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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.32 Porto dez. 2019  Epub 01-Jul-2022

 

Dossier Temático

Da Gazeta de Lisboa ao Diário da República: o longo processo de afirmação do jornal oficial do Estado Português (1715-2006)

From Gazeta de Lisboa to Diário da República: the long process of affirmation of the official newspaper of the Portuguese State (1715-2006)

Ricardo Rocha1 

1Centro de Estudos da População, Sociedade e Economia, Porto, Portugal.


Resumo

A Gazeta de Lisboa, percursora do atual Diário da República, foi criada em 1715, por iniciativa privada, mas sob privilégio real. Nascia assim o primeiro periódico português com um caráter oficial, que advinha do controlo exercido pelo Estado e dos conteúdos que obrigatoriamente publicava, onde avultavam decretos, nomeações e novidades sobre a família real. No entanto, estas peças ‘oficiais’, conquanto muito presentes, representavam nesta etapa inaugural uma pequena fração dos conteúdos do jornal, que preferia dedicar-se a questões internacionais. O presente artigo procura explicar o longo processo de transformação e afirmação do caráter oficial deste periódico, por entre sucessivas mudanças de título e alterações estruturais, até se submeter à tutela plena do Estado e abandonar a sua natureza mista, publicando exclusivamente matérias de natureza jurídico-administrativa e tornando-se um pilar do Estado de Direito.

Palavras-chave: Gazeta de Lisboa; Diário do Governo; Diário da República; Estado de Direito; imprensa oficial

Abstract

The Gazeta de Lisboa, precursor of the current Diário da República, was created in 1715, by private initiative but under royal privilege. It was the first Portuguese newspaper with an official character, due to the control exercised by the State and the contents that it was required to publish, such as decrees, appointments and news about the royal family. However, these ‘official’ news, while present in almost all issues, represented at this inaugural stage a small fraction of the newspaper's contents, which preferred to focus on international issues. This article seeks to explain the long process of transformation and affirmation of the official character of this publication, considering its successive titles and structural changes, until its full submission to the State’s control, abandoning its mixed nature and publishing exclusively legal and administrative acts, and becoming a pillar of the Rule of Law.

Keywords: Gazeta de Lisboa; Diário do Governo; Diário da República; Rule of Law; official press

Introdução

A preocupação do Estado português com a publicidade das leis junto dos cidadãos não é recente. Na Idade Média, face à inexistência de uma imprensa jornalística tal como a hoje entendemos, e que ainda tardaria a chegar, começaram a ser feitos pedidos insistentes junto dos monarcas para a elaboração de uma coletânea do direito vigente, que evitasse as incertezas e os problemas derivados da grande dispersão e quantidade de normas e lhes desse publicidade.

Neste contexto, face à ausência de instrumentos eficazes de divulgação e consulta - por exemplo, as Ordenações Afonsinas, surgidas em meados do século XV, nunca chegaram a ser impressas no período em que vigoraram -, e para evitar que os súbditos alegassem a ignorância das leis, os procuradores concelhios, responsáveis pela administração da justiça em cada município, adquiriam cópias autenticadas das resoluções dos monarcas com interesse para a sua circunscrição. Ao mesmo tempo, as leis eram publicitadas pelos tabeliães, através do seu registo manuscrito em livros próprios e a sua leitura pública nos tribunais concelhios.

A demonstrar a urgente necessidade de uma melhor compilação e divulgação das leis, assim que a imprensa emerge enfim em Portugal, por volta de 1487, será de imediato utilizada para editar a legislação eclesiástica e monárquica. Como afirmaria então o rei D. Manuel a este respeito, «necessária é a nobre arte da impressão [...] para o bom governo, porque com mais facilidade e menos despesa os ministros da Justiça possam usar de nossas leis e ordenações» (SILVA, 1992, p. 266).

Percebe-se, portanto, que a «publicidade das leis, a sua compilação e o objetivo de chegar aos destinatários das normas, de modo claro, simples e acessível» estão subjacentes ao processo de aperfeiçoamento da imprensa, um processo paralelo mas diretamente relacionado com o movimento de codificação, «no qual se organizam as normas jurídicas de modo sistemático segundo as matérias» (MARTINS, 2017, pp. 8-9). Para tal, serão fundamentais a generalização do uso de meios mecânicos e o concomitante advento da imprensa jornalística em Portugal, cuja história se confunde com as origens do primeiro jornal oficial do País, a Gazeta de Lisboa, ou seja, o primeiro periódico criado com a intenção, ainda que não exclusiva, de divulgar atos e notícias oficiais, e de alguma forma mantido sob a tutela ou supervisão do Estado, percursor do atual Diário da República.

O presente artigo procura explicar esse longo processo de criação, transformação e afirmação da imprensa oficial em Portugal, por entre sucessivas mudanças de título e alterações estruturais, até se submeter à tutela plena do Estado e abandonar a sua natureza mista, publicando exclusivamente matérias de natureza jurídico-administrativa e tornando-se um pilar do Estado de Direito. São assim analisadas duas dimensões principais que, sendo distintas, se inter-relacionam na construção do caráter oficial do periódico: a primeira, relativa ao tipo de conteúdos vertidos nas suas páginas; a segunda, ao exercício da tutela pelo Estado, considerando as suas modalidades e agentes.

É certo que já foi produzida literatura relevante sobre a imprensa oficial portuguesa em diferentes fases da sua existência. De entre as fontes históricas, destacam-se, porque coetâneas ou cronologicamente próximas dos factos, o incontornável Dicionário Bibliographico Portuguez, de Inocêncio Francisco da Silva, e o Diccionario Jornalistico Portuguez, de Augusto Xavier da Silva Pereira, ambos produzidos originalmente ao longo da segunda metade do século XIX, o primeiro sucessivamente reeditado e o segundo, que nunca chegou a ser impresso, editado em 2008, num DVD que reproduz em formato digital as folhas manuscritas pelo autor.

Entre a bibliografia mais recente, com aproximações ao tema dotadas já de elevadas preocupações historiográficas avultam vários trabalhos de André Belo, entre os quais, as suas teses de mestrado e doutoramento, respetivamente, As Gazetas e os Livros. A Gazeta de Lisboa e a Vulgarização do Impresso em Portugal (1715-1760), publicado em 2001, e Nouvelles d’Ancien Régime. La Gazeta de Lisboa et l’information manuscrite au Portugal (1715-1760), de 2005, um e outro circunscritos à fase inicial da imprensa oficial, terminando a sua análise no momento em que a administração do jornal passa das mãos de um particular para os oficiais das Secretarias de Estado.

Com preocupações distintas, no âmbito da linguística, Susana de Fátima Póvoa Alves Fontes, na sua obra Gazeta de Lisboa: Estudo Informático-Linguístico, de 2013, inclui um capítulo introdutório com informações preciosas, embora largamente apoiadas em bibliografia e menos em fontes primárias, sobre a Gazeta de Lisboa, desde a sua criação até 1820, ano em que aquela dá lugar ao Diário do Governo.

Do mesmo ano, dando maior desenvolvimento a um trabalho prévio, José Tengarrinha publica a Nova História da Imprensa Portuguesa. Das Origens a 1865, uma obra ambiciosa nos seus objetivos e de grande envergadura, mas que, por força dessa abrangência, não desenvolve de forma exaustiva as suas entradas, embora as reflexões que o autor apresenta sejam pertinentes e lance numerosas e relevantes pistas.

Com um vasto currículo na história da imprensa portuguesa em geral desde os seus primórdios, e da imprensa oficial em particular, Jorge Pedro Sousa, entre muitos outros trabalhos, publicou, em 2008, o artigo «Uma História do Jornalismo em Portugal até ao 25 de Abril de 1974», inserido na obra Jornalismo: História, Teoria e Metodologia. Perspectivas Luso-Brasileiras, que o mesmo investigador coordenou, um trabalho de síntese fundamental para a compreensão do quadro histórico em que se desenvolveu o jornalismo em Portugal e, concomitantemente, a imprensa oficial do Estado português.

Em 2017, o mesmo Jorge Pedro Sousa, no primeiro capítulo do segundo volume de Uma História da Imprensa Lusófona, desenvolve com algum pormenor a imprensa portuguesa desde as origens até 1910, abordando a questão da imprensa oficial e da qualidade da Gazeta de Lisboa enquanto percursora Diário da República, embora, neste particular, pela própria natureza abrangente da obra, o faça de forma relativamente sintética.

