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New Trends in Qualitative Research

On-line version ISSN 2184-7770

NTQR vol.13  Oliveira de Azeméis Sept. 2022  Epub Sep 08, 2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.13.2022.e683 

Artigo original

Os Processos Subjetivos de um Psicoterapeuta na Psicoterapia Online: Desafios e Possibilidades

Subjective processes of online psychotherapy: challenges and possibilities

1Centro Universitário de Brasília, Brasil


Resumo:

Introdução: O trabalho discute a prática da psicoterapia na modalidade online, por meio do uso de dispositivos tecnológicos. Conhecida como psicoterapia online, a possibilidade de psicólogos e psicólogas realizarem atendimentos por meio de celulares e computadores mediados pela Internet é uma alternativa de trabalho existente há muitos anos, acompanhando os avanços acelerados da tecnologia no mundo inteiro. Com o surgimento da pandemia da COVID-19, e levando em consideração as orientações recomendadas pela OMS, a psicoterapia online emergiu como uma alternativa de trabalho para psicólogos e psicoterapeutas, possibilitando aos profissionais adaptarem os seus atendimentos para dar continuidade ao objetivo de mobilizar sentidos subjetivos. Objetivos: Baseando-se na Teoria da Subjetividade, proposta por González Rey, a pesquisa teve por objetivo de investigar o uso de dispositivos tecnológicos para realizar sessões de psicoterapia online e as implicações desta modalidade para futuras práticas de psicólogos e psicoterapeutas. Métodos: Com base nos fundamentos da Epistemologia Qualitativa, utilizando o método construtivo-interpretativo, foram realizados encontros virtuais por meio do Google Meet. Os encontros foram gravados e transcritos para a coleta de informação e construção de hipóteses e para desenvolver reflexões sobre as dificuldades em mudar os hábitos e formas de trabalho, a necessidade de superar os desafios impostos por essas mudanças e o fortalecimento do compromisso do profissional com sua profissão e seus pacientes. Resultados: A pesquisa mostrou que a psicoterapia online é uma maneira eficiente de ajudar a melhorar a saúde mental dos pacientes, mas encontra ainda desafios, tais como: adaptação das formas de trabalho, superação de preconceitos e adesão ao ambiente virtual. Considerações Finais: A psicoterapia online, com suas vantagens e desvantagens levantadas neste trabalho, ainda é um processo que está sendo subjetivado, ganhando maior relevância na atualidade devido às restrições da pandemia. A modalidade precisa ser repensada e refletida para outras situações atípicas.

Palavras-chave: Psicoterapia online; Dispositivos tecnológicos; Teoria da subjetividade; Sentidos subjetivos.

Abstract:

Introduction: This research paper discusses the practice of psychotherapy using technological devices. Known as online psychotherapy, the possibility for psychologists to provide aid through cell phones and computers mediated by the Internet is an alternative method that has existed for many years, thanks to the accelerated advances of technology worldwide. With the emergence of COVID-19 pandemic and considering the recommended guidelines by the WHO, online psychotherapy emerged as a viable alternative for psychologists and psychotherapists, making it possible for professionals to adapt their work to continue the objective of mobilizing subjective senses. Goals: Based on González Rey’s Theory of Subjectivity, this research aimed to inquire into the use of technological devices to carry out online psychotherapy sessions and its implications for future practices of psychologists and psychotherapists. Methods: Based on the foundations of Qualitative Epistemology and using the constructive-interpretative method, virtual meetings were held through Google Meet. The meetings were recorded and transcribed to gather information and build hypotheses and raise several considerations on the difficulties in changing working habits, on the need to overcome the challenges imposed by these changes, and the commitment to the profession and the patient. Results: The research has shown that online psychotherapy is an efficient way to help improve patients' mental health, but it still faces challenges, such as: adapting ways of working, overcoming prejudices, and adhering to the virtual environment. Conclusions: Online psychotherapy, with advantages and disadvantages presented in this paper, is still a process that is being subjectivized. Despite its relevance under the pandemic, the modality requires further elaboration and methodological inquiries for its use in other atypical situations.

