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População e Sociedade

Print version ISSN 0873-1861On-line version ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.33 Porto June 2020  Epub May 13, 2022

 

Varia

Cultivo e consumo da batata em Trás-os-Montes: impactos socioeconómicos nos séculos XVIII-XIX

Ana Isabel Lopes1 

Pedro Mota Tavares1 

1 Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, Portugal


Resumo

O presente trabalho visa compreender a forma como se foi introduzida e se difundiu a batata em Trás-os-Montes, no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Os objetivos deste estudo centram-se assim na análise das condições específicas que propiciaram o surgimento da batata em Trás-os-Montes e a sua consequente difusão. Pretende-se, por conseguinte, analisar o modo como evoluíram os hábitos de consumo alimentar e as condições de vida em resultado da difusão do «segundo pão transmontano», no período referido, assim como as alterações verificadas na paisagem e na agricultura em consequência direta da expansão do seu cultivo. Parte-se assim do cruzamento de informação recolhida em corografias, descrições geográficas, memórias económicas e inventários orfanológicos, entre outras fontes, confrontando os resultados obtidos com dados já existentes em torno do cultivo da batata em Trás-os-Montes.

Palavras-chave: batata; Trás-os-Montes; alimentação; paisagem; património

Abstract

The present work aims to understand how the potato was introduced and how it spread in Trás-os-Montes, during 18th and 19th centuries. The objectives of this study are, therefore, centered on the analysis of the specific conditions that favored the appearance of the potato in Trás-os-Montes and its consequent diffusion. It is intended, therefore, to analyze how food consumption habits and living conditions have evolved as a result of the spread of the so-called «second bread from Trás-os-Montes», as well as the changes in the landscape and in agriculture as a direct result of the expansion of its cultivation by crossing information collected from choreographies, geographical descriptions, economic memories and post-mortem inventories, among other sources, we intend to compare the results obtained with previous existing information on the cultivation of potatoes in Trás-os-Montes.

Keywords: potato; Trás-os-Montes; food; landscape; heritage

Introdução

A descoberta da América acelerou e multiplicou a introdução de novas plantas e sementes no contexto europeu. O milho, a batata, o feijão, a mandioca e o tabaco chegaram do Novo ao Velho Mundo, assim como o arroz, o trigo, a cana-de-açúcar e o café do Velho ao Novo Mundo. Estes novos produtos depararam-se com a hostilidade de alguns povos e a inadequação face a hábitos já instalados nos locais aonde chegaram (BRAUDEL, 1979, p. 136). Os mesmos haviam de suscitar inclusivamente alterações profundas na composição da paisagem, sendo também responsáveis pela melhor e mais variada alimentação que a população passou a ter (GODINHO, 1981-1991, IV, p. 23).

A batata tornou-se conhecida após a descoberta da América e, ao contrário do milho, não foi imediatamente aceite pelos europeus. Em 1539, os espanhóis tiveram, pela primeira vez, conhecimento da existência deste tubérculo. Então apelidada de «fruto do diabo», por ser apontada como causadora de lepra, a batata teve de aguardar pela chegada das crises cerealíferas, nos séculos XVIII e XIX, para se impor plenamente no contexto europeu (BRAUDEL, 1979, p. 136-143; GUERREIRO, 1987, p. 7, 13).

Em Portugal existem já alguns estudos relevantes sobre a introdução e a consequente difusão deste tubérculo (GUERREIRO, 1987; NETO, 1994; 2018). Porém, relativamente à região transmontana- onde atualmente se cultiva este produto com Indicação Geográfica Protegida (DIRECÃO-GERAL E AGRICULTURA E DESENVOLVIMENTO RURAL, 2005) - são apenas pontuais as referências à sua introdução e às alterações provocadas pelo seu aparecimento (MENDONÇA, 1813; GUERREIRO, 1987; ALVES, 2000; BIROT, 1975; CAPELA; BORRALHEIRO, MATOS & OLIVEIRA, 2007). Por essa razão, constituímos um corpo de questões centrais às quais procuraremos dar resposta no desenvolvimento deste trabalho: de que modo se introduziu o cultivo da batata em Trás-os-Montes e como é que a mesma se difundiu? Quais as mudanças que esta nova cultura provocou, tanto ao nível socioeconómico, como no que respeita à composição da paisagem?

Atendendo ao ritmo das transformações no plano político-administrativo e às próprias condicionantes naturais que descrevem o Nordeste do país, privilegiaremos o cruzamento de indicadores de natureza qualitativa e quantitativa, partindo assim da informação recolhida em corografias, descrições geográficas, memórias económicas e inventários orfanológicos, entre outras fontes produzidas na transição do século XVIII para o XIX. Com vista a fornecer novas perspetivas de leitura sobre o tema enunciado, este trabalho focar-se-á, de igual modo, na confrontação de alguns dos resultados obtidos no decurso da investigação com os estudos já produzidos sobre a expansão da batata, particularmente em Trás-os-Montes.