Finalmente, em 2018, André Belo regressa à análise da Gazeta de Lisboa, no artigo «Discurso e leitura política da Gazeta de Lisboa (1715‑1760)», integrado na obra Notícias em Portugal - Estudos sobre a imprensa informativa (séculos XVI‑XX), organizado por Jorge Pedro Sousa. No seu estudo, Belo problematiza especificamente a questão do caráter oficial da Gazeta de Lisboa, mormente quanto ao grau e forma de controlo político, embora uma vez mais circunscrevendo-se à primeira fase da existência deste periódico.

No seu conjunto, a literatura já produzida deixa perceber, ainda que de forma algo desconexa, por não ser esse o primeiro objetivo de qualquer um destes trabalhos, que a Gazeta de Lisboa foi de facto o primeiro jornal oficial do Estado português e está na origem do Diário da República, transformando-se paulatinamente num repositório de legislação. Continuava a faltar, contudo, uma investigação que, entrecruzando os factos já conhecidos e combinando-os com fontes adicionais, desde logo com recurso à própria imprensa periódica oficial, aos debates no parlamento e à legislação produzida a este respeito, explicasse em detalhe, ao longo do tempo e nas suas diferentes dimensões e contextos, essa demorada metamorfose.

Com esse objetivo em mente, optámos pelo emprego do método histórico-descritivo, tendo em vista a identificação e a análise das características e fatores diretamente relacionados com o processo referido, opção que nos permitiu não só suportar ou infirmar a validade das asserções apresentadas na literatura já produzida sobre o tema, mas também dotar a nossa investigação de objetivos diferenciados, dando-lhe um objetivo mais restrito - o caráter oficial do periódico; um escopo cronológico mais amplo, que acompanha o nosso objeto de análise num tempo longo que se estende das origens da imprensa oficial à atualidade; maior abrangência no que concerne à deteção e análise das vertentes correlacionadas com um processo que é multidimensional - político, económico, jurídico, técnico - através do recurso a um leque diverso de fontes primárias; e enquadrando os seus principais momentos no contexto histórico em que ocorreram, já que várias transformações, em parte ou no todo, resultaram de uma determinada conjuntura e das opções tomadas pelos decisores políticos. Foi nesta forma de abordagem, inédita pelas características enunciadas, que procurámos alicerçar a originalidade da nossa investigação face à literatura existente.

Resta acrescentar que o presente trabalho se integra num estudo mais amplo que estamos a desenvolver sobre a história da imprensa oficial em Portugal, enquadrado no projeto de investigação DIGIGOV - Diário do Governo Digital (1820-1910), desenvolvido pelo CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (Universidade do Porto) e financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia [PTDC/EPH-HIS/0777/2014], estudo esse que desenvolve com maior profundidade alguns dos aspetos agora apresentados, além de compreender outras dimensões relativas a este tema, e que esperamos poder vir a apresentar num futuro próximo.

1. A Gazeta de Lisboa: um incipiente caráter oficial (1715-1760)

Foi por alvará régio de 29 de maio de 1715 que o impressor António Correia de Lemos recebeu o privilégio vitalício que ele próprio solicitara ao monarca para poder «imprimir todas as notícias que de fora viessem impressas que ele suplicante mandasse traduzir no idioma português e que nenhuma pessoa nem impressor algum as pudesse imprimir debaixo de qualquer licença» (ANTT, Chancelaria de D. João V, l. 43, fl. 219v). Com este privilégio, Correia de Lemos adquiria o direito de imprimir o periódico em exclusividade, já que nenhuma outra gazeta ou folheto noticioso podia ser vendido sem o seu consentimento, sob pena de os responsáveis perderem tudo o que tivessem vendido ou impresso, a que se juntava uma multa pecuniária. Este estatuto privilegiado permitia assim a António Correia de Lemos «controlar totalmente o mercado da imprensa periódica em Portugal» (FONTES, 2013, p. 65).

O primeiro número do novo jornal surgiu a 10 de agosto de 1715, sob o título Notícias do Estado do Mundo, designação que, embora sintetizando com bastante rigor a sua matéria - pequenas notícias sobre as principais cortes europeias, as famílias reais, os príncipes da igreja, as guerras, os tratados, as bulas, etc. - prontamente abandonou, recebendo logo no número seguinte, a 17 de agosto, o título Gazeta de Lisboa, que o acompanharia durante mais de um século, até 1834 (embora com algumas interrupções, como veremos).

Fig. n.º 1 - Primeira página do Notícias do Estado do Mundo. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa. 

Fig. n.º 2 - Primeira página da primeira edição da Gazeta de Lisboa. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa. 

A Gazeta de Lisboa assumiu, portanto, na sua fase inicial uma dupla natureza: era um jornal oficial, na medida em que a sua existência estava dependente da autorização do chefe de Estado e se encontrava sob a sua supervisão, e em que se obrigava a dar publicidade a alguns atos oficiais, como nomeações e avisos; mas com uma administração privada que almejava o lucro e por isso procurava dar notícias nacionais e internacionais - estas a ocuparem a maior parte do jornal -, de forma a granjear uma audiência vasta. Relativamente aos temas abordados no noticiário nacional, Júlio Vieira (2001, p. 16) agrupa-os da seguinte forma:

  • saúde do rei e da família real;

  • assistência do rei a conselhos, cerimónias religiosas, políticas e militares, passeios e viagens;

  • notas pessoais sobre nobres e grandes dignitários, avultando casamentos, mortes e nascimentos;

  • notícias sobre religião, como a construção de edifícios religiosos, movimento eclesiástico, nomeações e investiduras, notas biográficas de religiosos notáveis e autos de fé;

  • publicação de decretos;

  • nomeações para cargos oficiais;

  • concessão de benesses do favor real a várias individualidades e instituições;

  • movimento de armadas e movimento portuário;

  • cartas sobre territórios ultramarinos, especialmente do Brasil e da Índia;

  • relato anual da Misericórdia de Lisboa;

  • resumo de sessões académicas;

  • notícias variadas

A reforçar o seu caráter oficial, a partir de janeiro de 1718, na mesma altura em que muda de título para Gazeta de Lisboa Ocidental - apenas porque a capital portuguesa se tinha então dividido em duas partes, localizando-se o impressor da Gazeta precisamente na parte ocidental -, o seu cabeçalho passa a ostentar a inserção das armas reais portuguesas, elemento que, embora com múltiplas variações, não mais deixaria de epigrafar o jornal oficial.

Fig. n.º 3 - Armas reais inscritas no cabeçalho da Gazeta de Lisboa Ocidental. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa. 

Em 1741, no mesmo ano em que acaba a referida divisão da capital, e por isso a Gazeta regressa ao seu título original, morre António Correia de Lemos, passando o privilégio para a sua viúva e filhos. Os herdeiros de Correia de Lemos assumem então uma política mais comercial, que se repercutiu no aumento da tiragem e da periodicidade, de uma para duas edições por semana, e no crescimento do periódico e das suas receitas (FONTES, 2013, p. 65).

Em 1752, por carta régia de 3 de junho, José Freire Monterroio Mascarenhas, redator da Gazeta desde a sua criação, descontente com o salário cada vez mais reduzido e as interferências da administração na redação, consegue a concessão do privilégio de impressão pelo qual lutava há vários anos, passando a acumular as funções de redator e de administrador. Porém, ao contrário do privilégio de 1715, este é concedido em vida, isto é, seria válido apenas até à morte de Monterroio, ao passo que o primeiro privilégio não impunha limite de tempo, podendo ser transmitido aos descendentes, o que aliás, como vimos, veio a acontecer (FONTES, 2013, p. 66). Esta opção denuncia uma evidente estratégia política, objetivando um controlo mais rigoroso da publicação, plasmada igualmente nas indicações precisas sobre a dimensão e periodicidade contidas na carta de concessão do privilégio - não poderia ultrapassar as oito páginas e ficava limitado a um exemplar por semana, o que facilitava, por razões óbvias, o exame prévio ou a posteriori dos conteúdos por parte das autoridades competentes.

