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Political Observer

versão impressa ISSN 2795-4757versão On-line ISSN 2795-4765

Political Observer vol.18  Lisboa dez. 2022  Epub 22-Maio-2023

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2022.18/pp.155-168 

Artigo Original

Da Ilha para o Mundo: política, artes e território

From the Island to the World: politics, arts and territory

1Professora Auxiliar Convidada da Universidade da Beira Interior, Covilhã; Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve; Investigadora Doutorada do Observatório Político, Portugal; patricia.oliveira.pt@gmail.com


Resumo

A tríade aqui proposta à reflexão - política, artes e território - manifesta-se como um encadeamento lógico e possível de uma desejável e atingível democratização cultural. Da ilha para o mundo estabelece, assim, o circunstancialismo territorial e de reflexão do presente artigo. Exemplo inacabado dessa performance política, artística e cultural é o Festival Walk e Talk Anda e Fala que acontece, desde 2011, na cidade de Ponta Delgada, Açores, e que não só propiciou o mote e a escolha para a capa deste número especial da revista, mas também para o qual este texto é apenas um singelo contributo, para alguma reflexão política e cultural sobre os pressupostos, circunstâncias e algumas consequências políticas deste tipo de iniciativas e projectos.

Palavras-chave: Açores; política; artes; território; festivais

Abstract

Hereby the triad proposed for reflection - politics, arts and territory - manifests itself as a logical and possible chain of a desirable and attainable cultural democratization. From the Island to the World thus establishes the territorial circumstantiality and reflection of this article. An unfinished example of this political, artistic and cultural performance is the Festival Walk e Talk Anda e Fala, which has been taking place since 2011 in the city of Ponta Delgada, Azores, and which not only provided the motto and choice for the cover of this special issue of the journal, but also for which this text is just a simple contribution, for some political and cultural reflection on the assumptions, circumstances and some political consequences of this type of events and cultural projects.

Keywords: Azores; politics; arts; territory; festivals

Introdução

A tríade aqui proposta à reflexão - política, artes e território - manifesta-se como um encadeamento lógico e possível de uma desejável e atingível democratização cultural. O ponto de partida (e de chegada) é eminentemente político, não estivessem as artes e, igualmente de sobremaneira, as práticas culturais nos domínios privilegiados da acção política, das políticas de reconhecimento e das identidades políticas. Pertencer a um território, i.e. criar a tal comunidade, independentemente da sua centralidade ou periferia, envolve não só a partilha de valores, mas também a passagem do individual (particular e privado) para o comum (público e colectivo) em que os vários intervenientes do processo assumem diferentes posições ou identidades. Da ilha para o mundo estabelece, assim, o circunstancialismo territorial, e não menos por isso despropositado, de como através da política e das suas dinâmicas, processos e dispositivos o factor insular (isolar) não se manifesta necessariamente enquanto condicionante inultrapassável. É, conquanto, característica apenas de condição, politicamente imputável para com a comunidade e dela se aproximando através das artes e das práticas culturais.

A expansão das artes e nomeadamente das manifestações de arte urbana em diálogo com o território exploram e constroem, através das práticas artísticas, discursos políticos que parecem favorecer renovadas políticas de integração, aqui tomadas num sentido económico e social mais amplo que não apenas o migratório, étnico ou religioso. Podemos considerar que esta expansão das artes é favorável à reflexão em termos dos significados das identidades comuns (comunidade) e que a sua exteriorização têm implicado um mecanismo de relação com o momento e o lugar onde acontecem (território). Exemplo inacabado dessa performance política, artística e cultural é o Festival Walk e Talk Anda e Fala que acontece, desde 2011, na cidade de Ponta Delgada, Açores.

1.Cultura política e práticas culturais

A cultura envolve diferentes fenómenos e representa, por isso, um domínio vasto nas ciências sociais e na ciência política, em particular. No âmbito deste artigo, situamos a cultura sobre o domínio do político, em articulação com as práticas artísticas e culturais que naturalmente convocam todos os contributos que lhe dão dimensão, contexto e preponderância, são exemplos: a história da arte, a filosofia da arte e a sua disciplina estética, a sociologia da arte e os estudos culturais, este último também tomado num sentido mais abrangente de razões.

O entendimento da política ao incluir o sentido das práticas culturais e, por sua vez, ao interagirem com o sistema da política, poderá produzir interpretações válidas. A fronteira entre aquilo que consideramos ser de matéria política e não política é desenhada pelo conjunto de interações sociais que podem estender ou retrair essas mesmas noções de fronteiras.

