1. INTRODUÇÃO
Entre um fenômeno e sua compreensão, entre a experiência e seu sentido, há uma mediação interpretativa que, à luz da filosofia da educação, se constitui como processo hermenêutico. Entre o que se caracteriza como texto e suas possibilidades interpretativas, imbricam-se conhecimento lógico-racional-objetivo e saber da experiência, os quais se articulam e se organizam como linguagem. Nessa perspectiva, os textos não se limitam à palavra, mas ampliam-se, na esteira da etimologia do termo, ao que é tecido, aos múltiplos fios com que se tece um texto e, por extensão, ao seu sentido, de tal forma que a própria realidade, ou o que se chama de mundo, desde que compreendidos como resultado de uma construção de múltiplos fios que se entretecem, são também texto. E todo texto convoca e provoca o intérprete a um diálogo, por meio do qual seus sentidos são interpretados, ignorados, manipulados, criados ou mesmo desfeitos, a depender da perspectiva adotada, das crenças envolvidas e dos objetivos buscados.
A hermenêutica empreende justamente esse processo, em que interpretar coincide com conhecer, em que compreender é o mesmo que traduzir. No entanto, o conhecimento que advém da interpretação de textos, em seus sentidos múltiplos, apresenta elementos próprios que agenciam os processos formativos de longa duração. É dessa articulação entre a hermenêutica e os processos formativos que este artigo tratará, recolhendo elementos para uma pedagogia da escolha.
2. MÁTHEMA E PÁTHEI MÁTHOS
Um modo possível de relacionar a hermenêutica, como ramo da filosofia, à educação, como processo formativo, é recorrer a dois modos distintos de saber, um que advém do conhecimento lógico-racional-objetivo, que os gregos chamavam de máthema, e outro por meio da experiência, da paixão, da dor, chamado de páthei máthos. Esta expressão - páthei máthos - aparece na tragédia de Ésquilo intitulada Agamênon, presente na trilogia Oréstia, quando o coro de anciãos canta:
Zeus sem dúvida foi quem levou os homens pelos caminhos da sabedoria e decretou a regra para sempre certa: “o sofrimento é a melhor lição”. Da mesma forma que durante o sono, quando somente o coração está desperto, antigas penas nossas voltam à memória, assim aos homens vem, malgrado seu, a sapiência. (Ésquilo, 2003, p. 25, versos 209-217)
A tradução de Mário da Gama Kury para páthei máthos - “o sofrimento é a melhor lição” - seleciona um dos termos possíveis para a compreensão de páthos, que engloba também paixão, afetos ou, ainda, emoções, como aparece na tradução de Eudoro de Sousa para a Poética de Aristóteles (2003, p.130 e p.163), o que sugere que podemos aprender com as emoções suscitadas pelas obras artísticas. Vale observar ainda, na tragédia de Ésquilo, que o páthei máthos nos vem ao acaso, sem que necessariamente o busquemos, como um saber subjetivo, interior. Esse saber, para ser acessado, precisa ser vivido, adquirido por meio de experiências, de emoções. Diferente da máthema, do saber lógico, instrucional, cuja objetividade se tornou afeita aos métodos científicos, o páthei máthos almeja o sentido de um fenômeno, de uma ocorrência, e não sua explicação1.
Para Jorge Larrosa (2014, pp. 31-34), a ciência moderna converteu a experiência em experimento, isto é, em um caminho seguro e preestabelecido, validando os conhecimentos capazes de detectar e exprimir as regularidades do mundo concreto, com o objetivo de acumular progressivamente verdades objetivas. No ensolarado monumento ao saber científico e enciclopédico, o sabor da experiência jaz à sombra, como fruto caído que apetece a poucos paladares.
Tal constatação dialoga com o reparo ao eruditismo talhado por Nietzsche (1995), que observa na atitude do erudito - o qual “gasta toda a sua energia em dizer sim e não, na crítica daquilo que já foi pensado” (p. 49) - um modo possível de apropriação dos resultados da ciência, pautado pelo acúmulo de informações em detrimento aos processos formativos derivados das experiências da vida. Ao se ater ao que já foi pensado, “ele próprio não pensa mais...”. Para Rosa Maria Dias (1991), o Nietzsche Educador ensina que “a filosofia e a vida de um pensador deviam ser apreciadas como apreciamos uma obra de arte, por sua beleza e por servir como modelo de uma ‘bela possibilidade de vida’” (p. 114).