Neste sentido, procurar-se-á compreender, numa primeira fase, como é que foi introduzida a batata no Nordeste português e, num segundo momento, como é que a mesma se difundiu, de modo a perceber, por último, quais as alterações provocadas nos hábitos alimentares, na composição da paisagem - designadamente por via da implementação de novos sistemas agrícolas - e no respetivo contexto económico e social das localidades a que a nossa informação se reporta.

A batata no contexto europeu e em Portugal (sécs. XVI-XVII)

Proveniente da América do Sul, a batata alcançou o território europeu em meados do século XVI. Terão sido os navegadores espanhóis responsáveis pela chegada deste tubérculo à Europa, desde as costas atlânticas da América do Sul até, numa fase inicial, ao território espanhol. A introdução da batata em solo europeu terá assim ocorrido, presumivelmente, entre os anos de 1560 e 1570. Esta hipótese foi inicialmente avançada pelo etnógrafo Viegas Guerreiro, no âmbito do seu importante trabalho sobre a introdução da batata nos hábitos alimentares em Portugal (GUERREIRO, 1987, p. 7-24), tendo sido depois corroborada por outros autores (NETO, 2018, p. 114).

Entre os trabalhos publicados em torno do tema, destaca-se o contributo de Margarida Sobral Neto, que retomou e aprofundou algumas das principais hipóteses enunciadas anteriormente por Viegas Guerreiro. Ambos concordam, por exemplo, com a ideia de as batatas terem chegado a Portugal ainda no século XVI, provenientes da Galiza. Uma hipótese que parece também reunir amplo consenso entre vários outros especialistas (ALVES, 2002; GONZÁLEZ LOPO, 2012). As razões que o justificam prendem-se, fundamentalmente, com o facto de a fronteira entre a Galiza e Portugal se apresentar - tanto no período em observação, como no subsequente - como uma linha ténue e irregular, não definida em si própria mas por uma sequência dos lugares raianos (GARCIA, 1996, p. 307). Esta reflexão adquire particular pertinência com a observação de algumas das representações cartográficas da região para o século XVIII, entre as quais o Mappa da Província de Trás-os-Montes elaborado por Columbano Pinto Ribeiro de Castro, no ano de 17961 (MENDES, 1981).

Ainda em relação à Galiza, Sobrado Correa (2018, p. 141) refere que a primeira notícia sobre o cultivo da batata nesta região se reporta ao último terço do século XVI. O mesmo autor salienta ainda a necessidade de avançarmos até Setecentos para reencontrar documentação com referências ao cultivo da batata nessa região. Verifica-se assim que, na documentação judicial produzida no século XVIII na província de Ourense - contígua, por sua vez, à região portuguesa de Trás-os-Montes -, existe uma clara menção ao cultivo da «castanha da terra» (SOBRADO CORREA, 2018, p. 141), uma expressão comumente empregue pelos escrivães para designar a batata.

Em Portugal, a primeira referência ao cultivo da batata consta igualmente de um documento judicial elaborado pelo juiz privado do Mosteiro de Santa Cruz, a 16 de março de 1643 (NETO, 2018, p. 117), datando de 1705 o primeiro registo de compra deste tubérculo, feito pelo Seminário de Viseu (OLIVEIRA, 2010, p. 83).

Constatámos assim que, na transição entre os séculos XVI e XVII, o cultivo da batata em solo europeu limitava-se ainda a pequenas regiões periféricas de alguns países, entre os quais Portugal. Somente a Irlanda fez da batata um dos principais cultivos desde a sua introdução no continente. De facto, foi apenas com o advento do século XVIII que se verificou a expansão do cultivo da batata na Europa. O fator capaz de explicar este fenómeno resulta, em larga medida, das crises agrícolas que vieram abalar o modelo de subsistência predominante nas sociedades rurais. Como consequência, no século XIX, verificamos que a batata já integrava plenamente os sistemas de cultivo na Europa e, nomeadamente, também em Portugal. Este tubérculo passou assim a constituir-se como parte essencial dos hábitos alimentares, não só do gado, como das próprias populações, assumindo particular importância no quotidiano dos grupos sociais mais desfavorecidos.

O cultivo da batata na região trasmontana (sécs. XVIII-XIX)

No que se refere especificamente ao nosso estudo de caso, constatámos que a batata já era cultivada na província de Trás-os-Montes nas primeiras décadas do século XVIII. Atendemos assim à referência feita pelo médico Francisco da Fonseca Henriques, no ano de 1721, na qual este descreve a presença em Terra Fria transmontana de um determinado tipo de planta que se cultivava nas hortas e onde se achavam, nas suas raízes, uns frutos redondos cujo formato se assemelhava um pouco ao de nozes grandes e a que se dava o nome de «castanhas da Índia», dada a sua proveniência geográfica (HENRIQUES, 1721, p. 317). Este autor setecentista refere também que as batatas se podiam comer cozidas ou assadas e que, por serem frias e secas, se coziam mal e se digeriam ainda pior, responsabilizando-as por causar obstruções, flatulências e cólicas àqueles que as consumissem (HENRIQUES, 1721, p. 317). Características que terão contribuído para estigmatizar o consumo da batata na alimentação humana, pelo que, até ao último quartel do século XVIII, serviu sobretudo para alimentar os gados.