Portanto, consideramos que da política e da cultura, ambas poderão envolver as práticas culturais como instrumento de análise, nomeadamente da cultura política, na complexidade das suas teorias e práticas, bem como nas “delicadas e muitas vezes invisíveis relações de poder” (Vargas, 2012, p. 7) que se estabelecem entre a esfera da política e a esfera da cultura e das práticas culturais.

Os debates nos domínios científicos do conhecimento político acerca da própria noção de cultura encontram-se divididos (Sarmento, 2009, p. 518-519), entre aqueles que consideram a cultura um instrumento ideológico, cuja abrangência e determinismo aportam problemas de natureza metodológica (cf. Bessa, 1997; Lane e Wagschal, 2012); entre aqueles que defendem a noção de cultura como um mecanismo de substituição da violência e de reprodução da denominação social (Boudon, 1983; Bourdieu, 1991); entre aqueles que incluem a cultura na explicação dos nacionalismos e políticas de identidade e cidadania (Wiarda, 2012).

Nas últimas décadas do século XX, não podemos ignorar que a cultura política foi largamente discutida e revisitada pelos cientistas políticos e, entre eles, comummente partilhada como o conjunto de valores, ideias, crenças e orientações que sustentam e orientam o comportamento político (Inglehart, 1973, 1990; Almond e Verba, 1989 1963 ; Fuchs, 2007; Wiarda, 2012; Carreira da Silva, Clark e Vieira, 2016). Cultura e política são conceitos críticos, à razão das suas características abrangentes, holísticas, multidisciplinares e subjetivas, tornando o conceito extensivamente descritivo e difícil de definir empiricamente. O problema reside no facto de cultura e política possuírem diferentes dimensões de análise e diferentes consequências políticas identificáveis, nomeadamente ao nível da cultura política, que decorrem inclusivamente da variedade de objetos e práticas culturais (Vargas, 2012).

Numa síntese atualizada, os autores Carreira da Silva, Clark e Vieira (2016) expõem os desafios da cultura política na atualidade. Numa primeira parte, o artigo apresenta uma resenha quanto à evolução histórica da cultura política e dos seus principais contributos na literatura para a revisão da nova cultura política. Conhecida sob a sigla inglesa NPC New Political Culture , a nova cultura política diz respeito à recente constelação de valores e crenças políticas (Carreira da Silva, Clark e Vieira, 2016, p. 4).

With the greater emphasis on citizens and egalitarianism in the late 20th century, more attention has been given to themes like personal identity (gender, sexual orientation, environmentalism) in relation to political action and cultural commitment. This has led to an increased interest in consumption politics (…) The expressive and emotional dimensions have been actively theorized as an integral but analytically separate component of political culture that demands more careful analysis (…) New questions arise in this specific field: for example, how do parades and posters, rap song, graffiti, and blogs mobilize in the face of the decline of parties and formal organizations? (Carreira da Silva, Clark e Vieira, 2016, p. 7)

A última parte desse artigo reúne um conjunto de considerações sistemáticas sobre a acomodação de conhecimento produzido noutras áreas das ciências sociais e das humanidades, com referências a ideias provenientes de outras geografias e áreas de influências (nomeadamente, outras geografias periféricas ou consideradas marginais, por oposição às designadas geografais de influência hegemónica), outras experiências e dinâmicas sociais. Numa visão transversal, e enquanto possibilidade teórica e empírica, consideramos os nós das relações entre cultura política e práticas culturais.

Political culture analysis today has a vastly broader scope (…) encompassing individual attitudes toward government, sociocultural values and beliefs, as well as material and immaterial expressions such as flags, hymns, oral and written texts, film, just to mention a few examples. Although epistemological cleavages remain significant, separating atomistic and individualistic notions of political culture from holistic ones, the rise of interdisciplinarity and the growth of international scientific collaboration around research networks suggest that the prospects of the study of political culture are promising. (Carreira da Silva, 2016, Clark e Vieira, 2016, p. 8)

Apesar das ideias intuitivas acerca do determinismo vs relativismo cultural (Boudon, 1983; Inglis, 1993; Yúdice, 2003; Ribeiro, 2009) e das condicionantes sociais, políticas e económicas da cultura (Pratt, 2007), verificamos que a realidade política, na procura constante por ganhos de legitimidade, ancorou o seu discurso no valor cultural da democracia, tomando a democratização cultural (Morató, 2010; Fleury, 2011) enquanto referencial de sentido. Podemos considerar que nesta conjuntura a cultura assumiu um potencial normativo na ação política (Yúdice, 2003; Molenaers e Thompson, 2005; Sarmento, 2008).

