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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.12  Oliveira de Azeméis ago. 2022  Epub 25-Ago-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.12.2022.e597 

Artigo Original

Exercício prático de Análise Textual Discursiva

Practical exercise in Discursive Textual Analysis

Marlúbia Corrêa de Paula1 
http://orcid.org/0000-0002-3646-8700

Gleny Terezinha Duro Guimarães2 
http://orcid.org/0000-0001-7465-1330

1Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil

2Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil


Resumo:

O objetivo deste artigo é descrever um exercício prático de Análise Textual Discursiva (ATD) mediado por computadores e internet, no período de ensino remoto emergencial, em um curso Stricto sensu de uma universidade pública no interior da Bahia, Brasil. Trata-se de uma descrição qualitativa que se insere em uma perspectiva mais ampla, exploratória, pois pretende ser parte de uma coletânea de publicações com o fim de divulgar uma estratégia de ensino para metodologias de análises textuais. O exercício utilizou como instrumento de coleta uma indagação enviada para 23 mestrandos, em duas ofertas, em diferentes semestres letivos de curso de mestrado (2020/2021). Nesse contexto, foram feitos os registros de dúvidas e percepções que emergiram na realização do exercício, o qual teve duração de um semestre para cada oferta. A justificativa desta descrição pauta-se na sugestão de uma estratégia de ensino para metodologia de análise textual discursiva. Como resultado, oferece possíveis contribuições para a pesquisa qualitativa na área educacional. Como conclusões obtidas a partir das avaliações realizadas pelos participantes na disciplina, identificou-se a aprovação do uso de exercício prático de análise textual como uma estratégia de ensino, uma vez que, a partir das leituras propostas, conectadas aos procedimentos de análise, se verifica que essa metodologia supera o uso de etapas, promovendo o aprimoramento da interpretação e formulação de argumentos por parte dos pesquisadores, que, aos poucos, se constituem como autores de suas produções textuais.

Palavras-chave: Análise Textual Discursiva; Estratégia de ensino; Formação de professores.

Abstract:

The objective of this article is to describe a practical exercise of Discursive Textual Analysis (DTA) mediated by computers and the internet, in the emergency remote teaching period, in a Stricto sensu course at a public university in the countryside of the state of Bahia, in Brazil. This qualitative description is part of a broader, exploratory, perspective, as it is intended to be part of a collection of publications to disseminate a teaching strategy for textual analysis methodologies. As a collection instrument, a question was sent to 23 master's students, in two offers, in different academic semesters of the master’s course (2020/2021). In this context, there were records of doubts and perceptions that emerged during the exercise, which lasted one semester in each offer. The justification for this description was based on the suggestion of a teaching strategy for discursive textual analysis methodology. As a result, it offers possible contributions to qualitative research in the educational area. Conclusions obtained from the participants' evaluations in the discipline identified the approval of the use of practical exercise of textual analysis as a teaching strategy, since from the proposed readings, connected to the analysis procedures, it was verified that this methodology overcomes the use of steps, promoting the improvement of interpretation and formulation of arguments by the researchers, who, little by little, constitute themselves as the authors of their textual productions.

Keywords: Discursive Textual Analysis; Teaching strategy; Teacher training.

1.Introdução

As verdades necessárias, às vezes, estão nas coisas bem diante de nós. Para isso, precisamos do estudo disciplinado do particular (STAKE, 2014, p. 198).

