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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.38 Porto dez. 2022  Epub 02-Jan-2023

https://doi.org/10.52224/21845263/rev38a4 

Dossier Temático

O Conselho de Estado no triénio liberal: núcleo institucionalizado de decisão governativa

The Council of State in the liberal triennium: institutionalized nucleus of governmental decision

Judite Gonçalves de Freitas1  2  3 
http://orcid.org/0000-0003-4516-9988

1Universidade Fernando Pessoa, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Porto, Portugal.

2IPRI - Instituto Português de Relações Internacionais, Universidade Nova, Lisboa, Portugal.

3CEPESE - Centro de Estudos da população, Economia e Sociedade, Porto, Portugal.


Resumo

A sobrevivência do Conselho de Estado após a Revolução Liberal de 1820 garante-lhe o desempenho do papel de assessor do novo Governo. Nos termos do Regimento do órgão de 1821 e da Constituição de 1822, o Governo pode recorrer ao Conselho de Estado para parecer sobre qualquer decisão da esfera do poder executivo. Herdeiro de uma tradição secular, o Conselho de Estado, assume duas faces: é simultaneamente um órgão de consulta que assessora o Governo e uma instância de político-administrativa com jurisdição própria.

Palavras-chave: Conselho de Estado; Regimento; Constitucionalismo Liberal; Triénio Liberal; Portugal; Espanha.

Abstract

The survival of the Council of State after the Portuguese Liberal Revolution (1820) ensured it the role of adviser to the new Government. Under the terms of this body’s own Regulations of 1821 and the Constitution of 1822, the Government could appeal to the Council of State for an opinion on any decision in the sphere of the executive power. Heir to a centuries-old tradition, the Council of State had two sides: it was simultaneously a consultation body that advised the Government and a political-administrative instance with its own jurisdiction.

Keywords: Council of State; Rules of Procedure; Liberal Constitutionalism; Liberal Triennium; Portugal; Spain.

Introdução

Este estudo procede a uma reflexão dos principais motivos que justificam a consagração e a sobrevivência do Conselho de Estado na transição do sistema político de Antigo Regime para o Liberalismo, atendendo ao processo de reformas institucionais do sistema de governação iniciado após a Revolução de 1820. O Conselho de Estado, ao longo do século XIX, teve uma vida bastante agitada, sofrendo o impacto das alterações constitucionais de regime.

Com efeito, o programa liberal de Estado previa mudanças políticas e institucionais que afetavam a forma do Estado, a organização do poder e alteravam as formas de governo. A via constitucionalista e liberal, que triunfou, ambicionava a construção de um poder central forte e uniforme, mas com funções e poderes limitados constitucionalmente, que promovesse a subtração da amálgama de privilégios, jurisdições e instituições privadas que se interpunham entre o Estado e os cidadãos.

Após a Revolução vintista era necessário elaborar uma Constituição que estabelecesse os fundamentos do novo regime político, que incorporou o Conselho de Estado, reformando-o e concedendo-lhe regimento próprio. O novo ordenamento jurídico do Estado, consagrado na Constituição de 1822, é revelador da importância concedida ao Conselho de Estado, mormente num tempo de acentuada agitação política. O Conselho de Estado foi objeto de uma modernização pela via regimental e constitucional, garantindo uma inestimável função de aconselhamento no apoio à decisão dos secretários de Estado.

O trabalho viabiliza a compreensão do contexto de sobrevivência do órgão, organizando-se em três tópicos principais: a Revolução Liberal e constitucionalismo; a reforma do Conselho de Estado; e, finalmente, a atividade governativa do órgão. Este último ponto procede a uma análise pioneira e sistemática das atas das reuniões do Conselho de Estado no triénio liberal (Freitas, 2020). As atas constituem o principal repositório de memória da atividade governativa do órgão, pelo que procedemos à análise destes diplomas, determinando as matérias que lhes deram origem e justificam o funcionamento e as atribuições deste organismo do Estado num período de forte convulsão política.