Essa perspectiva aparece em Nietzsche com a retomada do verso de Píndaro, geralmente apresentado como “torna-te o que tu és”, presente nos escritos de juventude, em duas passagens do Zaratustra e no subtítulo de Ecce Homo, que Paulo César de Souza traduziu por “Como alguém se torna o que é” (Nietzsche, 1995) e Rubens Rodrigues Torres Filho, na coleção Os pensadores, “Como tornar-se o que se é” (Nietzsche, 1983, p. 363). No parágrafo 9 do imodesto capítulo “Por que sou tão inteligente” de Ecce Homo, Nietzsche escreve:
Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além da tarefa. (Nietzsche, 1995, p. 48)
Aprender com as pequenas coisas da vida passa a ser, portanto, um caminho de formação, de busca por aquilo que se é, como cuidado de si. O projeto de formação de Nietzsche não impõe que nos tornemos este ou aquele, isso ou aquilo, como se pudéssemos ou quiséssemos ser o que Nietzsche, ou qualquer outro, foi. Só posso ser eu mesmo. Mas um eu que ainda não sou, daí a ideia de tornar-se o que se é. Preciso me tornar o que eu sou, pois jamais sou uma unidade dada ou acabada, estou sempre em fluxo, em devir, em transformação constante. Assim, não me torno outro, visto que estou sempre me transformando em mim mesmo. Trata-se, nas palavras de Giacoia Junior (2014a), de “criar um personagem que incorpora e faz uso de tudo o que lhe é genuinamente próprio, e que seria inteiramente ele mesmo - o que exclui qualquer imitação” (p. 260).
Creio ser importante retornar ao texto de Píndaro, o que comumente não se faz, para entender com mais precisão o sentido de sua divisa formativa. Em grego, o verso aparece na Pítica 2, escrita por volta de 475 a.C., e que homenageia Hierão de Siracusa, vencedor de uma corrida de carros. O contexto em si contribui pouco para o entendimento do verso, que aparece na linha 72 do poema. Importa mais o sentido original, expresso por γενοι οιος εσσι μαθων (genói oíos essí mathón) e que foi traduzido por Rossevelt Rocha (2018) como: “Sejas tal qual és, tu que aprendeste” (p. 169). Em nota de rodapé, ele sugere esta outra possibilidade: “Sejas quem apreendeste que és” (p. 169). Carlos Leonardo Bonturim Antunes (2012) chega a uma tradução mais interessante: “Sê quem tu és, aprendendo quem és” (p. 220). O que há de novo aqui em relação ao “torna-te o que tu és” é o termo aprender. De fato, no verso de Píndaro aparece o vocábulo mathón, que remete ao páthei máthos - aprender pela experiência dolorosa - e ao radical máthema (lição). Portanto, não chegamos a ser o que somos apenas sendo, mas justamente aprendendo a ser. Ou ainda: aprendendo com o que somos, o que remete ao “cuidado de si”, proposto por Nietzsche (1995, p. 48), ou ao amor fati: “fórmula da afirmação máxima, da plenitude, da abundância, um dizer sim sem reservas, até mesmo ao sofrimento, à própria culpa, a tudo o que é problemático e estranho na existência” (Nietzsche, 1995, p. 118).
Entre as múltiplas possibilidades de compreensão dos processos formativos - e aqui não há qualquer pretensão de hierarquizá-los -, o que se está a buscar são os vínculos entre educação e modos de viver, entre educação e experiência, entre educação e os imaginários que orientam as formas de agir, de pensar, sentir, avaliar, de se expressar, de lidar com o outro e se situar no mundo.
O saber lógico-racional-objetivo pode ser aferido tão logo se realize. Por meio de uma lição (máthema), aprende-se como resolver equação de primeiro grau, por exemplo, e, ato contínuo, uma série de operações semelhantes podem ser empregadas na resolução de outras equações. Não há problema que seja assim, o problema surge quando essa lógica se impõe sobre as demais formas de conhecimento. A lógica basta para resolver uma equação matemática. No entanto, como detectar os vestígios que ficam após a leitura de um romance, um poema, ou após a reflexão de determinado tema filosófico? O que posso aprender com a emoção suscitada pela experiência estética? O que se movimenta em mim em tais atos? Pelo páthei máthos, essas experiências, em algum momento da trajetória, passam a ser percebidas como aprendizado, os vestígios se tornam evidências e a sapiência se mostra presente. Como considerar esse movimento lento, mas contínuo, ligado às experiências vividas?
De acordo com Marilena Chauí (2002), não é uma questão nova, mas posta desde os primeiros filósofos:
O que espanta os primeiros físicos ou filósofos, o que lhes causa admiração e melancolia é a perpétua instabilidade das coisas, sua aparição e desaparição, o nascimento e a morte, a geração e corrupção dos seres. Numa palavra, a mudança. Kínesis significa movimento. Mas, em grego, movimento não é, como para nós, apenas locomoção ou mudança de lugar. Movimento são todas as mudanças que um ser pode sofrer: mudanças qualitativas, quantitativas e de lugar. (p. 47)
A educação pode, então, ser entendida como movimento? Aristóteles acredita que sim, mas restringe esse movimento a normas fixas e necessárias, determinadas pelos extremos. Em sua perspectiva, o movimento parte de um estado inicial de carência ou privação e chega ao ponto final de realização da forma, designado como télos. O conhecimento, por exemplo, nessa acepção aristotélica, é o “movimento do que tende da ignorância para o saber” (Chauí, 2002, p. 411) ou, como afirma Silvia Pimenta Velloso Rocha (2006), “passagem da potência ao ato - passagem que não destrói as formas, mas as concretiza ou materializa. Assim, um homem se torna virtuoso (em ato) atualizando seu caráter (potência) por meio do hábito (causa eficiente)” (p. 268). Em minha interpretação, esse movimento é o que se observa na máthema, no saber lógico-racional-objetivo, mas não necessariamente no páthei máthos, no saber da experiência, em que muitas vezes o movimento ocorre em sentido contrário, quando desaprendemos certas crenças ou convicções, como nas mudanças de posicionamento político ou ideológico, no abandono ou conversão de crenças religiosas ou na reconsideração de práticas e pensamentos sexistas e preconceituosos.