Embora ao nível da natureza dos conteúdos não se registassem alterações, não sendo contempladas na carta de privilégio quaisquer obrigações precisas a esse nível, a tutela do Estado sobre a Gazeta começava a fazer-se sentir. Aliás, o documento que define as regras de publicação e limita a duração da concessão, não por acaso, refere-se ao periódico como «a Gazeta deste Reino», expressão denotativa da sua qualidade enquanto folha oficial.

Seja como for, e acompanhando a reflexão de André Belo (2018, p. 68) quanto a esta matéria, nesta primeira fase da Gazeta de Lisboa, «devemos pressupor a existência de uma distância relativa entre os gabinetes do poder e a administração e redação». Isto é, não se pode afirmar taxativamente que a Gazeta era já «um órgão oficial da monarquia, se por tal entendermos um veículo de propaganda e oficialização das decisões régias». A haver uma associação política à Corte, tal não se traduzia «nem numa administração direta por parte da Coroa […] nem numa utilização política da Gazeta como mera correia de transmissão de um discurso» (BELO, 2018, p. 68), mas tão-só através da aplicação pelo poder político de instrumentos legais como o privilégio de impressão e a censura prévia.

2. A mudança de título para Lisboa e a passagem da impressão e administração para funcionários do Estado (1760-1762)

O primeiro ciclo de vida da Gazeta termina em 1760, com a morte de Monterroio Mascarenhas, sendo o último número desta fase inicial publicado a 31 de janeiro desse ano. Dias depois, a 23 de fevereiro, o privilégio da impressão passa para a Secretaria de Estado da Repartição dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (à época, agregadas), dada a proximidade entre as funções deste órgão e o conteúdo da Gazeta, ainda dominado por questões internacionais. O periódico passa, por essa razão, a ser popularmente conhecido como Gazeta dos Oficiais da Secretaria (TENGARRINHA, 2013, p. 71) - embora o nome oficial nesta fase seja simplesmente Lisboa -, e a ser produzido na Impressão da Secretaria de Estado, criada nesse ano e com o objetivo específico de produzir o jornal oficial, cujo primeiro número sai a 22 de julho de 1760.

Esta medida de centralização na Coroa do regime de impressão, anteriormente concentrada num indivíduo, insere-se numa linha comum peninsular, tendo acontecido o mesmo com a Gaceta de Madrid. Mas insere-se também no âmbito mais vasto da política de Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro-ministro desde 1756. Com esta passagem do privilégio para a Secretaria de Estado e a criação de uma imprensa própria, o futuro marquês de Pombal reduzia a distância «entre o periódico e o centro político, aproximando-o mais de uma folha oficial» (BELO, 2001, p. 116). A partir deste segundo momento da sua existência, a Gazeta passou a obedecer a um controlo mais apertado por parte do poder político e a seguir uma orientação mais administrativa (SOUSA, 2008, p. 95).

Fig. n.º 4 - Primeira página do Lisboa. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa. 

No entanto, se a tutela do Estado sobre o periódico era absoluta e discricionária, o mesmo não se pode dizer quanto à administração propriamente dita. De facto, os oficiais da Secretaria, responsáveis pela gestão e produção do jornal, constituem-se então como uma empresa, embora informal, com total autonomia administrativa e recolhendo lucros pelo seu trabalho, o que, no futuro, suscitaria viva polémica, como veremos.

A crescente interferência do poder político sobre o jornal conheceu o seu corolário pouco tempo depois. Em 15 de junho de 1762, a edição do Lisboa é suspensa por Carvalho e Melo, na sequência do endurecimento repressivo que caracterizou esta fase do seu Governo, com o aumento da vigilância e da regulamentação sobre os materiais impressos - Inocêncio Francisco da Silva refere que o primeiro-ministro estaria desagradado com o conteúdo do jornal, sem avançar mais explicações. Foi a primeira e, até hoje, única interrupção que o jornal oficial do Estado português registou.

3. Do regresso da Gazeta de Lisboa à sua breve apropriação pelas forças francesas (1778-1820)

O jornal oficial regressa ao prelo a 4 de agosto de 1778, já no reinado de D. Maria I, recuperando o título Gazeta de Lisboa, que passa a ser impressa na Régia Oficina Tipográfica, criada dez anos antes, percursora da atual Imprensa Nacional. Aliás, com exceção dos anos de 1805-1814, em que a impressão é feita na oficina de António Rodrigues Galhardo, não mais o jornal oficial do Estado português será produzido noutro impressor que não o do Estado. A prerrogativa da sua execução continuou a pertencer aos oficiais da Secretaria de Estado, como se lê no alvará de 22 de março de 1781, o qual, concedendo exclusividade à Academia Real das Ciências para imprimir, publicar e vender as obras que fizesse, salvaguarda os privilégios «concedidos aos oficiais da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra na impressão da Gazeta de Lisboa».

Um novo, embora curto, período da vida da Gazeta emerge com as Invasões Francesas, a partir de finais de 1807. O governo francês, através de Pierre Lagarde, intendente geral da Polícia, apodera-se deste órgão de informação. Lagarde assume a função de redator entre 8 de abril e 24 de agosto de 1808, tempo suficiente para deixar a marca da nova administração. Além da publicação de textos de natureza oficial, Lagarde «via como principal responsabilidade a propaganda a favor do partido francês, e especialmente a favor do Chefe do Governo de ocupação» (KEMMLER, 2010, p. 288).

Isto é, o Governo francês encara a publicação (neste caso, por apropriação) de um jornal oficial como um instrumento de legitimação da nova ordem que pretende impor, mas também de disseminação dos seus ideais, não hesitando, no cumprimento desse desiderato, em publicar inverdades. Não surpreende assim que José Acúrsio das Neves, coetâneo de Lagarde, se refira acintosamente à sua atuação:

Lagarde, que ao emprego de Intendente geral da polícia reuniu o de Conselheiro do Governo, arvorou-se em redator da Gazeta de Lisboa: […] improvisava gazetas, e transmitia ao público o que a sua imaginação inventava. Causavam umas vezes riso, e outras indignação, as reflexões e os coloridos com que enfeitava e dispunha os factos, segundo convinha ao seu partido: não cessava de inspirar terror; mas o ridículo e a impostura manifestavam-se a cada passo (NEVES, 1810-1811, pp. 198-199).

Como consequência da nova situação política, e consequentemente, da nova administração e orientação da Gazeta, a partir de 5 de fevereiro de 1808, o periódico deixou de ser publicado «Com Privilégio de Sua Alteza Real», passando a sair «Com Privilégio do Governo». São ainda suprimidas as armas portuguesas no cabeçalho, substituídas pela águia imperial francesa, para que não subsistissem dúvidas sobre de que lado da contenda se situava o jornal oficial.

Fig. n.º 5 - Cabeçalho da Gazeta de Lisboa, com as armas francesas e a menção «com privilégio do Governo». Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa. 

Em finais de agosto de 1808, o exército francês começa a abandonar Portugal. A 24 de agosto é publicado o derradeiro número da Gazeta de Lisboa com as armas francesas. Nos dias seguintes, face à agitação político-militar, a Gazeta não é publicada, regressando a 16 de setembro, de novo com as armas portuguesas, retomando a regularidade editorial. O periódico esteve assim menos de um mês sem ser publicado, o que revela bem o esforço do reinstalado Governo português em recuperar o ‘seu’ jornal oficial, elemento simbólico da normalização da situação política.

A turbulência vivida nestes anos refletiu-se também no aumento significativo da periodicidade da Gazeta. A partir de 14 de junho de 1809, seis semanas após a saída do primeiro diário português, o Diário Lisbonense, a Gazeta passa a ser publicada seis dias por semana, de segunda a sábado, periodicidade que seria mantida pelo jornal oficial até 2005, ano em que deixou de sair ao sábado.

No curso da terceira invasão francesa (julho de 1910 a abril de 1811), o Governo português, receando a propagação do ideário liberal e revolucionário que se ia instalando um pouco por todo o País, recupera o controlo cerrado das publicações, cerceando significativamente a liberdade de imprensa. A 16 de agosto de 1810, D. João VI, a partir do Rio de Janeiro, exige do governo interino as providências necessárias «a fim de que não corram senão aqueles escritos que puderem concorrer para a salvação do Estado e de nenhum modo os que forem capazes de perverter os cidadãos bem-intencionados» (MEIRELLES, 2008, p. 106). Este desiderato teve como resultado a extinção da direção e administração da Imprensa Régia de Lisboa, e a passagem da Gazeta de Lisboa, durante vários anos, a único periódico legal, apresentando em consequência uma espécie de jornalismo político de «partido» (FONTES, 2013, p. 29).

