1.Introdução
Acercar-se do campo da investigação científica requer a construção de uma série de conteúdos, sejam eles conceituais, procedimentais e/ou atitudinais. No presente estudo será abordada a aproximação ao campo da investigação qualitativa em psicologia, no que tange à observação participante, em um componente curricular denominado Técnicas e Práticas de Investigação em Psicologia III (TEPIN III). O referido componente propõe-se a apresentar aos estudantes do terceiro semestre de uma Instituição de Ensino Superior (IES), a observação participante, através da atividade de brinquedista, desenvolvida em um centro médico de uma IES (Vieira & Braga, 2015). Nas etapas da construção de uma pesquisa, a observação é um elemento central, abarcando desde a formulação de problemas, “passando pela construção de hipóteses, coleta, análise e interpretação dos dados” (Queiroz et al.,2007). A observação participante, por sua vez, é uma técnica muito utilizada pelos pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa, por conceber a inserção do pesquisador no grupo a ser investigado, constituindo-se, portanto, em um dos atores da cena. Nessa condição, estabelece trocas contínuas como integrante com os demais participantes do grupo observado, favorecendo a captura de situações vivenciadas por eles (Queiroz et al., 2007). A observação participante pode se caracterizar em dois tipos: ativa ou periférica. Segundo Adler e Adler (1987, como citado por Fino, 2003), o observador participante ativo é aquele que desempenha um papel no grupo, fazendo parte do meio em que atua, porém, mantendo uma certa distância necessária; enquanto o observador periférico é aquele que compreende a atividade, sem estar inserido ativamente no contexto da prática. Para o propósito pretendido pelo componente TEPIN III, o estudante, imbuído do papel de brinquedista (caso seja um participante ativo) ou na posição de um usuário (caso seja um participante periférico), deve entrar em campo como um ator pertinente ao contexto da sala de espera. A preparação para a ida à campo, como preconizada em TEPIN III, envolve a construção de conhecimentos, assinaladamente, aqueles referentes a: observação participante (ativa e periférica), elaboração de diário de campo, importância do brincar para o desenvolvimento humano e, por fim, o papel do brinquedista na saúde. Para além do papel a desempenhar no campo como brinquedista, o observador participante deve assumir o papel de investigação da realidade da sala de espera do centro médico da IES em questão, cabendo-lhe averiguar a realidade vivenciada pelos diferentes grupos etários que compõem o corpo de usuários do centro médico, sejam os pacientes, os colaboradores e mesmo os brinquedistas, abarcando questões que envolvem desde o aspecto físico, às interações presentes no espaço observado. Enquanto colocado na posição de brinquedista, o observador participante deve adotar duas modalidades em relação ao brincar, em situações distintas: o brincar livre e o brincar dirigido. De acordo com Cunha (2011, como citado por Faria et al., 2012), o brincar livre pode ser conceituado como um lúdico informal que, apesar de ser de iniciativa da criança, possui características de aprendizado para ela, utilizando saberes adquiridos anteriormente e reinventando o brincar a partir do contato com o meio. Já o brincar dirigido, conforme Real, Santos e Weber (2017) e Moyles (2002, como citado por Lira e Rubio, 2014), é uma ferramenta para trabalhar conteúdos, sendo uma atividade orientada, com a presença de sugestões de brincadeiras e regras com auxílio de um mediador. O brinquedista atua, segundo Costa, Jesus e Carvalho (2016), como um facilitador do brincar, fazendo uma mediação entre o brinquedo e o sujeito brincante, intervindo quando ocorrerem situações que exijam cuidado com os indivíduos e com o espaço físico. Para tanto, deve-se utilizar o contrato verbal - que é construído em parceria com a criança - e a orientação em relação ao cuidado com o brinquedo, consigo e com o ambiente físico. Em razão disso, destacam a necessidade do estabelecimento de regras, principalmente nas brincadeiras coletivas, com o cuidado de não as tornar fixas ou rígidas, mas, sim, passíveis de diálogo e de mudanças, de acordo com as demandas apresentadas pelo grupo. Indagamos sobre a importância dessa atividade para a inserção de estudantes de graduação do curso de psicologia, no campo da pesquisa, notadamente, como observador participante. A partir dessa inquietação e da nossa vivência no componente TEPIN III vimo-nos impulsionados à elaboração do presente relato de experiência, que se justifica pela possibilidade de se multiplicar práticas como essas, fundamentais para a formação do estudante de psicologia, tendo em vista a sua aproximação a técnicas de investigação, particularmente, da observação participante. Assim, o presente artigo tem por objetivo relatar uma experiência de aproximação de estudantes de psicologia ao campo da investigação científica, no lugar de observador participante, por intermédio do brincar, em uma sala de espera de um centro médico, de uma Instituição de Ensino Superior.