1. Revolução e constitucionalismo em Espanha e em Portugal

O movimento liberal de 1820 colheu amplo apoio interno e externo, mormente pela antecipação do movimento liberal espanhol que restaurou a Constituição de Cádis em janeiro desse ano. A ideia de constitucionalizar a monarquia portuguesa, uma ideia progressista, aflorava, com superior acuidade, nas elites administrativas e militares portuguesas, mormente após o Congresso de Viena e a Santa Aliança (1815), refletindo-se na conspiração maçónica abortada de Gomes Freire de Andrade, em 1817. “A legitimidade absolutista do Congresso de Viena (1815) vai acicatar o confronto entre restauracionistas ultras (a Santa Aliança dos Reis) e regeneradores liberais (a Santa Aliança dos Povos)” (Vargues & Torgal, 1993, p. 45). Para os primeiros, era fundamental contrariar o ímpeto revolucionário; para os segundos, o essencial era assegurar a liberdade individual, reformar as instituições do Antigo Regime e garantir a emancipação dos povos.

A revolução vintista, conduzida por militares e elites administrativas, mormente juristas, proclama o regresso do rei, a celebração de Cortes de representação nacional (à moda de Cádis) com o intuito de elaborar uma constituição escrita e a expulsão dos ingleses (Valente, 1997). A Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e a Junta Preparatória das Cortes organizaram as eleições dos deputados às primeiras Cortes, por sufrágio indireto, através da formação de juntas eleitorais de paróquia, de comarca e de província. O método eleitoral escolhido, com base no censo de 1801, para a seleção dos deputados à primeira reunião magna liberal portuguesa, teve como referência o modelo eleitoral preconizado na Constituição de Cádis de 1812 (doravante CC, arts. 35.º a 44.º) e consagrado na Constituição Portuguesa de 1822 (doravante CP, arts. 33.º a 67.º), incluindo os cidadãos do sexo masculino maiores de 25 anos, com renda (voto censitário). As Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes de 1821 reuniram representantes dos dois hemisférios que proclamaram a soberania nacional e estabeleceram um modelo unicameral, inspirando-se nas constituições francesas de 1791 e 1795, e na Constituição de Cádis de 1812 (Suanzes-Carpegna, 2012).

Em conformidade com o novo quadro constitucional e político de 1822, rei e corte são obrigados a regressar. O rei jura, pela primeira vez (4 de julho), em território continental, as bases da Constituição (já o havia feito em fevereiro p.p. no Brasil), e Silvestre Pinheiro Ferreira, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, lê o discurso régio, que provavelmente redigiu, no qual defende o binómio rei-cortes, mas com supremacia do poder executivo, aquilo que designa de “supremo conselho da nação” (Pereira, 2008, p. 31-32). Posição que suscita amplo protesto junto dos deputados da assembleia de Cortes que propendem para a consagração da supremacia do poder do legislativo, conquanto corpo social da nação.

Antes de avançarmos, valerá a pena salientar as aproximações entre as leis fundamentais de Espanha (CC, 1812) e de Portugal (CP, 1822) que adotam modelos próximos quanto aos princípios inspiradores, aos sistemas políticos, aos órgãos institucionais e aos direitos e liberdades consignados.

Os primeiros textos constitucionais peninsulares consagram a monarquia constitucional parlamentar, sustentada na separação funcional dos poderes e na soberania nacional. No quadro normativo da Constituição de 1822, prevalece a vontade do poder legislativo, com um amplo conjunto de atribuições (arts. 102.º e 103.º), relativamente ao poder executivo, não obstante competir ao rei a sanção e a promulgação das leis (arts. 110.º e 113.º). O diploma constitucional português de 1822 atribui ao monarca o veto suspensivo, mas não lhe conferiu a prerrogativa de dissolver a Assembleia Constituinte (CC, art. 171.º e CP, art. 110.º). Competia ao “Soberano Congresso”, delegado do poder legislativo, a iniciativa legislativa de produzir projetos de lei, podendo, no entanto, os secretários de Estado apresentar propostas de lei, posteriormente, caucionadas por uma comissão de Cortes (Almeida, Branco & Sousa, 2012; Fernandes, 2012).