Mais recentemente, o equilíbrio democrático das relações entre cultura e política alterou alguns dos pressupostos do exercício do poder focado no papel desempenhado pelas instituições e pelos seus actores no sistema político. Sobretudo, ao declarar-se a liberdade de consciência e de expressão, mas também ao ampliarem-se as significações da cultura, no renovado interesse pela produção cultural no seu conjunto (Oliveira, 2011).

Consequentemente, a percepção pública e governativa, progressivamente consciente das contrapartidas para o aumento dos orçamentos nacionais (Pratt, 2007), e as tentativas de implementação de políticas públicas, têm funcionado como mecanismos reguladores da vertente económica dos mercados culturais (com as naturais variações em termos de sucesso efectivo). As vantagens competitivas expandiram-se igualmente para o sector cultural, contribuindo para a também designada industrialização da cultura, i.e. obrigando os trabalhadores do sector - artistas, programadores, galeristas, críticos, entre outros - a operarem sob uma estratégia comercial e de mercado em diferentes escalas de impacto e influência, ou seja, à escala local, regional, nacional e internacional.

O entendimento acerca da cultura e da democratização cultural, quer por parte dos atores políticos, quer por parte dos atores culturais, com responsabilidades partilhadas nos modelos de governação, gestão e administração das práticas culturais, marcam e influenciam as orientações em termos de políticas culturais e modelos de consumo.

A questão cultural, ou da problematização da cultura na política, implica uma deslocação do seu campo mais hermenêutico e ontológico, para o campo da acção política que a determinou de forma direta ou reativa, ou ainda de forma implícita ou relacional com a “cultura política de cada sociedade” e a “ancoragem cultural dos estilos políticos” (Sarmento, 2003, p. 466). Para além de uma questão de conceção da cultura e de escolhas políticas - da ação pública governamental e das implicações institucionais e sociais - outras distinções práticas - tais como as diferenças entre uma cultura de massas, uma cultura popular, uma contra-cultura, ou uma cultura alternativa - permitem-nos especificar o lugar do discurso e da manifestação do poder quanto às bases de reflexão e de relação entre cultura e democracia. Ora, comunidade é um arranjo de identidade política, a qual se constrói, permanece ou altera-se também e através das artes e das práticas culturais.

Political culture analysis today has a vastly broader scope (…) encompassing individual attitudes toward government, sociocultural values and beliefs, as well as material and immaterial expressions such as flags, hymns, oral and written texts, film, just to mention a few examples. Although epistemological cleavages remain significant, separating atomistic and individualistic notions of political culture from holistic ones, the rise of interdisciplinarity and the growth of international scientific collaboration around research networks suggest that the prospects of the study of political culture are promising. (Carreira da Silva, 2016, Clark e Vieira, 2016, p. 8).

O reconhecimento de que a política não é somente a apreensão de uma qualquer essência manifesta e latente, mas que se desmultiplica no conjunto das atividades humanas, ficando coberto pelo manto da opacidade. É sobre a realidade invisível que se torna necessário o labor de identificar, descrever e explicar os nexos de similaridades, sem ignorar os tais elementos ambíguos e ambivalentes, que configuram uma cultura política influenciada pelas práticas culturais.

A cultura política revisitada pelas práticas culturais vem demonstrar que o conceito não é isento de acomodar novas realidades e experiências, por um lado. E que, por outro lado, os fenómenos políticos são dinâmicos e inovadores. Este é, portanto, um conceito aberto às novas condições, formas e movimentos que irão exigir um papel ativo por parte da comunidade científica para debater o alargamento conceptual, sobretudo, por forma a acomodar os desafios práticos e teóricos de futuro.

2. As artes na cidade

A cidade é o espaço de encontro com a realidade quotidiana, a partir do qual emerge a arte urbana e as práticas culturais que lhe estão associadas. A cidade ou o espaço urbano é, então, o lugar de inspiração, de captura, de inscrição onde aquela realidade quotidiana é transformada em simulacro - em imagens representativas de uma vida que se sabe não ser bem assim, mas que simultaneamente se pressente vivida por muitos. O reconhecimento do lugar, a pertença ao território, ganha novas centralidades, i.e. novas intensidades e memórias, correspondências e semelhanças, não necessariamente mais autênticas, mas munidas de segurança nas suas expectativas em relação à comunidade e ao território que a que essa comunidade pertence.