Esses exemplos de aprendizagens e desaprendizagens mostram mudanças de interpretação, seja de um fenômeno circunscrito, seja do que é percebido como realidade, o que sugere que não há apenas uma maneira de interpretar, mas múltiplas. Essa é uma questão posta pela Hermenêutica, que pode ser definida atualmente como uma filosofia da interpretação que se concentra na condição histórica e linguística da experiência humana de mundo.
3. HERMENÊUTICA E EDUCAÇÃO
Articular a hermenêutica à educação é fundamental para compreender o vínculo entre o saber da experiência, páthei máthos, e a leitura de mundo, em direta conexão com a leitura da palavra escrita, como defendida por Paulo Freire (2003), numa abordagem contemporânea da formação, diversa daquela pensada pelos gregos da Paideia ou pelos alemães da Bildung. Também é importante frisar que a hermenêutica, assim como a formação, não é compreendida hoje como em seus primórdios. Historicamente, houve uma ampliação de seu escopo e uma profunda alteração de seu sentido inicial e de seu alcance.
De maneira esquemática, podemos situar três grandes momentos, com acepções distintas. Em seu sentido clássico, a hermenêutica designava a arte de interpretar textos, tendo como alvo escritos religiosos e canônicos, visados pela teologia, pelo direito e pela filologia. Sua função era secundária e normativa, restringia-se a aclarar passagens ambíguas e fixar regras advindas da retórica. A interpretação coincidia com a expressão da verdade, entendida como adequação entre as palavras e o que elas designam (Grondin, 2006).
A hermenêutica começa a se tornar mais universal com as decisivas contribuições de Friedrich Schleiermacher, que muda o enfoque de como interpretar um texto para o que significa interpretar e compreender, relacionando a hermenêutica à arte de pensar, portanto, a um estatuto filosófico. Com Dilthey, as regras e métodos das ciências da compreensão passam a servir de fundamento metodológico a todas as ciências humanas, justificando seu estatuto científico.
O terceiro momento de transformação assume a forma de uma filosofia universal da interpretação, deslocando a questão do método científico para o processo fundamental encrustado no cerne da própria vida, como uma característica da nossa presença no mundo. Esse processo ocorre no século XX e conta com as contribuições de Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Rorty e Vattimo.
Como não há espaço aqui para tratar da evolução do conceito à luz de cada um desses hermeneutas, adotarei a estratégia de trazer os pontos convergentes com a perspectiva da educação como formação pela experiência. Nesse sentido, a hermenêutica pode ser considerada, de acordo com Gianni Vattimo (1999), como uma koiné, em referência à forma popular do idioma grego utilizado entre 300 a.C. e 300 d.C., uma espécie de dialeto comum ou língua franca. Nessa analogia, a hermenêutica é a “generalização da noção de interpretação, até coincidir com a mesma experiência do mundo” (Vattimo, 1999, p. 16), de modo que a experiência de verdade é uma experiência interpretativa, resultado a que chegam, ainda de acordo com Vattimo (1999, p. 17), o existencialismo, o neokantismo, a fenomenologia e a filosofia analítica.
Pode-se, portanto, pensar em uma hermenêutica nietzschiana, ou mesmo machadiana, ainda que nem Nietzsche nem Machado de Assis tenham recorrido ao termo. Neste último autor, encontram-se numerosas referências sobre o modo como seus personagens constroem o sentido da realidade, como nesta passagem do conto O segredo do Bonzo, quando enuncia:
Considerei o caso, e entendi que, se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. (Assis, 2008, p. 71)
Machado escreve essas linhas em 1882, três ou quatro anos antes de Nietzsche anotar: “a essência de uma coisa também é apenas uma opinião sobre a ‘coisa’” (Nietzsche, 2002, p. 159, NF-1887, frag. 2[150]). Assim, o hermeneuta Machado de Assis está menos empenhado em extrair uma pretensa verdade de dadas ocorrências que constatar os meios usados para que se imponham certos sentidos, ainda que fantasiosos ou meramente opinativos, sobre outros, ideia que coincide com as concepções nietzschianas de conhecimento. Não pretendem, nem Machado nem Nietzsche, descobrir o sentido verdadeiro de uma coisa, mas problematizam os sentidos desejados, as opiniões.