Este artigo tem por objetivo descrever um exercício prático de Análise Textual Discursiva (ATD) mediado por computadores e internet, no período de ensino remoto emergencial, em um curso Stricto Sensu de uma universidade pública no interior da Bahia, Brasil. Nesse exercício, a ATD foi utilizada como uma estratégia de ensino, por meio da análise de um corpus empírico. Convém ressaltar que os procedimentos que substanciaram o exercício prático de ATD realizado, por opção metodológica, foram aqueles que possibilitam a emergência de categorias. Portanto, foi adotada uma perspectiva indutiva. Contudo, as descrições que importam para a descrição neste artigo referem-se a um recorte investigativo da questão elaborada para a coleta de informações1, a ser submetida durante o exercício prático de ATD. Essa questão foi a seguinte: qual é o papel dos cursos de pós-graduação (Stricto sensu) e como eles podem contribuir para o desenvolvimento do país? Com esse interese, a realização de um procedimento prático de ATD em um curso de pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, ofertado no modo online, atendendo ao Ensino Remoto Excepcional (ERE), serviu também como forma de contornar as necessidades de distanciamento social determinadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)22, tendo em conta a ocorrência da pandemia de Covid-19. Salienta-se que o ERE (2020-2021) não é o foco deste artigo e, por isso, apenas foi mencionado em função do recorte de contexto necessário para situar o leitor. Tampouco a própria ATD será objeto de apresentações detalhadas, pois o artigo tem no seu objetivo o ato de descrever o exercício prático. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que, se a pesquisa científica é caraterizada como um conjunto de procedimentos sistemáticos com vistas a alcançar respostas para problemas que o pesquisador propõe, então, neste caso, assume-se este artigo como uma contribuição para a área educacional no que tange a aspectos metodológicos de pesquisa orientada pelo objetivo de descrever um exercício prático de ATD. Em linhas gerais, o desenho deste artigo constituiu-se metodologicamente como de natureza qualitativa, de opção exploratória. Conforme Gil (2012, p. 27), as “pesquisas exploratórias constituem a primeira etapa de uma investigação mais ampla”. Com o interesse de divulgar um exercício de análise que propiciou as reflexões acima apresentadas, este artigo está constituído por uma sequência de tópicos, tendo-se optado por não realizar uma revisão de literatura sobre a ATD, pois o uso de ATD tem sido tratado do ponto de vista teórico em diversas publicações, a exemplo de Moraes e Galiazzi (2011). Também é necessário explicitar outras opções nesta escrita, como a de não apresentar recorte das atividades, nem mesmo na apresentação das categorias identificadas como alguns dos possíveis produtos dos procedimentos adotados. Esses detalhamentos podem ser lidos em Paula (2018), pois nesta tese a ATD foi apresentada de forma didática com vários quadros para apresentar as categorias (emergentes e apriori), bem como, vários formatos de metatexto. Os tópicos deste artigo estão organizados na seguinte sequência: metodologia do exercício de análise; envolvimento dos discentes com as etapas da ATD - primeiras observações; superação do uso de etapas - primeiras compreensões sobre a fenomenologia; metatexto: dificuldades nesta produção; e considerações finais.

2.Metodologia do exercício de análise

Neste tópico, faz-se a apresentação do exercício prático de análise realizado a partir da questão investigativa, proposta com o seguinte mote: qual é o papel dos cursos de pós-graduação (Stricto sensu) e como eles podem contribuir para o desenvolvimento do país?

