.
Logo em 1324 [escreveu Themudo Barata],
‘a cidade do Porto, por acordo entre o Concelho e os homens-bons, o que provavelmente significaria a posição comum dos mercadores e dos proprietários e mestres dos navios, definiram um primeiro conjunto de regras: corretagem obrigatória dos fretes, através da eleição anual de 4 fretadores, os quais receberiam um salário, estando estes ainda obrigados a realizarem uma distribuição equitativa dos fretes pelos diferentes navios. Para que não houvesse problemas de última hora, os mercadores seriam avisados, com antecedência, do número de embarcações disponíveis e da época do ano em que poderiam ser fretadas, embora o frete fosse negociado com os mestres dos navios. Estabeleciam-se ainda as regras básicas da estiva, incluindo o salário dos carregadores, excluindo dessa função os mercadores (BARATA, 1996, p. 299).
Era um dos grandes problemas dos portos. Desde o século XIV tanto se fala de conluios como de disputas entre armadores e mercadores, multiplicando-se os protestos contra a falta ou os abusos dos corretores-fretadores e discutindo-se a intervenção do rei nesta matéria. As queixas do Porto e de todo o Entre Douro e Minho em geral levaram D. Afonso IV intervir. Fê-lo em 1355. Tentava combater a especulação, leia-se, a revenda, com lucro, das partes que cada mestre disponibilizava na nau, e a manipulação do mercado, penalizando «os fretadores que não observavam a repartição equitativa das cargas e os mestres que favoreciam mercadores, dando-lhes mais espaço nos navios do que aquele a que teriam direito» (BARATA, 1996, p. 300). Estas medidas, no fundo, para além de procurarem moralizar o mercado naval, visavam o aumento da oferta de transporte. Sem qualquer alteração de fundo, o modo de funcionamento do porto do Porto passa a ser regra no «código comercial português» medieval integrando-se, tanto o acordo de 1324 (eleição dos primeiros corretores-fretadores) como a retificação de 1355, na lei geral do Reino.
António Castro Henriques tem-me comunicado informações sobre a existência de fretamentos, dispersos em variados cartórios (que trabalharei no futuro12), como seria de esperar em Reino que se voltava decisivamente para o mar. Mas um dos primeiros integralmente conhecidos em Portugal é o contrato que tenho vindo a citar: o que mercadores de Santarém e de Setúbal fizeram com o conhecido armador e mestre de navios do Porto, João Ramalho, fretando-lhe o baixel Santiago para transportar cereais, nos termos que se podem acompanhar no documento que está em apêndice. Comprovando também que o costume dos armadores nortenhos de explorar navios com o frete se fazia não só na cabotagem europeia como nas próprias águas portuguesas e ao dispor de mercadores nacionais13.
4. A maior parte das cláusulas contidas no contrato deste baixel figuram, com poucas alterações de fundo, nas posteriores cartas de fretamento. Entre outras:
Prazos estipulados de entrega das cargas por parte dos mercadores (afretadores);
Prazos relativos à partida do navio, tempos de escala, definição do lugar de descarga, período em que esta decorre, forma e prazo de pagamento do frete;
Existência de penhores como garantia do cumprimento do contrato. Registo alguma diferença entre este 'primeiro' fretamento e os do século XVI; neste, a natureza do penhor parece lógica: reserva-se, ou retém-se, uma parte da carga na embarcação, em caução, enquanto os mercadores não pagassem ao mestre. Na Época Moderna, os penhores também eram vulgares nos fretamentos e nas obrigações ou conhecimentos de carga. Tanto comprometiam armadores como afretadores, sócios de uma parceria de exploração de navio, ou mestres e os financiadores dos aprestos e mantimentos. Estas fianças eram dadas a priori, isto é, na altura da assinatura do contrato, e sobre peças de valor, habitualmente de ourivesaria, descritas e avaliadas no contrato
, ou bens imobiliários. A hipoteca de casas e propriedades é praticamente regra nos fretamentos referentes ao tráfico de escravos, facto que se justifica pelo elevado montante dos capitais empregados e dos riscos inerentes a este negócio. Curiosamente, nos contratos do século XVIII, a retenção de partes da mercadoria volta a incluir as Ordenações da Marinha;
As obrigações do mestre são, também, muito semelhantes nos dois períodos históricos. O mestre devia dar o navio bem aparelhado e como «cumpria para tais viagens fazer», com equipamentos adequados e estanque de quilha e costado, e zelar pelo cumprimento dos prazos;
Da mesma forma, e apenas com diferenças nas expressões, como seria de prever (a linguagem mais arcaica do documento medieval é evidente, mas basicamente e na generalidade diz o mesmo que a mais 'evoluída' do século XVI), na moeda corrente e nos prazos (variáveis conforme o estipulado entre as partes), prevêem-se penas pelo incumprimento do contrato de parte a parte;
Finalmente, a presença do tabelião como figura pública que abaliza o contrato perante testemunhas, dando solenidade e força de direito ao ato.
