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População e Sociedade

versión impresa ISSN 0873-1861versión On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.39 Porto jun. 2023  Epub 02-Oct-2023

https://doi.org/10.52224/21845263/rev39v4 

Varia

Recensão - MARTINS, José Garrucho. (2023). As Noites e os Dias. Como se vive com a doença bipolar. Vila Nova de Gaia. Estratégias Criativas.

M.ª de Fátima C. Toscano1 
http://orcid.org/0000-0002-2363-8766

1Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal


Introdução ou um objeto estrangeiro a alguma Sociologia

Porque “não existem (...) objetos próprios da sociologia, assim como não existem objetos que lhe sejam interditos, somente objetos que lhe são socialmente estrangeiros”, o sociólogo José Garrucho Martins deixa bem claro o objetivo abrangente da pesquisa que subjaz a esta sua obra:

Sem pretendermos contribuir diretamente para as conhecidas controvérsias sobre as dimensões, consideradas mais pertinentes, do diagnóstico psiquiátrico, podemos tentar contribuir para a resposta à questão: “O que dizem as ciências sociais sobre uma doença mental?” [Darmon, 2008, p. 16 cit. inMartins, 2023, p. 73].

Ao longo de 257 páginas de texto (sem contar Índice Remissivo nem Bibliografia), este livro decorre de uma reorganização sintética do texto académico da dissertação de doutoramento do autor, já conhecido da presente editora de Vila Nova de Gaia (Estratégias Criativas), pois já o deu a ler aos interessados por objetos sociológicos como as práticas religiosas populares, a bruxaria, o dom e as práticas demiúrgicas e mediúnicas. Referimo-nos à pesquisa da sua tese de Mestrado (Martins, 1997), sob orientação do sábio destes continentes epistemológicos e vivenciais, o sociológico-etnólogo da Universidade Nova de Lisboa, professor Moisés Espírito Santo. Aliás, essa dissertação de fins dos anos 1990 só veio reiterar e consolidar o que fora a prática de José Garrucho Martins enquanto aprendiz brilhante de Sociologia no ISCTE do início dos anos 1980.

Aprofundemos, então, esta obra que se organiza em cinco grandes capítulos ao longo de duas Partes: I Parte, O Doente e a Doença Bipolar; II Parte, Análise dos Resultados da Pesquisa.

2. Argumento

2.1. O ‘objeto sociológico’ de pesquisa: problematizações teóricas, pressupostos epistemológicos e éticos

Posso testemunhar da coerência do percurso do autor do livro quanto à centralidade para a análise sociológica de conceitos, noções e problematizações, tais como práticas de rotulação e estigmatização, práticas e trajetórias desviantes, estratégias e manipulações de estigma nas sociedades contemporâneas do ‘culto da performance’; habitus e modos de objetivação da subjetividade; processos de legitimação da dominação, de violência simbólica, como da construção do sentido - sempre inscritos de forma não linear na experiência social; análise das características estruturais e processuais dos fenómenos e vivências sociais; e, entre outras, ainda o interesse pela análise das trajetórias sociais a partir do discurso dos sujeitos, buscando entender a reconstrução subjetiva daquelas, com atenção às temporalidades, às fases de vivência como de ruturas biográficas, aos modos e estilos, argumentos e recursos de/da reação.

No presente livro, os recursos, ferramentas e aparelhos sociológicos acima enunciados são colocados ao serviço do conhecimento dos diferentes tipos de experiência social da doença mental bipolar na perspetiva do doente, como em diversos momentos do livro nos é afirmado, como por exemplo nas páginas 13 e seguintes, 81 e seguintes, 108 e subsequentes, entre outras.

2.2. Abordagens e utensílios metodológicos

Em coerência com o exposto, o autor desenvolveu um profundo interesse por metodologias focadas nos sujeitos e, em particular, no sentido social produzido-captado pelo discurso dos sujeitos sociais, quer o discurso escrito, quer o discurso oral, ou seja:

i) discurso escrito: nesta pesquisa, analisaram-se “Guias de apoio a doentes bipolares” que integram 37 documentos (disponíveis numa das associações de doentes - ADEB), a saber: 13 revistas, 20 prospetos e quatro brochuras [cf. fundamentos metodológicos da pesquisa em causa, página 124 e seguintes).