Keywords: Online psychotherapy; Technological devices; Theory of subjectivity; Subjective senses.

1.Introdução

Tradicionalmente, a prática da psicoterapia requeria a ocupação de um mesmo espaço físico para que fosse possível trabalhar com o paciente a partir de suas queixas. Na atualidade, sabemos que a possibilidade de ajudar pessoas não está mais limitada desta maneira. Já existem meios para que a psicoterapia possa ser utilizada de outras formas e em outros espaços, como por exemplo, a psicoterapia online realizada em casa por meio de um computador ou pelo celular, em lugar de um consultório. Esta pesquisa surgiu a partir de uma inquietação frente ao momento de crise mundial que vivemos: a pandemia do novo coronavírus, a COVID-19. Esta inquietação nasceu da necessidade de mobilizar os profissionais a repensar os modos de trabalho do psicólogo e psicoterapeuta em um momento em que se tornou necessário manter um distanciamento significativo entre as pessoas, para que se torne possível o combate à propagação deste vírus letal. No atual contexto, uma prática que era antes pouco utilizada, e por isto não considerada, se tornou necessária e possível. Como é dar continuidade aos trabalhos de psicoterapia neste novo contexto e o que será desta forma de trabalho em um futuro pós-pandemia?

2.Psicoterapia e Teoria da Subjetividade

A psicoterapia é uma prática da psicologia caracterizada pelo espaço dialógico entre psicoterapeuta e a pessoa - seja ela adulta, adolescente, criança, uma família ou casais - que procura a terapia. Essa prática é característica da área clínica da psicologia que busca promover mudanças em diversos processos subjetivos das pessoas. Diversas escolas de pensamento produziram e continuam produzindo teorias, métodos e técnicas para o desenvolvimento constante de formas de atendimento às demandas de saúde (González Rey, 2007; Holanda, 2012; Mori, 2019; Mori & Goulart, 2019). A psicoterapia foi desenvolvida a partir de uma lógica intervencionista e em um contexto de consultório, no qual o principal trabalho do psicólogo é utilizar métodos e técnicas psicológicas cientificamente comprovadas, para solucionar problemas de ajustamento de cunho individual. Ela desconsidera aspectos sociais, relacionais e histórico-culturais, o que levava à restrição ou à limitação das possibilidades de pesquisa e compreensão dos fenômenos humanos (Holanda, 2012). Cada intervenção tem a sua base em diferentes escolas, abordagens ou modelos de pensamento teórico para nortear o trabalho do terapeuta e tem suas origens na lógica médica e institucional. Está visão refere-se a uma perspectiva clássica da psicoterapia que não condiz com a atualidade, pois existem abordagens, teorias e técnicas, que propõem trabalhos direcionados a relações grupais e familiares, assim como perspectivas contemporâneas que integram os aspectos sociais e culturais na clínica, rompendo com a dicotomia individual-social (González Rey, 2007; Mori, 2019). Diferentes autores propõem uma tentativa de sair da “dicotomia” corpo-mente para uma ênfase na subjetividade (González Rey, 2007; Neubern, 2014; Mori & Goulart, 2019). A psicoterapia teria como fio condutor a maneira como a pessoa subjetiva suas experiências. A função do psicoterapeuta seria auxiliar ao longo do processo e mobilizar a pessoa para que ela se torne sujeito de suas experiências. A psicoterapia, pela Teoria da Subjetividade, é guiada pela forma como configurações subjetivas diferentes tomam forma na experiência do sujeito e como elas são organizadas em diferentes processos (González Rey, 2007; Mori, 2019; Mori & Goulart, 2019). Não há princípios padronizados ou universais que possam definir o desenvolvimento humano e tampouco dita perspectiva se baseia numa proposta de categorização ou classificação das experiências, das pessoas ou de doenças fundadas em diagnósticos. Uma visão fundada em diagnósticos impede o reconhecimento da pessoa como sujeito do seu processo de vida e favorece uma lógica hegemônica e patologizante. As ações do psicoterapeuta envolvem a mobilização da pessoa em psicoterapia para que ela se torne sujeito nas diferentes experiências de vida. Por meio do interesse no outro, do reconhecimento dos processos subjetivos do outro como únicos e singulares e do compromisso ético com o outro, o psicoterapeuta consegue criar condições que favorecem o objetivo da psicoterapia de mobilizar sentidos subjetivos para que a pessoa se torna sujeito de suas ações e de seus processos de desenvolvimento e subjetivação (González Rey, 2007; Mori & Goulart, 2019). “Tornar-se sujeito” nesta perspectiva significa a pessoa poder expressar nas suas ações configurações subjetivas singulares, tomar decisões e assumir responsabilidade individual pelas ações. Por isso, a psicoterapia não é uma prática que submete o outro a modelos de vida externos à sua produção subjetiva ou que fornecem um sentido pronto e definitivo para diferentes situações. A psicoterapia concebida pela Teoria da Subjetividade é marcada pelo caráter dialógico. O diálogo é um instrumento que favorece reflexões sobre os processos desenvolvidos em psicoterapia, permitindo que a pessoa possa criar alternativas para avançar nos processos de subjetivação atuais e não somente para descobrir ou conhecer as causas do sofrimento (González Rey, Bezerra & Goulart, 2016; Mori & Goulart, 2019). O diálogo permite criar uma relação marcada pela autenticidade entre o psicoterapeuta e a pessoa em psicoterapia, encorajando a compreensão de como essa pessoa subjetiva diferentes processos em sua vida, permitindo que ela se abra para a sua realidade e possibilitando novas configurações subjetivas (Mori & Goulart, 2019). É por meio da qualidade desse diálogo e pela forma de como a pessoa se envolve no processo que o psicoterapeuta pode levantar hipóteses que podem provocar reflexões e auxiliar no processo de emergência do sujeito, bem como gerar novas ações terapêuticas. É por isso que o diálogo é concebido como uma ferramenta fundamental na perspectiva da Teoria da Subjetividade.