Podemos 'fixar' a seguinte ideia estrutural: começava a haver uma prática continuada de celebração de fretamentos (embora muitos ajustes continuassem a ser verbais e assentes apenas na boa-fé), com preços diferentes consoante o tempo em que foram feitos, perfeitamente estabelecida desde a Idade Média, e que passou para os «livros de estilo» da prática notarial. As Ordenações manuelinas definem estas competências no Livro 1, título, LIX: «Dos tabeliães das Notas e do que a seus Officios pertence». Destacarei apenas duas ou três ideias.
- No diploma devia estar sempre indicado o dia, mês, ano e local onde era feito. A prática de ressalvar algumas condições escrituradas prova aquilo a que Braudel chamou «o tempo dos mercadores». Por vezes celebrava-se um contrato para logo a seguir se anular, percebendo-se que ainda não estavam reunidas as condições indispensáveis para ele se fazer ou quando algum interveniente se 'arrependia' ou não obtinha o capital requerido para participar. Anulava-se. Retomava-se. Voltava-se a anular ou modificava-se algum dos termos. Num dos documentos - contrato de parceria de exploração de um navio - diz-se «e posto que atras diga que foy fecta esta escriptura aos xxbii dias do mes de Outubro nas casas da morada de mim tabaliam foy outorgada e asinada per ellas dictas partes e testemunhas em Miragaya arrabalde da dicta cidade nas casas da morada do dicto Martim Ramos aos quatro dias do mes de Novembro do dicto ano de mill e quinhentos e sesenta e oito anos»; noutro, o documento é pura e simplesmente anulado e recuperado (noutros termos) quando foram reunidas as condições necessárias para se fazer o negócio; encontram-se inúmeros exemplos deste tipo, de resto, como acontecia com a generalidade dos documentos feitos perante notário.
- Leitura do documento perante as partes, o que pressupõe a sua presença. Há contratos de fretamento referindo, em nota final que, apesar de se nomearem inicialmente afretadores dispostos a carregar mercadorias num determinado navio, como se estivessem junto dos restantes (pró-formas a confirmar), o facto de não terem estado presentes - e sem referência a qualquer procuração - não os obrigava aos termos do estipulado na carta de fretamento14. É possível conjeturar. Tal como nas anulações ou adiamentos, citados atrás, imaginar que os sócios ainda esperassem a chegada de um parceiro que não aparecia; que os parceiros eram nomeados apenas para se obrigarem e mais tarde assinariam o documento, ou qualquer outra situação e motivo que nos escapavam.
- Obrigatoriedade das assinaturas das partes presentes e das testemunhas.
- Presença de duas testemunhas conhecidas do tabelião, sabedoras das partes quando ele as não conhecer. Raramente assistiam menos de três testemunhas (por vezes incluindo o criado do tabelião) e, num caso, foram enumeradas sete. Há escrituras em que parece ser aproveitada a pessoa que estaria presente na ocasião, o seguinte a tratar de assuntos no cartório - ou no paço dos tabeliães (testemunhando alguns notários) - e que atestava o ato. Regra geral há a menção expressa àquele dado: o do reconhecimento; obrigando-se as testemunhas a declarar se ou que conheciam pelo menos uma das partes envolvida. Este facto é significativo acerca das relações alargadas de muitos mercadores e homens do mar. Regra geral, quase todos os intervenientes, mesmo contando com as testemunhas, estão, de alguma maneira, implicados e interessados no negócio que ali se celebra. Conhecer alguém e declará-lo tem ou pode ter significado15. Tem mais, claro, quando alguns dos intervenientes eram estrangeiros.
