Introdução
A infeção por Citomegalovirus (CMV) é a infeção congénita mais comum e a principal causa de surdez neurossensorial não genética no recém-nascido (RN), apresentando uma incidência de 0,6-0,7% a nível dos países desenvolvidos1 e 0,2-2,5% a nível mundial5. Em Portugal, a prevalência estimada é de 1,05%. No entanto, não existe um rastreio para CMV universal ou associado ao Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU), pelo que o diagnóstico acontece após achado incidental de seroconversão materna ou em caso de doença sintomática do RN, como referido por Sousa2.
A transmissão vertical pode ocorrer durante a gravidez por infeção materna primária ou secundária, que pode ser resultante de uma reativação de uma infeção latente ou de uma reinfeção por uma nova estirpe de CMV numa mulher com anticorpos contra CMV3. Numa meta-análise de 2007, Kenneson e Cannon encontraram taxas de transmissão vertical de 32% e 1,4% para infeção materna primária e secundária, respetivamente6. Existe maior risco de transmissão e maior probabilidade de doença grave quando a infeção ocorre no período peri-concepcional ou durante o 1º trimestre da gravidez e no caso de infeção primária.
As manifestações clínicas à nascença podem ir desde infeção assintomática até doença multiorgânica potencialmente fatal. Apenas 10% dos RN com infeção congénita por CMV são sintomáticos à nascença, podendo apresentar atraso no crescimento, microcefalia, rash petequial, microcalcificações cerebrais, hepatoesplenomegalia, retinite, trombocitopenia ou hepatite, entre outros. Cerca de metade dos RN sintomáticos terão sequelas a longo prazo.
A maioria dos RN (cerca de 90%) são assintomáticos à nascença. No entanto, cerca de 10-15% dos recém-nascidos assintomáticos apresentarão sequelas a longo prazo, sendo a surdez neurossensorial a mais frequente1. A prevalência da surdez neurossensorial é estimada em 30-65% em sintomáticos e 7-15% em assintomáticos. O início e a evolução da hipoacusia são altamente imprevisíveis4. Esta pode manifestar-se à nascença ou desenvolver-se ao longo de anos, sendo responsável por 25% dos casos de surdez em crianças de 4 anos2.
Na infeção congénita sintomática, está indicado o tratamento com Ganciclovir ou Valganciclovir, sendo o último mais utilizado pelo menor risco de efeitos adversos e por ser possível administração por via oral. O tratamento com um destes antivirais está associado a um melhor desempenho nos exames auditivos a longo prazo10. O Valganciclovir é recomendado na dose de 16mg/Kg/toma, duas vezes por dia, por um período mínimo de 6 semanas. Os efeitos adversos deste fármaco incluem neutropenia, anemia, trombocitopenia e, mais raramente, elevação das enzimas hepáticas, creatinina e ureia.
O objetivo deste trabalho é estudar a prevalência de hipoacusia em crianças com diagnóstico de infeção congénita por CMV, assim como perceber se a sintomatologia à nascença, o tipo de infeção materna e o tratamento neonatal com valganciclovir poderão ter influência nesta doença.
Material e Métodos
Os autores relatam um estudo retrospetivo realizado no Hospital da Senhora da Oliveira Guimarães. Os dados foram obtidos através da consulta dos processos informatizados de crianças com diagnóstico de CMV congénito, observadas na consulta de Surdez Infantil, entre 2017 e 2022.
O diagnóstico foi realizado através da pesquisa de ADN viral via Polymerase Chain Reaction (PCR) urinário. Foi considerado como infeção congénita por CMV qualquer RN com ≤14 dias de vida e teste urinário positivo.
As crianças com diagnóstico de infeção congénita por CMV foram referenciadas para a consulta de Surdez Infantil. A avaliação auditiva foi realizada entre os 2 meses e os 2 anos de idade, através de potenciais evocados auditivos do tronco cerebral (PEATC). Nos casos em que foi realizada mais que uma avaliação auditiva, a mais recente foi utilizada.
Considerou-se doença sintomática se o RN apresentava pelo menos um dos seguintes achados nas primeiras 2 semanas de vida, nomeadamente microcefalia, rash petequial, microcalcificações cerebrais, hepatoesplenomegalia, retinite, trombocitopenia ou hepatite.
O tipo de infeção materna (primária ou secundária) foi avaliado através da pesquisa serológica de IgM, IgG e avidez de IgG para CMV.
O estudo estatístico foi realizado através do software IBM SPSS Statistics v. 28.0.1.0.
Resultados
Foram incluídas no estudo 22 crianças, 10 do sexo masculino (45,5%) e 12 do sexo feminino (54,5%), com uma idade média de 2,7±1,4 anos.
Documentaram-se 11 casos de hipoacusia unilateral ligeira (50%), não se tendo verificado casos de hipoacusia bilateral. A prevalência de hipoacusia foi de 50% globalmente, 58,8% em doentes sintomáticos e de 20% em doentes assintomáticos (Tabela 1).
Dezassete crianças (77,3%) foram diagnosticadas com doença sintomática, 6 por apresentaram microcalcificações na ecografia transfontanelar, 4 por microcefalia, 3 por trombocitopenia, 3 por icterícia persistente e 1 por hepatoesplenomegalia.
O tipo de infeção materna foi determinado em 20 casos, sendo primária em 12 casos (60%) e secundária em 8 (40%). Relativamente às crianças com hipoacusia, 8 (72,7%) foram infetadas na sequência de uma infeção materna primária e 3 (27,3%) após infeção materna secundária. Oito das 12 (66,6%) crianças nascidas de mãe com infeção primária e 3 das 8 (37,5%) crianças nascidas de mãe com infeção secundária apresentaram hipoacusia.