Destes diferentes documentos - que também são de autoria variada (técnicos de saúde, traduções ou adaptações de médicos colaboradores com a associação, psiquiatras ou adaptações de textos de médicos, como até autores não identificados) - salientam-se os textos de esclarecimento e orientação da conduta face à doença, e os testemunhos que visam ilustrar a vivência da doença, analisados nesta obra entre as páginas 143 e 183.

Na presente obra evidencia-se bem como um formulário ou um ‘Guia de apoio a doentes bipolares’ são promotores de civilidade, pois são também uma interação-relação social que coloca em relação, de modo mais diretivo-fechado, quem estimula-orienta-motiva e quem é estimulado-orientado-motivado.

Aliás, e sendo justa para com o autor e o argumento do seu livro, afronte-se a questão: não são todos os discursos construídos em contextos relacionais?

ii) discurso oral, o discurso construído através da inquirição em contextos de relação social e que o autor tem preferido, em concreto, pela sua prática de observação, de participação observante e de entrevistas semi e não diretivas. Na presente obra é feita a análise de conteúdo temática na sequência dos discursos construídos em entrevistas em profundidade a doentes bipolares, entrevistas realizadas entre 2011 até meados de 2012 (Martins, 2023, pp. 129-139, 185-250).

Optando por este estilo de entrevista, o autor pretendeu, ao garantir o afastamento da perspetiva clínica, captar o que podemos designar por tripé das entrevistas aprofundadas: os aspetos informativos, narrativos e argumentativos (Blanchet & Gotman, 1992, cit. inMartins, 2023, p. 130).

As referidas entrevistas foram guiadas e construídas sempre pelos pressupostos da abordagem fenomenológica-compreensiva: a par da relação comunicativa e da continuidade da confiança entre investigador e sujeitos, núcleo gerador da riqueza de uma fala que se pretende narrada a partir da terceira pessoa (Martins, 2023, pp. 132 e ss.). E do seu Guião Temático constavam os seis grandes temas seguintes:

  1. Viver com a doença bipolar

  2. Viver com a família

  3. Viver com os amigos

  4. Vida escolar e/ou profissional

  5. Relações com os profissionais e os serviços de saúde

  6. Relações com os medicamentos

O sociólogo escolheu 53 indivíduos, dos quais só dez não são doentes bipolares, mas seus familiares (Martins, 2023, p. 137), numa dominante da entrevista individual, salvo a entrevista de dois cônjuges entrevistados em copresença. Esta amostra foi construída pela mediação dos técnicos de saúde, quer por requisitos éticos e códigos deontológicos - daqueles, como dos serviços; quer para garantir a despistagem de doentes em estados ou fases de doença que impossibilitassem ou enviesassem as competências discursivas - estados e fases que questionariam a viabilidade e fiabilidade dos dados obtidos.

Trata-se de uma amostra em que a idade adulta é dominante, sendo 26 entrevistados do escalão etário entre 30 e 60 anos, estando, em similar representação as classes etárias jovens/jovens adultos (15-30) e idosos (maiores de 60), com três e quatro elementos, respetivamente. Também há uma distribuição da amostra em dois subgrupos no que refere às habilitações literárias, já que, para além de duas situações cujos estudos estão em curso, 26 dos entrevistados têm completos o ensino secundário (quatro) e os ciclos anteriores (1.º, 2.º e 3.º ciclos); ao passo que os outros 17 sujeitos são licenciados (14) ou têm frequência universitária (três). Quanto à condição perante o trabalho, é a instabilidade o fator mais relevante: 17 dos entrevistados estão desempregados e outros 12 revelam condições laborais precárias; os restantes 12 são reformados. À precaridade e instabilidade laboral junta-se a ausência de relações formalizadas em 28 dos elementos da amostra, pois destes, metade (14) são divorciados e, a outra metade, solteiros; os sujeitos casados são 15.