- O espaço neste artigo não me permite desenvolver estas notas como seria desejável, designadamente fazendo o cotejo entre as cláusulas dos contratos e a matéria legal que regulava o trabalho dos notários, seja a que está nas Ordenações, como a que vinha publicada nos manuais, que começavam a circular. Um desses aspetos incide sobre a validação do ato, por assinatura. Havia, por exemplo, recomendações sobre as assinaturas a rogo, que o tabelião devia aceitar, «fazendo mençam como assina pola parte ou partes, por quanto elas não sabem assinar». Também devem ser mencionadas condutas conhecidas na documentação antiga, a da utilização dos sinais, usual entre gentes com um grau de analfabetismo ainda muito elevado, embora pareça haver casos de gente que saberia escrever mas que preferia não assinar (a acreditar no que acontece com mestres portugueses no estrangeiro que invariavelmente alegam não saber ler nem escrever16. Todos estes, e muitos outros dados, podem ser acompanhados nos livros de notas.
- O tabelião deveria entregar as escrituras às partes num determinado prazo, consoante o tamanho das mesmas. Também aqui teríamos campo para uma boa investigação sobre a prática notarial. Há anotações que mostram os documentos que se escreveram: «feita», «feita às partes», «feita ao mercador», «feita ao mestre», «feita uma» e, por vezes noutra tinta e claramente algum tempo depois, «feita outra», etc., o que pode ser muito significativo quanto ao uso do documento e por quem, e da necessidade de ele ser copiado numa e noutra ocasião, quando era preciso cobrar uma dívida, reafirmar direitos, perante conflitos comerciais, cobrança de seguros em caso de acidente, prova em juízo, etc.; ou que nem todos eram objeto de escritura definitiva ou, como já disse, que o eram várias vezes, por variados motivos.
- Uma vez que não possuímos, na generalidade, o documento definitivo, pouco se pode dizer quanto aos custos das escrituras.
5. Tal como foi dito, os elementos de fundo constituintes do contrato de fretamento estavam estabelecidos desde a Idade Média e, com a introdução de alguns elementos que foram precisando determinadas matérias, permaneceram pelo tempo fora, como pode ser visto nos «manuais de tabeliães», correntes em Portugal pelo menos até ao século XIX (TELLES, 1823; DUARTE, 1869). No manual de Corrêa Telles, para além de se apresentar a minuta do diploma, refere-se: «Este contrato he huma espécie de locação, e regularmente deve conter: 1.o O nome do navio, e lotação delle. 2.o O nome do Mestre ou Dono do navio, e do Fretador. 3.o O lugar, e tempo da carga, e descarga. 4.o O preço do frete. Nas terras em que ha Corretores de numero, convém fazer menção do que interveio no fretamento». Em seguida, dispõem-se as obrigações principais do mestre do navio. Os direitos e deveres do afretador. Finalmente, o pagamento do frete e os procedimentos que os intervenientes devem ter para garantir este mesmo pagamento e, também, os meios legais de protesto. Como atrás se viu, temos neste particular a faculdade de o mestre reter parte da mercadoria que carregou como garantia de pagamento do frete.
Salvo a questão da lotação do navio - bem como outros pormenores concretos da atividade dos homens do mar e dos mercadores interessados tanto na preparação do navio como no decurso da viagem os quais, eventualmente, fariam parte da prática mercante desde há muito tempo, mas são matéria agora explicitada - há aquilo que afirmei inicialmente: uma relativa estabilidade nos termos destes documentos.
Para que servia o fretamento? O rei, e isso é bem claro, tanto na Idade Média como na Época Moderna17, utilizou-o quando precisava de navios e os não tinha. Tal como acontecia nos portos, onde a prática era corrente. Celebrado entre o mestre de um navio (nem sempre seu dono mas com poder do dono para o fazer - questão interessante que não pude aqui desenvolver) e os interessados em utilizá-lo para despachar carga ou para nele viajar (a Compostela, a peregrinar, por caminho marítimo, à Flandres, ao Mediterrâneo e, mais tarde, para o ultramar) implicava deveres e direitos de cada uma das partes. E facilitava a prática comercial; logo, abria caminho a transações, pagamento de impostos e enriquecimento da Fazenda.
Quem poderia enriquecer - por meios mais ou menos claros - desde a Idade Média, eram os corretores-fretadores (designação que perde a segunda parte da mesma na Época Moderna); especulando com a função, dando lugar (dando praça, como se dizia no documento) a quem mais lhes pagasse (de preferência sem declarar). Por isso houve tanta discussão em seu redor, em todas as épocas.