A Constituição de Cádis estipula que "el gobierno de la Nación española es una monarquía moderada hereditária [sublinhado nosso]" (art. 14.º), ante o desejo de garantir ao monarca um papel estabilizador, porém limitado. Ambas validam a monarquia hereditária como sistema de governo, e subscrevem o princípio da separação dos poderes (legislativo, executivo e judicial), a soberania nacional (CC, art. 3.º e CP, art. 26.º), o sistema representativo unicameral (CC, art. 27.º e CP, art. 32.º). De igual modo, inspirando-se na criação napoleónica (Constituição da República Francesa de 1799) - a Constituição Espanhola de 1812 e a Constituição Portuguesa de 1822 -, refundam o Conselho de Estado como que assinalando a necessidade de um órgão que garanta, junto do rei, o equilíbrio dos poderes (legislativo versus executivo). No entanto, no modelo constitucional peninsular, o Conselho de Estado tem, por comparação com o modelo napoleónico, muito menor peso, tanto mais que não lhe são atribuídas funções legislativas nem judiciárias estritas. O perfil regimental do Conselho de Estado espanhol e português consubstancia-se no caráter político e consultivo do órgão nos assuntos governativos graves, da confiança das Cortes (CC, art. 236.º e CP, art. 167.º); de outro modo dificilmente se compreendia a manutenção de um órgão conotado ao Antigo Regime num contexto social e político de agravado fervor reformista (Baptista, 1997, p. 495-516). Tanto em Espanha quanto em Portugal, a composição do órgão dependia da nomeação régia, sob proposta das Cortes (CC, arts. 232.º a 233.º e CP, art. 164.º), não dispondo de competência jurisdicional, diferentemente dos Estatutos de Baiona (1808), regimento legal superiormente influenciado pelo constitucionalismo napoleónico. Em Espanha, o Conselho de Estado tem representação eclesiástica e aristocrática ex professo, para além de indivíduos de prestígio e conhecimento adequados (art. 232.º). O processo de designação dos conselheiros de Estado, em Portugal, é feito a partir de listas de representantes da Europa (seis) e do Ultramar (seis), e mais um da Europa ou do Ultramar, “de pessoas distintas por seus conhecimentos” (art. 162.º), que serão submetidas à aprovação régia. Nas constituições ducenista (1812) e vintista de 1822, as deliberações do CE não eram vinculativas; o Conselho de Estado era um órgão político dentro da esfera de atuação do poder executivo.

Simetricamente patenteiam-se diferenças entre os primeiros textos constitucionais peninsulares, em boa parte justificadas pelo contexto e vicissitudes políticas conjunturais geradoras de diferenças constitucionais de época. A primeira diferença reporta às condições de gestação dos dois textos. A Pepa (Constituição de Cádis) emerge no contexto de uma guerra de independência que une as fações liberais (exaltados e moderados) aos absolutistas no desígnio comum de supressão do domínio francês; a Constituição vintista portuguesa surge como um produto da ala liberal progressista que vislumbrava no constitucionalismo uma forma de impor limites ao poder régio e garantir os direitos e deveres individuais, exigia o regresso do monarca e o fim do domínio inglês (Monteiro, 2007). Não obstante, em Espanha como em Portugal, um semelhante interesse patriótico estivesse na forja dos primeiros textos constitucionais (Suanzes-Carpegna, 2015).

Paralelamente, em termos de linhas de orientação política, em Portugal, na sequência do processo revolucionário, constituem-se duas fações políticas originais opostas: os vintistas que concebem a Constituição de 1822, com raízes no progressismo regenerador liberal, com ideais próximos dos liberais ‘exaltados’ espanhóis, e os realistas ou legitimistas (conservadores), que entroncam na liderança do Infante D. Miguel, e que de forma alguma concordam com o sistema político de subalternização do poder executivo do primeiro texto constitucional português. Esta força contrarrevolucionária e anticonstitucional consubstanciou-se no levantamento militar da Vilafrancada (1823), conduzido pelo Infante D. Miguel, que pôs termo ao triénio liberal. Na sequência do golpe, são suspensos os trabalhos das Cortes, a Constituição de 1822 e a atividade do Conselho de Estado.

2. A reforma do Conselho de Estado: a publicação do regimento

Na sequência da Revolução Liberal de 24 de agosto de 1820, reuniram as primeiras Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa no dia 24 de janeiro de 1821, tendo durado até 4 de novembro de 1822, no que podemos designar por primeiro período legislativo e constitucional. O segundo período legislativo decorre, entre 15 de novembro de 1822 e 21 de maio de 1823, sob a designação de Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza, tendo findado na sequência do golpe da Vilafrancada.