No caso deste último, é forçoso lembrar sua célebre fórmula “não há fatos, somente interpretações” (Nietzsche, 2002, p. 164, NF-1886, frag. 7[60]), publicada postumamente. Nesse mesmo fragmento, encontra-se: “o mundo é cognoscível: mas ele é interpretável de outro modo, ele não tem nenhum sentido subjacente, porém inúmeros sentidos, ‘perspectivismo’” (Nietzsche, 2002, p. 165). Assim, para Nietzsche (1998, p. 109), “existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo”, o que significa que é impossível um conhecimento neutro, único e total, constituindo-se o perspectivismo na “afirmação de que há uma pluralidade de sentidos, uma polissemia irredutível, no limite, a uma definição unívoca e não ambígua” (Mota, 2010, p. 214). Em outras palavras, é “uma multiplicidade de sentidos e funções, interesses e figuras, forças e resistências, sucessivas camadas de interpretações” (Giacoia Jr., 2014b, p. 25), o que inviabiliza a redução dos “fatos” a um único sentido. Desse modo, Nietzsche associa a interpretação aos instintos, como um processo orgânico, da mesma forma que entende os estados estéticos das artes como fisiológicos. Como esclarece Renato Bittencourt (2010),
O termo “fisiologia” no contexto da filosofia de Nietzsche pode ser compreendido como um processo orgânico do corpo humano que agrega diversas modalidades de expressão nas suas experiências vitais; [...] porta tanto um sentido orgânico/somático como psíquico, tornando tais esferas interdependentes, pois as múltiplas vivências do organismo constituem uma dinâmica indissociável. (p. 3)
Portanto, assim como as artes, a interpretação também pode intensificar ou debilitar os impulsos ligados à vida, injetando ou suprimindo energia, tanto física quanto psíquica. Os modos como compreendemos o que nos rodeia e a nós mesmos interferem diretamente em nossos processos mentais e físicos, alterando humor, sentimentos, pensamentos, etc.
O caráter decisivo da contribuição nietzschiana à hermenêutica está justamente na ampliação do que se entende por conhecimento. Não como processo de verificação da adequabilidade entre um objeto ou fenômeno e seu enunciado, mas como a imposição instintiva de uma vontade. Por isso, não se pode negligenciar sua autodenominação de filósofo trágico, como aparece em Ecce Homo, quando afirma ser o extremo oposto de um filósofo pessimista, compreendendo o cerne de seu pensamento como a transposição do dionisíaco em pathos filosófico (Nietzsche, 1995). O que Nietzsche faz é deslocar a ideia de filosofia como arte de descobrir a verdade, como aparece em Aristóteles, para arte de viver, como fizeram os Epicuristas. Ou, se quisermos retornar à analogia inicial: em vez de interpretação como máthema, verificação de correspondências, uma hermenêutica oriunda do páthei máthos, da experiência vivida.
Retomando a questão do desenvolvimento da hermenêutica no século XX em direção a uma filosofia universal, temos que registrar as contribuições de Martin Heidegger, que modifica o objeto, a vocação e o estatuto da hermenêutica, elevando-a à condição de filosofia. A mudança de objeto ocorre por meio de uma espécie de virada existencial da hermenêutica, que passa do texto à existência, motivando uma mudança de vocação, pois, para além de se constituir como uma técnica ou metodologia, realiza uma função mais fenomenológica, o que conduz a uma mudança de estatuto: não se trata mais de refletir acerca da interpretação ou de seus métodos, mas da realização de um processo de interpretação que se confunde com a própria filosofia (Grondin, 2006, pp. 28-29).
Discípulo de Heidegger, Hans-Georg Gadamer defende uma concepção participativa da compreensão, de modo que a verdade buscada pelas ciências humanas habilite outras formas de conhecimento que não somente aquelas postuladas pelas ciências exatas, que requerem que o saber seja metódico para ser científico. Para Gadamer (1997), a verdade não viria do distanciamento entre sujeito e objeto, como nos métodos das ciências exatas, mas da participação do sujeito em seu envolvimento com o objeto, participação que tornaria possível a compreensão, entendida como a verdade científica das ciências humanas. Desse modo, toda compreensão deriva de uma perspectiva ancorada na história e na linguagem. Nossos preconceitos e crenças, as perguntas que julgamos que devem ser feitas e as respostas com as quais nos satisfazemos são resultados de uma conversa com a história, por isso, “o ser que pode ser compreendido, é a linguagem” (Gadamer, 1997, p. 24), isto é, o modo como interpretamos a tradição histórica é limitado pelo absurdo, pelo incompreensível e pela resistência da própria realidade, inibindo o sentido do todo.
Paul Ricoeur (2008) - outra contribuição fundamental para a universalização da hermenêutica - critica justamente a oposição antinômica estabelecida por Gadamer em relação ao procedimento hermenêutico: ou se privilegia a atitude metodológica, cujo distanciamento alienante possibilita o estatuto científico das ciências humanas, embora se perca a densidade ontológica do que é estudado, ou se pratica a atitude de verdade, de pertencimento, de proximidade, e se renuncia à objetividade das ciências humanas. Ricoeur pretende superar esse problema - a verdade do texto ou a objetividade do método - recuperando a ideia de distanciamento. Assim, em relação a um texto, não há como estabelecer a intenção do autor, mas o modo como ele propõe um mundo que dialoga com o modo como cada leitor propõe os seus próprios mundos possíveis.
Na perspectiva de Paul Ricoeur, a compreensão envolve a compreensão de si por meio do outro. Isso significa que o sujeito não se conhece por intuição imediata, mas por meio dos sinais de humanidade depositados nas obras de cultura.
Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas expor-se ao texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência respondendo, de maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo. (Ricoeur, 2008, p. 68)
Nessa concepção, o intérprete é, em certa medida, também autor, pois se expõe ao mundo do texto, compreendendo-o a partir de si, de seu modo de habitá-lo ou rechaçá-lo. O texto, para Ricoeur, é discurso fixado pela escrita, mas também “a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos” (Ricoeur, 2008, p. 67).
Pode-se constatar, nas abordagens de Heidegger, Gadamer e Ricoeur, a busca de uma correspondência entre linguagem e realidade, ou texto e verdade, por meio de uma adequação entre o que se diz e a coisa ela mesma. Por exemplo, afirmações como “a Terra é plana” ou “o sol gira ao redor da Terra” são falsas, porque refutadas pela própria realidade, cujas evidências não deixam dúvidas sobre a esfericidade do planeta e sua translação em torno do Sol. Embora fique claro o interesse pela linguagem, em convergência com a virada linguística desencadeada pelas abordagens de Wittgenstein e prolongadas nas de Richard Rorty, subjaz a crença em um sentido que emanaria da própria realidade ou das coisas elas mesmas. Tratando da concepção fenomenológica de hermenêutica proposta por Heidegger, Gadamer (1997) escreve:
o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das ideias que lhe ocorram”, pois a tarefa da compreensão é “elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem ser confirmadas “nas coisas”. (p. 402)
O que não ocorreu a esses filósofos é que o real pode ser indiferente aos sentidos, como especula Clément Rosset (2004), para quem o real é insignificante, porque, em si, não significa nada, ou seja, não se justifica racionalmente, não pertence a nenhum projeto (divino, natural ou de outra ordem), não possui, em suma, nenhum princípio. Assim, a translação da Terra indica o movimento do planeta em torno do sol. Os sentidos que podem ser extraídos dessa realidade são vários, mas isso não significa que emanaram do real, mas que foram lá colocados pela linguagem. Uma tal concepção filosófica não coloca em dúvida a existência do real, mas a pretensão humana de reduzi-lo a um sentido verdadeiro.
O real fala, mas não emite mais que um único som (monos tonos) e não entrega mais que um único sentido [...]. Um único sentido monótono: ter sempre, necessariamente, um sentido qualquer. O sentido não escapa nunca à monotonia de ser qualquer, necessariamente não necessário. As mensagens procedentes do real, portanto, são finalmente indiferentes porque têm um mesmo conteúdo, monótono e insignificante. (Rosset, 2004, p. 29, tradução minha do original francês)
Essa compreensão é a mesma que tenho da fórmula nietzschiana “não há fatos, somente interpretações”: não há sentido imanente nas ocorrências, mas pontos de vista, perspectivas, interpretações, tentativas de compreender uma ocorrência a partir de sua relação com outras. Assim, as interpretações não revelam o sentido da coisa ela mesma, mas o modo como construímos essas interpretações. Por exemplo, as expressões mudança climática e aquecimento global, conquanto se refiram a fenômenos identificáveis, ocultam seus agentes, como se ocorressem por si mesmos. Poderíamos dizer, no lugar, destruição do ambiente ou exploração humana dos recursos naturais, o que implicaria uma correlação subentendida entre o sujeito da ação e o sistema produtivo-econômico que subjaz à vida social dos últimos duzentos anos da história ocidental.
Para Gianni Vattimo, o “não existem fatos, somente interpretações”, além de se relacionar com teses constantes em Humano, Demasiado Humano e A gaia ciência, são exemplos evidentes de uma filosofia hermenêutica, o que, em sua tese, vincularia Nietzsche à escola da hermenêutica ontológica, definida como “a tendência filosófica que assume como tema central o fenômeno da interpretação, considerado o traço essencial da existência humana e a base apropriada para a crítica e a ‘destruição’ da metafísica tradicional” (Vattimo, 2010, p. 135). Não nos cabe aqui discutir se o Nietzsche hermenêutico de Vattimo se sustenta ou não, mas o vínculo que se estabelece entre hermenêutica e niilismo, sendo o niilismo “a situação em que o homem reconhece explicitamente a ausência de fundamento como constitutiva da sua condição (aquilo que, em outras palavras, Nietzsche chama de morte de Deus)” (Vattimo, 1996, p. 115).
Vattimo (1999) sustenta que o ser não é nada em si mesmo, reduzindo-se à linguagem e às interpretações, de modo que a hermenêutica é a interpretação filosófica a mais convincente possível de uma situação, de uma época, de uma proveniência. A associação que Vattimo faz entre hermenêutica e história é completamente distinta da realizada pelos hermeneutas que o antecederam, pois não encontra nela um télos, uma providencial e necessária série de eventos, cujo resultado seria nossa civilização, mas sua produção casual, um dinâmico jogo de forças conflitantes.