4. A Revolução Liberal e a criação e do Diário do Governo (1820-1823)

A 16 de outubro de 18201 - uma primeira edição n.º 1 foi publicada em 16 de setembro, também por iniciativa da Junta Provisional, mas sem qualquer seguimento, replicando a edição de 16 de outubro o mesmo conteúdo desta edição isolada -, na sequência da triunfante revolução liberal iniciada no Porto a 24 de agosto, e por determinação da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, começou a publicar-se um novo jornal oficial, intitulado Diário do Governo, para substituir a Gazeta de Lisboa, cuja designação era indissociável do Antigo Regime que o tinha criado e se pretendia abolir. Isto é, uma das primeiras preocupações do novo Governo, saído de uma revolução e procurando por isso legitimar-se, foi dotar-se de um instrumento oficial de comunicação e também, como sempre, de propaganda.

Fig. n.º 6 - Primeira página da primeira edição do Diário do Governo. Fonte: DIGIGOV-Diário do Governo Digital. 

Ao mesmo tempo, pela primeira vez, houve o cuidado de fazer constar no título do jornal oficial do Estado português a menção explícita ao «Governo», esclarecendo assim o leitor quanto ao objeto da publicação e à sua ligação ao Estado, não obstante continuar a apresentar uma natureza mista no que concernia aos seus conteúdos e objetivos, como aliás se explicita no aviso deixado no seu primeiro número:

Faz-se saber ao Público que principia a publicar-se este DIÁRIO DO GOVERNO, que (além das notícias estrangeiras, e objetos oficiais emanados das competentes Se cretarias) deve conter outros, onde pela natureza de sua doutrina se instrua o mesmo Público sobre agricultura, comércio, navegação, artes e manufaturas (DG, 16.10.1820).

A 12 de fevereiro de 1821, na sequência da substituição da Junta Provincial do Governo Supremo do Reino pela Regência do Reino, criada por decreto das Cortes Gerais extraordinárias de 30 de janeiro, e a comprovar a íntima relação entre o jornal oficial e a situação política, o Diário do Governo muda de nome para Diário da Regência, título que permaneceu até 4 de julho seguinte, precisamente o mesmo dia em que as Cortes declaram extinta a Regência do Reino, depois do rei D. João VI ratificar o seu juramento às bases da Constituição e nomear um novo Governo. Por isso, a edição do dia 5 de julho de 1821 chega às bancas de novo com a designação anterior, Diário do Governo.

A abertura das Cortes das Cortes Gerais e Extraordinárias, em finais de janeiro de 1821, vai implicar uma importante alteração no que diz respeito ao Diário do Governo, que passa a apresentar detalhados extratos das sessões das Cortes e toda a legislação produzida. De forma a acompanhar o notável incremento da produção legislativa e a distinguir de forma mais clara os atos oficiais, transcritos ipsis litteris na folha oficial, dos restantes conteúdos, em que a seleção de notícias estava sob a alçada do redator, a partir da edição de 24 de fevereiro, por obrigação legal, «todos os papéis, diplomas e artigos que se mandarem publicar oficialmente» passam a ser precedidos da designação «Artigo d’Officio», apresentando o próprio jornal o aviso de que «Nesta Folha só é oficial o que for inserido debaixo» daquele título. A natureza mista do Diário do Governo, que se apresentava ao mesmo tempo como folha oficial e como jornal generalista, ficava mais bem esclarecida, enquanto a separação das duas vertentes tornava-se bem mais evidente.

Ainda nestes primeiros anos de liberalismo, vão ser levantadas duas questões diretamente relacionadas com esta natureza do Diário do Governo. Em primeiro lugar, quanto ao papel do redator, que participava diretamente no debate político que então se travava nos corredores do Parlamento, manifestando de forma regular, nas páginas do jornal, a sua opinião quanto à organização política do País, nomeadamente quanto à relação de forças entre os poderes legislativo e executivo, levando Borges Carneiro a apresentar uma proposta, na sessão de 8 de março de 1822, determinando que daí em diante o Diário passasse a publicar apenas «artigos de ofício e atas do Governo» (DCGEC, sessão de 8.3.1822) ou fosse suprimido o título «do Governo». Dias depois, o mesmo deputado, sustentando a sua opinião, reitera que «todas as razões persuadem que não sejam inseridos em um periódico que toma o título de Diário de Governo, notícias, factos ou opiniões particulares que, sendo simples produção de um redator, se anunciam em nome do Governo, principalmente sobre matérias politicas» (DCGEC, sessão de 18.3.1822). Porém, a sua iniciativa será severamente criticada por outros parlamentares, que a consideravam atentatória da liberdade de imprensa, acabando a proposta por ser rejeitada e a ideia abandonada, pelo menos durante algum tempo.

A segunda questão prende-se com o regime de administração do Diário do Governo. A influência que os oficiais da Secretaria de Estado detinham sobre a administração do jornal oficial começava a ser severamente criticada pelos que defendiam a extinção dos privilégios vindos do Antigo Regime. Acrescia que os oficiais eram funcionários do Estado, mas organizados empresarialmente, inclusive recolhendo lucros pela sua administração. Logo em abril de 1821, um articulista do jornal O Amigo do Povo declara tal situação «um absurdo, e contra a Constituição: se o dar notícias oficiais pode ser de particulares, deve ser de todos, porque já lá vão os Privilégios exclusivos; se é (como deve ser) do Governo, os oficiais da Secretaria do Governo não são o Governo, nem o produto de 30 contos de réis que produz o Diário pode servir de emolumentos a empregados aos quais a Nação conserva 700$000 de ordenado» (O Amigo do Povo, 21.4.1821).

A resposta não tardaria, e assentaria noutra bandeira igualmente querida aos liberais, o direito à propriedade privada, lembrando o redator do Diário que a Junta do Governo reconhecera serem os oficiais os legítimos pro prietários da Gazeta de Lisboa, «cuja propriedade passou por convenção, e por confirmação régia, da mão do seu antigo pro prietário Monterroio para a dos ditos Oficiais» (DR, 24.4.1821). Além disso, continua o redator, os outros periódicos não estavam privados de publicarem no tícias oficiais, mas não sendo exequível que o Governo mandasse «tirar tantas cópias dos pa péis oficiais quantos são os periódicos exis tentes», tinha de selecionar apenas um para o fazer. Era, portanto, o Governo que mandava publicar ali os seus documentos oficiais, e não «os Oficiais da Secretaria por seu motu proprio; nem estes têm poder de os publicar enquanto o Governo as sim o não ordena» (DR, 24.4.1821).

Recorre depois a exemplos do estrangeiro, como o London Gazette, a Gazeta de Madrid e o Le Moniteur Universel, para explicar que «nenhum Governo é proprie tário de periódicos […]. Pode pois qualquer Governo escolher (e esta é a prática) um periódico em que insira os seus papéis oficiais para conhecimen to do público». E questiona: «Qual seria mais decente e ade quado, publicá-los num papel particular, efémero, que, em morrendo ou tendo algum embaraço o dono, acaba e ficam os assinantes e o público em geral expostos à sua suspen são, ou num periódico feito por uma Cor poração que está adicta ao Governo, e que tem todos os meios de cumprir as suas obrigações para com o público?» (DR, 24.4.1821).

Esta posição vai encontrar respaldo entre os deputados às Cortes, destacando-se a intervenção de Sarmento de Queirós, que afirma taxativamente que o Diário do Governo não era «propriedade pública, mas particular de quem o manda imprimir: do Governo só tem o nome, porque no resto é um periódico como os outros; não tem exclusivo algum ou privilégio, como dantes a Gazeta de Lisboa; e se publica os papéis de ofício, também os outros periódicos publicam quantos querem, por lhes não ser proibido» (DCGEC, sessão de 18.4.1822). No mesmo sentido, José António Guerreiro recordava as obrigações «muito onerosas» que impendiam sobre o jornal, incluindo a realização de inspeções regulares; o pagamento de um elevado salário a um redator nomeado pelo secretário de Estado; a impressão de todos os papéis enviados pelo Governo; e o fornecimento ao Governo de «tantos exemplares quantos em certas ocasiões ele julgasse conveniente espalhar» (DCGEC, sessão de 18.4.1822).