A reunião das Cortes possuía o principal desígnio de lançar “os alicerces do Edifício Constitucional” (Diário das Cortes, sessão de 27.1.1821). Cinco dias depois, a 29 de janeiro, as Cortes elegem o Conselho de Regência (1821) a quem compete o exercício do poder executivo em nome de D. João VI, ausente no Brasil. A partir de então principiam os trabalhos da comissão encarregada de elaborar o projeto da constituição política da nação apresentado e aprovado a 9 de março seguinte. No quadro da nova lei de bases da Constituição, principia o programa de reformas ordinárias que visa a transformação da ordem política, administrativa, social e económica do país (extinção do Santo Ofício, dos serviços pessoais, nacionalização dos bens da Coroa, abolição dos direitos banais, extinção da censura prévia, instauração da liberdade de imprensa). Não descurando o peso político destas mudanças é de realçar que o programa de reformas políticas da Constituição de 1822 concebe que o seu fim é “o de manter a liberdade, segurança e propriedade de todos os Portugueses” (art. 1.º), não tendo o ensejo de afrontar violentamente os poderes tradicionais.

Posteriormente, a intenso debate sobre a utilidade institucional do Conselho de Estado, para uns considerado um instituto de Antigo Regime, para outros o garante do equilíbrio dos poderes, os constituintes decidiram-se pela consagração do órgão atribuindo-lhe regimento próprio (Freitas, 2021; Batista, 1998). O projeto de bases dos estatutos do órgão, posto a discussão nas Cortes Gerais, contém treze parágrafos (Diário das Cortes, sessão de 27.8.1821); contudo, a versão final do Regulamento do Conselho de Estado, datada de 22 de setembro de 1821 e publicada por carta de lei de 25 de setembro de 1821, é composta por vinte e três parágrafos1. Um sinal de que o Conselho de Estado despertou especial atenção do “Soberano Congresso” que, após ativo debate, produziu um documento que evidencia a necessidade órgão, mas limitando com rigor o respetivo âmbito de intervenção (Caetano, 1994). Pela última versão do Regimento de 1821, o Conselho de Estado constitui uma corporação consultiva e político-administrativa com jurisdição própria.

3. O Conselho de Estado como órgão de direção política

A primeira sessão do Conselho de Estado data de 19 de outubro de 1821, mantendo uma periodicidade regular de duas reuniões por semana (Regimento do Conselho de Estado, § 3.º), todas as quartas e sábados. Naturalmente que a este facto não será estranha a transferência do expediente burocrático da Administração Central para o órgão e para as Cortes, duas das autoridades estatutariamente reconhecidas.

O Conselho de Estado desenvolve, nesta primeira fase da sua existência como instituição do Estado liberal emergente, uma atividade mais administrativa do que política, numa altura em que havia que proceder à reforma das estruturas do poder central e a uma reorganização do sistema orgânico das Secretarias de Estado (Reino, Guerra, Negócios Estrangeiros, Negócios Eclesiásticos e de Justiça, Fazenda e Marinha), base da organização política e administrativa do Governo (Silveira, 1997, 1998).

Do ponto de vista das competências, o funcionamento institucional do Conselho de Estado perfila-se, acima de tudo, como órgão detentor da função de despacho administrativo das Secretarias de Estado, e, neste particular, à anuição das portarias e avisos de provimentos de cargos da magistratura e eclesiásticos (bispados), postos do exército e da armada sob proposta do Conselho da Guerra e do Almirantado2. A atividade de aconselhamento do Conselho de Estado sobre provimento de ofícios é superiormente regular e intensa, num contexto de mudança política de regime e de nomeação e colocação de novos quadros. Em contrapartida, o Conselho de Estado não detém nem desenvolve quaisquer competências regimentais originárias do âmbito da função política legislativa, agora da competência exclusiva das Cortes.

Ao longo do triénio liberal (1821-1823), foram realizadas 168 reuniões ordinárias e seis sessões extraordinárias. Na maioria das reuniões foram efetuadas consultas do Conselho de Estado sobre os assuntos relativos ao Conselho da Guerra e ao Conselho do Almirantado, bem como à atividade administrativa corrente das Secretarias do Estado. Deste modo, a função governativa do Conselho de Estado antecipa-se à saída do respetivo estatuto na Constituição de 1822. Em momento crucial de reforma institucional do Estado e de nomeação e provimento de cargos nos vários setores da Administração Pública, a atividade do Conselho de Estado responde solidariamente pela gestão de despacho das Secretarias de Estado. No gráfico que se segue podemos observar o volume de documentos (portarias e avisos) levados à consulta do Conselho de Estado pelos diferentes secretários de Estado no triénio liberal.