A relação entre comunidade e território, ou entre comunidade e cidade, para além duma geografia cartográfica, resulta numa organização, sobretudo e de forma relevante, mental e cognitiva. A espacialização das relações de poder e o modo como estas geografias revelam, então, as dimensões políticas e culturais que se inscrevem no espaço social e nas diferentes culturas organizacionais ou de regimes.

Ao permitir uma abordagem atractiva e útil para os discursos dos políticos, a cultura converteu-se numa ferramenta igualmente importante. Seja ao nível interno, seja ao nível externo, a legitimação política assumiu um discurso de carácter progressista. Os responsáveis políticos vêm na cultura uma oportunidade de influência estratégica na prossecução dos seus objetivos, mas esta pode ser também, reveladora de certos condicionamentos. É consensual que a valorização e investimento nos recursos humanos endógenos constituem uma mais-valia para os países. Desta forma, a valorização do capital humano pressupõe um “dever de agir” do Estado e “o consumo cultural é o novo pote de mel utilizado para atrair as abelhas investidoras” (Pratt, 2007, p. 200).

É neste contexto, que as cidades adoptam soluções de desenvolvimento e promoção, colocando a revitalização urbana e a gestão cultural em articulação com a capacidade de atracção de eventos, tais como os festivais. Estes eventos e projectos, com maior ou menor escala de investimento, trabalham, sobretudo, para o impacto e promoção do e no território. O dinamismo das cidades, através do planeamento, desenvolvimento e gestão de eventos, consiste em exemplos relevantes, nas áreas da cultura política e das práticas culturais, de estratégias políticas para alcançar objectivos de impacto cultural, económico e social.

A proveniência dos lucros económicos decorrentes da atividade cultural, que tradicionalmente estavam alocados à produção cinematográfica, à produção teatral ou à produção musical, não obstante alguma prevalência de resultados, contudo, à luz dos eventos recentes considera-se acertado alargar culturalmente o espectro para zonas até agora alheias ao poder da cultura. Estas alterações têm ocorrido forçosamente em contextos urbanos periféricos, como se a (re)descoberta de novos espaços urbanos se tratasse; envolvendo a concepção e desenvolvimentos de um projecto que se pretende sustentável, duma preparação de curadoria, mas também duma preparação ao nível da gestão, comunicação e avaliação. Neste âmbito, as capitais europeias da cultura ou a proposta de criação das capitais nacionais de cultura, bem como os festivais ou os jogos e campeonatos de futebol constituem exemplos interessantes que articulam a política, as artes (ou as práticas culturais) e o território.

Quadro 1 Cidades dinâmicas 

Fases do processo: concepção/ desenvolvimento- preparação - gestão - comunicação - avaliação
1. Evento - do conceito à prática
2. Visão e programação
3. Liderança, gestão e parcerias
4. Estrutura de gestão e organização
5. Financiamento e apoios
6. Marketing, comunicação e gestão de redes sociais
7. Públicos e audiências
8. Programação, eventos paralelos e resultados
9. Análise dos resultados e impactos
10. Sustentabilidade

Nota: Richards e Palmer (2010)

O dinamismo cultural das cidades assenta em políticas de revitalização urbana através da aplicação de instrumentos de planeamento e de gestão, mas também através de recursos distintivos, desde logo, assentes na própria concepção e desenvolvimento do projecto. No sentido em que os festivais representam simultaneamente, ideias e práticas, lugares e símbolos, reforçam as identidades urbanas, o sentir da comunidade e revitalizam o território através do concertado valor das indústrias culturais e criativas. Por seu turno, a globalização imprimiu competitividade e empreendedorismo a estas dinâmicas, estabelecendo-se redes de festivais, i.e. fluxos culturais, circuitos temáticos e de profissionais, tornando o fenómeno dos festivais transnacional.

