Introdução
Os carcinomas pavimento-celulares da orofaringe têm uma incidência global de 98412 (2020)1, tendo a incidência na Europa aumentado nos últimos anos2. O consumo de tabaco, álcool e a infecção por HPV são fatores de risco estabelecidos. As opções de tratamento incluem cirurgia, radioterapia e quimioterapia, sendo que o estadiamento do tumor, a sua localização e a performance status do doente contribuem para a escolha do esquema terapêutico a aplicar. Estudos recentes revelaram que a quimioterapia e radioterapia causam morbilidade significativa como disfagia, osteoradionecrose e estenose faríngea, podendo estar associada a taxas de mortalidade mais elevadas. 3,4
Por outro lado, a evolução das técnicas cirúrgicas, com a utilização de laser CO2, cirurgia robótica e a possibilidade de realização de retalhos livres permitiu reduzir a morbi-mortalidade cirúrgica, obtendo-se resultados oncológicos com melhoria da sobrevida em determinados casos.5
Relativamente ao prognóstico dos doentes, um estudo dinamarquês demonstrou uma taxa de sobrevivência associada a tumores da orofaringe inferior a 50% aos 5 anos6. Por outro lado, verificou-se uma TS a 5 anos de 42,2% no caso de uma análise referente à realidade americana entre os anos de 2002 e 2006 7) . Atualmente e, de acordo com os dados publicados pela sociedade americana de oncologia, a TS a 5 anos no caso de carcinomas da orofaringe é de aproximadamente 50%.
Quanto aos fatores com impacto na sobrevivência dos doentes, os resultados revelaram-se heterogéneos. De acordo com um estudo publicado por Moro et al. fatores como a idade, o género, a etnicidade e o grau histológico não influenciam a sobrevida dos doentes.8 No entanto, é também possível encontrar artigos que demonstram que o género masculino, a topografia específica da lesão e o estadio do tumor são fatores de prognóstico independentes e negativos.9,10 França et al. identificaram como fatores de mau prognóstico, tumores em estadio III/IV, status p-16 negativo e um intervalo de tempo entre o diagnóstico e o início dos tratamentos superior a 4 semanas.11
No caso específico de tumores avançados da orofaringe (T4a), Psychogios et al. verificaram que a metastização cervical, a invasão perinodal e um status HPV negativo estiveram associados a taxas de sobrevivência mais baixas. 12 Para além disto, foi possível aferir que no caso de doentes com diagnóstico de CPC avançado da orofaringe, o tratamento cirúrgico primário esteve associado a melhores resultados em termos de sobrevivência. (12
Neste trabalho pretendeu-se fazer um estudo demográfico da população diagnosticada com carcinoma da orofaringe entre 2009 e 2019 na Ilha da Madeira. Para além disto, foi ainda realizada uma análise da sobrevivência, tendo sido investigado o impacto das diferentes variáveis clínicas no prognóstico destes doentes.
Material e Métodos
Através da consulta dos processos clínicos foi realizada a revisão dos casos de carcinoma pavimento-celular (CPC) da orofaringe diagnosticados e tratados no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Central do Funchal, entre 2009 e 2019. Um total de 180 doentes com tumores primários da orofaringe foram incluídos no estudo. O tempo de follow-up destes doentes foi em média 18 meses, sendo que no caso de doentes com follow-up incompleto foi consultado o seu processo clínico de forma a perceber o seu status (vivo ou morto).
Foram analisadas as seguintes variáveis: tempo de follow-up, idade no momento do diagnóstico, sexo, hábitos de consumo, topografia da lesão, extensão da doença (local/regional ou metastática), grau de diferenciação histológica do tumor, estadiamento (I, II, III, IV) e esquema de tratamento utilizado (quimioterapia, radioterapia e/ou cirurgia). Relativamente aos hábitos alcoólicos preconizou-se que, doentes que consumissem mais de 2 unidades de bebida por dia tinham hábitos positivos. No âmbito dos hábitos tabágicos, foi considerada a definição de fumador da OMS: “qualquer adulto que tenha fumado pelo menos 100 cigarros na sua vida e que mantenha hábitos diários”.
O estadiamento foi efetuado de acordo com as guidelines da American Joint Comittee on Cancer (AJCC). Tendo em conta os anos a que se refere o estudo não foi possível aferir o status HPV na larga maioria dos doentes, sendo que os que foram testados eram negativos. Isto impossibilitou ter em conta esta variável.
Foram excluídos deste estudo doentes com tumores síncronos ou com registos incompletos. Os doentes paliativos (n=24) foram incluídos no estudo demográfico, mas excluídos da análise da sobrevivência.