A indagação foi feita por meio de formulário Google, utilizado como instrumento de coleta de dados, propiciando uma função reflexiva, não percebida pelos mestrandos em um primeiro momento, mas potencializadora no decorrer dos procedimentos para a sua efetivação. Convém ressaltar que a atenção dada durante a realização da ATD deve ser direcionada para os sentidos que a indagação poderá propor aos participantes da coleta de dados. Quanto ao público, a disciplina optativa (60h/4 créditos)33foi ofertada em duas ocasiões. A primeira ocorreu no começo da pandemia, no primeiro período letivo de 2020, quando os mestrandos ingressaram no curso. Os mestrandos eram em número de 15 (seis do sexo masculino e nove do feminino). A segunda oferta deu-se no segundo semestre de 2022, desta vez para alunos que já estavam em curso de mestrado (sete do sexo feminino e um do masculino, número este resultante de dois ingressos na disciplina - 2020/2021). Todos realizaram o exercício de ATD de modo individual. Em ambas as ofertas, ficou claro que alguns mestrandos já tinham tido algum contato com a ATD. No desenvolvimento da ATD como procedimento de análise de dados textuais, é possível que discentes, especialmente em fase final de graduação, ao produzirem Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), a compreendam apenas como uma sequência de etapas. Durante o curso de mestrado, a realização da disciplina ocorreu no período de aulas síncronas, em que se adotou a seguinte dinâmica: no começo de cada aula, os mestrandos contavam um pouco de sua semana e comunicavam facilidades ou dificuldades que estavam vivenciando em suas atividades profissionais em período de pandemia. A vida pessoal também era uma questão a ser tratada, pois ocorreram muitos casos de contágio entre familiares e amigos, levando-os a hospitalizações. Nesse período, situações do contexto da turma sempre foram objeto essencial a ser constituído no início de cada encontro, pois, dadas as circunstâncias do período online, como docentes, percebemos que deveria haver um momento de refrigério após cada bate-papo, que ocorria nos momentos/minutos que antecediam a carga horária. A docente esteve online 30 minutos antes de cada aula, a qual era gravada e após disponibilizada/compartilhada no classroom para que todos tivessem registro e acesso de cada encontro, já que as conexões nem sempre ofereceram condições de áudio e imagem iguais para todos os mestrandos. Mês a mês, a disciplina possibilitou que os mestrandos realizassem leituras dos artigos científicos e dos capítulos de livros sobre pressupostos da pesquisa qualitativa ao longo de sua historicidade, como em Hartmut (2006); metodologias utilizadas na pesquisa qualitativa, a exemplo de Lima, Harres & De Paula (2018) e Minayo (2011); e os conceitos desenvolvidos na ATD, como se pode ler em Souza & Galiazzi (2017, 2017a) e em Souza, Galiazzi & Chimidt (2016). Enquanto isso, observavam a forma como, em dissertações e teses, os professores pesquisadores faziam uso da metodologia de análise conectando o teórico ao prático, muitas vezes com uso de metáforas. Teve início, então, a fase de tentar ver o que se mostra, sem que tudo tenha sido descrito no texto metodológico, pois “Análise Textual Discursiva lida com teorias, e o processo de análise visa a ampliar e a reconstruir teorias, sejam do pesquisador, sejam dos sujeitos envolvidos na pesquisa” (Moraes & Galiazzi, 2007, p. 150). É por isso que os autores admitem a ATD como uma metodologia que auxilia na transformação do próprio pesquisador, o qual aprende a mover-se entre essas fases durante o processo de análise. Dessa forma, cada mestrando, mesmo vivendo esse turbilhão de emoções que o atropelam, consegue refletir sobre seu processo de transformação ao longo das análises, dá-se por conta de que sua própria identidade está se reconstruindo, que está em processo de “abandonar posturas menos adequadas ou desnecessárias ao tempo atual”. Em síntese, o pesquisador também se reconstrói como pesquisador e sujeito durante as análises. É o que denominamos a metamorfose do pesquisador (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 191). Para os autores, nesse ponto de aprendizagens sobre análise textual e captação de sentidos, quando consegue atingir esses entendimentos, o mestrando tem a condição de compreender que uma dissertação, quando bem-sucedida, mais do que transformar os outros ou as teorias alheias, modifica o próprio sujeito pesquisador, seus conhecimentos, suas teorias e suas práticas (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 191).

As discussões sobre os procedimentos realizados na ATD foram sendo aprofundadas conforme o exercício prático ia sendo realizado, paralelamente à leitura de artigos que apresentavam esse uso em metodologias de pesquisas qualitativas. No decorrer da disciplina, havia a dependência da existência de conexão, ou seja, de internet, e nem sempre a conexão comportou a presença de todos os mestrandos sincronicamente. Junto à dificuldade revelada pela pouca velocidade das conexões, dadas as intensas chuvas que ocorreram na Região Nordeste, o impacto em áudios e imagens, necessários aos contatos, foi intenso. Para contornar a dificuldade e a instabilidade da rede, o celular e o uso de dados foram potenciais; aliado a isso, o grupo de WhatsApp auxiliou muito. Este aplicativo permitiu que, entre uma aula e outra, a docente produzisse vídeos para relembrar os conceitos estudados anteriormente, suscitando temáticas a serem discutidas na aula seguinte. Os vídeos eram sempre de curta duração - de, no máximo, três ou quatro minutos. Metodologicamente, a atividade foi executada por meio das seguintes proposições:

    Esta metodologia de desenvolvimento da aula online permitiu que a própria atividade servisse para chamar atenção a aspectos da pesquisa que nem sempre são perceptíveis para jovens pesquisadores. Esses aspectos passam pela escolha dos intrumentos de coleta, pelo formato das indagações a serem propostas e pelo cuidado de despender um tempo para a análise que proporcione um ganho para a área investigada. Afinal, é necessário considerar que “todo texto necessita ter algo importante a dizer e defender e deveria expressá-lo com o máximo de clareza e rigor” (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 41).