E assim, por lei de 12 de junho de 1822, as Cortes Constituintes vão reafirmar de novo esse privilégio, ficando então bem claro, perante os decisores políticos e perante a lei, que o Diário do Governo era propriedade particular, embora administrada por funcionários públicos, e que a sua natureza era mista, sendo um órgão oficial na medida em que estava obrigado a publicar todos os atos oficiais e era supervisionado e intervencionado pelo governo, mas funcionando, em tudo o resto, como um jornal generalista, podendo publicar o que lhe aprouvesse. Seja como for, ambas as questões iriam em breve perder todo o significado, em função das circunstâncias políticas do País que se avizinhavam.

5. O regresso do absolutismo e da Gazeta de Lisboa e a imprensa oficial da oposição liberal (1823-1833)

Após a Vilafrancada, em maio de 1823, e consequente derrube do constitucionalismo, boa parte das mudanças operadas desde 1820 são revertidas. Neste contexto, também o Diário do Governo retomou o antigo título, saindo a 5 de junho já sob a designação Gazeta de Lisboa, e transforma-se num «órgão do infante D. Miguel e dos governos por ele formados» (SILVA, 2008, p. 43), sujeito à aprovação da «Real Comissão de Censura». Este fortalecimento do controlo político sobre o jornal vai culminar com a prisão de um dos seus redatores, Lara de Andrade, em junho de 1823, depois de este ousar criticar nas páginas do jornal a mudança de regime que se operava, indo a polícia a casa dos assinantes recolher essa edição.

É, porém, neste período que se regista uma relevante alteração estrutural, que perdurará várias décadas e que concretiza a natureza mista da Gazeta de Lisboa. A partir de 5 de setembro de 1825, o jornal passa a dividir-se formalmente em duas secções principais, a parte oficial, que passa a abrir cada edição e que transcrevia os atos oficiais dos diferentes ministérios a que a Gazeta estava obrigada a dar publicidade; e a parte não oficial, que reunia todas as outras matérias, como as notícias do estrangeiro, os extratos das sessões das câmaras parlamentares, anúncios, avisos, etc.

Com a aclamação de D. Miguel como rei absoluto, em julho de 1828, a Gazeta de Lisboa, «fortemente censurada» pelo monarca e seus apaniguados, vê o seu papel como instrumento de propaganda do regime ganhar um peso inusitado, transformando-se numa folha «de listas de apoiantes do rei […], de róis de ‘donativos’, de felicitações e aplausos ao monarca» (MARQUES, 2002, p. 578).

Entretanto, a oposição a D. Miguel organiza-se nos Açores, constituindo uma das primeiras prioridades da Regência estabelecida em Angra a criação do seu próprio jornal oficial, a Crónica da Terceira, com objetivos e estrutura semelhantes à Gazeta de Lisboa, mas obviamente ao serviço e em representação da Regência liberal. Sediado e impresso em Angra, na Impressão do Governo2- denominação que robustece o caráter oficial que se pretendia imprimir a todo o processo de produção e publicação -, o primeiro número da Crónica da Terceira saiu a 14 de abril de 1830 - a partir de 1 de novembro de 1830, Imprensa do Governo.

Fig. n.º 7 - Primeira página da edição n.º 1 da Crónica da Terceira. Fonte: DIGIGOV-Diário do Governo Digital. 

A partir de 3 de abril de 1831, toma o nome de A Crónica: Semanário da Terceira. No ano seguinte, acompanhando as movimentações do exército liberal, apenas dois dias depois da entrada deste na cidade do Porto, a 11 de julho de 1832, o jornal converte-se em Crónica Constitucional do Porto. Em ordem a afirmar o seu caráter oficial, apresentava-se estruturalmente semelhante à Gazeta de Lisboa, incluindo a divisão entre a parte oficial e a parte não oficial, o brasão das armas reais de Portugal a encimar o cabeçalho e a menção expressa de que era impresso «por ordem superior».

As circunstâncias excecionais de produção do jornal oficial liberal não impediram o controlo rigoroso das matérias nele publicadas, a tal ponto que um dos seus redatores, António Pereira dos Reis, em 23 de abril de 1833, será exonerado e preso por ter transcrito, na edição desse mesmo dia, um artigo da folha miguelista Defesa de Portugal em que eram insultados os liberais e se ofendiam os generais Saldanha, Stubbs e Solignac. Tal como acontecera com Lara de Andrade em 1823, também quando este artigo foi detetado, foram de imediato apreendidos os exemplares da Crónica(SILVA, 2008, p. 329), a demonstrar que neste particular as diferenças entre absolutistas e liberais eram escassas.

6. O triunfo do Liberalismo e a criação da Crónica Constitucional de Lisboa e da Gazeta Oficial do Governo (1833-1834)

A derrota da fação absolutista teve, entre muitas outras consequências, e como seria de esperar, a supressão da sua folha oficial. Assim, a 23 de julho de 1833, é publicada a última Gazeta de Lisboa. No dia seguinte, o «Exército Libertador» entrava em Lisboa e proclamava aos seus habitantes o triunfo do liberalismo, acontecimentos minuciosamente reportados no primeiro número da nova folha oficial, agora designada Crónica Constitucional de Lisboa, identificando-o diretamente com a ideologia triunfante, dado ao prelo a 25 de julho de 1833.

O facto de, num período particularmente atribulado do ponto de vista político-militar, de guerra e civil e alternância de poderes, a publicação do jornal oficial apenas ter sido suspensa um único dia, precisamente aquele em que as forças liberais tomam a capital e assumem o governo do País, reitera a importância do periódico oficial enquanto instrumento legitimador do poder e meio de difusão noticioso e propagandístico. Acrescente-se, a este respeito, que logo na sua edição n.º 5, a 31 de julho, já se pode ler que a Crónica é impressa na Imprensa Nacional, que assim recupera a designação que assumira após a Revolução Liberal de 1820.

A 1 de julho de 1834, aCrónica Constitucional de Lisboa muda de nome para Gazeta Oficial do Governo, alteração que visava vincar o caráter oficial da folha num contexto de afirmação de uma nova estrutura político-administrativa, uma vez que, a 26 de maio de 1834, a Convenção de Évora-Monte pusera fim à guerra civil, institucionalizando definitivamente o regime liberal. Alguns dias depois desta alteração, a 23 de julho, um decreto do duque de Bragança, D. Pedro IV, regente em nome de D. Maria II, determinou a obrigatoriedade de naquela folha ser publicada toda a legislação produzida pelos órgãos de soberania:

Manda o Duque de Bragança, Regente em Nome da Rainha, que a Junta Administrativa do Cofre dos Emolumentos das Secretarias de Estado faça publicar, na Gazeta Oficial do Governo, os Decretos, Portarias e mais Diplomas que se forem expedindo por cada uma das mesmas Secretarias de Estado, com preferência à Coleção já impressa da Legislação novíssima e aos outros papéis das Repartições subalternas que doravante deverão ser por elas remetidos a cada uma das respetivas Secretarias de Estado a que forem subor dinadas, a fim de serem por estas dirigidos con venientemente ao redator da dita Gazeta Oficial, para então serem aí publicados pela ordem expendida (GOG, 2.7.1834, p. 97).

Em resultado destas instruções, foi eliminada a divisão do jornal entre a «parte oficial» e a «parte não oficial», que se observava desde setembro de 1825, uma vez que agora nele constavam exclusivamente documentos e notícias oficiais, além dos extratos das sessões das Cortes, reabertas em agosto de 1834 (que na década anterior integravam a parte não oficial), e do boletim do Paço, que continuou a abrir cada edição, e onde se dava conta do quotidiano e estado de saúde do rei e da família real.

A supressão da parte não oficial, contudo, teve curta duração, sendo revertida a 6 de outubro de 1834, sendo por isso o jornal rebatizado Gazeta do Governo, por terem «cessado os motivos que reduziram Gazeta do Governo a ter somente a Parte Oficial», o qual continuaria assim «a tratar na Parte não Oficial de todos os objetos de interesse público» (GG, 6.10.1834). Apesar desta reversão, não deixa de ser da maior relevância a discriminação explícita e formal, por meio de um preceito legal, dos atos que deveriam obrigatoriamente constar no jornal oficial, deixando um primeiro sinal daquilo que viria a acontecer com maior detalhe alguns anos mais tarde.