Os dados categóricos foram analisados usando o teste chi-quadrado. As curvas de sobrevivência foram estimadas usando o método de Kaplan-Meier. O modelo de regressão da Cox foi aplicado para avaliar o efeito das variáveis clínicas na sobrevivência (idade, género, consumo de álcool e tabaco, localização tumoral, estadio e tipo de tratamento). A análise estatística dos dados foi realizada com recurso ao programa Statistical Packages for the Social Sciences (SPSS) software-versão 25.0 (IBM Corporate, Armonk, NY, USA). P-value inferior a 0,05 corresponde a um resultado estatisticamente significativo.
Resultados
No período compreendido entre 2009 e 2019 foram diagnosticados 449 casos de patologia oncológica do foro ORL, no Hospital Central do Funchal, sendo a prevalência de CPC da orofaringe 40% (n=180). A mediana do tempo de follow-up foi 11 meses e a média foi aproximadamente, 18 meses. Identificaram-se 180 doentes com CPC primário da orofaringe. Destes, 91% eram homens (n=164) e 9% mulheres (n=16), perfazendo uma relação masculino/feminino de aproximadamente 10,3:1. Verificou se que a média de idade dos doentes foi 57, 44 +/- 10,44 anos. Relativamente aos hábitos que constituem fatores de risco, verificou-se que a maioria dos doentes (76,6%, n=138) apresentavam algum tipo de consumo: 38,3% (n=69) dos doentes apresentavam consumo alcoólico e tabágico concomitante, 29,4% (n=53) tinham hábitos tabágicos exclusivos e 8,9% tinham hábitos alcoólicos isolados. Apenas 12,8% dos doentes (n=23) não fumavam nem bebiam. Em termos de topografia tumoral, aferiu-se que a localização mais comum era a amígdala (52,2%, n=94) seguida pela base da língua (33,9%, n=61). Em 4,4% (n=8) das situações, o tumor localizava-se na parede lateral da orofaringe e em 2,2% (n=4) no palato mole. Salienta-se que em cerca de 7% (n=12) dos casos não existia uma especificação da localização na orofaringe.
A maioria dos tumores eram moderadamente diferenciados (69,4%, n=125), sendo bem diferenciados em 6,1% (n=11) dos casos, pouco diferenciados em 14,4% (n=26) e indiferenciados em apenas 1,1%(n=2) das situações. Quanto à extensão da doença, 91,1% (n=164) dos casos corresponderam a doença local ou loco-regional, sendo que apenas 7,8% (n=14) dos doentes apresentaram doença metastática. No âmbito do estadiamento, verificou-se que 53,9% (n=97) dos doentes se encontravam em estádio IVa, 11,1%(n=20) em estádio IVb e 6,7%(n=12) em estadio IVc. O estadio III correspondeu a 16,7% (n=30) dos casos. Apenas uma minoria dos doentes foram diagnosticados em estadio I e II ( 5% em cada situação).
86,7% (n=156) dos doentes foram tratados com intuito curativo. O esquema de tratamento mais usado foi a quimioterapia associada a radioterapia (49,4%, n=89), seguido de cirurgia com quimioradioterapia adjuvante (QRT, 12,2%, n=22). 11,7% dos doentes foram submetidos a tratamento paliativo (n=21).
Dos 180 doentes com diagnóstico de CPC da orofaringe, 24 foram excluídos da análise da sobrevivência por se tratarem de doentes paliativos (n=21) ou apresentarem registos clínicos incompletos (n=3).
Na análise univariável, verificou-se que o sexo (p=0,609), a idade (p=0,146), os hábitos tabágicos e/ou etanólicos (p=0,269),a topografia/localização da lesão (p=0,309), o grau de diferenciação histológica (p=0,116) e a extensão da doença (p=0,147) não tiveram impacto na sobrevivência deste grupo de doentes. Assim sendo, as únicas variáveis com impacto estatisticamente significativo no prognóstico dos doentes foram o estadiamento (p=0,018) e o tipo de tratamento (p<0,0001). Os doentes em estadio I apresentaram uma TS global a 5 anos de 56,3% enquanto que os doentes em estadio IV (IVa, IVb, IVc) tiveram TS mais baixas (30,6%).
A cirurgia isolada teve uma TS global de 46,7% seguida pela cirurgia associada a radioterapia (37,5%) e pela quimioradioterapia. (15,4%).
Para análise mais detalhada, o tipo de tratamento foi dividido em 2 categorias: tratamento médico isolado (quimioterapia, radioterapia, quimioradioterapia) e tratamento cirúrgico isolado ou associado a terapêutica adjuvante (cirurgia + quimioradioterapia, cirurgia + radioterapia, cirurgia). O tipo de tratamento foi então ajustado ao estadiamento.