2.1 Psicoterapia online

A psicoterapia online é uma prática contemporânea estudada e existente há muitos anos em diversos países, principalmente nos Estados Unidos, Austrália, Canadá, Inglaterra e Alemanha. Assim como o nome implica, essa modalidade é realizada a partir de uma comunicação sincrônica ou assincrônica entre o psicoterapeuta e o sujeito a partir do uso de dispositivos tecnológicos de comunicação pela internet (Siegmund et al., 2015; Rodrigues & Tavares, 2017; Ulkovski, Silva, & Ribeiro, 2017). Esses dispositivos podem ser aparelhos telefônicos, tablets, computadores, laptops ou qualquer dispositivo eletrônico que tenha acesso a programas ou aplicativos que realizam chamadas de voz e/ou de vídeos, possibilitando contatos diretos ou indiretos entre pessoas. O atendimento psicoterápico de comunicação sincrônica é caracterizado pela comunicação imediata ou em tempo real, como por exemplo uma videoconferência, telefonema ou chat. Enquanto isso, o atendimento de comunicação assincrônica é caracterizado pelos lapsos no tempo na comunicação, como por exemplo mensagens por e-mail ou celular na qual a correspondência pode ocorrer em tempos indeterminados (Bittencourt et al, 2020; Rodrigues & Tavares, 2017). Percebe-se que os atendimentos assincrônicos são dependentes da disponibilidade e dos espaços vazios de tempo tanto do terapeuta quanto da pessoa em psicoterapia para acessarem as mensagens enviadas entre eles e responderem. A psicoterapia online pode encurtar a distância entre as pessoas e otimizar o tempo, proporcionando atuações do psicólogo para além dos espaços físicos. Nesta perspectiva, a internet é concebida como uma ferramenta que possibilita a conexão entre pessoas que, ainda que ocupando espaços diferentes, podem estar presentes mesmo distantes (Ceroni, 2017). Os dispositivos tecnológicos proporcionam uma nova configuração do ser humano com as máquinas, criando instrumentos para perceber e agir no mundo, e que mesmo a presença virtual possa ser vista como uma presença ou proximidade entre as pessoas. O atendimento sincrônico, por meio de videoconferências, é visto como a melhor opção em termos de qualidade e resultado, pois ele possibilita maior acesso a informações sensoriais de visão e audição (Munhoz, Alves & Costa, 2019). Além do diálogo imediato e direto entre o psicoterapeuta e o paciente, o uso de telas permite que o psicoterapeuta tenha acesso a gestos, expressões, sensações e emoções da pessoa em psicoterapia. Os atendimentos psicológicos online são percebidos como um avanço nas possibilidades de ações profissionais dos psicólogos: eles acompanham as demandas da vida moderna e são vistos como uma solução prática que possibilita um acesso facilitado a profissionais capacitados. Porém, os atendimentos via internet têm seus desafios que podem dificultar ou interferir no processo terapêutico, além de torná- lo inacessível. Problemas de travamento e queda de conexão de internet podem interferir no estabelecimento do vínculo terapêutico e no tratamento psicoterápico em si. Além desses pontos, a psicoterapia online não tem como garantir o anonimato, ou a privacidade, ou seja, se houver outras pessoas no mesmo recinto, o que levanta questões éticas relacionadas à confidencialidade. A segurança de dados também é citada como uma preocupação e uma desvantagem no uso dessa modalidade (Assi e Thieme, 2019; Stoll, Müller e Trachsel, 2020). Para isso, baseando-se em códigos e condutas éticas, é necessário que o psicoterapeuta prepare o ambiente para melhor proporcionar e manter o setting terapêutico, com o sigilo e a privacidade, simulando dessa forma um atendimento presencial em consultório. A pandemia do novo coronavírus trouxe abertura para refletirmos sobre as possibilidades da psicoterapia além do consultório presencialmente. Como já temos visto, algumas pesquisas (Ceroni, 2017; Munhoz, Alves & Costa, 2019) têm produzido resultados favoráveis em relação a eficácia da psicoterapia na modalidade online, podendo dar continuidade ao trabalho de mobilizar sentidos subjetivos no atendimento online, além de produzirem resultados que demonstram a possibilidade de oferecer outros serviços de promoção de saúde mental. Compreende-se que há dificuldade de adesão, um desconhecimento e desconfiança em relação a serviços oferecidos na modalidade online que precisam ser trabalhados e aprofundados, principalmente no Brasil no qual percebe-se um número pequeno de pesquisas relacionadas à utilização da psicoterapia online em comparação com outros países (Rodrigues & Tavares, 2017; Ulkovski, Silva, & Ribeiro, 2017; Bittencourt et al, 2020). O que podemos perceber é que a pandemia do novo coronavírus provocou uma mobilização no que diz respeito à atuação dos psicólogos. A necessidade de adaptação aos dispositivos tecnológicos trouxe uma reflexão sobre a prática da psicoterapia na modalidade online, abrindo a necessidade de conhecer os meios alternativos de atendimento para que os psicólogos possam avançar ou dar continuidade aos seus atendimentos e serviços, além de pensar sobre como a modalidade online possa atingir o objetivo de mobilizar sentidos subjetivos. A partir das discussões levantadas, foi realizada uma pesquisa com o objetivo de investigar o uso dos dispositivos tecnológicos de informação e comunicação para a realização de atendimentos psicoterápicos online, dando ênfase aos atendimentos sincrônicos e partindo da Teoria da Subjetividade de González Rey (1997, 2005; Mitjáns Martínez & González Rey, 2017).