2.3. Formulação sociológica da doença bipolar como doença crónica: dimensão subjetiva da vivência, arco do trabalho e vida quotidiana

Perspetiva nodal do percurso de pesquisa de Garrucho Martins é a desconstrução das hierarquias entre saberes alegadamente científicos/populares-laicos; saberes médicos/ saberes dos doentes; explicações biológicas, neurofisiológicas, biomédicas e clínicas, versus saberes das ciências e dos sujeitos sociais. E, last but not least, os interesses e processos das pesquisas de Garrucho Martins, há 40 anos, expressam uma reflexão sempre enraizada nos fundadores e nos fundamentos do conhecimento sociológico (que tão-pouco lhe escapam à necessária atualização e desmistificação de crenças). Neste campo realça-se a grande e dupla lição humana da especificidade da abordagem sociológica, outra abordagem, distinta e mais atenta à complexidade do real do que a continuamente desconstruída por José Garrucho Martins, abordagem individualizante e, por inerência de tradições disciplinares, ‘clinicizante’ (passe a expressão) das vidas, das práticas, dos sentidos dos sujeitos e dos mundos sociais. Pelo que é bem-vinda, para o autor, a distinção anglo-saxónica entre disease, illness e sickness (Martins, 2023, pp. 16-17, 108).

É segundo este interesse de investigação que o autor nos apresenta uma pesquisa focada na vivência quotidiana de uma doença mental específica, a bipolaridade, para, segundo o mesmo enfoque, alcançar as múltiplas formações profissionais - em especial (mas não só) as dos serviços de saúde -, e considerar, ainda, os grupos de suporte e outros mundos sociais implicados pelas vivências da bipolaridade, bem como a ação social e a sociedade em geral.

A formulação sociológica assumida na presente pesquisa assenta numa dupla concetualização: bipolaridade quer como doença mental nas sociedades contemporâneas, quer como doença crónica.

Doença mental e doença bipolar

A formulação da bipolaridade como doença mental justifica todo o primeiro capítulo do livro, através de três abordagens encadeadas: conceções de depressão, mania e doença bipolar; características centrais do conceito de doenças crónicas para a abordagem da doença bipolar; e características da bipolaridade como doença de longa duração.

O autor começa por discutir as distintas leituras dos conceitos e das vivências de mania e depressão nas sociedades modernas contemporâneas, evidenciando como o espírito do capitalismo e a exuberância gloriosa e heroica da performance corporal e relacional de uma representação dominante de sucesso - por exemplo, o “empreendedor maníaco” e o “artista bipolar” - se associam, confusamente, à idealização romântica da mania. Realça Garrucho Martins que, embora tal concepção heroica [seja] exterior aos doentes trata-se de uma idealização presente nos doentes mais escolarizados de entre os entrevistados (Martins, 2023, pp. 25-28).

Assim, aprendemos que o culto da performance legitima que a mania possa ter leituras sociais menos negativas do que a depressão (se não, mais positivamente), ao mesmo tempo que, de forma paradoxal, também legitima a leitura negativa e medrosa da mania por ser imprevisível, irrealista e perigosa face às expectativas sociais.

Como se compreende - arrisco este exemplo -, a destruição de aposentos hoteleiros e a agressão de funcionários por parte dos membros de uma banda musical - podendo embora decorrer de surtos ou picos de distúrbios (mentais ou outros, como os resultantes de alcoolismo) -, é propensa a ter, para uma produtora e empresa de espetáculos que faça a gestão da carreira da dita banda, repercussões distintas das repercussões que os mesmos atos são propensos ter se da autoria de pessoas comuns, isto é, a quem sejam conferidas distintas identidades sociais e simbólicas.

A leitura negativa da depressão expõe a ‘falha’, da pessoa cuja confiança em si diminui drasticamente, ao passo que na mania se trata da “forte probabilidade de perda do controle de si”. Na sociedade da performance - e atente-se na sistematização lapidar - o excesso, definido normativamente, exterioriza-se na mania e interioriza-se na depressão (Martins, 2023, p. 26).

Enfim, em causa está, esse alegado indivíduo insuficiente porque não se encontra “à altura das expectativas sociais”, colocando problemas à ação social e aos modos de lidar e cuidar da doença que abarca ambas as polaridades. Radicam, pois, nessas falhas e insuficiências, as “injunções normativas da ação” na busca de prescrever modos de lidar com a doença: vontade, consciência, boa vontade, bom uso da consciência são pilares da organização da vida dos doentes guiados pelos formulários e procedimentos profissionais e trabalho laborais associados à doença bipolar. Fica bem claro, deste modo, porque a pesquisa se preocupou em analisar os já mencionados “Guias de apoio a doentes bipolares”.