Doze das 22 crianças (54,5%) realizaram tratamento antiviral com valganciclovir, com início no 1º mês de vida e duração mínima de 6 semanas. Cinco (41,6%) manifestaram perda auditiva posteriormente. Não se verificou uma associação estatisticamente significativa entre o tratamento com antiviral e a manifestação de hipoacusia posteriormente (p=.525, teste qui-quadrado).
Tabela 1 Distribuição relativamente a manifestação de hipoacusia, sintomatologia neonatal e tipo de infeção materna
Sintomático (n) | Não sintomático (n) | Infeção Materna Primária (n) | Infeção Materna Secundária (n) | |
Hipoacusia (n) | 10 (58,8%) | 1 (20%) | 8 (66,7%) | 3 (37,5%) |
Sem hipoacusia (n) | 7 (41,2%) | 4 (80%) | 4 (33,3%) | 5 (62,5%) |
Discussão
Uma vez que não existe rastreio para CMV em Portugal, o diagnóstico acontece principalmente após doença sintomática do RN2. Como tal, é expectável que os valores encontrados para prevalência de doença sintomática (77,3% vs 10%) e perda auditiva após infeção primária (66,6% vs 32%) e secundária (37,5% vs 1,4%) sejam superiores ao descrito na literatura, nomeadamente na meta-análise de Kenneson e Cannon6.
Foram observados 11 casos de hipoacusia, correspondendo a uma prevalência na amostra estudada de 50%, o que vai de acordo com a prevalência de 30-65% relatada em doentes sintomáticos por Riga et al. (4. A ausência de casos de hipoacusia bilateral pode ser explicada pela baixa dimensão da amostra.
Os nossos resultados vão de acordo com uma revisão sistemática realizada por Goderis et al. (5, na medida em que a prevalência de hipoacusia se verificou significativamente superior nas crianças sintomáticas.
Os dados existentes atualmente não permitem aferir com exatidão a prevalência de crianças com hipoacusia após infeção materna primária ou secundária. No entanto, os nossos resultados estão em linha com o esperado, tendo-se verificado uma maior prevalência desta sequela em crianças infetadas após infeção materna primária, tal como descrito por Goderis et al. (5 e Puhakka et al. (1.
Apesar dos resultados apresentados por Kimberlin et al. (9, o nosso estudo não demonstrou uma relação entre manifestação de hipoacusia e o tratamento com valganciclovir no período neonatal. Contudo, a baixa dimensão da amostra dificulta a obtenção de uma relação estatisticamente significativa.
O nosso estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, a sua natureza retrospetiva e a pequena dimensão da amostra. Por outro lado, um claro viés de seleção pela realização de teste apenas em crianças sintomáticas, tendo em conta a ausência de rastreio para CMV em Portugal, com uma resultante grande desproporção entre crianças sintomáticas e assintomáticas na nossa amostra. Por último, houve alguma variação natural no timing da avaliação auditiva.
O teste PCR urinário tem uma sensibilidade entre 93 e 100% e o seu preço é de cerca de 7,50€, o que o torna um teste ideal para rastreio de infeção congénita por CMV12. Chen et al. (13 compararam a relação custo/benefício entre um rastreio universal, um rastreio com uma população alvo e ausência de rastreio, concluindo que o rastreio universal seria mais eficaz, identificando um maior número de crianças em risco de sequelas, e com uma relação custo/benefício superior.
A literatura existente demonstra que o diagnóstico de infeção congénita por CMV nas primeiras 3 semanas de vida e o início do tratamento antiviral com Valganciclovir no 1º mês diminuem o risco de hipoacusia associado a esta doença, como verificado pelos estudos de Kimberlin et al. (10 e Cannon et al. (11. Segundo Mareri et al. (14, o tratamento precoce com antiviral apresenta resultados benéficos relativamente a manifestações como corioretinite, trombocitopenia e anemia e diminui também o risco de atraso do desenvolvimento neurocognitivo. Na ausência de um rastreio, a maioria das crianças assintomáticas à nascença e com risco de desenvolver hipoacusia serão diagnosticadas numa fase mais tardia. Desta forma, já não haverá benefício com o tratamento antiviral e a aquisição de linguagem e adaptação a próteses auditivas serão inferiores, com um consequente grande impacto na qualidade de vida destas crianças. Por outro lado, algumas destas terão de ser referenciadas para implantação coclear, tratamento este com um custo muito superior.
Os autores sugerem, assim, que um rastreio universal seria mais adequado devido à alta prevalência de hipoacusia de início tardio associado a crianças assintomáticas, que não seriam identificadas com um rastreio realizado apenas a RN que não passem no RANU.
De facto, a literatura apresenta múltiplos relatos de crianças assintomáticas com hipoacusia manifestada apenas na adolescência ou início da vida adulta. Como tal, é necessário destacar que o rastreio em si é insuficiente para melhorar a qualidade de vida destas crianças e que um seguimento a longo prazo e avaliações auditivas frequentes até ao início da idade adulta são essenciais para maximizar ao máximo os benefícios dos cuidados prestados.
Conclusão
A infeção congénita por CMV continua a ser uma das principais causas de surdez infantil. As crianças cuja mãe apresentou infeção primária e as crianças sintomáticas têm maior risco de desenvolver hipoacusia. A acuidade auditiva destas crianças deverá ser monitorizada a longo prazo. A implementação de um rastreio é fulcral tendo em conta a alta prevalência de hipoacusia em crianças assintomáticas.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.