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, por influência de vários autores e como estímulo ao desenvolvimento de algumas economias rurais, o consumo da batata pelas comunidades autóctones começou por se implantar progressivamente, até acabar por assumir a importância que ainda hoje detém nos hábitos alimentares das populações.

José António de Sá pertence ao conjunto de autores que nos finais do século XVIII procurou explicar as razões do atraso económico em algumas regiões portuguesas. Na sua relevante descrição socioeconómica de Trás-os-Montes nos finais de Setecentos, refere que o solo nesta província era muito fértil e, por isso, «propríssimo para a agricultura». Este autor refere-se ainda à batata como uma das culturas mais abundantes na região, pelo que a terra era muito favorável à sua produção, fazendo com que dela se sustentasse uma parte significativa da população transmontana. Sabemos também que à época - e tal como acontecia com a castanha -, o preço médio por alqueire de batata variava entre os 60 e os 80 réis (SOUSA, 1997, p. 382).

Em termos práticos - e tal como defendiam alguns autores neste período -, o cultivo da batata podia dar-se em quase todo o tipo de solos, com exceção dos que fossem demasiado argilosos. Já os solos arenosos eram descritos como aqueles cujas qualidades eram mais favoráveis à cultura da batata. Climatericamente, o cultivo da batata não beneficiava de excessiva humidade, mesmo que a planta se pudesse adaptar bem à frescura de certos tipos de solo.

José António de Sá salienta ainda, na sua descrição de Trás-os-Montes, que os lavradores ignoravam a combinação de margas, argilas e terras, ignorância que aponta como uma das principais causas de decadência da agricultura transmontana nos finais do Antigo Regime (SOUSA, CEPEDA & ROCHA, 2019, p. 717). Porém, em concelhos como o de Chaves, além do recurso ao estrume animal, recorria-se já à fertilização pela utilização de marne, que tornava os terrenos incultos muito férteis (COSTA, 1990 [1789], I, p. 267).

Já de um ponto de vista agrícola, como refere Francisco Manuel Alves (2000, X, p. 643), tomando como exemplo o distrito de Bragança, é a própria população a distinguir entre a Terra Quente e a Terra Fria em função do tipo de culturas predominantes em cada uma das áreas delimitadas: na primeira, pela presença da oliveira; e, na segunda, pela do castanheiro e da batata. Segundo o autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança (ALVES, 2000, X, p. 644), pertencem então à Terra Quente os concelhos de Mirandela, Vila Flor, Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães, Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta, mas também a parte sul dos de Mogadouro e Macedo de Cavaleiros, integrando, por sua vez, a Terra Fria os concelhos de Vinhais, Bragança, Vimioso, Miranda do Douro e a parte norte dos de Mogadouro e de Macedo de Cavaleiros (Mapa n.º 1).

Fonte: ATLAS - Cartografia Histórica

Figura 1  Mapa n.º 1, Concelhos transmontanos pertencentes à Terra Quente e à Terra Fria, no ano de 1801 

No que concerne à segunda metade de Setecentos, o autor da Memória sobre a agricultura deste reino, Domingos Vandelli (1990 [1789], I, p. 127-135) descreve que o cultivo da batata de tipo inglês (Solanum) era inexistente nos territórios observados, o mesmo acontecendo com a batata vermelha (Helianthus luberosus), sobre a qual o autor assinala a consistência menos farinácea. Já o relato que nos é feito pelo conde Hoffmannsegg e pelo botânico Heinrich Friedrich Link, por ocasião das suas visitas a Portugal, entre os anos de 1779 e 1801, refere expressamente a presença da batata importada da Irlanda e de Inglaterra nos arredores de Lisboa (HOFFMANNSEGG & LINK, 1801). Relativamente ao concelho de Chaves, Hoffmannsegg e Link (1801) referem, por exemplo, que 2/5 do seu território se encontrava maioritariamente ocupado por castanheiros, pelo que o centeio representava então a cultura dominante, apesar de a população também recolher milho, trigo e batatas.

Partindo das Memórias Paroquias de 1758 - mediante a análise das respostas redigidas pelos párocos ao inquérito promovido pelo poder central, na sequência do terramoto de 1755 - constatámos que, em termos globais, as batatas não fariam ainda parte dos «frutos da terra» que a população recolhia com maior abundância. Com efeito, nessa época, o centeio representava ainda a cultura dominante em todo país, seguindo-se, por ordem da sua representatividade, o trigo, o milho grosso - mais para o norte - e a castanha, esta última com predominância, sobretudo, nas regiões da Beira e de Trás-os-Montes (NETO, 2018). De resto, uma vez que a produção da batata em Trás-os-Montes representava um cultivo de horta, somos levados a considerar a hipótese de a informação relativa à sua presença na região transmontana ter sido omitida pelos párocos.