Ainda em diálogo com Nietzsche, Vattimo constata o que chama de “centro de interpretação” na obra nietzschiana:
O mundo da interação de forças, das perspectivas continuamente reajustadas, pode também ser descrito como a machinerie do mundo industrial, dominado por ‘uma crescente exploração econômica do homem e da humanidade’. Para Nietzsche, este mundo tem necessidade de um contramovimento, constituído pelo ideal do Übermensch. (Vattimo, 2010, p. 145)
Isso significa que Nietzsche, no entendimento de Vattimo, vê na interpretação uma forma de dar sentido ao mundo da vontade de potência, considerado como a interpretação de perspectivas em conflito. Essa posição de Nietzsche pode ser considerada, assim a interpreto, como uma superação do niilismo passando por sua consumação (Almeida, 2015a). Como o niilismo é a constatação da impossibilidade de responder à pergunta “por quê?” - questão que reconheceria na explicação racional um modo de chegar ao sentido inerente às coisas -, há dois caminhos a seguir: a negação do niilismo pela tentativa de restabelecer uma dada verdade - matriz dos negacionismos - ou, então, sua consumação, que abriria caminho, após o reconhecimento de que não há sentido inerente ao real, para a formulação dos valores afirmativos da vida, os quais poderiam fazer frente “à crescente exploração econômica do homem e da humanidade”.
Em suma, a concepção hermenêutica que Vattimo reconhece em Nietzsche coloca em suspeita a ideia de uma verdade fundamental a ser descoberta pela atividade filosófica e, em contrapartida, atribui ao pensamento uma função de desmascaramento do valor da verdade, como usado pelas ideologias e pelas sublimações psicológicas. Essa possibilidade de compreensão do pensamento como atividade de desmascaramento dialoga com as desaprendizagens promovidas pelo páthei máthos, ou seja, os processos formativos, na contemporaneidade, não se dão somente pelo acúmulo de saberes ou pela descoberta da verdade ou do sentido das coisas e dos acontecimentos, mas também e principalmente quando os desaprendemos, quando renunciamos à pretensão de um sentido inato e passamos ao ato da criação de sentidos.
Outra contribuição à universalidade da hermenêutica se encontra na proposta de Richard Rorty de substituir a epistemologia pela hermenêutica, ao entender que por seu intermédio se pode aprender a viver sem a ideia de verdade, posta como correspondência ao real. O conhecimento, nessa acepção, deixa de espelhar o mundo para se tornar um efeito da conversação:
Se encararmos o conhecer não como tendo uma essência a ser descrita por cientistas ou filósofos, mas antes como um direito, pelos padrões correntes, de acreditar, então estaremos bem no caminho de ver a conversação como o contexto último dentro do qual o conhecimento deve ser compreendido. (Rorty, 1994, pp. 381-382)
Como prática social, a conversação torna-se uma etapa importante dos processos formativos. Para o filósofo estadunidense, a formação escolar divide-se em dois momentos. No primeiro, o mundo é apresentado aos jovens, como um processo de socialização; só então, num segundo momento, se inicia o processo de individuação, por meio do estímulo à imaginação, ao questionamento das convenções, ao exercício da dúvida. Nessa perspectiva, a educação deve se abster de buscar a verdade e se ater às suas versões, isto é, aos usos que se faz do que se considera como verdadeiro. É nessa dimensão, regulada pela linguagem, que as conversações ocorrem, que os consensos são criados e desafiados, que as esperanças são gestadas e a democracia experimentada.
Aberto o percurso pela hermenêutica, depois da discussão sobre os processos formativos, compreendidos como movimento lento de aprendizagens e desaprendizagens, que não se limitam aos procedimentos lógico-racional-objetivos (máthema), mas que requerem também o saber da experiência (páthei máthos), estamos em condições de perguntar o que significa o ato de compreender. Se o conhecimento não é representação, espelhamento, explicação da realidade, qual o seu alcance? O que pode nos ensinar?
Um dos modos de significar o ato de compreender é relacioná-lo à tradução. A tradução não se restringe a processos de intercâmbio linguístico, a correspondências de palavras em idiomas diferentes. Como nota Steiner (2005), a “tradução diacrônica no interior da própria língua é tão constante, nós a realizamos tão inconscientemente que raramente paramos para observar seja sua complexidade formal, seja o papel decisivo que ela exerce na própria existência da civilização” (. 54). Assim, compreender é sinônimo de traduzir ou, se preferirmos, de interpretar. Como constata Steiner (2005):
Um ator é interprète de Racine; um pianista dá une interprétation a uma sonata de Beethoven. Por meio do envolvimento de sua própria identidade, um crítico torna-se un interprète de (alguém que dá vida a) Montaigne ou Mallarmé. [...] Quando lemos ou ouvimos qualquer enunciado verbal do passado, seja saído do Levítico ou do best seller do último ano, nós traduzimos. (p. 53)
Nossa condição humana é, portanto, a de intérpretes, de tradutores, que buscam incessantemente, embora alguns com mais frequência que outros, compreender o que nos é dado viver. Ao relacionarmos determinados acontecimentos ao que chamamos de história, estamos criando sentidos, os quais, para serem compreendidos, precisam ser traduzidos em expressões que correspondam às perspectivas que lançamos sobre esses acontecimentos. É esse o sentido de interpretar. E é por isso que não há fatos, somente interpretações.
4. PEDAGOGIA DA ESCOLHA
Dado o caráter universal da hermenêutica, podemos retornar aos processos formativos, mas não sem antes envolver uma nova variável, que são as manifestações artísticas. De que modo a interpretação de obras de arte se relaciona com a compreensão de si, do outro e do mundo?