3.Método construtivo-interpretativo

Nesta pesquisa, foi utilizado o método construtivo-interpretativo proposto por González Rey (2005, 2017) que tem como base a epistemologia qualitativa que tem três princípios fundamentais:

“O resgate do sujeito como categoria epistemológica no processo de conhecimento. Porém, isso requer o reconhecimento da singularidade que por tanto tempo fora excluída da pesquisa na psicologia, por representar um empecilho para a generalização indutiva como via de legitimação dos resultados” (Mitjáns Martínez & González Rey, 2017, p. 28). É importante que se reconheça a singularidade da pessoa e a relevância da qualidade de informação vinda das expressões dela, sendo elas significativas para a construção de conhecimento e saindo de qualquer pressuposto de generalização, padronização ou universalização. É importante que o ambiente seja adequado para oferecer recursos que provocam ou despertam uma postura ativa no participante, podendo se expressar sobre os temas que surgem e fornecer o maior potencial de informações relevantes;

“A ênfase no caráter construtivo-interpretativo do conhecimento sobre a subjetividade'' (Mitjáns Martínez & González Rey, 2017, p. 30). Cabe ao pesquisador tomar uma postura construtiva-interpretativa, ou seja, ele se desloca durante o momento empírico em um processo contínuo de produção de conhecimento, criando hipóteses a partir dos indicadores elaborados a partir das expressões e dos relatos do participante. Isso implica em não limitar ou restringir a escuta ou os diálogos em aquilo que seja exclusivamente relevante à pesquisa; qualquer informação pode ser um indicador que contribui para o avanço de um tema escolhido, abrindo caminhos para outros temas, questionamentos e reflexões.

“A compreensão da pesquisa como processo de comunicação dialógica” (Mitjáns Martinez & González Rey, 2017, p. 31). O momento de pesquisa é concebido como espaço social e dialógico, na qual o pesquisador e participante se envolvem mutuamente em um processo de comunicação, ambos implicados na pesquisa e pela qual ocorrerá a construção de informação e conhecimento. É um momento na qual o pesquisador e o participante compartilham pensamentos, reflexões, questionamentos e indagações, podendo surgir informações que contribuam para novas hipóteses e teorias, além de romper com a ideia de neutralidade do pesquisador, colocando-o junto com o participante como agentes ou sujeitos de um processo de novidades e imprevisões que podem ganhar relevância para a pesquisa.

3.1 Participante

A pesquisa contou com a participação de um único participante chamado José (nome fictício), 32 anos, classe média, psicólogo formado há 10 anos e atua como psicólogo clínico. Tem formação em Terapia Ericksoniana há cinco anos e atende na modalidade online há mais de um ano por meio de vídeo chamadas.

3.2 Instrumento

Os instrumentos na pesquisa da Teoria da Subjetividade são ferramentas interativas que representam um meio pelo qual o pesquisador poderá provocar expressões e reflexões do participante de pesquisa para que possa abrir para um diálogo e um compartilhamento de experiências e informações (González Rey, 2005). Isso implica no dever do pesquisador de buscar a facilitação da expressão aberta, livre e comprometida do participante, privilegiando expressões e mobilizando a produção de informações, diferente de um roteiro de entrevista com respostas centralizadas em um tema fechado e determinado pelo pesquisador. A conversação apresenta uma aproximação do outro como sujeito, seguindo suas expressões e acompanhando suas reflexões para possibilitar o envolvimento do participante na pesquisa. O sistema conversacional tem como objetivo permitir que os participantes se envolvam em conversações nas quais suas expressões são verdadeiras reflexões e construções que se articulam como um sistema em um processo dialógico (González Rey, 2005, 2011; Mitjáns Martínez & González Rey, 2017). Isso permite criar um espaço para o diálogo aberto, na qual o pesquisador se integra na dinâmica de conversação, deslocando-se do lugar de perguntas formuladas posteriormente e participando ativamente na conversação com o participante. Isso caracteriza a dinâmica conversacional. Esta pesquisa foi apresentada o Comitê de Ética em Pesquisa e teve início após receber aprovação. Foi encaminhado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ao participante, o qual foi solicitado a sua leitura e aprovação para participar na pesquisa caso concordasse com os termos. Foram marcados cinco encontros por meio do Google Meet, nas quais três foram realizadas nos dias da semana. Cada encontro teve 50-60 minutos de duração, com duas semanas de intervalo entre elas. As sessões de conversação foram gravadas pelo pesquisador por meio do Google Meet, seguindo as regras e diretrizes do Comitê de Ética e conforme foi autorizado pelo participante, e transcritas para a coleta de informações. A construção de informações ocorria durante os momentos nos quais o pesquisador desenvolvia suas ideias, em um processo de interpretação e definição de elementos e formas de expressão da pessoa que foi significativo para a articulação das ideias.