7. A segunda fase do Diário do Governo e o fim dos conteúdos de caráter político e doutrinário (1835-1859)

Em janeiro de 1835, com o País já relativamente pacificado e o regime liberal a afirmar-se por via de diversas reformas, ocorre uma nova mudança de título. O jornal oficial recupera a designação usada após a revolução vintista e até à abolição da Constituição em junho de 1823, Diário do Governo, alteração acima de tudo simbólica, já que não implicou, numa fase inicial, a introdução de mudanças substantivas no plano editorial ou da sua natureza. Mas isso iria mudar nos anos seguintes.

O que importa destacar nestes primeiros anos do regime liberal, no que concerne ao Diário do Governo, é que a sua ligação ao Estado o protegeu dos consecutivos atropelos ao princípio da liberdade de imprensa que então tiveram lugar. Embora este fosse um princípio basilar do Liberalismo, inscrito nos seus fundamentos teóricos e na Constituição de 1822, a verdade é que este período ficaria marcado por sucessiva legislação a coartar a liberdade de expressão de jornais e de outras publicações, como reação aos movimentos contrarrevolucionários que despontavam um pouco por todo o país e às múltiplas dissensões e correntes liberais, entre cartistas e setembristas, conservadores e progressistas, moderados e radicais. Refira-se, a título de exemplo, a carta de lei de 14 de agosto, promulgada na sequência da tentativa revolucionária que eclodiu em Lisboa a 11 de agosto de 1840 e que no seu artigo 3.º proibiu, por um mês, a publicação de folhas periódicas, com exceção de jornais literários, do Diário das Cortes e do Diário do Governo; do decreto no mesmo sentido, de 6 de fevereiro de 1844, prorrogado até 23 de maio seguinte, por ocasião da revolta de Torres Novas de 4 fevereiro; ou do decreto de 7 de outubro de 1846, o qual, em reação ao golpe de Estado conhecido como «Emboscada de 6 de Outubro», decretou a suspensão de todas as garantias individuais, ficando «proibida a publicação de todos os jornais, periódicos ou escritos impressos ou litografados», com exceção, uma vez mais, dos jornais literários e científicos e do Diário do Governo, proibição sucessivamente renovada até julho de 18473.

Se no plano da legislação, o Diário do Governo, ao contrário da generalidade da imprensa, ficou imune às tentativas e atos de censura e repressão dos diferentes Governos, sobravam outras formas de exercer esse controlo. Como recorda Paulo Midosi, na sessão da Câmara dos Deputados de 3 de novembro de 1837, «o redator do Diário do Governo, posto que da escolha da Junta dos Oficiais-maiores das Se cretarias de Estado, é sempre pessoa da escolha e aprovação do Sr. Ministro, que por certo não escolhe quem não partilha as suas opiniões», exercendo assim «uma espécie de censura prévia sobre tudo quanto se publica no Diário do Governo» (DG, 9.12.1837).

Mas a pressão vinha também do lado dos parlamentares, que recorrentemente criticavam a inexatidão com que as suas declarações eram transcritas, enviando cartas ao redator a solicitar a retificação de textos e notícias publicados na folha oficial. Em 1848, Costa Macedo irá mesmo apresentar uma proposta de lei no sentido de eliminar os extratos das sessões da Câmara dos Deputados no Diário do Governo (DCD, sessão de 1.7.1848); e em 1849, é constituída uma comissão para avaliar o «método a seguir para que os extratos das sessões representem tão fielmente, quanto é possível, as opiniões emitidas, e os argumentos que aduzem para os fundamentar» (DCD, sessão de 14.3.1849). Na discussão do parecer, ficou evidente a animosidade da generalidade dos deputados, não só quanto a esta questão em particular, mas relativamente às opções editoriais em geral. Rebelo da Silva, por exemplo, argumentará que «todos os Governos devem ter um órgão de imprensa, que defenda a sua política; mas não deve ser a folha oficial, que deve ser somente um boletim da publicação das leis, e em que apenas em algumas questões graves apareça a opinião do Governo» (DCD, sessão de 14.3.1849).

Em suma, ao mesmo tempo que o Governo interferia diretamente na redação, a oposição parlamentar exprimia de forma pública o seu descontentamento com as opções editoriais e com a natureza da sua administração. Esta pressão vai resultar na exoneração do redator Inácio Vilhena Barbosa, depois deste publicar um artigo da sua autoria, na edição de 12 de maio de 1849, no qual acusava o Parlamento de «ter falado muito e obrado pouco durante a atual sessão». Nesse mesmo dia, a questão foi levada à Câmara dos Deputados, onde gerou acalorada discussão, com Silva Cabral, entre muitos outros, a responsabilizar o Executivo pela produção e publicação do polémico texto, pois «todos os artigos de fundo do Diário são escritos com mais ou menos instruções do Governo»; e Cunha Sotomaior a assinalar a «grande diferença» que existia entre «um jornal qualquer e o Diário do Governo; […] o redator do Diário é […] homem do Governo, porque o Diário é órgão do Ministério» (DCD, sessão de 12.5.1849).

O Diário do Governo servia assim de arma de arremesso político, com a oposição parlamentar a declarar de forma taxativa que o Governo utilizava a folha oficial como instrumento de propaganda e de ataque direto aos seus adversários. Encostado à parede, o Ministro da Fazenda, António Lopes Branco, viu-se obrigado a associar-se ao coro de críticas da oposição, alegando que «o Governo não tem nada com os artigos de fundo que aparecem no Diário do Governo, o qual não passa de ser o jornal de uma empresa particular» (DCD, sessão de 12.5.1849). Em consequência desta polémica, além da imediata demissão de Vilhena Barbosa, terminou nesse mesmo dia a publicação de «artigos doutrinais ou de polémica em defesa dos atos governativos» (SILVA, 1870, IX, p. 114) no Diário do Governo, de tal forma que a edição seguinte, de 14 de maio de 1849, saiu já sem a habitual crónica do redator.

Acompanhando esta medida, que na prática corresponde ao avançar de mais uma etapa rumo à afirmação do Diário do Governo como veículo exclusivamente dedicado à publicidade de informações oficiais e, concomitantemente, à sua completa subordinação ao Estado, no ano seguinte, a 3 de agosto de 1850, o Executivo faz publicar uma lei a tipificar os «crimes ou delitos cometidos pela publicação do pensamento pela Imprensa» e respetivas penas, obrigando os responsáveis pelos periódicos a pesados depósitos. Apenas ficavam dispensados os jornais que fizessem «declaração expressa de não tratarem de negócios e questões políticas, nem transcrever ou traduzir artigos que contenham alguns dos abusos declarados nesta Lei» (Collecção Official da Legislação Portugueza…, 1851), levando a administração do jornal oficial, temerosa das possíveis consequências que pudessem recair sobre si, a publicar a seguinte nota:

A Empresa do Diário do Governo, usando da faculdade concedida pelo artigo 85.º da Carta de Lei de 3 de agosto do corrente ano, e sendo para isso competentemente autorizada, declara que nesta Folha periódica, destinada pela Legislação em vigor para a pu blicação das Leis e atos oficiais da Autoridade Pública, não se tratará de negócios e questões políticas, nem serão nela transcritos artigos ou traduções de artigos que con tenham algum dos abusos de liberdade de im prensa, expressos na referida Lei (DG, 15.10.1850).

É certo que este diploma, coartando grosseiramente a liberdade imprensa e por isso amplamente contestada por vários setores, seria revogado no ano seguinte, por lei de 22 de maio de 1851, mas não mais o Diário do Governo voltaria a publicar artigos de opinião ou textos editoriais, fosse do seu redator, fosse de terceiros, distanciando-se por esta via dos jornais tradicionais.