A tese aqui defendida é que a experiência estética, ao se dispor por meio de duplos (textos, pinturas, fotografias, filmes etc.), mantém um distanciamento seguro da realidade, possibilitando que sejam adquiridos os saberes da experiência (páthei máthos) sem as consequências dos acontecimentos reais. Os saberes da experiência estética, no entanto, não se restringem às obras e às culturas das quais provêm, mas nos ensinam a lidar com as situações vividas na realidade.
Uma tragédia grega ou um filme de horror, conquanto sejam ficções, nos colocam em contato com emoções reais. Não fingimos medo, espanto ou consternação, sentimos realmente essas emoções; por outro lado, não tomamos a ficção por realidade, mas imergimos na ação, passamos a habitar o mundo da ficção e interagir com o jogo estético que a obra nos propõe. Nesse jogo, envolvem-se operações cognitivas, mas também sensações estéticas; um grau mais ou menos apurado de atenção, mas também de devaneio, de reflexão e de compreensão dos sentidos possíveis da obra e da experiência em si.
Cabe-nos perguntar se não procedemos da mesma forma em relação à realidade. Para além de nossas próprias ações, não estamos tentando traduzir o que presenciamos, nossas impressões, nossos sentimentos? Não nos esforçamos para compreender certas atitudes ou comportamentos, certas ocorrências ou situações? A diferença decisiva, assim me parece, é que a realidade é muito mais complexa, aleatória, casual, desregrada, inacessível, descontrolada e perigosa que a ficção. O contato com uma narrativa fictícia propicia uma certa gama de pensamentos e emoções, coloca o leitor, o espectador, o ouvinte diante de algo que, mais ou menos, já se sabe o que é; as sensações que produz - prazer, angústia, excitação, aversão ou outras - estão inseridas num jogo, o jogo estético, do qual se escolhe ou não participar e no qual se pode engajar com maior ou menor profundidade, experimentando perspectivas de interpretação.
Vale advertir, no entanto, que ler uma determinada obra literária ou assistir a dois ou três filmes não resulta necessariamente na aquisição ou desprendimento de um saber ou mesmo de um ponto de vista. É raro que a leitura de uma única obra possa, por si só, desconstruir um viés ideológico ou atuar diretamente para o abandono de determinados preconceitos. Em outras palavras, e para voltar à dicotomia inicial, não se trata de um saber como máthema, mas de uma experiência como páthei máthos, cujos vestígios são diminutos, o que requer uma prática prolongada de exercícios hermenêuticos para que se possa observar que algo aconteceu na vida interior da pessoa, ou seja, para que os processos formativos sejam percebidos. Se voltarmos ao coro da tragédia de Ésquilo, relembraremos que esse saber da experiência nos chega à consciência como os sonhos no sono noturno, sem que propriamente tenhamos controle sobre ele. É assim que alguém se desfaz de suas crenças, substituindo-as por outras ou deixando-as de lado; é assim que ocorrem as conversões religiosas e ideológicas, em que um conjunto mais ou menos organizado de ideias e sensações, um imaginário, é substituído por outro.
Em The brainwashing of my dad (Senko et al., 2015), a documentarista Jen Senko conta que seu pai, depois de aposentado, passava o dia assistindo à rede de TV Fox News e lendo newsletters de grupos de extrema direita, o que transformou não apenas suas convicções políticas, mas seu humor, seu modo de vida e seus valores, que passaram a ser cada vez mais reacionários, intolerantes e radicais, alinhados ao trumpismo. Segundo a documentarista, os familiares e amigos entrevistados, foi necessário um novo regime de leituras e consumo televisivo para que ele recuperasse seu bom humor, seu bem estar e abandonasse um posicionamento político extremista.
Não se trata de um caso isolado da sociedade norte-americana, mas um fenômeno mundial em que o avanço das possibilidades de comunicação pelas redes sociais implica manipulação de notícias e ameaça à democracia em vários cantos do mundo. O que podemos aprender com esse fenômeno? Não parece se tratar de um simples erro de interpretação da realidade, mas de um problema bem mais complexo: a veiculação de uma única versão da realidade, geralmente maniqueísta e simplificada, de tanto se repetir, termina, com o tempo, por produzir subjetividades, impor ideologias e limitar opiniões.
Se a hermenêutica ajuda a compreender o fenômeno, pode também contribuir para superá-lo. Um dos caminhos seria a conversação, como proposta por Richard Rorty; outro, a consumação do niilismo, como aparece em Nietzsche e Vattimo; há também a possibilidade linguajante de Gadamer, pela qual nos percebemos como parte da história; ou a proposta de Ricoeur de compreensão de si por meio da compreensão de mundo, que é, aliás, a mesma de Paulo Freire (2003), que via no ato de ler um prolongamento da leitura de mundo e um retorno crítico a ela.
Todas essas possibilidades, no entanto, requerem certas práticas sociais e culturais, as quais devem estar calcadas em alguns pressupostos. Um deles, como já apontado, é que a realidade não é uma coisa dada em relação à qual temos que descobrir a versão verdadeira, mas que seus sentidos (ou valores, se quisermos) são construídos, ou por nós, ou por quem quer impô-los a nós; outro pressuposto, decorrente deste, é que os sentidos devem ser plurais, já que a versão única, seja qual for, será sempre limitante e ilusória. Experimentar interpretações múltiplas é um modo de desconfiar das versões que querem se impor como a única verdadeira.