2.Método
Nesse artigo utilizamos o método relato de experiência, que, segundo Faria e Daltro (2019) constitui-se em um desafio para o pesquisador, uma vez que ele precisa articular os conhecimentos teóricos e, ao mesmo tempo, ativar as suas competências de tradução, percepção e interpretação em relação aos dados investigados. Assim, pode-se dizer que esse método se propõe a um refinamento de saber sobre a experiência em si, a partir do olhar daquele que realizou a pesquisa, dentro do seu contexto cultural e histórico, desdobrando-se em uma busca por um saber inovador e não estático e fechado (Faria e Daltro, 2019). A fonte dos dados constituiu-se da rememoração dos autores e de documentos elaborados a partir da prática desenvolvida (diários de campo e relatórios de atividades), compreendido no período entre 28 de março e 6 de maio de 2018 e o outro entre 13 de março e 29 de maio de 2019, quando atuamos como observadores participantes através do fazer como brinquedistas. A referida atuação caracterizou-se por ser uma atividade prática do componente curricular denominado Técnicas e Práticas de Investigação em Psicologia III. O cenário dessa prática deu-se em um centro médico de uma IES, que oferece mais de 20 serviços no campo da saúde, tendo parcerias com convênios, Sistema Único de Saúde e a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador. Buscamos trazer, durante esse estudo, os pontos em comum da nossa perspectiva, no que diz respeito à experiência de atuação como observador participante, por intermédio do papel de brinquedista, podendo-se dizer que ela se deu com a perspectiva de duas pessoas em momentos diferentes, em um mesmo espaço observado. Por se tratar de um relato de experiência, o estudo prescinde de submissão à comitê de ética. Utilizamos em nossos registros conceituações de observador participante ativo e periférico. A partir disso, buscou-se trazer os resultados obtidos por essa atividade, através dos nossos deslocamentos subjetivos em relação: ao processo de elaboração de oficinas de preparação para ida a campo; às percepções das diferenças entre o brincar livre e o brincar dirigido; às pressões sociais; e à nossa percepção frente às reações dos usuários presentes na sala de espera. A partir da rememoração dos fatos e da leitura dos documentos gerados no componente curricular TEPIN III (diários de campo e relatórios), identificamos dois momentos importantes: o primeiro, referente à preparação para ida a campo, que envolveu a construção de conhecimentos sobre: a importância do brincar para o desenvolvimento humano, as normas de biossegurança imprescindíveis para o campo da saúde, os processos de humanização da saúde e, por fim, o papel do observador participante, seja ele ativo ou periférico. Lapassade (2005) coloca que a negociação de acesso ao campo pode ser formal ou informal. Nesta negociação, se estabelece o que vestir, o que dizer e quem deve estabelecer contato com autoridades. Esse tempo inicial foi de fundamental importância para o estabelecimento de regras de conduta, dentre elas, por exemplo, a importância da determinação do tipo de traje a ser utilizado durante a atividade: o observador participante ativo deveria utilizar um traje padrão para ser identificado como brinquedista pelos usuários, favorecendo o estabelecimento de demandas relativas ao brincar, por parte dos atores que se encontram nesse espaço. O observador periférico deveria estar diluído no papel de usuário, cabendo a ele observar toda a dinâmica da sala de espera, inclusive do observador participante ativo, quando da sua interação com os demais usuários; deveria trajar-se, portanto, de maneira aleatória, mas discreta. Algumas dinâmicas de grupo foram, também, desenvolvidas no sentido de aprimorar a posição de observação e da construção do papel de brinquedista, compreendendo a importância dessa atividade na humanização da saúde. Foram orientados os pontos a serem registrados nos diários de campo, sendo assinalados: dinâmicas sociais, habilidades motoras, gostos pessoais e espaço físico. Além disso, deveriam constar as percepções pessoais sobre os próprios sentimentos, sensações e pensamentos durante o fazer como observador. O segundo momento foi marcado pela nossa ida a campo, que aconteceu na companhia dos professores de TEPIN III, a título de reconhecimento do espaço, palco da atividade de investigação a ser desenvolvida. Visamos, assim, a adequação das atividades a serem propostas, destacando, inclusive, questões de biossegurança. Foi solicitado, a partir de então, que se elaborasse um relatório contendo uma síntese dos dados do diário de campo, realizando articulações com a teoria estudada até o momento. Conseguimos refletir sobre as possíveis atividades que poderiam ser estabelecidas, além de demarcarmos quais locais seriam favoráveis para a colocação de tatames, brinquedos e flipcharts. Essas características eram essenciais para os planejamentos, que aconteciam no horário posterior à prática. Além disso, refletimos sobre nossa percepção sobre a construção do lugar de observador, no papel de brinquedista. Esses aspectos foram discutidos em sala, com todo o grupo e, subsequentemente, se realizou uma divisão da turma para a entrada em campo: um subgrupo assumiu, inicialmente, o papel de observador periférico e outro, o de observador ativo. Duas grandes dinâmicas deveriam ser estruturadas: o brincar livre e o brincar dirigido. O brincar livre consistia em ofertar o espaço lúdico através de brinquedos, materiais de jogos e de artes, de maneira que cada usuário pudesse fazer a sua escolha. O observador ativo estaria responsável pela intervenção com o usuário e o observador periférico deveria estar presente de maneira a tentar se diluir no grupo daqueles que estavam na sala de espera. A ideia é que os usuários não percebessem que esses observadores periféricos eram estudantes a realizarem suas observações. Transitaríamos nas posições de observador periférico e observador participante, caso estivéssemos na posição de usuários ou de brinquedistas, respectivamente.