As Memórias Paroquiais também nos permitem perceber quais as estratégias adotadas localmente para fazer face quer a algumas das insuficiências estruturais, quer às frequentes crises cerealíferas. A procura de soluções terá assim passado por uma maior diversificação das culturas hortícolas - entre as quais, como já vimos, se incluem as do nabo e da batata -, mas também por uma maior presença da castanha enquanto parte integrante da dieta alimentar. Verifica-se, de igual modo, uma intensificação da fruticultura, tendência acompanhada por uma extensão das culturas através das serras e um aumento de atividades até então tidas como complementares, como a caça e a pesca.

De todas as localidades transmontanas, as Memórias Paroquiais assinalam a presença da batata nos distritos de Bragança e de Vila Real. Em traços gerais, no que concerne ao primeiro distrito, verifica-se que na extensão do seu território - salvo raras exceções - é marcante na paisagem o peso da cultura cerealífera de sequeiro, mas também a do centeio e a do trigo. Em rigor, estas duas últimas assumem uma maior presença nos concelhos parcial ou totalmente inscritos na chamada Terra Fria. Juntam-se-lhes ainda outras culturas, designadamente a do castanheiro, a dos nabos e a da batata (CAPELA, BORRALHEIRO, MATOS & OLIVEIRA, 2007, p. 106).

Ao tomarmos como exemplo o concelho de Carrazeda de Ansiães, mediante a análise das respostas assinadas pelos respetivos párocos locais, podemos perceber que aqui continuava a predominar o cultivo de cereais, designadamente do centeio, do trigo e dos milhos. Não obstante, podemos encontrar já a referência a outros tipos de cultivo em plena expansão, como o do feijão e da castanha, ou mesmo da batata (em expansão). Representando um pouco a exceção à regra, destacam-se duas freguesias deste concelho - Amedo e Fontelonga -, onde os respetivos párocos assinalam a presença da batata (ou «castanha da Índia», conforme consta da documentação) como sendo já «abundante» (CAPELA, BORRALHEIRO, MATOS & OLIVEIRA, 2007, p. 110).

Ainda segundo a informação veiculada pelas Memórias Paroquiais, a presença da dita «castanha da Índia» parece assumir particular importância nas freguesias dos concelhos e pertencentes ao distrito de Vila Real. Referimo-nos a Ferral e Outeiro da então vila de Montalegre e a várias outras freguesias do concelho de Chaves, em relação às quais, de resto, se afirma que a cultura da batata seria já «abundante» (CAPELA, MATOS & BORRALHEIRO, 2006, p. 62). Por comparação com Bragança, o distrito de Vila Real apresenta assim um maior número de freguesias onde a presença assinalável da batata marcaria já em meados do século XVIII o quotidiano das comunidades rurais.

A importância da batata nos hábitos alimentares da população em Trás-os-Montes parece evoluir de modo desigual no Noroeste e no Nordeste da província. Com efeito, ao longo da segunda metade do seculo XVIII, a expansão do cultivo deste tubérculo no Noroeste transmontano parece ter sido mais rápida e com um maior alcance territorial do que no Nordeste, sobretudo no que concerne à extremidade próxima da fronteira com Espanha. Tomaremos como exemplo, a este respeito, o caso de Rio de Onor, freguesia pertencente ao concelho de Bragança e situada precisamente no extremo nordeste transmontano. Partindo assim da análise de um núcleo restrito de inventários orfanológicos, realizados entre 1781 e 18152, pudemos perceber como se caracterizava, em traços gerais, a estrutura fundiária e quais os principais «frutos da terra» colhidos em Rio de Onor.

Em 21 processos, as propriedades são descritas em função de um total de seis categorias. No universo das 661 referências (Gráfico n.º 1), em 304 (45,9%) a descrição é limitada ao termo «terras», que implicam a cultura do cereal. As propriedades descritas como vinhas assumem a segunda categoria com maior expressão em termos numéricos, 143 (21,6%). As árvores ocupam o terceiro lugar na qualidade de propriedade fundiária com maior representação no âmbito da nossa amostra, perfazendo assim 76 entradas (11,4%). Os castanheiros, 52, são a maioria destas árvores, sendo ainda referidos quatro choupos, três nogueiras, dois olmos e um sobreiro. Há também duas referências genéricas a pomares, sem indicação do número ou da tipologia das árvores aí existentes. De resto, em 12 casos só é empregue o termo «árvore». Os linhares, cujas 66 entradas correspondem a 9,9% do número de propriedades nos inventários, encontram-se praticamente equilibrados com o número de lameiros, num total de 60 referências (9%). Seguem-se as 7 hortas, as únicas que poderiam servir à produção da batata nesta freguesia, apesar de não possuirmos na nossa documentação qualquer tipo de referência que aponte expressamente nesse sentido.

Fonte: ADBGC, Fundo Judicial, Inventários de menores, cx. 719, mç. 12359 - cx. 720, mç. 12379 [informação não tratada arquivisticamente].