Doença crónica e doença bipolar

A outra dimensão em análise legitima a opção por considerar a bipolaridade como doença crónica, logo no primeiro capítulo do livro, através da apresentação dos seus aspetos estruturais e processuais (...) nas suas definições, tipologias e experiências subjetivas e objetivas” (Martins, 2023, p. 19, 28 e ss.).

Através de uma aturada sistematização e reflexão, pejadas de referências bibliográficas para quem pretenda retomar ou aprofundar esta via analítica, Garrucho Martins elenca as características centrais do conceito de “doenças crónicas”, as quais, ao mesmo tempo que são crónicas, são imprevisíveis (Martins, 2023, pp. 28-36). Ou seja, aquelas doenças que “suspendem partes da realidade social anteriormente partilhada”, devindo “problemático” o “mundo de todos os dias” dada a “impossibilidade” de manter uma “relação ‘natural’ com o mundo”. Citando Charmaz, o sociólogo ilustra como as consequências destas doenças [se] expressam (...) de diferentes maneiras: como sejam na ‘perda da capacidade produtiva, crises financeiras, disfunções familiares, estigma e uma existência limitada’. [Charmaz, 1983, p. 2, cit. in Martins, 2023, p. 32).

Daí imperar uma diferente, e disruptiva, relação com o tempo, a qual questiona a própria conceção corrente de identidade - a alegada ‘continuidade do self’. Portanto, institui uma rutura com a visão comum da perspetiva da continuidade temporal identitária pois o mundo despedaça-se (Martins, 2023, p. 31).

Fala-se, pois, da necessidade que o doente tem de controlo, e em múltiplas dimensões e direções: O controlo é um dos aspetos centrais das experiências com as doenças crónicas (Martins, 2023, p. 32).

Pelo que se entende que o autor aborde a doença como trajetória - de que anota as diversas formulações teóricas -, buscando conhecer-lhe as fases, os fatores, as estratégias e o arco do trabalho associado (Martins, 2023, pp. 28 e ss.).

Os distúrbios bipolares, como doença crónica, provocam uma significativa crise de vida para o indivíduo e seus próximos (Hyde, 2001) e exigem um acompanhamento médico (farmacológico), psicoterapêutico e psicoeducativo. (Martins, 2023, p. 45).

Relatando as diferentes definições da doença - desde 1854 até à atualidade (DSM) -, como a evolução das definições oficiais das perturbações de humor e da comorbilidade, o sociólogo explicita a adequação e o sentido da opção por estudar a doença como uma trajetória relatada subjetivamente enquanto diversidade de experiências sociais da doença. Na presente pesquisa analisam-se as experiências das trajetórias de doença dos indivíduos diagnosticados como doentes bipolares, com acompanhamento ambulatório e com inserção em diferentes graus na comunidade. (Martins, 2023, p. 17). Esta linha de estudo impõe a atenção à pertença cultural nas variadas dimensões (cultura e pertença étnica, género, idade, ...), dimensões que têm sido adiadas ou têm sido alvo de resistência devido a argumentos do paradigma da psiquiatria biológica. Para o autor, tal visão científica-biológica-psiquiátrica-naturalista é a visão dominante, quer nas versões fundadoras, quer nas mais recentes versões que vencem o modelo das neurociências, a 2.ª psiquiatria biológica (Martins, 2023, pp. 85 e ss.).

Aliás, por se tratar de uma problemática central para a pesquisa, o autor dedica todo o segundo capítulo (Martins, 2023, pp. 85-105) a quatro enfoques da construção do objeto de conhecimento doença mental: 1) as formulações disciplinares: psiquiatria, psicanálise, medicina, psicologia, neurociências e ciências sociais, com realce para o diálogo interpelador entre a abordagem sociológica e as outras disciplinas; 2) as perspetivas sociológicas sobre as doenças mentais; 3) as “designações definidoras” e 4) as “definições designadoras” da doença mental. O segundo capítulo do livro é, a este respeito, deveras estruturador, quer na construção do objeto da pesquisa, quer na sua fundamentação. Recomenda-se a sua leitura atenta, já que a profusão de referências robustecem a análise, suportada, assim como a discussão e a tomada de posição do investigador. Um autêntico estado da arte que extrapola a dimensão e o fito da presente recensão: apresentar, de forma concisa, a nossa leitura do percurso argumentativo e processual do livro As Noites e os Dias. Como se vive com a doença bipolar.