3. Comunidade e território - o Festival Walk e Talk Anda e Fala

Criar, conceber e realizar um festival para a cidade - articulando política, artes e território - corresponde a um processo social e cultural de afirmação de uma globalização que ultrapassa as concepções e condições de insular, periferia ou margem. As políticas da globalização fornecem narrativas favoráveis à dinamização do território ao nível social, económico e ambiental, entre os quais o turismo e as práticas culturais constituem bons exemplos. O território desempenha nessa narrativa um papel de destaque, conjugando o contexto geográfico às dimensões de discurso histórico e político.

A dimensão discursiva apoiou-se na promoção do multiculturalismo e na necessidade de sustentabilidade como garantia duma cultura de paz e de boa convivência no sistema internacional. Em sentido contrário, as disparidades culturais e económicas entre Norte e Sul tornaram demasiado evidentes as assimetrias provocadas na era pós-colonial, sobre as quais se contrasta o esforço de criação de um referente identitário global, contra o inevitável «choque de civilizações de Huntington e outros.

No entanto, há aspectos de convergência política, económica e cultural que importam salientar, tais como: o estabelecimento de padrões de consumo cultural; a promoção do dinamismo cultural a que fizemos alusão anteriormente; os factores de competitividade e crescimento económico; o reforço das identidades e da comunidade; o estabelecimento de redes de sentido.

No desejo de criação de um festival de artes para a cidade está subjacente, entre outras coisas, um processo social, cultural e político de reconhecimento de vantagens, também económicas ainda que até indirectas, e do potencial transformador da cidade, ainda que insular ou periférica, em centros de produção e consumo.

Em suma, a cidade posiciona-se (place branding) e assume-se como factor produtivo, ultrapassando as suas condicionantes (ultra)periféricas. Este modelo assume-se como paradigma de desenvolvimento, se no passado marcadamente material e para as massas, no presente é fortemente marcado pela criatividade digital, urbana, temporária e de cadeias de valor imaterial.

Um exemplo destas estratégias, artísticas mas também políticas, da procura de novas centralidades e soluções para eventuais condicionantes insulares e periféricas - “o festival onde a periferia é uma arte” (Horta, 2017) - foi a criação do Festival Walk e Talk Anda e Fala e que propiciou o mote e a escolha para a capa deste número especial da revista Political Observer Revista Portuguesa de Ciência Política (RPCP), ao qual este texto é apenas um singelo contributo para alguma reflexão política e cultural sobre os pressupostos, circunstâncias e algumas consequências políticas deste tipo de iniciativas e projectos. A primeira edição do Festival Walk e Talk Anda e Fala realizou-se, pela primeira vez, em 2011.

Sem saberem bem o que poderia vir a seguir, os organizadores do primeiro W e T tinham já algumas ideias claras: inventar um espaço de programação e criação que fosse alternativo aos dois polos da vida cultural da ilha, ou muito popular ou muito erudito e elitista, e envolver pessoas de diversas áreas nesse processo. (Dias de Almeida, 2021)

Presentemente, com mais de uma década de consolidação1, este é um projecto dedicado às artes, à comunidade e ao território e, por isso, os tais pressupostos, circunstâncias e algumas consequências têm uma dimensão política. Também por isso, referia no início desta reflexão que o ponto de chegada e de partida deste texto é eminentemente político - não por vício do olhar que analisa, mas por pertinência do material que é observado e dado a conhecer. Ora vejamos:

No âmbito do Festival WalkTalk Anda e Fala foi constituída uma associação cultural sem fins lucrativos que é, desde 2016, entidade reconhecida de Utilidade Pública pelo Governo dos Açores. Entre 2020-2021 as suas actividades e projectos foram apoiadas pelo Ministério da Cultura/ DGARTES, Governo dos Açores e Câmara Municipal de Ponta Delgada.

A Associação Anda e Fala integra o grupo de reflexão e trabalho Periferias Centrais2 e é um dos parceiros do Programa Centriphery3, vencedor do Creative Europe 2019-2022 da Comissão Europeia. O Festival Walk e Talk é, ainda, membro da EFFE - Europe for Festivals for Europe.

A programação cultural é orientada pela ideia e prática de comunalidade - de artistas, de curadores, equipas técnicas envolvidas nos projectos e organização - com o objectivo de provocar intercepções entre valores comuns entre a comunidade, criando assim novas centralidades num território tantas vezes considerado periférico. A busca das tais centralidades periféricas está assente no envolvimento de diferentes práticas - da reflexão, da criação artística, da fruição artística, cultural e da natureza, da criação de públicos e da sustentabilidade destas mesmas práticas artísticas contemporâneas.