Gráfico n.º 1  Tipos de propriedades nos inventários orfanológicos de Rio de Onor (1781-1815) 

Como referimos anteriormente, no decorrer do último quartel de Setecentos, alguns autores começaram a promover o cultivo da batata nas zonas rurais do País. A Academia Real das Ciências, fundada em 1779, assumiu um papel de relevo ao publicar memórias económicas em torno da questão agrária e, à semelhança de outras instituições europeias, promoveu e estimulou o cultivo e o consumo da batata, criando inclusivamente um prémio especial com o intuito de galardoar o melhor produtor deste tubérculo. Prémio esse que, em 1814, foi atribuído a Morais Mendonça pela expansão do cultivo da batata que este levara a cabo no Barroso (MENDONÇA, 1813).

Próxima da fronteira portuguesa com a província espanhola de Ourense - onde, como vimos anteriormente, existe documentação que comprova o cultivo da batata no século XVIII -, Chaves era então uma vila importante, contando com 680 casas e 3650 pessoas (BORRALHEIRO, 1997). A memória económica redigida na década de 1780 por José Inácio Costa (1990 [1789], I, p. 264), prova que o cultivo da batata era já abundante em algumas localidades do Noroeste transmontano, e muito particularmente em Chaves. Os dados de natureza quantitativa fornecidos por esta memória evidenciam, além da existência de produções agrícolas diferenciadas no concelho flaviense, que a produção da batata corresponderia a uma estimativa calculada em 100 000 alqueires (COSTA, 1991 [1789], I, p. 264), um valor que equipara a produção desse tubérculo à do trigo e à do maíz, apesar de ainda representarem 1/6 da do centeio e 1/3 da das castanhas.

Por fim, no caso de Barroso - freguesia pertencente ao concelho de Montalegre -, verificámos que a expansão do cultivo da batata nesta localidade se acelerou exponencialmente com o advento do século XIX (MENDONÇA, 1813).

Ao longo da centúria oitocentista, a região de Trás-os-Montes, especialmente no Barroso e nas freguesias dos concelhos pertencentes ao distrito de Bragança, começa a produzir batata em grandes quantidades, tendência que continuará pelo século seguinte (VASCONCELOS, 1980, III, p. 114; ALVES, 2000, IX, p. 245, X, p. 644-645).

3. A «revolução da batata»

Utilizando a mesma expressão de Orlando Ribeiro para se referir à crescente importância do maíz no Norte Atlântico e ao seu contributo para o aumento demográfico verificado em Setecentos, após o domínio filipino (RIBEIRO, 1941; 2011), pode-se falar de uma «revolução da batata» no decurso do século XIX, tanto em Trás-os-Montes (GUERREIRO, 1987, p. 8, 24) como na Europa (BRAUDEL, 1979, p. 139). A importância do tubérculo já havia sido notada em meados do século XIX por Wilhelm Roscher, que, de forma algo exagerada, a apontou como a principal causa do aumento demográfico na Europa (apudBRAUDEL, 1979, p. 139). No entanto, a existência de uma «revolução da batata» não parece ser ainda capaz de reunir amplo consenso entre os vários autores. Fernando de Sousa (1979, p. 345), por exemplo, considera que, relativamente a Portugal - e ao contrário de outros espaços europeus -, a batata não parece ter sido responsável por um aumento demográfico significativo.

Em 1917, Cunha Coutinho afirmava que com a descoberta da América em 1492, surgiu uma nova e auspiciosa fase na vida rural portuguesa. As plantas americanas, até então desconhecidas no velho continente, foram importadas pelos países europeus, tendo o milho e a batata revolucionado a agricultura que se praticava nas regiões do Minho, o Douro, Beira ou mesmo Trás-os-Montes (COUTINHO, 1917).

Estudos mais recentes evidenciam que a introdução da batata (a «castanha da Índia»), ao fazer diminuir drasticamente o consumo da castanha e modificar por completo os hábitos alimentares e o receituário local, contribuiu para a alteração das práticas agrícolas e uma reconfiguração da paisagem rural. Por sua vez, as repercussões destas mudanças, com impacto no aumento dos rendimentos, fizeram-se sentir ao nível da estrutura familiar transmontana (GUERREIRO, 1987, pp. 21 e 24), como verificaremos de seguida.

3.1 A transformação dos hábitos alimentares

Em 1758, cerca de 70 freguesias do termo de Bragança referiam a produção de castanha (SOUSA, CEPEDA & ROCHA, 2019, p. 722). Nas regiões frias do Minho, de Trás-os-Montes e da Beira, a população alimentava-se à base de castanhas verdes, sobretudo durante os períodos de colheita. Por sua vez, a castanha seca era consumida durante o resto do ano, sendo inclusivamente utilizada para confecionar o chamado «pão dos pobres», de cada vez que se acusava a falta do centeio (OLIVEIRA, 1990, p. 38; CAPELA, BORRALHEIRO, MATOS & OLIVEIRA, 2007, p. 107).