    2.1 Primeiras compreensões sobre o uso do questionário como instrumento de coleta de dados

    A partir da primeira experiência de coleta de dados realizada durante a disciplina, os mestrandos passaram a tecer comentários sobre as dificuldades em analisar respostas dos participantes da atividade de investigação proposta. Essas primeiras constatações surgiram do grupo de mestrandos quanto às respostas dos colegas em ambas as ofertas da disciplina. Pode-se resumir essas constatações nos seguintes itens: (i) não ofereciam muitos argumentos; (ii) repetiam muitas ideias; e (iii) não tinham profundidade, etc. Por conseguinte, a própria atividade de indagação proposta serviu para alertar os mestrandos sobre a importância de lançar questionamentos que oportunizem: (i) tempo para que as respostas sejam devolvidas ao pesquisador; (ii) atenção em identificar para qual grupo enviar o questionamento; (iii) tempo hábil no cronograma para que a análise seja retroalimentada por novas contribuições, evitando- se que o processo de análise posterior se torne infrutífero. Observa-se que a indagação tinha uma intencionalidade além da resposta obtida, pois, invariavelmente, jovens pesquisadores não se dão conta das dificuldades. Nessa ressalva, também se situam pesquisadores que podem cair na armadilha de coletar todos os dados de uma única vez e descobrir, só quando o cronograma estiver sem possibilidade de prorrogação, que, infelizmente, os dados não atingiram seu ponto de saturação. O ponto de saturação dos dados é aquele em que novas leituras e até mesmo contribuições não oferecem ampliação do que já foi dito/descrito. Na dúvida sobre esse ponto ter sido ou não atingido, e havendo ainda tempo no cronograma, os autores de determinada investigação podem trazer outras contribuições para o tensionamento das discussões, a fim de que a triangulação identifique se ainda existem outros rumos para os resultados de pesquisa, visto que:

    os pesquisadores qualitativos triangulam suas evidências. Em outras palavras, para chegar aos significados corretos, para ter mais confiança de que a evidência é forte, eles desenvolvem diversas práticas chamadas de “triangulação”. A mais simples delas, provavelmente, é “observar e observar novamente inúmeras vezes”. As placas nos cruzamentos das estradas antigamente diziam “Pare, olhe e escute”. Ou ainda, mais importante, olhe e ouça a partir de mais de um ângulo. Mas a triangulação também é “verificar com os envolvidos”; perguntar para a mulher que foi citada se ela realmente disse aquilo (Stake, 2011, p. 139).

    Após propor a indagação que deu início ao exercício de análise, todos os elementos foram objeto de discussão, e os termos triangulação e saturação foram apresentados, aliando-se na qualidade de obtenção desses dados, para só após se adentrar nas etapas da ATD. Uma simples pergunta movimentou a turma de mestrandos sobre o cuidado de aliar a indagação à essência da questão de pesquisa, a qual deve ser particionada via objetivos específicos.

    3. Metodologia da análise textual discursiva: Uma aplicação além de etapas

    Em relação às publicações que servem de material de leitura em um processo formativo de professores stricto sensu, facilmente se percebe o quanto o uso de ATD tem sido objeto de publicações em diversos níveis de trabalhos acadêmicos - artigos, capítulos de livros, dissertações e teses. No entanto, aquele que começa seus estudos sobre essa metodologia pode ser que a compreenda apenas como uma sucessão de etapas. Diante disso, é preciso compreender:

    que a ATD, apesar de buscar separar o texto em unidades de significado para a melhor compreensão, não tem como objetivo último o domínio absoluto da compreensão, do significado do texto. Há um acontecer da interpretação entre o pesquisador e o texto a ser analisado (Zambam, 2020, p. 662).

    Para o leitor, é sempre interessante ter um texto que trate de ATD como metodologia de análise com todos os momentos apresentados em quadros evitando que as categorias surjam diretamente no metatexto. Isso porque é costume deixar que algumas etapas da análise fiquem restritas aos rascunhos das pesquisas contidos nos arquivos pessoais dos pesquisadores, e assim os leitores podem não compreender os movimentos envolvidos nos procedimentos, pois nas idas e vindas ao texto é que se percebe o quanto o caos faz parte da construção e apropriação dos fenômenos mostrados no decorrer da análise. Tal fato se dá na relação que se estabelece entre a escrita do participante da pesquisa e a posterior descontrução e reescrita realizada pelo pesquisador. Assim, aos poucos, o jovem pesquisador percebe o quanto, a unitarização é um processo que produz desordem a partir de um conjunto de textos ordenados. Torna caótico o que era ordenado. Nesse espaço, uma nova ordem pode constituir-se à custa da desordem. O estabelecimento de novas relações entre os elementos unitários de base possibilita a construção de uma nova ordem, representando novas compreensões [...] (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 21).