Doença bipolar

Após a desconstrução de perspetivas como estratégia analítica de legitimar para a problematização da bipolaridade como doença crónica, passa-se então, ainda no primeiro capítulo do livro, à terceira dimensão de análise (Martins, 2023, pp. 37-81), especificamente dedicada às caraterísticas da própria perturbação bipolar - doença com uma longa história, com diversos nomes”. Da complexidade e completude da análise destaquem-se duas opções centrais do posicionamento do autor quanto à concetualização da bipolaridade como doença:

  1. considerar a diversidade dos tipos de experiência social da doença, quer quanto à manifestação, como quanto ao tipo de evolução temporal, e até à relação de comorbilidade - donde decorre a diferenciação de formas clínicas dos distúrbios bipolares;

  2. multiplicar a análise sociológica deste objeto, de forma a complementar e robustecer os poucos estudos e ainda assim parcelares sobre as experiências sociais dos indivíduos diagnosticados com doença bipolar, dominantemente centrados nas questões do autoconceito (...) [e nas] relações com a família, grupos de pares e outros íntimos. (Martins, 2023, p. 45).

Fazendo uma abordagem muitíssimo interessante e exaustiva destes estudos, o autor mostra-nos a centralidade do enfoque do habitus [Martins, 2023, pp. 51-53, 74 e ss.), o que o leva a atentar nos estudos de genealogia. Discutindo as teses da hereditariedade biológica - quer quanto a estudos de gémeos e estudos de adoção -, Garrucho Martins reforça, assim, a perspetiva fenomenológica.

Mas o autor também explicita como é fundamental a análise das redes sociais - que explana nas suas vertentes analíticas estruturais -, agora operacionalizadas à vivência da bipolaridade enquanto recursos de apoio, e enquanto garante ético e mundos de requalificação da identidade estilhaçada e estigmatizada dos doentes vivenciando a bipolaridade (Martins, 2023, pp. 55 e ss.).

O sociólogo toma, depois, para o centro da reflexão os medicamentos psicotrópicos, esse remédio parasitado por um veneno (Martins, 2023, p. 70) - e a prescrição médica como um dos outros significativos, na interação com os doentes mentais. (Martins, 2023, pp. 64 e ss.).

Duas analogias nos apresentam ao abordar a ambivalência da relação com os medicamentos: a relação com os medicamentos pode desenvolver-se como uma conversão religiosa ou como um casamento:

A conversão aos medicamentos é uma das dimensões da conversão à perspetiva médica (...) submissão à versão médica da doença (...) conseguida através dum processo de socialização, que utiliza um trabalho pedagógico e que tem como efeitos uma transformação da identidade. (Martins, 2023, p. 65).

Por isso o autor não escamoteia, como na religião e no casamento, a multidão de desencantados, quer dizer, os doentes que resistem a aderir aos medicamentos ou os doentes que tomam mais medicação do que a prescrita.

A esta dimensão analítica ainda se associam as categorias do diagnóstico médico (Martins, 2023, pp. 72 e ss.) - e a aceitação deste, ou não, pelos doentes e pela família, devido aos desconhecimentos face à doença e às representações negativas, tanto sobre o prognóstico, quanto sobre o tratamento das doenças mentais (Martins, 2023, pp. 167 e ss.). E ainda se associa outra categoria: a relação com os serviços de saúde e respetivas experiências de hospitalização compulsiva e voluntária - questionando se tal existe em absoluto (Martins, 2023, pp. 74 e ss.).

Discutindo a conceção da doença mental quer como bizarria, quer como distúrbio, o sociólogo sublinha a produção e tradução do sentido destas práticas, a saber: a tradução de problema em doença, como de distúrbio em desvio, tradução-construção do sentido em que intervêm a relação com o diagnóstico médico e com os serviços de saúde (Martins, 2023, p. 71).

Importa reparar que o diagnóstico se associa ao processo de aceitação da doença e às várias formas de conviver com aquela. Destacando diferentes estilos da normalização, o autor enfrenta a questão da normalização-dominação: Na experiência social dos doentes, pode ser mais importante a procura da normalização do que a gestão do estigma. (Martins, 2023, p. 77).

Neste sentido, com Anderton, Elfert et Lai (1989), Garrucho Martins reconhece que Normalização, desinstitucionalização e reabilitação são questões que andam interrelacionadas. (cit. inMartins, 2023, pp. 77-78).