Contudo, ao longo do século XIX, a castanha foi sendo progressivamente preterida na alimentação da população, à medida que os castanheiros foram sendo atingidos pela chamada doença da tinta. À época, conhecida como «gangrena húmida da raiz», a doença, como a própria expressão indica, iniciava-se nas raízes mais finas, seguindo-se o apodrecimento e escurecimento da própria madeira. As extensas matas de castanheiros, plantadas em Setecentos e que então diversificaram a composição da paisagem, desapareceram vítimas da propagação da doença, que parece ter evoluído de oeste para este e de norte para sul no território nacional. O foco desta doença arbórea deu-se no Minho, tendo avançado posteriormente, tanto para sul, como para o interior. Por volta de 1838, a doença já destruíra um vasto conjunto de castanheiros nos vales dos rios Leça e Ave, tendo mais tarde, em 1884, atingido as localidades de Sedielos e Sá (Peso da Régua). Justifica-se assim que só muito tardiamente a batata tenha passado a ser consumida em determinadas localidades transmontanas - já em finais do século XIX -, pertencentes, sobretudo, à chamada Terra Fria, onde a castanha, até se sentir os efeitos da doença, se constituiu como cultura predominante (BIROT, 1975, p. 84; GUERREIRO, 1987, p. 18-20).

Parece-nos seguro afirmar que a dita «castanha da terra» desempenhou um papel muito importante na transformação dos hábitos alimentares. Nos inícios do século XIX, em Trás-os-Montes, consumia-se muito pão, seco ou mergulhado em sopas, variando a quantidade anual entre 8 e 10 arráteis por pessoa. O pão e os legumes constituíam assim a base da alimentação dos mais desfavorecidos (SOUSA, 1979, p. 50-51). Nos anos assolados pela fome, como em 1797-1798, os camponeses passavam muitos dias sem pão, chegando os mais pobres a alimentar-se de gomos de vides e dos pés das couves-galegas resultantes de colheitas anteriores (SOUSA, 1979, p. 55).

Contudo, na Península Ibérica, não foi bem sucedida a tentativa de se usar a batata na panificação e, ao contrário do que se verificou no norte e no centro da Europa, os camponeses preferiam ingerir a batata assada ou em caldos preparados juntamente com outros legumes (SOBRADO CORREA, 2018, p. 162-163).

Desde o segundo quartel do século XIX (SOUSA, 1979, pp. 50-51) - ou, no caso de algumas regiões transmontanas orientais, somente a partir do início do século XX -, a batata passou a acompanhar quase sempre as variadas receitas de bacalhau, entre outros tantos pratos de peixe ou carne, chegando mesmo a tornar-se um ingrediente principal (MODESTO, 1992, p. 45-79). A batata de Trás-os-Montes, atualmente produto de Indicação Geográfica Protegida, possui um sabor adocicado, resultante da relação entre o açúcar e o amido, assim como uma textura ideal para absorver o molho e ‘cortar’ o excesso de gordura que impera ainda na gastronomia local (DIREÇÃO-GERAL DE AGRICULTURA E DESENVOLVIMENTO RURAL, 2005). Viegas Guerreiro (1987, p. 23) refere, por exemplo, que por ocasião de uma das suas estadias em Pitões das Júnias, observou que a população comia muitas batatas independentemente da altura do dia, frequentemente em substituição do pão.

Ao invés do que aconteceu com a castanha em Portugal, verificou-se em outros países europeus uma quebra abrupta na produção de cereais. Para o espaço flamengo, por exemplo, Vandenbrocke (1972, p. 28-29) calculou em cerca de 40% a diminuição do consumo de cereal, per capita, entre os anos de 1693 e 1781, passando assim de 816 para 475 gramas. No entanto, para o mesmo período, observou-se em França um aumento do consumo do cereal, uma vez que, como já aqui foi referido, a grande difusão da batata só se processou verdadeiramente nos finais do século XVIII, prolongando-se depois por todo o século XIX (BRAUDEL, 1979, p. 142-143).

3.2 A alteração da paisagem rural e das práticas agrícolas

A disseminação da batata em Trás-os-Montes desde meados do século XVIII favoreceu uma reestruturação da economia rural e uma reconfiguração da paisagem agrária. O cultivo deste novo produto proporcionou o reajustamento do sistema de rotações, assim como os processos de reordenamento das explorações agrícolas, tendo inclusivamente levado à intensificação de atividades como a pecuária. Antes da introdução da batata, os openfields transmontanos eram despojados de árvores (com exceção dos castanheiros) cultivando-se segundo o afolhamento bienal - uma folha destinava-se ao cereal (centeio e algum trigo) e a outra reservava-se ao pasto. Estes campos abertos estavam associados a práticas comunitárias e a direitos de uso coletivo, complementando uma estrutura individual de cultivo de propriedades fechadas e irrigadas (compostas por hortas, árvores de fruto e lameiros) dispersas em torno da freguesia (SERRÃO, 2017, p. 136; BIROT, 1975, p. 83).