4.Construção de Informação

O pesquisador inicia o diálogo:

“Ao estudar as possibilidades de a terapia ser realizada online, me veio muitas reflexões de como uma psicoterapia não precisa ser limitada a um encontro presencial e físico entre pessoas. E vendo que uma sessão de psicoterapia pode ser feita assim, da mesma forma que uma vídeo chamada, a pessoa em um canto e a outra pessoa em outro canto, me abriu um mundo pois eu era bastante resistente a pensar em atendimentos à distância.”

José responde:

“No início, com relação a psicoterapia online, eu tive uma certa resistência porque eu estava tão acostumado, acho que foi até uma questão habitual, sabe? Porém, eu tive que, né, como vários profissionais... Para mim não foi nem uma questão de opção, né? Então, teve a pandemia e tudo, acho que por uma questão de responsabilidade, eu preferi atender online.”

José relata sobre a sua dificuldade para realizar uma mudança nos hábitos e formatos de trabalho para atender às novas demandas da atualidade. Nesta fala, ele ressalta a resistência em adaptar seus meios de trabalho para uma nova modalidade: de atendimentos presenciais, estando frente a frente com a pessoa, ocupando o mesmo espaço físico em um consultório, para atendimentos online, na qual ele e a pessoa ocupam espaços diferentes e interagem por meio de uma tela. Segundo a sua fala, José se adaptou à modalidade online por uma questão de falta de opções alternativas, o que pode ser um indicador de sentidos subjetivos associados à subjetividade social do tempo atual de mobilização na adaptação nos modelos de trabalho para os profissionais de psicologia. Para manter os cuidados e respeitar as medidas de prevenção recomendadas para combater a pandemia, José começou a atender as pessoas na modalidade online, o que pode ser visto como um indicador de sentidos subjetivos relacionados à ética do trabalho, assim como indicador do seu compromisso profissional com a psicoterapia, além de um compromisso com a vida e a sobrevivência. José relatou sobre as mudanças na modalidade de trabalho, destacando alguns ganhos que a psicoterapia online proporcionou a ele como profissional:

“Quais são as implicações positivas do atendimento online? Primeiro, como profissional, você precisa se superar da sua própria resistência com relação àquilo. Foi uma coisa que eu tive que fazer e aprender dentro de casa, a trabalhar dentro de casa, a produtividade caiu um pouco então tive que reaprender isso para fazer isso e ainda estou em processo de aprendizagem naturalmente.”

A partir dessa fala de José, observa-se uma contradição. Anteriormente, foi observado que José vivenciou uma dificuldade em se adaptar a uma modalidade desconhecida e, até certo momento, não pensada por muitos profissionais, porém aderiu a essa modalidade por uma questão de necessidade acompanhada de uma questão ética, profissional, e responsabilidade com a vida. Nesta fala, José destaca que, apesar do mal-estar, do desafio e da perda de produtividade, houve uma busca em superar este desafio, enfrentando a situação e não desistindo. Isso exemplifica o contexto de pandemia e as mudanças nos modos de trabalho como um processo contraditório que mobiliza a produção de sentidos subjetivos e a ressignificação das possibilidades de trabalho do psicoterapeuta. Esta visão, apresentada por José, é percebida como um dever do profissional, uma reflexão importante sobre a importância de superar as resistências e as dificuldades frente a uma situação desconhecida, destacando a aprendizagem e a atualização como processos contínuos e necessários para os profissionais. Isso demonstra que José reconhece a contradição do momento atual, mas é capaz de gerar sentidos subjetivos que possibilitam avançar em relação a essas dificuldades. Percebe-se que este ponto foi reforçado por José ao dizer logo em seguida:

“Qual o ganho para a psicoterapia em si? Me considero um terapeuta melhor quando tenho qualidade de vida. Isso repercute também nas terapias. Para mim foi um processo nesse sentido e hoje minha resistência ao online já é muito menor. Hoje eu atendo naturalmente, atendo uma pessoa nova sem aquela mesma implicação que eu tinha antes, não tenha dúvida.Ainda tenho um pouco, claro, mas nem perto daquilo. Eu até gosto.”