3. Reconceptualizações e Ensinamentos: o discurso sobre as trajetórias da experiência e da vivência de bipolaridade

Estamos perante uma construção do objeto de pesquisa que, à medida que se explicita, fá-lo humanizando dignidades, desconhecimentos e preconceitos.

Mostra-nos o sociólogo que a diversidade das vivências de bipolaridade manifesta descontinuidades e ruturas biográficas a três níveis: em relação aos comportamentos que não colocavam problemas, às explicações habitualmente utilizadas e (...) à mobilização de recursos para fazer face à situação assim modificada. (Carricaburu & Ménoret, 2005, p. 117 cit. inMartins, 2023, p. 35).

A sua escolha da perspetiva da experiência social da trajetória da doença preveniu a submissão a qualquer perspetiva subjetiva e/ou psicológica (Martins, 2023, p. 29). Ao operacionalizar o conceito de experiência social objetivando três aspetos da doença - materiais, práticos e acontecimentos (Martins, 2023, p. 17) -, um dos ensinamentos desta obra é existirem “...diversas trajetórias, assim como diferentes tipos de trabalho e divisão do trabalho”, pois variam com o tipo de disrupção: permanentes, extensivas ou imprevistas (Martins, 2023, pp. 32-33).

Reconhecer as diversas tipologias de trajetória da doença passa pela aturada análise expositiva que o sociólogo faz de diferentes tipologias segundo esta perspetiva metodológica, nomeadamente tipologias de oito ou quatro fases (Martins, 2023, pp. 31 e ss.). Logo, ao variar a duração das ruturas e das crises, variam também a profundidade da mudança operada, como variam os impactos no quotidiano do doente, como nas suas relações deste com os outros e consigo mesmo (Martins, 2023, p. 36).

A diversidade das trajetórias dá o mote para se perceber que se está ante uma doença que, ao exigir um múltiplo trabalho biográfico também exige diferentes tipos de divisão do trabalho. Por um lado, exige o trabalho relacionado diretamente com a doença - tão variado como a prevenção e controlo das crises, ou o controlo dos sintomas ou, até, o trabalho relacionado com o diagnóstico. Por outro lado, exige outro trabalho biográfico, em concreto, sobre a vida quotidiana. Nesta sequência, a partir de Anselm Strauss, o sociólogo Garrucho Martins situa os diferentes tipos de trabalho mobilizados, inseridos numa divisão do trabalho, durante as diversas fases da trajetória da doença, decomponível em quatro grandes processos desenrolando-se em simultâneo, recompondo-se e relacionando-se uns com os outros: contextualizar a doença (...), pactuar com as limitações devidas à doença, reconstituir a identidade, [e] refundir a (...) biografia. (Martins, 2023, pp. 34-35). Com este enfoque, o autor abre caminho para a compreensão da bipolaridade, enquanto doença crónica, como causadora de três níveis de ruturas biográficas, a saber: i) face aos comportamentos que não colocavam problemas, ii) face às explicações comuns e iii) face aos recursos a mobilizar para enfrentar a(s) situação(ões) mudada(s) (Martins, 2023, p. 35).

Deixando ao leitor a apreciação das precisas, aturadas e interessantíssimas análises e desconstruções das 40 páginas do primeiro capítulo da II Parte da obra, ao longo das quais Garrucho Martins se centra em analisar os discursos escritos das fontes acima apresentadas (ver também pp. 251-254), foquemo-nos, agora, nas 60 páginas de análise das entrevistas feitas pelo investigador (segundo capítulo da II Parte), nesta que deve ser uma seletiva mas justa apresentação do livro em apreciação.

Desde logo, realçam-se as reconversões do sentido expressas pelos entrevistados quanto às manifestações da doença bipolar, desde o entendimento inicial de que se trataria de uma questão de personalidade e/ou de carácter; passando pela leitura como traços de carácter/personalidade. (Martins, 2023, pp. 185 e ss.).

Neste moroso e não linear processo até ao reconhecimento e interpretação do problema como doença - em que é central a dimensão moral -, o diagnóstico afigura-se como fator legitimador. Reconheça-se, então, que A socialização na e com a doença é um processo longo que é feito de negociações e de conflitos. (Martins, 2023, p. 186).