Enquanto a produção de centeio e de trigo estagnou ou diminuiu, verificou-se, inversamente, um crescimento nas áreas de cultivo do milho, vinha, oliveiras e outras árvores de fruto, produtos hortícolas, pasto e pecuária, onde também se levava a cabo a experimentação do arroz e da batata (SERRÃO, 2017, p. 144). Com a sua introdução e consequente expansão, as explorações tornaram-se mais produtivas, o que permitiu aligeirar a necessidade de cereais e dar um reordenamento às diversas parcelas, permitindo a intensificação da agricultura e da pecuária. Com um elevado potencial produtivo, a batata exigiu terrenos férteis, o que obrigou a transformar os terrenos de pousio em terras lavradas, a cercá-las para aumentar as colheitas anuais e a intensificar as rotações com maior irrigação e fertilização. Daniel Faucher (1975, p. 100) refere, por isso, que o cultivo da batata e do milho grosso foram responsáveis por revolucionar os sistemas agrícolas com pousio.

Um pouco à semelhança daquilo que se observou no interior da Galiza, a difusão da batata foi acompanhada pelo arroteamento dos incultos, passando esta nova planta a ser cultivada em terras de lavradio ganhas ao monte pelo arroteamento dos baldios (CARDOSO, 2004, p. 41; SOBRADO CORREA, 2018, p. 156).

Na primeira década de 1800 verificou-se em Portugal a distribuição de alguns terrenos baldios. Entre 1801 e 1803, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro dos Negócios da Fazenda, promoveu assim a divisão dos baldios pelas famílias mais carenciadas da freguesia de Contins (Mirandela). Já em 1802, José António de Sá repartiu e sorteou partes de baldios na comarca de Moncorvo, sendo que a Câmara Municipal de Vimioso atribuiu também pequenas parcelas destes terrenos pelos seus moradores (CARDOSO, 2004, p. 45, 69-71). Os habitantes de Bragança - e um pouco à semelhança do que se verificou por toda a Terra Fria - tiveram dificuldade em entender como útil a divisão dos baldios que possuíam desde tempos remotos, fazendo com que a apropriação dos terrenos comuns neste distrito só viesse a ser impulsionada com o advento do século XIX (SOUSA, CEPEDA & ROCHA, 2019, p. 718).

Este novo sistema conduziu, inevitavelmente, à rutura das velhas práticas comunitárias de rotações bienais e servidões de passagem, sementeiras e pasto (SOBRADO CORREA, 2018, p. 156). Desde os finais do século XVIII e ao longo de todo século XIX, o aumento da superfície de pasto, juntamente com o crescimento da plantação de forrageiras, como o nabo e as próprias batatas, possibilitou uma melhoria da alimentação do gado bovino. Já a transformação de uma pecuária tradicionalmente extensiva e que pastava livremente no monte, para uma exploração mais intensiva dentro dos estábulos, possibilitaria a sua mercantilização a partir de finais do século XVIII (SOBRADO CORREA, 2018, p. 157).

3.3 A nova economia agrária

Em consequência da diversificação do cultivo que a batata provocou e do maior rendimento por unidade de superfície, a par da intensificação da atividade agropecuária, podemos dizer que a situação de muitos camponeses foi aliviada, favorecendo a substancial melhoria das suas condições de vida (MEYER, 1980, p. 31).

Num primeiro momento, a expansão da batata permitiu o aumento dos rendimentos familiares, não só por ter possibilitado o incremento da produção agrícola como pelo simples facto de a nova colheita não estar ainda sujeita a contribuições. Posteriormente, a mesma passaria a ser então alvo de um pagamento de dízimos (BRAUDEL, 1979, p. 142; NETO, 1994).

É lícito afirmar que, a partir do último quartel do século XVIII, a batata permitiu melhorar, de modo muito substancial, a alimentação da população, sobretudo das categoriais sociais mais baixas. Inicialmente, a repulsa pelo tubérculo levou a que fosse exclusivamente introduzida para consumo indireto e com finalidades forrageiras, melhorando a ração do gado e, muito particularmente, a do suíno (SOBRADO CORREA, 2018, p. 158; GUERREIRO, 1987, p. 18-20; SOBRADO CORREA, 2018, p. 158). Até então, os porcos eram alimentados no monte com os desperdícios domésticos, ou, em alternativa, com hortaliças, nabos, castanhas ou cereais. Com a introdução da batata na ração dos porcos tornou-se possível a estabulação e a poupança de cereais - desde o centeio à aveia - ou mesmo de castanhas, passando estas a destinarem-se exclusivamente à alimentação humana (SOBRADO CORREA, 2018, p. 158-159).

Na economia agrária, devido aos fracos níveis de consumo básico e de um baixo grau de mercantilização, o cultivo da batata permitiu também fortalecer a policultura (SOBRADO CORREA, 2018, p. 163). Esta prática possibilitaria assim uma maior variedade alimentar e, consequentemente, a absorção de um maior leque de vitaminas e nutrientes, tornando os indivíduos mais resistentes a doenças e minimizando problemas como o da escassez de alimentos.