    Ainda na expectativa de tentar desvendar dificuldades, compreende-se que essa forma de descrição da ATD pode levar o leitor, que busca compreender o procedimento, a um emaranhado de dúvidas. Tal percepção não é negativa; pelo contrário, é condição para uma busca, um aprofundamento que propicie a evolução para uma visão mais completa da metodologia, pois o que as produções comunicam são relâmpagos de toda a tempestade mobilizada durante a pesquisa (Moraes, 2003). Desse modo, enquanto para o pesquisador a comunicação resultante de insights é suficiente, para o leitor que deseja compreender como se realiza a ATD e que por isso procura pesquisas com este uso, o que predomina são lacunas oriundas de elementos implícitos, os quais ele ainda não tem condições de compreender. Nesse quadro, tanto pesquisadores quanto leitores sabem que, os relâmpagos apenas dão uma visão rápida da paisagem. Requer-se investimento intenso para a explicitação e expressão dos fenômenos que iluminam, em forma de uma produção escrita. Esse, entretanto, já constitui novamente um esforço consciente e racionalizado. Parte desse trabalho talvez já tenha sido concretizado antes da inspiração criativa; parte se realizará depois (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 43).

    Por isso, além de apresentarem-se as etapas em uma publicação, há de se discorrer sobre elas, mesmo que brevemente, superando a apresentação da simples sequência - unitarização, categorização e metatexto. Desse modo, o leitor poderá observar que, na ATD, bem mais do que, propriamente divisões ou recortes, as unidades de análise podem ser entendidas como elementos destacados dos textos, aspectos importantes destes que o pesquisador entende mereçam ser salientados, tendo em vista sua pertinência em relação aos fenômenos investigados. Quando assim entendidas, as unidades estão necessariamente conectadas ao todo (Moraes & Galiazzi, 200744, p. 115).

    Nesse momento, entram em ação diversas formas de incentivo à leitura e à socialização de interpretações, tendo vez a presença de práticas dinâmicas, como os seminários, e começando a receber maior atenção o processo interpretativo revigorado em cada mestrando, pois, toda a experiência de um ser pertencente a um lugar apresenta seu acesso ao mundo na linguagem com seus preconceitos, com sua finitude revelando sua condição existencial, sua condição finita. Escutar o outro, ler suas colocações é fazer a experiência de mergulhar na complexidade da linguagem, ou seja, ter contato com a casa do ser. Interrogar seus próprios preconceitos. Essa experiência hermenêutica é grandiosa por revelar a riqueza existencial do ser humano que se revela na linguagem, no diálogo hermenêutico, auge do exercício de compreensão (Zambam, 2020, p. 669).

    Afinal, toda leitura é feita a partir de alguma perspectiva teórica, seja esta consciente ou não. Ainda que se possa admitir o esforço em pôr entre parênteses essas teorias, qualquer leitura implica ou exige algum tipo de teoria para poder concretizar-se. É impossível ver sem teoria; é impossível ler e interpretar sem ela. (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 15).

    3.1 A superação do uso de etapas - primeiras compreensões sobre a fenomenologia

    Para que se atinja a superação do uso de etapas na ATD e seja compreendida essa fase como parte do processo, mas não como o processo em si, é preciso considerar como se estrutura uma pesquisa. Com essa dimensão, pesquisar envolve análise (a separação das coisas) e síntese (a reunião das coisas). Coletamos dados. Aumentamos nossa experiência. Observamos atentamente os fragmentos dos dados coletados, as partes de nossa experiência, ou seja, analisamos e reunimos as partes, com frequência, de maneiras diferentes que anteriormente. Sintetizamos? (Stake, 2011, p. 149).

    Ainda, nas palavras do autor, a pesquisa não é uma máquina que processa fatos. A máquina mais importante em quaquer pesquisa é o pesquisador. Ou uma equipe de seres humanos [...]. Os seres humanos são os pesquisadores. Os seres humanos são os sujeitos do estudo. Os seres humanos são os intérpretes e nesse grupo estão incluídos os leitores dos nossos relatórios (Stake, 2011, p. 46).