Finalmente, a 24 de outubro de 1850, o jornal informa que «toda a correspondência para o Diário do Governo que anteriormente era remetida ao redator, deverá ser enviada ao Administrador Geral da Imprensa Nacional», incluindo a correspondência para assinaturas, anúncios e comunicados, correspondência oficial e permutas de outros periódicos. O redator era definitivamente reduzido a um mero responsável técnico, sem qualquer intervenção na seleção e produção de conteúdos e perdendo a prerrogativa de manifestar publicamente a sua opinião, de tal forma que, a partir deste momento, deixamos de conhecer os seus nomes, quando, até então, o cargo havia sido assumido, com raras exceções, por personalidades mais ou menos destacadas da intelectualidade portuguesa e quase sempre com um acentuado perfil político, como o padre José Agostinho de Macedo, Simão José da Luz Soriano, José Feliciano de Castilho ou Alexandre Herculano.

8. A criação do Diário de Lisboa e a submissão formal do jornal oficial à tutela do Governo (1859-1868)

Expurgado que estava de conteúdos políticos, sobrava a questão da administração do Diário do Governo, ainda nas mãos dos oficiais das Secretarias de Estado, considerando o deputado José Maria de Abreu, entre outros parlamentares, que o jornal oficial estava reduzido «a um monopólio de empregados». Ambicionando «obter um Diário do Governo digno deste país e da época em que vivemos», Abreu manifesta na Câmara dos Deputados, em abril de 1857, o seu desejo de que

o Diário do Governo corresponda a qualquer folha oficial das outras cortes da Europa e não seja um papel insignificante como este é, que faz uma grande despesa ao Estado, e que longe de nos acreditar vai dar uma triste ideia do nosso estado nos países estrangeiros, porque o Diário do Governo que vai para as nações estrangeiras é tão mesquinho e tão pouco interessante, que se por ele se avaliasse o estado do nosso país, far-se-ia uma ideia bem deplorável da nossa imprensa periódica. O Diário do Governo é inferior à antiga Gazeta de Lisboa (DCD, sessão de 24.4.1857).

No mesmo sentido, Guilherme Dias Pegado, nos primeiros meses de 1858, vai apresentar à Câmara dos Deputados intervenções particularmente duras sobre a administração financeira do Diário do Governo, mas também à qualidade dos conteúdos. Critica em especial o avultado custo que tinha para o Estado a produção do jornal, a ausência de um corpo redatorial que resultava na falta de critério das peças publicadas, a inexistência de estatutos que regulassem os oficiais das Secretarias de Estado, isto é, a empresa do Diário do Governo, que dela colhiam avultados rendimentos, enfim, a absoluta ineficácia do Diário do Governo no cumprimento dos seus objetivos. Por tudo isto, apelava à urgente reforma do jornal oficial, retirando a administração das mãos dos oficiais das secretarias de Estado e entregando-a a uma administração especial.

A 26 de junho de 1858, depois de uma primeira iniciativa legislativa mal sucedida que levara ao Parlamento a 4 de abril do mesmo ano, Dias Pegado apresenta um novo projeto de lei, renovando os argumentos que já havia aduzido para justificar a reforma do Diário do Governo, nomeadamente, a má administração a que a folha estava sujeita, a absoluta desorganização em que se encontrava por falta de regulamentação própria, as desmesuradas regalias e prerrogativas de que gozavam os oficiais das Secretarias de Estado, sem qualquer tipo de responsabilização, e o prejuízo económico que ficava todo do lado do Estado.

De acordo com esta segunda proposta de lei de Dias Pegado, o diário oficial seria impresso por conta do Estado na Imprensa Nacional e ficava destinado em exclusivo à publicação das «leis, decretos, portarias, avisos, ordens do exército e da armada, tratados, regulamentos, consultas, relatórios, notícias e artigos importantes com referência ao serviço público e quaisquer outras peças e documentos, a que o governo tiver por necessário ou conveniente que se dê a maior publicidade», bem como aos extratos das sessões das câmaras legislativas. Os discursos por extenso e outros documentos parlamentares apenas seriam impressos na folha oficial por ordem da respetiva câmara. Ficava assim explícito que a folha oficial não teria «parte política, nem noticiosa», nada se publicando, com exceção dos anúncios, que não fosse «por ordem ou autorização, especial ou geral, das câmaras legislativas ou do governo por qualquer dos ministérios» (DCD, sessão de 26.6.1858).

O projeto de Dias Pegado, amplamente discutido nos meses seguintes, esteve na base do decreto de 28 de maio de 1859, sancionado pela seguinte, que submeteu a administração e a direção da publicação à tutela direta do Ministério do Reino, ao mesmo tempo que as receitas e despesas com o periódico foram transformadas em verbas especiais do orçamento do Estado. Cem anos depois de ter sido concedido o privilégio aos oficiais das Secretarias de Estado, a administração da folha oficial saía do seu controlo e era definitivamente extinta a Empresa do Diário do Governo.

Esta legislação surgia como o corolário de um longo e irreversível processo, que visava esclarecer a natureza do Diário do Governo como um órgão oficial, submetido ao controlo do Estado e colocado ao seu serviço exclusivo, de características completamente distintas dos jornais generalistas, e que culminaria com a sua transformação, a breve trecho, em Diário de Lisboa, por decreto de 31 de outubro de 1859, por iniciativa do Ministro dos Reino, Fontes Pereira de Melo.

Este último decreto definiu ao pormenor cada um dos aspetos relativos à direção, corpo administrativo, linha editorial, estrutura interna e características de produção do jornal oficial. Continuando este a dividir-se em duas partes distintas, na parte oficial eram publicados os Boletins do Paço, todo os diplomas régios, atos do Governo e demais documentos oficiais, emanados das Secretarias de Estado ou procedentes dos tribunais, repartições públicas ou autoridades e empregados da dependência dos Ministérios, e documentos estatísticos de interesse público, provindos dos diversos ramos de serviço da Administração Geral do Estado, obrigando-se o jornal a publicar todos os documentos oficiais remetidos pelos Ministérios com nota de urgente na edição do dia seguinte à sua receção. A parte não oficial ficava reservada à publicação das sessões das duas câmaras legislativas ou os extratos delas, «no maior desen volvimento possível», fornecidas por uma empresa particular, eximindo-se, quer o Governo, quer a direção do jornal, de qualquer responsabilidade quanto à sua exatidão; as notícias propriamente ditas (do interior e do estrangeiro); a cotação diária dos fundos nacionais e estrangeiros; os preços correntes dos géneros; o boletim do serviço marítimo das barras do reino; documentos legislativos de outros países; e os artigos pura mente literários ou científicos, originais ou traduzidos.

Evidenciando uma acentuada preocupação com a fidedignidade das fontes e creditação dos artigos, todos os documentos oficiais teriam de ser autenticados pelos responsáveis das diferentes repartições ou órgãos que os emanassem; os artigos científicos ou de literatura seriam firmados com a assinatura de seus autores; e as traduções e transcrições de quaisquer documentos, artigos e notícias deveriam indicar a fonte original.

De forma a evitar o eventual ressurgimento da questão em torno da interferência do poder político nos conteúdos do jornal ou, no sentido contrário, de crítica do redator ou de terceiros aos órgãos de soberania, ficava consagrada na legislação a impossibilidade da publicação de artigos de redação ou de polémica jornalística, embora reservando ao Governo o direito de fazer publicar artigos de fundo, sempre que este o julgasse necessário para o esclarecimento ou chamada de atenção do público sobre uma determinada questão.

Acresce que todos os funcionários do corpo administrativo do Diário de Lisboa, nos termos da mesma carta de lei, passaram a ser ‘livremente’ nomeados pelo ministro do Reino, que assim, na mesma medida, os podia escolher e exonerar em função dos seus critérios pessoais, intensificando ainda mais a influência do poder político na administração da folha oficial, sem paralelo até esse momento.

No dia seguinte à carta de lei, a 1 de novembro de 1959, sai o primeiro número do Diário de Lisboa, com um aspeto gráfico completamente renovado, e a 2 de janeiro de 1860 é acrescentado o subtítulo «Folha oficial do Governo Português», a consagrar a sua natureza enquanto órgão ao serviço do Estado e sob a sua tutela.

Fig. n.º 8 - Cabeçalho do Diário de Lisboa. Fonte: DIGIGOV-Diário do Governo Digital. 

9. O ressurgimento do Diário do Governo e a assunção da sua natureza exclusivamente oficial (1869)

A 11 de dezembro de 1868, para combater os sucessivos défices que resultavam da produção do Diário de Lisboa, pelo significativo crescimento do número de páginas, sem o correspondente aumento das receitas, mas também com o objetivo de «facilitar a divulgação dos atos e documentos oficiais», é promulgada uma carta de lei que, revogando o de creto de 31 de outubro de 1859, reorganiza o jornal oficial do Estado português, para o qual recupera o título Diário do Governo.