Mais uma vez, a contradição surge no diálogo, mas também reforça o indicador de um posicionamento próprio de José: apesar da contradição, ele consegue gerar sentidos subjetivos que possibilitam um avanço em relação às dificuldades enfrentadas na atualidade, principalmente no que se refere à mudança nos hábitos de trabalho. Assim como foi colocado por ele, o trabalho na modalidade online tem se “naturalizado” na medida que ele avança em sua realização contínua, demonstrando menos resistência e dificuldades em relação aos atendimentos online e verbalizando um gosto pela psicoterapia nesta modalidade, o que demonstra uma apropriação dos dispositivos tecnológicos. Além disso, percebe-se novamente o compromisso de José com a sua profissão na medida em que, ao invés de desistir frente a um momento desconhecido, ele busca a informação sobre os meios alternativos adotados por outros profissionais para que ele possa dar continuidade ao seu trabalho como psicoterapeuta. Dando continuidade à discussão sobre a experiência de José em realizar atendimentos psicoterápicos online e lembrando das dificuldades e desafios citados ao longo dos encontros sobre as mudanças nos hábitos, o pesquisador pergunta:

“Você também comentou que, com novos pacientes era mais difícil começar a psicoterapia na modalidade online. Foi isso que você disse ou eu entendi errado?”

José responde:

“Foi um pouco esquisito para mim, confesso. Achei diferente. Eu senti falta de ter visto a pessoa pelo menos uma vez, olho no olho. Só que hoje realmente está um pouco mais tranquilo. (...) É impressionante como os laços de intimidade também são simbólicos. Eles não são só físicos, então a gente pode ter um laço muito bacana, um vínculo muito bacana com a pessoa mesmo com este tipo de atendimento. Independentemente de qualquer coisa é possível ter um vínculo muito legal, não tenha dúvida.”

Este diálogo demonstra como a psicoterapia online ainda é um processo que está sendo subjetivado para José, pois relata que está “mais tranquilo” realizar atendimentos online agora do que era anteriormente. Isso indica que ainda existe algum fator dificultador ou algum desafio a ser enfrentado no trabalho como psicoterapeuta na modalidade online e que o processo de superação das dificuldades frente ao desconhecido continua gradativamente. Mais uma vez, identifica-se a contradição presente no processo de mudança. Porém, percebe-se neste diálogo uma reflexão importante sobre os laços, ou vínculos, terapêuticos e principalmente simbólicos, fundamentais para o processo de psicoterapia e que eles possam ser criados sem a necessidade de uma ocupação do mesmo espaço físico. Em outras palavras, foi percebido por José, ao longo do processo de atendimentos online, que é possível formar um vínculo terapêutico mesmo estando fisicamente em outro espaço e interagindo com a pessoa em psicoterapia por meio de uma tela. Isso demonstra uma nova configuração de trabalho por meio da criatividade, abarcando novas reflexões sobre o espaço simbólico do consultório e do processo psicoterápico, além de apresentar reflexões sobre a necessidade de se fornecer aspectos facilitadores para tornar o vínculo possível na modalidade online. Curioso sobre como o processo de mudança na modalidade de trabalho se desenvolveu, passando por um momento de muita resistência, para depois encontrar meios de enfrentar os desafios colocados, o pesquisador pergunta:

“Você sabe mais ou menos quando você começou a realizar atendimentos de psicoterapia online, de vídeo chamadas e coisas desse tipo?”

José me responde:

“Comigo? Foi basicamente na pandemia. Quando teve a pandemia, eles, o conselho, liberaram para atender. Eu atendi duas pessoas na época no online por que se mudaram e pensei “Beleza, vou atender essas duas”. Aí deu duas semanas e foi todo mundo para o online. (...) Foi um choque: você atendia todo mundo presencial e do nada você começou a atender todo mundo online. No início, eu atendia uma pessoa no presencial e hoje eu não estou atendendo ninguém presencialmente. Durante o percurso, teve lapsos em que eu arrisquei um pouco um atendimento presencial ou outro, mas é estranho quando veio o choque. De repente ficou tudo online. Eu com consultório lá, com as coisas e tudo. Ainda fiquei dois meses pagando aluguel e aí depois saí. Agora minha vida é online. É bacana e agora estou gostando.”