As práticas artísticas contemporâneas, propostas no âmbito da programação cultural do Festival Walk e Talk Anda e Fala, do Programa de Residências Artísticas e dos seus projectos paralelos de apoio às actividades artísticas nos Açores (no seu conjunto arquipelágico e não somente restrito à cidade de Ponta Delgada) contribuem de forma estruturada para a articulação entre política, artes e território, i.e. contribuem para a implementação de políticas culturais activadas na mais ampla acepção de democratização cultural, enquanto campo de acção em permanente construção.

A história do Walk e Talk provou que havia mesmo espaço, ali, para um festival assim, com atenção à arte contemporânea e ao cruzamento de artistas e linguagens. Hoje, o W e T conta com apoios importantes do Governo Regional dos Açores e da Direção Geral das Artes. Mas se se pode dizer que houve uma certa institucionalização do festival, é justo acrescentar que o movimento se fez em dois sentidos: a vida cultural de Ponta Delgada mudou nos últimos anos e o fervilhar anual do W e T teve a sua responsabilidade (há, até, quem fale duma “geração Walk e Talk”). (Dias de Almeida, 2021)

Se tomarmos atenção à realidade empírica, para além da vertigem conceptual que nos acompanha, as políticas culturais não existem no abstrato. «O poder de dirigir os instrumentos de gestão cultural e a capacidade de incentivar a criação artística implica escolhas que não são meras abstrações. (Ribeiro, 2004, p. 102) - são concebidas por criadores, técnicos, políticos, investigadores e pelos públicos, tendo em conta as exigências de consumo e as oportunidades de mercado (Pratt, 2007). O crescimento económico nos países desenvolvidos parece favorecer a afirmação de novos valores e interesses culturais.

E por falar em novos espaços… A partir deste ano, uma novidade permite ao festival W e T pensar-se e projetar-se no futuro de um modo novo: a Vaga (desde 2021 sede da associação Anda e Fala, que é a responsável pelo festival Walk e Talk mas tem outras atividades) estará disponível todo o ano como epicentro de exposições, residências, conversas abertas e muitas ideias a fervilhar. Isso permite um “pensamento a longo prazo, como numa maratona”, diz Jesse, que admite que a pandemia teve pelo menos um aspeto positivo para a associação: “Permitiu parar para pensar.” Longe da precariedade e caráter efémero dos primeiros anos, o Walk e Talk está agora integrado numa estrutura mais sólida, parte de um ecossistema cultural que ajudou a impor na cidade, espaço a partir do qual se pode pensar toda uma estratégia de “democratização” das artes, de uma forma “tão diversa e inclusiva quanto possível.” (Dias de Almeida, 2021)

Por conseguinte, a dimensão económica da produção cultural estendeu-se para sectores como o turismo, a gastronomia, a preservação do património, a televisão, a Internet e as suas redes sociais. A elevada rentabilidade associada a estas atividades, conduziu a que a cultura já não estivesse politicamente condicionada pela censura do Estado, mas que, não obstante, seja regida por um conjunto de regulamentos, por força da elevada disputa concorrencial.

Conclusões ou discussão inacabada

Da política e da cultura configura um dos debates mais controversos concernentes à complexidade e ambiguidade que suscitam, quer no conjunto das ciências sociais, quer na ciência política em particular. As dinâmicas políticas convocam uma colaboração interdisciplinar e possibilitam a aplicação de uma variedade de metodologias, sejam através das análises de conteúdos, seja com recurso à expansão do campo exploratório das artes e das práticas culturais. Para além disso, as dinâmicas da comunidade e do território permitem repensar os equilíbrios entre vantagens e condicionalismos, num resultado colaborativo e que poderá ser traduzido em novas propostas políticas para a cidade - do território que se faz comunidade, por assim dizer.

Nesse sentido, as valências das artes e das práticas culturais emergiram como uma espécie de fio condutor de uma parte relevante da acção política, quer em termos formais e institucionais quer em termos de participação social e de activismo. Por conseguinte, o enfraquecimento das hierarquias sociais e económicas tem-se refletido em perdas significativas de legitimidade das classes políticas tradicionais, tal como veiculado no debate público, e na afirmação dos novos movimentos sociais, tal como a inquirição da realidade política nos permite constatar

Por um lado, as artes e as práticas culturais surgem enquanto possíveis marcadores das matérias e conteúdos que têm interesse e relevância, capazes de gerar investimento e sinergias em áreas multidisciplinares. Por outro lado, as artes e, nomeadamente a arte urbana, assumem igualmente, um carácter revelador dessas mesmas matérias e conteúdos, convertidos nas atitudes e valores que influenciam os comportamentos e as hierarquias institucionais, tomadas nas suas relações entre política e classes sociais.