Fonte: IANTT, Actas do Conselho de Estado, L. 1 [1821-1823]

Gráfico 1 Distribuição anual do total de documentos levados a Conselho de Estado pelos Ministérios (1821-1823) 

Intensa atividade do Conselho de Estado na homologação de atos normativos da Administração Pública, portarias e avisos, chegados ao órgão a informar sobre o provimento e/ou demissão de cargos dos vários setores da administração do Estado, num período de transição de regime. No total de 517 atos, submetidos a apreciação do Conselho de Estado, um valor maioritário cabe para os ofícios da Justiça (45,64% do total), seguido dos provimentos do Exército (23,63% do total), e dos assuntos do Ministério do Reino (13,53% do total). As restantes Secretarias de Estado apresentam valores significativamente mais baixos, muito embora também sejam levados a consulta do Conselho de Estado os negócios da respetiva competência.

Fonte: IANTT, Actas do Conselho de Estado, L. 1 [1821-1823]

Gráfico 2 Distribuição percentual do total de documentos por ministério levados a Conselho de Estado (1821-1823) 

A Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, criada por Lei de 23 de agosto de 1821, tinha competência em matéria de justiça civil e criminal, assuntos eclesiásticos, provimento a ofícios de magistratura, entre outros. Desta sorte, o principal motivo pelo qual a Secretaria de Justiça detém valores predominantes nas consultas ao Conselho de Estado advém do cumprimento do princípio legal que remete exclusivamente ao órgão a competência de propor ao monarca as “pessoas para os lugares da magistratura e para os bispados” (art. 168.º). Por outro lado, a manutenção da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça acopladas - uma reminiscência do Antigo Regime -, fez com que uma parte importante da superintendência dos cargos de jurisdição espiritual dos bispados estivesse sujeita ao parecer do Conselho de Estado, bem como o provimento dos ofícios de justiça e de segurança públicas. E esta parece-nos ser uma manifestação da afirmação da posição regalista em relação ao Vaticano, constituindo um sinal da política eclesiástica liberal que tende para um processo gradual de secularização do País, nos domínios político, social e cultural; v.g. a questão, nomeadamente, da expropriação dos bens às ordens religiosas e posterior extinção das ordens no contexto de guerra civil (Catroga, 2004).

De igual modo, a intensa atividade de consulta governativa do Conselho de Estado proporcionou alguns momentos de tensão entre o “antigo” Conselho da Guerra e o Conselho de Estado, suscitados pelos parágrafos 15.º e 16.º do Regimento do Conselho de Estado. De acordo com o regimento do órgão, os postos do exército, incluindo o de Coronel, depois de providos por diploma, eram posteriormente conduzidos como propostas de nomeação pelo Conselho da Guerra ao Conselho de Estado; situação similar era a dos postos da armada, que fariam seguir para o Conselho de Estado o provimento deferido pelo Conselho do Almirantado.

Pelo disposto “o Governo aprovará, ou rejeitará as Propostas do Conselho da Guerra, ou do Conselho do Almirantado, ouvido o Conselho de Estado” (parágrafo 16.º). Porém, os Conselhos Superiores da Guerra e do Almirantado questionam esta formalidade, levando o monarca a solicitar um esclarecimento à Comissão da Constituição - que redigiu o Regimento do Conselho de Estado -, sobre a falta de entendimento quanto à necessidade ou não de responsabilidade conexiva dos conselheiros de Estado com os secretários de Estado e os respetivos Conselhos da Guerra e Almirantado, no caso do uso do poder executivo. A questão arrasta-se pelas Cortes desde 27 de novembro de 1821 a 4 de dezembro de 1821, altura em que a Comissão do “Soberano Congresso” se pronuncia definitivamente sobre as dúvidas, esclarecendo o seguinte:

Quando o Rei, tendo ouvido o Conselho de Estado, rejeitar a proposta do Conselho da Guerra ou do Almirantado, não sendo caso que não esteja sujeito à lei de escola e antiguidade a nomeação fica livre sem dependência de nova proposta, ouvido o Conselho de Estado (Diário das Cortes, sessão de 4.12.1821).

No entender da Comissão da Constituição, o Conselho de Estado tem supremacia sobre os Conselhos da Guerra e do Almirantado quanto ao parecer sobre as propostas de ofícios públicos do exército e da armada, de acordo com os parágrafos 15.º e 16.º. Dirimido este desacordo quanto às competências dos órgãos superiores do Estado, a atividade do Conselho de Estado no triénio liberal foi, conforme adiantámos, sobretudo administrativa, assegurando o aconselhamento das propostas endereçadas ao órgão pelos secretários de Estado, de acordo com o respetivo regimento.