6. Quanto pesaria o fretamento nos custos do comércio? É uma questão que me interessa muito mas, mais uma vez, não me parece que se possa falar de fiscalidade a propósito dela. É um custo de transações que, porventura, pode justificar que os mercadores sejam também proprietários de partes dos navios; o problema é que nem sempre são (de resto, nem sequer é regra que o sejam, pelo menos na Época Moderna) e isso deve querer dizer que o custo do frete (e, sobretudo, o que o frete podia revelar ao fisco) era suportável. Mas, outra vez, a única questão que se levanta é a de saber se não fazer fretamento - e os pequenos investidores nunca o faziam - era uma forma de fugir aos cobradores de impostos. Talvez não o fosse; porque na Alfândega, a dízima e a redízima eram contribuições efetivamente cobradas, salvaguardando a parte que competia à Coroa e ao Concelho (e à Igreja, no caso da redízima). Melhor era quando se desviavam os navios (prática corrente e incluída no fretamento, até ao último quartel do século XVI) para outros portos - Corunha, Pontevedra, Vigo - facto que a máquina fiscal do 'estado' tenta combater (com algum sucesso, diga-se) obrigando ao pagamento de direitos à saída dos navios (a medida dirigia-se aos que cruzavam o Atlântico e vinham do Brasil com açúcar, pau-brasil e algodão - que tinham regimes fiscais diferentes - e foi posta em vigor em 1573). Enfim, ainda sobre este assunto: temos poucos autos de justiça referentes a contrabando nos portos nortenhos, mas muitas referências a descaminhados e a essa prática de «comércio oculto»; isso quer dizer que os mestres e mercadores eram bons contrabandistas? Ou contribuintes obedientes?
Como se viu - e nem era preciso dizer isto - o tema dos fretamentos justifica-se pela atividade marítima e, especialmente, pelo seu desenvolvimento e pelo desenvolvimento dos portos. Mas só faz sentido falar deles e de todas as questões que eles levantam quando percebemos o quadro geral do comércio, dos seus intervenientes, das estratégias de cada grupo nele participante e nas instituições reguladoras do trato: como eram constituídas, em que sectores intervieram, como e com que meios intervinham, se eram eficazes ou não - no sentido de uma nova história institucional do comércio que balança entre as interpretações de Douglass C. North e Oscar Gelderblom18. O desenvolvimento dos portos e dos tratos atlânticos coincidiu, por exemplo, com os sucessivos arrendamentos das alfândegas pelos cristãos-novos, desde o início do século XVI. Alguns contratos parecem absurdos porque condenados a dar prejuízo - alguns rendeiros foram parar à cadeia por algum tempo, mas o problema que tinham entre mãos resolvia-se através da solidariedade entre esta elite ou o puro e simples perdão régio da dívida - e retomar a função de rendeiros com novo contrato. Isso pode levar-nos a pensar que a cobrança de direitos nas alfândegas era eficaz - porque os rendeiros sabiam o que era o comércio e como iludir o fisco… Mas será isso o que verdadeiramente importa? Talvez não. Perder dinheiro - e perder dinheiro com a Coroa - era praticamente uma inevitabilidade (tanto para os rendeiros das alfândegas como para os contratadores da Armada) - mas era, ao mesmo tempo, um investimento noutras áreas e uma salvaguarda para outros perigos que ameaçavam o grupo: a Inquisição, por exemplo, ou a concorrência desleal, que a simpatia do rei para com aqueles que o ajudavam a suportar as despesas podia resolver.
Fecho com uma ideia que já mencionei atrás. O fretamento vulgarizou-se. Mas era condição sine qua non um mestre aceitasse carregar mercadoria no seu navio? Não era! Os acordos verbais, a informalidade, a confiança, continuavam a valer. Nas sociedades medievais e modernas, o aperto de mão e a palavra dada valiam tanto como o contrato assinado perante notário e testemunhas. No dia em que o navio S. João chegou ao Porto (31 de julho de 1578) e correu a notícia de que tinha sido assaltado por corsários franceses, apresentaram-se a reclamar indemnizações mais de vinte pequenos investidores como hoje lhes chamaríamos; dois terços desses pequenos mercadores não tinham feito fretamento, porém, as suas petições foram todas, sem exceção, recebidas (BARROS, 2005). Então, porque é que o fretamento é tão importante e se tornou uma instituição indispensável no funcionamento da atividade marítima? Por vários motivos, sem dúvida, e alguns deles para controlo e gestão (por parte dos mercadores) de uma fiscalidade que se tornava cada vez mais agressiva (declarando uma parte do contrato poder-se-ia, eventualmente, fugir ao fisco com outras…) mas, acima de tudo, porque com estes contratos, assinados e validados, fazia-se prova nos tribunais onde os conflitos marítimos eram dirimidos e junto dos seguradores que haviam arriscado proteger carga e navio. Com o fretamento, e com a uniformização de práticas, a vida do mar tornava-se, cada vez mais, universal.