No estadio I, a principal estratégia de tratamento foi a cirurgia isolada ou associada a terapêutica adjuvante (n=5, 62,5%) enquanto que no estadio II (n=5, 55,5%), III (n=18, 66,7%) e IV (n=90, 81,82%) o tratamento médico exclusivo foi mais frequente.
Dos 90 doentes em estadio IV, submetidos apenas a tratamento médico, 65 doentes realizaram quimioradioterapia, 10 radioterapia e em 15 casos os doentes foram submetidos a quimioterapia de indução. Os doentes submetidos a quimioterapia de indução, faleceram durante ou imediatamente após este tratamento, não tendo prosseguido com o esquema terapêutico inicialmente proposto.
Por outro lado, os doentes, em estadio IV, que integraram o grupo do tratamento cirúrgico +/- terapêutica adjuvante (n=20) foram submetidos a cirurgia associada a quimioradioterapia em 85% (n=17) dos casos e a cirurgia isolada em 15% (n=3) das situações.
Tabela 1 Distribuição dos esquemas de tratamento de acordo com o estadio da doença
Estadiamento | Cirurgia+/- tratamento médico | Tratamento médico | |||
---|---|---|---|---|---|
N | N% | N | N% | ||
I | Total | 5 | 13,2% | 3 | 2,6% |
C+RT | 2 | 5,28% | - | - | |
C | 3 | 7,92% | - | - | |
Rad | - | 3 | 2,6% | ||
II | Total | 4 | 10,5% | 5 | 4,3% |
C+RT | 2 | 5,25% | - | - | |
C | 2 | 5,25% | - | - | |
QRT | - | - | 5 | 4,3% | |
III | Total | 9 | 23,7% | 18 | 15,4% |
C+QRT | 5 | 13,17% | - | - | |
C+RT | 3 | 7,90% | - | - | |
C | 1 | 2,63% | - | - | |
QRT | - | - | 15 | 12,83% | |
RT | - | - | 3 | 2,57% | |
IV | Total | 20 | 52,6% | 90 | 76,9% |
C+QRT | 17 | 44,71% | - | - | |
C | 3 | 7,89% | - | - | |
QTi | - | - | 15 | 12,82% | |
QRT | - | - | 65 | 55,54% | |
RT | - | - | 10 | 8,54% |
A análise da sobrevivência mostrou que não houve diferenças estatisticamente significativas na sobrevida dos doentes submetidos a tratamento médico exclusivo versus tratamento cirúrgico (associado ou não a tratamento adjuvante) no estadio I, II e III.
Contudo, no caso do estadio IV verificou-se uma taxa de sobrevivência superior nos doentes submetidos a tratamento cirúrgico +/- tratamento adjuvante (p=0,021).

Figura 3 Curvas de Sobrevivência (Método de Kaplan-Meier) correspondentes aos esquemas de tratamento ajustados ao estadiamento (I,II, III e IV )
Entre todas as variáveis incluídas no modelo de regressão de Cox, o tipo de tratamento foi a única variável com impacto no prognóstico dos doentes: doentes submetidos a tratamento cirúrgico associado ou não a tratamento médico adjuvante tinham um risco de morte 1,85x menor que doentes submetidos a tratamento médico exclusivo, (IC 95% [1.12, 3.07]; p=0,017).
Discussão
A incidência do CPC da orofaringe tem vindo a aumentar de forma gradual. Por isso, os esquemas de tratamento têm sido cada vez mais debatidos.
Para além disso, os fatores com impacto na sobrevivência dos doentes são variáveis entre os vários estudos publicados. No entanto, o status HPV, o estadio do tumor e o esquema de tratamento mantêm-se como variáveis com efeito prognóstico na maioria deles.
Neste trabalho, à semelhança do que acontece noutros trabalhos publicados8,13,14, o género não constituiu um fator com impacto estatisticamente significativo na sobrevida dos doentes, embora se possa verificar uma tendência para uma melhor sobrevida associada ao género feminino. Também o grupo etário não influenciou a taxa de sobrevivência, seguindo a tendência evidenciada nalguns estudos. Contrariamente, Kowalski et al. e Wagner et al. mostraram taxas de sobrevivência mais elevadas associadas a doentes mais novos, <50anos e < 60 anos, respetivamente.
Adicionalmente, a localização tumoral e o grau de diferenciação histológica não foram considerados fatores de prognóstico com importância estatisticamente significativa. Este achado corrobora os resultados de Moro et al. , Schneider et al. e Psychogios et al. (8,12,14 mas diverge dos apresentados por Tham et al. 15, que demonstraram que tumores da orofaringe com uma localização não amigdalina e graus de diferenciação histológica mais baixos estavam associados a uma taxa de sobrevivência inferior.