Tais morosidade e diferenciada reconversão de sentido associam-se intimamente ao facto de a manifestação da doença fazer uma irrupção abrupta na biografia dos indivíduos, ou seja, ocorrer como uma crise nas relações com os outros e consigo, e com transformações nas perspetivas da realidade, nem sempre fáceis de aceitar (Martins, 2023, pp. 187, 190).

Aprende-se também, com este estudo, que, à semelhança do que ocorre com vivências sociais menos intrusivas, o desconhecimento da doença mental marca a visão negativa do prognóstico e do tratamento, aprofundando as representações negativas a seu respeito (Martins, 2023, p. 190).

Um dos territórios que a doença perturba fortemente é o da vida e da continuidade da carreira e das relações nos contextos escolares, embora para alguns doentes não seja fácil determinar a existência duma relação de causalidade unívoca entre a doença e as intermitências e ruturas nos percursos escolares. Vale a pena ver como Garrucho Martins esmiúça fatores importantes nesta perturbação - evidenciados pela sua amostra -, a saber: diagnóstico versus expectativas e projetos parentais (Martins, 2023, pp. 191-196, 254-255).

Também os territórios laborais são afetados pela doença, como as palavras do autor expressam: nos doentes, por nós inquiridos, as dificuldades e as ruturas que os doentes bipolares encontram no universo escolar, vão estar também presentes no mundo profissional. (Martins, 2023, p. 195). Falando da intermitência nas inserções profissionais, o sociólogo revela como, para alguns doentes, ocultar o diagnóstico no local de trabalho é a estratégia a que recorrem para minorar ou adiar essa rutura (Martins, 2023, pp. 196-204).

A própria família também figura como território de ruturas e de reforço do sofrimento individual dos doentes: é o falhanço na relação entre irmãos, o afastamento de cônjuges ou pais e, no lastro destas expectativas não cumpridas, as visões encantadas da família perfeita (Martins, 2023, pp. 205 e ss., 255).

Salienta-se, a par, a complexidade das reações familiares: a doença pode levar a uma aproximação e cuidados continuados; por isso vale a pena atentar na diversidade das situações que o investigador identifica nos discursos dos seus entrevistados quanto a vivências de divórcio ou de casais bipolares; como quanto à relação com os filhos ou com os pais. Trata-se da relação distinta entre recursos e cuidados familiares, mediados pelas expectativas estereotipadas e visões encantadas da família ocidental (Martins, 2023, pp. 206-207, 213-214).

À precaridade laboral, aos julgamentos infundados e ao(s) afastamento(s) do(s) outro(s) - de colegas, como de meros conhecidos, ou dos próprios familiares - acrescenta-se outra situação também perturbadora e dolorosa: a ‘saída’ pela reforma antecipada por invalidez, esse eterno presente, cada vez mais solitário, desinvestindo do futuro: os doentes da nossa amostra referem a importância, tanto positiva como negativa, dos colegas de trabalho e das relações de poder nas organizações laborais (Martins, 2023, p. 200).

Restam, face a esse isolamento social, a dádiva, a disponibilidade e a compreensão que se buscam (ou se perdem) nos verdadeiros amigos (Martins, 2023, pp. 216-229, 255), dado que, como Garrucho Martins captou ao longo das entrevistas da sua amostra, para os doentes a doença é um teste à qualidade das relações de amizade. Quando estas amizades não subsistem nem resistem, os doentes são forçados a uma espécie de ressocialização de que resulta a retração social (Martins, 2023, p. 217), se bem que haja diferenças consoante as fases da doença. Com efeito, se o referido é válido para a fase da depressão, já na fase de hipomania e de mania, as manifestações da doença (...) podem ser recursos importantes na rentabilização da apresentação e representação de si (Martins, 2023, pp. 222-223).

Pelo que, também em relação aos amigos se coloca a questão de revelar-lhes, ou não o diagnóstico, ou seja, na linha dos ensinamentos de Goffman, o doente decide se tenta manter-se como desacreditável ou se se assume como desacreditado (Martins, 2023, pp. 219 e ss.). Também nestas vivências há diversidade e nuances, até quanto há diferença entre os amigos que têm conhecimento daquilo em que consiste a bipolaridade e os que desconhecem em absoluto a doença; os primeiros são de mais fácil e continuada relação, pois são uma espécie de ‘iniciados’ na coisa (Martins, 2023, pp. 225 e ss.).