No que à ciência política diz respeito, a emergência de uma nova cultura política (NPC) tem vindo a adquirir relevância, talvez numa possível tentativa sistemática em compreender e explicar os elementos que caracterizam o sistema político e as democracias contemporâneas e pós-modernas.

Se um estudo não-convencional da política constitui, no presente, o limiar teórico disponível - ou uma brecha de oportunidade na produção de conhecimento - essa janela de oportunidade permite-nos discutir, sob um ponto de vista político, as alterações operadas nos meios culturais e que as colocam no centro da reflexão sobre as novas configurações do poder e das práticas culturais. É esse mesmo centro - o da possibilidade de novas configurações teóricas, abstractas, epistemológicas e paradigmáticas - que incentiva a busca e afirmação de novas centralidades relativas ou, já tantas vezes referidas, de centralidades periféricas - a partir da política, das artes e do território. Da ilha para o mundo.

Referências

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31. Programa Europeu Centriphery. Disponível para consulta: https://www.centriphery.eu/ Links ]

32. Walk e Talk Anda e Fala Associação cultural sem fins lucrativos. Disponível para consulta: https://andafala.org/Andafala Links ]

1Para consultar o arquivo de edições anteriores do Festival Walk e Talk Anda e Fala, aceda ao link: https://andafala.org/Walktalkazores/WalkTalk_2022

2Periferias Centrais é um grupo informal de trabalho que se dedica a refletir, agir e tornar visível a arte e a cultura em múltiplos centros. Está empenhado em melhorar as práticas profissionais, o desenvolvimento regenerativo dos territórios e a promoção da democracia cultural. Ambiciona influenciar políticas públicas de cultura. Disponível em: https://periferiascentrais.wordpress.com/quem-somos/

3Centriphery is a collaborative project between nine partner organisations based across Europe. As every periphery is its own centre, Centriphery will give the citizens of the so-called “periphery” a central voice (…) and empower them to participate in the re-creation of local identities and European narratives. Centriphery is a multi-layered interdisciplinary, inclusive and inter-generational creative European project that will engage professional international artists in an intensive dialogue with local artists and participating citizens in decentralised regions. (…) Led by the Festival of Regions (Austria), this large-scale European project gathers 8 partners: New Culture Foundation (Bulgaria), Dansehallerne (Denmark), Espoo City Theater (Finland), La Manufacture Collectif Contemporain (France), Rijeka 2020 (Croatia), Cultura Nova Festival (Netherlands), Walk e Talk (Azores, Portugal) and Prin Banat (Romania). Disponível em: https://www.centriphery.eu/index.php/about/

4Nota: Por vontade expressa do autor, este artigo não segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Recebido: 11 de Novembro de 2022; Aceito: 19 de Dezembro de 2022

PATRÍCIA OLIVEIRA

Docente convidada do Departamento de Comunicação, Filosofia e Política da Universidade da Beira Interior, Covilhã; vice-coordenadora e investigadora doutorada do Observatório Político. Doutorada em Ciência Política pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, com uma tese intitulada “Cultura Política e Filme Documentário em Portugal (1974-2012)”, cuja investigação fora financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/89754/2012); membro do conselho editorial e de redação da Revista Portuguesa de Ciência Política; colaboradora do Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade de Algarve (CIAC-UAlg), Portugal; entre 2017 e 2018 colaborou com a Missão de Portugal junto da UNESCO, Paris.

Invited lecturer at the Department of Communication, Philosophy and Politics of the University of Beira, Covilhã; Vice-coordinator and PhD researcher of Observatório Político. PhD in political science by the Institute of Social and Political Sciences, University of Lisbon, Portugal, with the dissertation Political Culture and Documentary Film in Portugal (1974-2012), funded by the Portuguese national funding Agency for Science, Research and Technology (FCT, Portugal); on the editorial Board of the Political Observer Revista Portuguesa de Ciência Política (RPCP); researcher at the Centre in Arts and Communication (CIAC-UAlg), Portugal; between 2017-2018 collaborated with the Portuguese Delegation to UNESCO, Paris.

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