A transição de regime acarreta a reorganização das competências pelos distintos conselhos e Secretarias de Estado, bem como a nomeação e substituição de titulares nos ofícios. De outro lado, há que salientar a sobrevivência de práticas e traços do modelo de monarquia polissinodal do século XVIII, mormente de alguns conselhos superiores de governação (e respetivas Secretarias de Estado), enquanto não se procede à elaboração dos regulamentos internos para cada um dos órgãos do Estado, circunstância que ocasiona situações de conflito de competências, como aquele que acabámos de referir.

O volume de atos levados a Conselho de Estado pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino (13,53%) incide sobre nomeações de ofícios, incluindo os da Casa Real, ofícios concelhios e questões relativas à nomeação de bacharéis habilitados para o exercício da docência na Universidade de Coimbra.

Uma breve nota final sobre o papel do Conselho de Estado liberal no processo de desagregação do império luso-brasileiro (1822) que, muito naturalmente, foi assunto discutido ao mais alto nível, tendo ocupado uma dúzia de reuniões do Conselho de Estado que, numa primeira fase (11.10.1821 a 7.12.1821) se destinaram a confirmar a nomeação dos governadores das províncias do Brasil, após o movimento liberal no Portugal continental, tentando assegurar a tranquilidade3; num segundo momento (24.12.1821 a 29.12.1821) manifesta-se claramente um conflito de competências entre o Conselho da Guerra e o Conselho de Estado quanto à questão da nomeação dos governadores de armas das províncias do Brasil, mormente de Santa Catarina, invocando, mais uma vez, o incumprimento dos parágrafos 15.º e 16.º do Regimento do Conselho de Estado4; e, finalmente em sessão extra, foi reunido o Conselho de Estado, em 15 de novembro de 1822, para deliberar sobre a manutenção da união de Portugal e do Brasil e orientar o processo de regência de D. Pedro I5. Neste particular, os intentos do magno conselho revelaram-se infrutíferos dados os desígnios do Príncipe Regente, pelo menos desde agosto de 1822, em tornar o Brasil um país independente. A independência do Brasil completa-se em 1831, quando Pedro I abdica em favor do seu filho D. Pedro de Alcântara, futuro Pedro II, e, subsequentemente, ocorre a nacionalização do Estado brasileiro.

Balanço final

Em Espanha e em Portugal, não obstante o aceso debate nas primeiras Cortes Gerais Constituintes, os primeiros textos constitucionais pós-revolucionários - Constituição de Cádis de 1812 e a Constituição Portuguesa de 1822 - consagram o instituto essencialmente como um órgão político de consulta nos assuntos governativos, sanção das leis, declaração de guerra e diplomacia (execução de tratados).

Na mudança do sistema político de Antigo Regime para o Liberalismo, a trajetória do Conselho de Estado aponta no sentido da transformação e adaptação institucional ao quadro político constitucional liberal. Ao longo do triénio liberal, o Conselho de Estado esteve, desde o início, no cerne das disputas políticas entre diferentes modelos políticos de sociedade - a liberal progressista e a liberal moderada - que, ainda que de diferente modo, ambicionam a transformação do modelo político de Conselho de Estado de Antigo Regime, garantindo um papel regimental e constitucional ao Conselho de Estado.

Os liberais vintistas defendem um novo sistema de ordenação dos poderes (sistema político), assente no princípio da soberania nacional e da separação dos poderes, com supremacia do poder legislativo, com um modelo unicameral; mantendo-se, no entanto, avessos a radicalismos institucionais que garantem um papel regimental e constitucional ao Conselho de Estado como órgão de aconselhamento político, e, ao mesmo tempo, como braço do poder executivo.

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2Regimento do Conselho de Estado, in Collecção dos Decretos, Resoluções..., § 12.º a 16.º.

3IANTT, Atas do Conselho de Estado, L. 1 (1821-1844), fls. 5-11.

4IANTT, Atas do Conselho de Estado, L. 1 (1821-1844), fl. 14.

5IANTT, Atas do Conselho de Estado, L. 1 (1821-1844), fls. 58-59

Recebido: 11 de Outubro de 2022; Aceito: 09 de Dezembro de 2022

Correspondence: Judite Gonçalves de Freitas Email: jfreitas@ufp.edu.pt

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