    Com relação ao papel desempenhado pelo pesquisador em uma pesquisa qualitativa, é essencial compreender que essa pesquisa pode ser, em alguns casos, definida como interpretativa (Stake, 2011). Com isso, reafirma-se o compromisso do mestrando, que deve ser instigado até que perceba o quanto “as certezas são provisórias e que é permanente a necessidade de aprender” (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 185). Aproveitar ao máximo a realização dos procedimentos para a ATD, captando tudo o que é possível, na emergência dos sentidos advindos dos dados, passa por saber o que é fenômeno para chegar às compreensões sobre a fenomenologia, segundo o matemático e filósofo alemão Edmund Gustav Albrecht Husserl (1858-1938). Com esse interesse, é preciso esclarecer o que é importante para a fenomenologia, o que é nuclear na visão fenomenológica. Penso que devemos compreender o sentido de fenômeno, o que se quer dizer quando se fala no fenômeno, na fenomenologia. O fenômeno é o que se mostra a quem intencionalmente o olha. Ele se mostra no encontro entre o ver e o visto (noesis-noema), entre o que se mostra e o olhar de quem olha de modo intencional. Esse encontro se dá num instante, que é o agora, em que o fenômeno se mostra no ato de perceber (percepção). Então, fenomenologicamente, o que nós buscamos? Compreender o fenômeno que se mostra (Bicudo, 2018, p. 243, grifos nossos).

    Moraes & Galiazzi (2011, p. 145) afirmam: “o descrever e o interpretar quando concebidos em conjunto constituem parte do esforço de expressar a compreensão de um fenômeno”, mas “é importante que a análise textual discursiva atinja um estágio interpretativo e de reconstrução teórica”. Nesse sentido, interpretar é estabelecer pontes entre as descrições e as teorias que servem de base para a pesquisa, ou construída nela mesma” (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 125). A partir dessas constatações, no exercício prático de ATD, passou-se à etapa de escrita do metatexto.

    3.2 O metatexto: dificuldades iniciais desta produção

    Uma das dificuldades que perduraram durante o exercício de ATD desde sua fase inicial referia-se ao receio de interferir nas contribuições obtidas na coleta de dados, o que, naquele momento, estava voltado à reescrita das respostas dos mestrandos à questão proposta. Em ambas as turmas onde ocorreu a disciplina, em diferentes anos/períodos letivos, esse comportamento foi recorrente. Tal dificuldade voltou a ser mencionada no momento de estruturar o metatexto, pois, para corroborar algumas interpretações que contribuíram para as categorizações e obter os recortes das respostas, era preciso voltar ao texto e trazer (re)escritas. No sentido de reescrita, o pesquisador deve pensar sobre isso, pois, escrever no sentido reconstrutivo envolve superar a mera aderência à ideia de outros, para assumir nos textos escritos argumentos pessoais, expondo as próprias ideias. Só merece ser escrito o texto que apresenta um ponto de vista próprio de seu autor, ainda que sempre consciente das diferentes coautorias que o acompanham (Moraes & Galiazzi, 2011, p. 212).

    Dessa forma, realizada a união das categorias obtidas durante o exercício de ATD, aos referenciais teóricos, foi possível trilhar um caminho metodológico para o ensino da metodologia de análise textual. Assim, ratica-se que, tendo-se a intencionalidade de apresentar a ATD além de suas etapas, na fase de escrita do metatexto, os mestrandos reuniram suas aprendizagens para conectar os recortes das respotas dos colegas (excertos), o referencial teórico e a sua própria posição como autores dessas junções, assumindo a coautoria em cada fase da análise. A fase final do exercício prático deixou evidente a compreensão de que o fechamento da análise não significa o fechamento da pesquisa, mas o começo da etapa em que, pela obtenção das categorias, é possível voltar ao objetivo e à questão de pesquisa e verificar se foram atendidos. Essa fase opotuniza um verdadeiro exame dos procedimentos realizados, permitindo identificar se a categorização superou o que se pretendia e se ofereceu contribuições para a identificação de lacunas que possam gerar novos estudos, se trouxe um dado novo a acrescer àquilo que já estava na literatura ou, ainda, se confirmou o que havia sido constatado. Conforme Minayo (2017), a pesquisa qualitativa tem esse potencial: começa pelo compreender, e só depois é possível fazer a interpretação. Então, aos poucos, pode-se constituir o final da pesquisa, em um tópico próprio para isso e comunicando o que se mostra na visão do pesquisador que realizou a análise. Nesse sentido, é necessário considerar que o metatexto sinaliza o momento de fechamento da análise, enquanto que, o fechamento da pesquisa ocorrerá quando o objetivo de pesquisa for atendido, sabendo-se em que medida isso se deu e, assim, expressando-se as conclusões da investigação.