No âmbito dos hábitos de consumo, embora exista referência na literatura, a um aumento diretamente proporcional entre a exposição a tabaco (antes e durante os tratamentos) e o risco de progressão da doença e a morte16, não foi possível corroborar esta associação neste artigo.
Um dos fatores com influência no prognóstico dos doentes é o status HPV. Neste trabalho, que abrange os anos 2009-2019, a maioria dos doentes não foi testada para o vírus HPV e a minoria testada era negativa. Consequentemente, não foi possível realizar uma análise a este nível, o que constituiu uma limitação do trabalho.
Entre todas as variáveis analisadas, apenas o estadiamento e o tipo de tratamento tiveram impacto no prognóstico dos doentes. Assim sendo, os doentes em estadios mais avançados (estádio IV), correspondentes à a maioria da amostra (71,7%), apresentaram taxas de sobrevivências mais baixas (30,6%) comparativamente ao estadio I (56,3%). Embora tal fosse expectável, ambos os valores são inferiores aos evidenciados na maioria da literatura. Para tal pode ter contribuído, o fato de não terem sido consideradas, neste estudo, as comorbilidades dos doentes e, consequentemente, a sua performance status. Adicionalmente, foi calculada apenas a taxa de sobrevivência global e não a taxa de sobrevivência específica da doença.
No âmbito do tipo de tratamento selecionado, apenas no dia estadio IV se verificou uma diferença significativa entre tratamento cirúrgico +/- tratamento adjuvante e o tratamento médico isolado: A taxa de sobrevivência foi superior nos doentes submetidos a tratamento cirúrgico +/- tratamento adjuvante (p=0,021). Neste caso, a maioria dos doentes incluídos no grupo cirúrgico +/- tratamento adjuvante foram submetidos a cirurgia associada quimioradioterapia adjuvante. Por outro lado, salienta-se que os 15 doentes submetidos a quimioterapia de indução (QTi) foram incluídos no grupo de tratamento médico, independentemente do esquema terapêutico a aplicar a seguir. Contudo, todos estes doentes faleceram na sequência da realização da QTi não prosseguindo o regime de tratamento previamente decidido. A inclusão neste grupo pode ser discutível e, eventualmente, considerada um viés na comparação dos grupos de tratamento.
A análise multivariável revelou que os doentes do grupo primariamente cirúrgico apresentavam uma TS global superior. Este resultado coincide com os resultados publicados por Park et al. (17 que incluiu no seu estudo apenas doentes com CPC da orofaringe, HPV negativos ou não testados, à semelhança da amostra deste artigo. Eles demonstraram então, que a cirurgia reduziu a probabilidade de morte em 46% e de recorrência de doença em 41%.
Adicionalmente, um trabalho publicado por Psychogios et al. comparou a taxa de sobrevivência específica da doença, em doentes com CPC da orofaringe em estadio IVa, submetidos a tratamento cirúrgico primário ou a tratamento médico primário. Os resultados revelaram que os doentes do grupo cirúrgico apresentavam uma taxa de sobrevivência específica da doença mais elevada (52.7% versus 31.4% 𝑃=0.001).
Por outro lado, existem autores que não encontraram diferenças significativas entre os resultados dos grupos de tratamento. É o caso de Song et al. (18 que analisaram uma amostra constituída por 586 doentes, dos quais 419 eram doentes com CPC da orofaringe em estadio IVa. Não foram encontradas diferenças entre o prognóstico dos doentes tratados com cirurgia associada a radioterapia adjuvante e os tratados com quimioradioterapia.
Conclusão
Este trabalho permitiu não só realizar uma análise demográfica, mas também avaliar as variáveis com impacto na sobrevida dos doentes diagnosticados com carcinoma pavimento-celular da orofaringe, no Hospital Central do Funchal, entre 2009 e 2019.
O estadiamento e o tipo de tratamento revelaram-se fatores de prognóstico significativo.
A maioria dos doentes da amostra foram diagnosticados em estadio avançado, sendo que, como expectável, doentes em estadios menos avançados apresentaram melhor sobrevida. Isto reforça a importância do diagnóstico precoce, podendo a criação e implementação de programas de vigilância ser uma forma de melhorar esta realidade.
Para além disto, verificou-se que os doentes, em estadios avançados, submetidos a tratamento cirúrgico associado a tratamento médico adjuvante obtiveram uma taxa de sobrevivência superior aos doentes que foram submetidos a tratamento médico exclusivo. Desta forma, destaca-se o papel da cirurgia no tratamento dos carcinomas pavimento-celulares da orofaringe, sempre que exequível.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.