A alteração mais substantiva, e que fundamentou a reestruturação do jornal oficial, em ordem a reduzir o número de páginas, foi a atribuição ao Diário do Governo do fim único e exclusivo da publicação de leis e outros atos e documentos oficiais, embora salvaguardando a possibilidade de o periódico conter uma secção para «anúncios de interesse particular». Assim, as transcrições das sessões das câmaras legislativas, motivo maior para o progressivo aumento do número de páginas, são eliminadas do jornal oficial, e os documentos «de incontestável importância», mas demasiado extensos para caberem no limite de páginas do Diário do Governo, passaram a ser impressos «em separado».

Este conjunto de alterações teve como consequência direta a supressão definitiva da «parte não oficial» do Diário do Governo, onde se publicavam os extratos ou a íntegra das sessões das câmaras parlamentares, as «notícias estrangeiras» e, com menor assiduidade, as «notícias do reino» ou «do interior», bem como, em décadas mais recuadas, as cartas ao redator, editoriais e artigos de fundo. Com esta supressão, o periódico assumia de forma plena o seu caráter oficial, ficando reservado à publicação de leis e outras comunicações de organismos do Estado central e local ou de interesse público - ministérios e suas repartições e direções gerais, tribunais, juntas, secretarias do Parlamento, órgãos militares, alfândegas, comissões recenseadoras, câmaras municipais, hospitais, correios, bancos e montepios, etc. -, embora continuasse a constar na sua última página, como acontecia desde a criação da Gazeta de Lisboa em 1715, uma secção de anúncios e avisos.

Um século e meio após a sua criação, o jornal oficial do Estado português constituía-se definitiva e irreversivelmente num veículo exclusivo de publicidade e validação dos atos da administração executiva, legislativa e judiciária, integralmente submetido ao controlo estatal, assumindo a sua administração, produção e supervisão, pouco sobrando das suas características originais e distinguindo-se por completo dos jornais generalistas no que concerne aos seus objetivos e conteúdos.

A consagração deste longo processo tardaria mais de um século. De facto, se nesta matéria, nem a Primeira República nem o Estado Novo trouxeram novidade alguma - nem mesmo o título sofreu qualquer alteração -, após o 25 de Abril de 1974, e pela primeira vez, um texto constitucional, a Constituição da República Portuguesa de 1976, no seu artigo 122.º, relativo à publicidade dos atos, consagrou expressamente a existência de um jornal oficial, intitulado Diário da República, cujo primeiro número saiu a 10 de abril de 1976. E trinta anos depois, o decreto-lei n.º 116-C/2006, de 16 de junho, que criou a edição eletrónica do jornal oficial, estabeleceu como serviço público o acesso universal e gratuito ao Diário da República.

Conclusão

Se a literatura até agora produzida sobre este tema, como começamos por referir, nos tinha já dado a perceber que a Gazeta de Lisboa se encontra na génese do atual Diário da República, da nossa investigação ressalta como principal conclusão que a construção do caráter oficial deste periódico se deveu de forma quase exclusiva à sua lenta apropriação pelo Estado - leia-se, detentores do poder político -, por múltiplas e variadas formas, meios e agentes, consoante a conjuntura e o regime político - primeiro o Rei, depois o Governo, juntando-se mais tarde o Parlamento.

Foram os detentores do poder político que atribuíram aquilo a que modernamente apelidaríamos de ‘licença’ de publicação a privados e quem, por razões políticas e económicas, a retiraram e passaram para a esfera do Estado: numa primeira fase, entre 1760 e 1859, numa espécie de administração público-privada; a partir de então, submetendo a sua administração ao Governo, de novo em obediência a critérios que tiveram tanto de político - controlo acrescido sobre os conteúdos - como de económico - arrecadação dos lucros que a sua produção gerava. Foram os detentores do poder político que quase sempre ditaram o que poderia ser publicado e sob que forma, determinando as peças de publicação obrigatória e a própria estrutura interna do periódico, e censurando-o de forma mais ou menos explícita - ora através de mecanismos formais, durante o Antigo Regime (através, por exemplo, da Real Mesa Censória), ora de modo velado, no Constitucionalismo Monárquico. Foram os detentores do poder político que, ameaçados por críticas de redatores, não hesitaram em dar-lhes ordem de prisão e em terminar com o único espaço de liberdade de opinião que subsistia no periódico, reduzindo o redator a um mero técnico. Foram os detentores do poder político que, através de mudanças mais ou menos subtis - as armas reais, o nome da imprensa que produzia o periódico, mas sobretudo o título - fizeram refletir o regime vigente nas páginas do jornal, dedicando especial atenção ao seu frontispício, e que, especialmente em momentos de maior conflitualidade interna, como durante as Invasões Francesas e a Guerra Civil entre liberais e absolutistas, fizeram dele um instrumento explícito de propaganda.

Sob este ponto de vista, na prática, o jornal oficial, desde a criação da Gazeta de Lisboa e até 1868, foi sempre o jornal do Estado e de quem em cada momento detinha o poder, servindo os seus interesses políticos, mesmo no tempo em que o periódico conservou uma natureza mista, já que o Estado sempre interveio a seu bel-prazer em todos os domínios da sua administração, e só não reforçou a sua tutela de forma mais célere porque não quis ou não lhe era conveniente - ou ainda, com o Liberalismo, pela declarada oposição em sede do Parlamento, outra forma de interferência do Estado no periódico. Não obstante esta realidade, acabou por ser uma motivação economicista a ditar a decisão de suprimir todas as peças que não fossem emanadas de entidades estatais ou com elas relacionadas. Foi, assim, a tentativa de controlar o défice gerado pela sua produção que acabou por retirar toda e qualquer veleidade propagandística ao jornal oficial e o transformou em definitivo num veículo de informação apartidário ao serviço exclusivo dos interesses do Estado - agora, finalmente, num sentido mais lato, isto é, da sua população e das instituições públicas, e não de um determinado regime ou orientação política, como acontecera repetidamente no passado, culminando um processo lento mas seguro, que nunca conheceu recuos.

Como é evidente, a esta análise não pode ser indiferente o contexto histórico em que tais mudanças se operaram, designadamente, a crescente complexidade do aparelho de Estado, que tornou inviável acumular no mesmo periódico todas as peças emanadas dos diferentes órgãos, cuja publicação era obrigatória, e os conteúdos noticiosos tradicionais, a par da evolução da imprensa portuguesa, em quantidade e sobretudo em qualidade, que, por um lado, oferecia à classe política alternativas mais eficazes e menos polémicas de influência sobre a opinião pública, e por outro, oferecia ao público alternativas mais económicas e práticas de acesso às notícias. Mas, em última instância, mesmo que alavancada por fatores exógenos, foi ao Estado que, como no passado, coube a última decisão quanto a esta matéria.

A definição, já em 2006, do acesso universal e gratuito ao Diário da República como serviço público, através da criação e disponibilização da sua versão eletrónica numa plataforma de acesso aberto foi o culminar de um longo processo de quase três séculos, consagrando o jornal oficial como um instrumento primordial para a sustentação do Estado de Direito, ao assegurar uma verdadeira igualdade de todos perante a Lei, a qual «pressupõe o seu conhecimento por parte dos cidadãos» (MARTINS, 2017, p. 7). Um processo lento de afirmação de uma natureza declaradamente ‘oficial’, iniciado em 1715 com a Gazeta de Lisboa, embora com objetivos muito distintos, mas que pouco a pouco, através de medidas concretas derivadas de motivações de ordem iminentemente política e económica, se foi colocando por inteiro ao serviço do Estado, das suas instituições e de todos os cidadãos.

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1Uma primeira edição n.º 1 foi publicada em 16 de setembro, também por iniciativa da Junta Provisional, mas sem qualquer seguimento, replicando a edição de 16 de outubro o mesmo conteúdo desta edição isolada

2A partir de 1 de novembro de 1830, «Imprensa do Governo».

3Para consulta dos textos integrais dos diplomas referidos e outros análogos, ver a Collecção de Leis..., 1840; e a Collecção Official da Legislação Portugueza..., 1846

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