De igual modo, a intensificação da atividade agropecuária, permitiu a redução do tamanho médio das explorações, proporcionando um aumento dos rendimentos e o reordenamento das estruturas familiares, tornando-as menos complexas. Isto traduziu-se num estímulo à nupcialidade, pelo que também permitiu reduzir o elevado número de celibatários em terras do interior e nas zonas de montanha. A este respeito, Luís António de Medeiros Velho - então juiz de fora no concelho de Chaves - considerava mesmo que a falta de população e o excesso de celibato, resultante da pobreza e de um elevado número de clérigos, era uma das grandes causas de decadência na agricultura transmontana (apudSOUSA, CEPÊDA & ROCHA, 2019, p. 717).

Em contrapartida, a batata, assumindo um valor calórico mais reduzido que o do centeio - como vimos, o cereal com maior rendimento em todo Nordeste português -, tornou possível a alimentação de um maior número de pessoas a partir da mesma área de cultivo (SOBRADO CORREA, 2018, p. 163). Rica em hidratos de carbono e vitamina C, a batata tornou-se num dos produtos vegetais mais versáteis. Como forma de o ilustrar, na Irlanda referia-se que o mesmo pedaço de terreno que produzia trigo para uma pessoa, poderia servir para produzir batatas para outras duas pessoas (BRAUDEL, 1979, p. 142). Por outro lado, a cultura da batata adequava-se bem aos pequenos proprietários, que recorriam aos familiares para o trabalho da terra. Em rigor, dela alimentavam-se não só os lavradores e respetiva família, como os gados que lhes pertenciam. Além disso, mesmo em anos maus - e por menor que a produção fosse -, a sementeira provava ser sempre compensadora (GUERREIRO, 1987, p. 22).

Conclusão

Podemos então concluir que a batata terá alcançado o território europeu ainda em meados do século XVI, sendo que o seu cultivo começou por estar limitado a pequenas regiões periféricas de alguns países. Parece-nos também plausível que as batatas tenham chegado a Portugal ainda no decorrer desse mesmo século, provenientes da Galiza. As razões que o justificam prendem-se, fundamentalmente, com o facto de a fronteira entre a Galiza e Portugal se caracterizar, à época, por uma grande permeabilidade.

Foi apenas com o advento do século XVIII que se verificou uma expansão do cultivo da batata em vários países da Europa, entre os quais se inclui Portugal - aqui sobretudo na segunda metade da centúria -, sendo que o fator capaz de explicar este fenómeno resulta, em larga medida, das crises agrícolas que vieram abalar o modelo de subsistência predominante nas sociedades rurais. Chegados ao século XIX, verificámos que a batata já havia sido plenamente integrada nos sistemas de cultivo, tanto na Europa como em Portugal, constituindo-se como elemento essencial nos hábitos alimentares, não só dos gados, como das próprias populações, e assumindo particular importância na alimentação dos mais pobres.

Constatámos também que a batata já era cultivada na província de Trás-os-Montes nas primeiras décadas do século XVIII. De todas as localidades transmontanas, as Memórias Paroquiais assinalam a presença da batata nos distritos de Bragança e de Vila Real, em relação aos quais se afirma que em algumas das freguesias a cultura desse tubérculo seria já «abundante». Não obstante, na segunda metade do século XVIII, a expansão do seu cultivo no Noroeste transmontano - e por comparação com o Nordeste, sobretudo no que concerne à extremidade próxima da fronteira com Espanha - parece ter-se processado de um modo mais célere. O caso da freguesia de Rio de Onor constitui-se, em função do período analisado, como um exemplo bem ilustrativo do relativo atraso com que a batata alcançou as localidades limítrofes do Nordeste transmontano, onde predominava ainda a cultura da castanha.

Quanto ao aumento demográfico que a batata pode ou não ter provocado em Trás-os-Montes, as fontes consultadas, pelas suas características, não o permitiram verificar. Porém, é legítimo deduzir que uma melhor e mais variada alimentação, onde se inclui a batata, tenha tornado os indivíduos mais resistentes a doenças e que o aumento dos rendimentos tenha contribuído para a diminuição do celibato que caraterizava Trás-os-Montes em Setecentos.

Por outro lado, a introdução da «castanha da Índia» na província transmontana fez diminuir drasticamente o consumo da castanha propriamente dita, modificando por completo os hábitos alimentares e o receituário local, e, por conseguinte, as práticas agrícolas e a configuração da paisagem rural. Será então legítimo afirmar que, a partir da segunda metade do século XVIII - e com particular incidência no último quartel -, a batata permitiu melhorar, de modo muito substancial, a alimentação da toda a população, sobretudo aquela das categoriais sociais mais baixas, tendência que se prolongaria pelos séculos posteriores.

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1Não obstante, o cultivo da batata continua a não ser alvo de menção no detalhado manuscrito sobre Trás-os-Montes elaborado por Columbano Ribeiro de Castro, nesse mesmo ano

2ADBGC, Fundo Judicial, Inventários de Menores, cx. 719, docs. 12359 a 12379 (informação não tratada arquivisticamente)

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