3.Resultados e discussão
A nossa primeira estada em campo foi como observador periférico e, então, não houve contato direto com a população da sala de espera. Observamos as características etárias, sociais e ambientais como um todo e, também, a própria intervenção daqueles que estavam na posição de observador ativo. Em virtude do perfil de muitos usuários, inclusive de idosos, pessoas com deficiência e bebês, pudemos antecipar propostas de brincadeiras que não exigissem tanto deslocamento dos participantes; pensamos em atividades lúdicas que fossem mais simples e, no caso de adultos e idosos, priorizamos atividades que pudessem resgatar suas vivências de infâncias. Como estudantes de psicologia, valorizamos a sensibilidade e o cuidado ao lidarmos com essas pessoas. Coube, também, a reflexão sobre a nossa atuação como observador periférico. Enquanto observávamos, além de desenvolvermos articulações da teoria com a prática referentes ao fazer do observador participante e do brinquedista, nos imbuímos da tarefa de entender como o brincar constitui-se em um elemento importante para um desenvolvimento humano saudável, sendo, também, considerado ferramenta potente para o processo de humanização no campo da saúde. Ainda, essa atividade funcionou como uma forma de aprimoramento da comunicação entre nós estudantes e, também, com os usuários do serviço. Aliado a essa proposta de oferecer espaços lúdicos nos ambientes de saúde supracitados, foi fundamental compreender o processo e a estruturação do brincar na nossa sociedade e no contexto de sala de espera, nesses centros de saúde. Através das discussões em classe e, sendo esta a primeira experiência como observador periférico, pudemos compreender o papel do brincar no âmbito da saúde que, segundo Paula (2007, como citado por Kailer e Mizunuma, 2009) é um lugar onde, cotidianamente, surgem novas realidades, fazendo com que os sujeitos enfrentem situações adversas. Além disso, percebemos que os brinquedistas atuam, não só com os pacientes, como também com familiares e/ou acompanhantes. Por essa razão, era necessário que houvesse abordagem criteriosa, de maneira a favorecer a inserção desses usuários no universo lúdico. Nessa etapa inicial de observação, identificamos possíveis pressões ambientais: ventilação do ambiente, a qualidade acústica da sala de espera e o silêncio exigido aos usuários, uma vez que estávamos em um espaço destinado ao cuidado da saúde - que limitava de certa forma as brincadeiras. Na nossa percepção inicial, o papel de observador periférico parecia ser a atividade mais simples, por não conceber o contato direto com o usuário. No entanto, percebemos que, além de observar minuciosamente a interação do nosso colega com o outro brincante, deveríamos colher dados sobre todo o ambiente e sobre a nossa própria participação na atividade. O cansaço emergiu, então, como a sensação que mais nos marcou nessa tarefa, dada a grande duração dessa atividade e, também, pela preocupação na elaboração de registros posteriores no diário de campo - esses dados colhidos alimentariam as discussões promovidas na supervisão, que acontecia em cada aula subsequente à ida a campo. Porém, percebemos que com a nossa atenção focada, conseguiríamos registrar, com êxito, os detalhes que chamaram a nossa atenção no dia, além de articular os dados destacados com os conteúdos deste e de outros componentes curriculares cursados por nós, até o momento. Outra questão desafiadora, nesse fazer, era o fato de que se um dos colegas faltasse, o observador periférico ficava encarregado de observar duas pessoas, ou seja duas interações diferentes, acarretando um pouco de ansiedade e de tensão. A entrada subsequente, foi como observador ativo. A sensação que tivemos nessa função, foi de insegurança por estarmos lidando pela primeira vez em um campo de práticas, envolvendo pessoas e, como mencionado anteriormente, o maior receio era lidar com a rejeição dos usuários à proposição da atividade lúdica. Em alguns momentos, a experiência parecia ser mais desafiadora, quando existiam questões pessoais que nos atravessavam e, nesse sentido, eram feitas algumas projeções sobre o que se passava em nossa vida pessoal, ora com os sujeitos que participavam da atividade lúdica, ora