Do exposto também se percebe que os doentes bipolares extrapolem as expectativas e emoções face aos amigos (Martins, 2023, pp. 226-229), entrando em estados de confusão relacional que mesclam amizades e relações amorosas, uma vez que os parceiros são importantes recursos emotivos, afetivos e instrumentais (Martins, 2023, p. 228).

No que respeita à relação com medicamentos e a sua inevitável ação normativa, a pesquisa evidencia tratar-se de uma relação intermitente, uma vez que oscila entre a descrença e a conversão a relação com as substâncias psicotrópicas, centrais na experiência da bipolaridade. Tal oscilação ou intermitência comportamental - as continuidades e as ruturas (Martins, 2023, pp. 229-236, 255-256) - deve-se a várias razões (...): experimentalismo terapêutico, efeitos secundários e perceção subjetiva de que se anda “drogado” (Martins, 2023, p. 255). A omnipresença dos referidos medicamentos é, contudo, denegada pelos doentes através de uma autocensura que se infligem, imputável, segundo o sociólogo, quer à familiaridade e rotina quotidiana da medicação e à respetiva apropriação simbólica fatalista, quer, aventa ainda, às fases da trajetória da doença que pressupõem diferentes frequências e dosagens das tomas. As mesmas fases da trajetória também perturbam e alteram a aceitação - a conversão - aos medicamentos e seus impactos identitários e na rotina quotidiana (Martins, 2023, pp. 229 e ss.).

A investigação permite retirar ilações quanto a essa experiência quase fatal do internamento: as representações negativas decorrem, sobretudo, do seu carácter compulsivo - similar a uma cerimónia de mortificação -, como da inerente assimetria de poder e restrição da autonomia, tão motivada, como vimos, pelos Guias e orientações relacionais e terapêuticas (Martins, 2023, p. 256).

Realça Garrucho Martins que estas representações negativas dos doentes entrevistados convergem com resultados de outros estudos. Na verdade, estudos evidenciam similares representações na população em geral que não teve qualquer relação direta com o hospital e o internamento, até porque parece haverem relações diretas entre estas experiências de internamentos e as representações negativas anteriores a qualquer internamento (Martins, 2023, p. 237).

Relativamente aos profissionais de saúde, a análise feita aos discursos deteta uma linha entre polos antagónicos, ao longo da qual são reportadas vivências oscilando entre vinculação - no caso em que o bom médico é identificado ou idealizado como alma gémea e, no outro extremo o desprendimento (Martins, 2023, pp. 243-250, 256-257). Como critérios para esta polarização categorial, o sociólogo destaca três: o rigor no diagnóstico, a eficácia na terapia medicamentosa e as competências relacionais para compreender e acolher o doente.

4. Nota final: da centralidade da Sociologia para compreender como se vive...

A fechar a nossa abordagem da obra de Garrucho Martins que nos ajuda a aprender sobre Como se vive com a doença bipolar, emerge uma questão: Quem, de entre os leitores, nunca teve oscilações de humor, involuntárias ou decorrentes de causas externas?

A fechar a nossa abordagem desta obra que nos ajuda a aprender sobre Como se vive com a doença bipolar emerge, como central, o fundamento da seguinte interpelação legítima: Talvez começar por reconhecer que “a mudança é inerente a todo o ser humano” seja um passo para se poder e se conseguir acolher, aceitando, os seres humanos cujas mudanças são mais abruptas, imprevisíveis, drásticas e, sobretudo, independentes da mera vontade individual, sempre contextualizadas em situações e acionando laços sociais.

A ser assim, a Sociologia continua a ter uma tarefa informativa e formativa determinante, pois cabe-lhe continuar a evidenciar a diversidade e multidimensionalidade da nossa vida quotidiana e dos contextos onde se inserem, quer as pessoas portadoras de doença - crónica, ou não, bipolar, ou não -; quer as pessoas não portadoras de doença: em suma, todas as diferentes e diversificadas vivências e condições socioculturais, porque humanas.

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Martins, José Garrucho. (2023). As Noites e os Dias. Como se vive com a doença bipolar. Porto: Estratégias Criativas. [ Links ]

Recebido: 21 de Maio de 2023; Aceito: 20 de Junho de 2023

Correspondence: Maria de Fátima C. Toscano - toscano@ismt.pt

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