Pela primeira vez, desde que se iniciaram os encontros de conversação, José relata sobre o choque que foi vivenciar as mudanças impostas pela pandemia, cada uma imprevisível e drástica. Em pouco tempo, foi necessário repensar e atualizar as formas de trabalho para atender às novas demandas de trabalho e cuidado. Observa-se pela fala de José que, ao longo do percurso, houve uma “migração” gradual dos atendimentos presenciais para os atendimentos online, além de revelar que não atende nenhuma pessoa em psicoterapia presencialmente no momento, o que nos lembra dos diálogos de dificuldade com as primeiras sessões de terapia sendo realizadas pelo online. Entretanto, José revela também que tenha “arriscado” e feito alguns atendimentos presenciais que depois se tornaram “estranhos” para ele. Podemos conceber isso como uma nova produção de sentidos subjetivos relacionados aos atendimentos de psicoterapia no formato presencial, que agora são percebidos de outra forma depois que surgiu a pandemia. Pode-se dizer que a psicoterapia online se tornou o novo padrão de atendimentos, o que pode ser um indicador de uma nova configuração de trabalho substituindo uma outra.

5.Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, foram analisados os diversos aspectos da experiência de um psicoterapeuta atendendo na modalidade online, pensando nos processos subjetivos, além de como o processo de pandemia têm mobilizado maiores reflexões sobre as possibilidades teóricas e práticas da utilização de dispositivos tecnológicos para terapeutas na atualidade e no futuro. A partir dos encontros de diálogo com o José, podemos concluir que a psicoterapia online é um processo novo que ainda está sendo subjetivado. Mesmo que seja conhecida teoricamente e que a prática esteja regulamentada pelos conselhos há alguns anos, a psicoterapia online precisa ser repensada, pois ela não está muito clara para alguns profissionais. No caso de José, foram apresentadas as dificuldades de adesão à modalidade online até que a pandemia da COVID-19 a tornou necessária para seguir as recomendações de cuidado. Observamos a mobilização de José para a superação dessas dificuldades e o compromisso com sua profissão, assim como possíveis mudanças de hábitos de trabalho, nas quais podemos refletir sobre as possíveis vantagens da psicoterapia online: uma maior possibilidade de flexibilidade e organização da carga horária de trabalho e de tempos de intervalo, a organização do número de atendimentos por dia e os novos alcances de atendimentos, podendo atender pessoas de outros espaços geográficos. O não deslocamento de um local para outro para trabalhar também pode ser refletido como uma vantagem da modalidade online, possibilitando ganhos ecológicos. Entretanto, as desvantagens refletidas nesta pesquisa, além da adesão, estão relacionadas à questão de acessibilidade da internet, assim como a qualidade de conexão da internet, dos espaços de privacidade e a falta de garantia de segurança dos dados. Quanto à privacidade nos atendimentos online, ressalta-se a importância de o profissional organizar o ambiente de trabalho de modo que ele possa possibilitar as mesmas condições de um atendimento presencial. Aspectos relacionadas à segurança de dados, programas ou aplicativos utilizados para evitar vazamento de dados, precisam ser aprofundados em futuras pesquisas sobre o tema. A maior adesão à psicoterapia online surgiu em um momento inesperado e imprevisível, provocando muitas mudanças e uma mobilização para que não se perca o contato com as pessoas que precisam de apoio. Devido ao desconhecimento, resistências e preconceitos, pode-se pensar que a psicoterapia online se tornou mais relevante em um momento de crise mundial, ganhando um espaço maior de importância. Seu uso precisa ser repensado e refletido mais profundamente, para ainda melhor utilização em outras situações atípicas.

6.Referências

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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