com as próprias brincadeiras. Ademais, o público da sala de espera, por ser muito diverso, como relatado anteriormente, era sentido por nós como uma condição inquietante: como deveríamos, por exemplo, nos aproximar de pessoas que tinham necessidades específicas, fossem elas físicas, sensoriais ou psíquicas? como interagir com crianças, dada a necessidade de uma comunicação particular para essa faixa etária? como lidar com o tão temido “não” de adultos ou idosos diante do convite para participarem da atividade lúdica desenvolvida? De fato, as crianças eram mais receptivas à ludicidade que os usuários das demais faixas etárias. Na nossa sociedade, o brincar é concebido como infantil e, esse estereótipo relaciona-se com essas interferências na aceitação às atividades propostas por nós, brinquedistas. Mas, paradoxalmente, mesmo recusando a participação na brincadeira, verificamos que as pessoas dessas faixas etárias acabavam por encontrar uma forma própria de participar da cena lúdica, seja por intermédio de torcidas, de dicas e palpites, tornando o ambiente harmonioso e agradável, pois estava enriquecido pelas partilhas ali construídas. Os que aceitaram participar da atividade lúdica, por sua vez, gostavam de interagir e reviver jogos que, segundo eles, remetiam às suas infâncias. Essa ideia corrobora com a consideração de Rolim, Guerra e Tassigny (2008) segundo a qual o brincar é uma atividade presente em todas as idades, não se limitando, apenas, à infância. Esses autores destacam a importância da ludicidade em todas as fases da vida, apontando que não há um momento em que esta atividade se finde, mas, ao contrário, muda de acordo as diferentes etapas da jornada da vida. Nessa direção, Sá (2004) afirma que o lúdico é uma construção social e não etária. Por tudo isso, a atuação de brinquedista pode ser, então, compreendida como uma boa prática de promoção de saúde, sendo seus efeitos percebidos na sala de espera de uma instituição de saúde, palco das atividades desenvolvidas, como expostas no presente artigo. O brinquedista, enquanto observador, precisa estar atento ao fato de que a sua atividade extrapola a relação com o lúdico; o seu papel está posto, no contexto proposto como o de um observador de um ambiente e de pessoas envolvidas no processo, inclusive, dele próprio. Essa condição coloca-o em um estado de alerta, já que pode ser atravessado por situações de: distração, angústia, estresse, cansaço e dos conteúdos subjetivos. Apesar de muitos usuários trazerem à tona inquietações, narrativas de sofrimento, o observador ativo deve estar cônscio de que o seu papel, ali, não é o de psicólogo. Mas, apesar disso, os pontos apresentados por esses usuários devem ser considerados e informados aos professores que encaminhavam possíveis questões, emergentes durante a atividade, ao responsável pelo centro médico, a fim de estabelecer uma rede de cuidados, corroborando para a construção do processo de humanização.
4.Considerações Finais
Buscamos evidenciar as nossas percepções gerais frente a introdução dos brinquedistas na sala de espera e a importância dessa atuação no desenvolvimento de habilidades importantes para a aproximação ao campo da pesquisa, como observador participante, em uma prática significativa, de maneira contextualizada. Pudemos perceber que essas práticas são importantes para a formação do estudante dos cursos de psicologia, entendendo o valor da atuação no campo de prática desde cedo, por possibilitar o desenvolvimento de saberes fundamentais que devem ser adquiridos pelos discentes, ao longo da sua jornada e, particularmente, favorecendo uma aproximação ao campo da pesquisa. Assim, o papel do observador participante foi construído de maneira a se compreender a complexidade desse fazer, que envolve conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, como aqui expostos, além de conseguirmos visualizar como essa atividade veio transformando a sala de espera, em um ambiente mais humanizado através da ludicidade, das risadas, da arte (grandes potencializadores dos processos de humanização da saúde). Ao fim da experiência verificamos que, de certo modo, apesar de ser a nossa primeira experiência prática, já percebemos uma materialização dos conteúdos aprendidos.