    4.Considerações finais

    Para tratar de procedimentos de análises textuais, é natural que publicações tracem percursos com quadros e tabelas, ilustrando cada etapa. Logo, todo dado apresentado é recortado de acordo com a escolha do pesquisador ou com a sua compreensão de necessidade de clareza para expor um determinado dado. É com a superação da fase de seguir modelos que se pode escapar da visão do mero cumprimento de etapas, pois em uma metodologia que se vale de sentidos que emergem, não se pode supor que a mera sequência de etapas deem conta de sua realização. Neste artigo, optou-se pela descrição do exercício prático de ATD, sem se fazer uso de qualquer tabela ou quadro. Por isso, foi dada atenção ao termo fenomenologia, para que se considere que o uso de ATD como metodologia está ligado à intencionalidade de quem observa o que ocorre na situação de interesse. Com esse pressuposto, procurou-se aos poucos apresentar o que ia se mostrando, conforme o que é possível obter dos primeiros passos de analistas discursivos. Isso porque, além de compreender que a ATD é mais do que realizar etapas, é preciso ter tempo para captar o que emerge, pois as categorias identificadas são abertas a uma nova interpretação e reorganização, em todo o processo de análise, por parte do pesquisador. Essas categorias não são mutuamente excludentes, portanto, ideias, posições e concepções podem estar presentes em várias delas ao mesmo tempo. No exercício prático de ATD realizado e posteriormente utilizado como inspiração para este artigo, foi possível perceber que, nos primeiros passos das aprendizagens dessa metodologia, as inseguranças que surgem costumam repetir-se, disciplina após disciplina lecionada. Os próprios autores que fundamentam a metodologia em questão evidenciam essas inquietudes (Moraes & Galiazzi, 2007; 2011). Exemplo disso está no uso do termo caos na descrição da metodologia por repetidas vezes. Isso ocorre, por exemplo, quando se dão os primeiros passos na realização da desconstrução das contribuições analisadas (respostas de questionários/entrevistas, resumos de trabalhos acadêmicos, entre outros), pois, naturalmente, a cada início de análise, surge uma insegurança sobre a própria desconstrução, já que, à primeira vista, o reescrever de uma contribuição pode sinalizar a sua alteração semântica. No entanto, na mesma obra, os autores advertem sobre o compromisso ético de ater-se ao que foi dito. Quanto a isso, os mestrandos informaram que, após terem vencido o receio de descaracterizar as contribuições recebidas - etapa de desconstrução e reescritas - dos participantes, a análise fluiu intuitivamente, e as categorias tenderam a dar sinais de suas presenças ou, como se pode descrever, tenderam a mostrar-se, paulatinamente. Dessa forma, tendo-se atendido ao objetivo proposto no início deste artigo, finaliza-se a escrita buscando- se contribuir com a teorização aliada ao exercício prático para o ensino sobre a pesquisa qualitativa na área educacional, especialmente para estimular estudos e usos de análises textuais em metodologias de investigações quali e quali-quanti.

    5.Referências

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    1Projeto que pressupõe essa coleta de informação: Análise Textual Discursiva na pesquisa qualitativa com uso de CAQDAS: campo de saberes para a educação em ciências e matemática, sob coordenação da primeira autora. Registrado no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) com a seguinte identificação: UESC PROPP 073.6766.2019.0019476-40.

    2A pandemia teve início oficialmente no Brasil em 11 de março de 2020, após anúncio da OMS.

    3Ementa: Histórico dos processos de análise de dados na pesquisa quantitativa e qualitativa aliados à pesquisa educacional. Pressupostos teóricos e metodológicos que embasam a análise de informações discursivas. Introdução à fenomenologia e à hermenêutica. Exercícios de análise de informações em uma perspectiva coletiva (Componente prática).

    4A obra de título Análise Textual Discursiva (2007) é a referência primeira para os estudos dessa metodologia de análise, pois é a partir desse ano que a ATD passa a ser descrita por meio de etapas identificadas como: unitarização, categorização e metatexto.

    Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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