Por isso a ficção é um modelo, a meu ver, que possibilita a experimentação dessas interpretações e, na longa duração, da formação educacional, por meio da qual aprendemos e desaprendemos perspectivas, modos de ver e viver. É com esse objetivo que tenho concebido, nas últimas duas décadas de pesquisa, uma pedagogia da escolha (Almeida, 2015b).
Como poética educacional de valorização da dimensão estética da experiência, a pedagogia da escolha entende os modos de viver como uma arte que seleciona e retém o que torna a vida mais potente. Requer-se, para isso, que a máthema, expressa pelos programas curriculares, seja temperada pelo páthei máthos, como exercício de perspectivação e aposta nos processos formativos de longa duração. Não se trata da escolha como prática racional de tomada de decisão ou pressuposto liberal ou neoliberal de liberdade de consumo, ou ainda do livre arbítrio de matriz religiosa, mas como manifestação reflexiva das experiências vividas e abertura ao devir, ao movimento lento da formação. A escolha remete, nesta perspectiva, ao caráter trágico da existência (sua ausência de sentido), que pode ser afirmado sob certas condições (concepção de uma natureza ou moral) ou incondicionalmente, como expresso pelo amor fati nietzschiano, que se manifesta como afirmação da vida. Nas palavras de Scarlett Marton (1997):
Nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva: amor; nem lei, nem causa, nem fim: fatum. Assentir sem restrições a todo acontecer, admitir sem reservas tudo o que ocorre, anuir a cada instante tal como ele é, é aceitar amorosamente o que advém; é afirmar, com alegria, o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer sim à vida. (pp. 13-14)
O sim à vida se identifica com o ato criador, por isso Guervós (2018) entende que a arte, para Nietzsche, “é como uma função da vida e que o processo transfigurativo não é outra coisa que a passagem de uma ‘vontade de verdade’ a uma ‘vontade de criação’” (p. 22). A pedagogia da escolha, como vontade de criação, de interpretação, de compreensão das pressões pedagógicas que emanam dos imaginários em circulação, processa-se em três movimentos: (1) suspensão da crença, (2) estética da experiência e (3) reconhecimento dos itinerários de (auto)formação.
A suspensão da crença é um exercício de participação no jogo estético pelo qual se vivencia o mito, isto é, “a imagem concentrada do mundo” (Nietzsche, 1999, p. 132), seu imaginário. Diferente da suspensão da descrença, como formulada por Coleridge (2004), em que uma espécie de crença poética abole a realidade para participar do mundo ficcional de uma obra, ou da epoché fenomenológica, em que se suspende o juízo, a suspensão da crença objetiva que se considere o real de modo análogo à ficção, quando se aceita que aquela realidade, real ou ficcional, é uma entre outras possíveis, de acordo com a perspectiva de quem vê e os limites do que é visto. Não se trata de eliminar as crenças, tarefa tanto impossível quanto indesejável, mas suspendê-las, tomá-las como uma possibilidade de ficção do mesmo modo como a ficção torna-se possibilidade de realidade. Por meio desse jogo estético em que se exercitam perspectivas, as crenças se suspendem para a admissão do que diverge, do que move, do que emociona.
A experiência estética desloca a ação contemplativa ou desinteressada da arte para a ação fisiológica que intensifica a vida. Não é uma experiência que se limita às emoções, sensações e saberes, como se as obras se prestassem apenas a educar os gostos, mas funcionam como “interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido” (Favaretto, 2017, p. 129), como faz notar Celso Favaretto, em que determinados fluxos são contidos para que outros possam manar, numa “espécie de jogo com os acontecimentos, de táticas que exploram ocasiões em que o sentido emerge por meio de dicções e timbres, nas formas não nos conteúdos” (Favaretto, 2017, p. 129). A arte não é um modelo de formação a se seguir, mas de conexões e interrupções que possibilitam deslocamentos, descentramentos e devires ou, em poucas palavras, o movimento lento da formação pelo páthei máthos. Se a crença é suspensa, a experiência estética pode ocorrer como um laboratório de futuridade, porque a obra de arte, quando pergunta: “e se?” (Steiner, 2005, p. 494), convida a respostas, sonhos, devaneios e ideias múltiplas, plurais, que não se limitam a representar uma certa realidade, aquela da ficção, mas a gestar imaginários futuros, os quais podem se infiltrar pelas frestas do real e alimentar as ações do presente, seja em relação a cenários utópicos ou distópicos (Almeida, 2020).
A reflexão sobre os itinerários de (auto)formação é o momento de organizar as experiências vividas e pensadas e tomar consciência das mudanças operadas por esse movimento lento de formação pelo páthei máthos. É uma mirada de olhos para trás, para o trajeto percorrido, quando se misturam a formação lógico-racional-objetiva (máthema) com as lições da experiência (páthei máthos). Os itinerários (auto)formativos, nesta perspectiva da pedagogia da escolha, não separam formal e informal, público e privado, objetivo e subjetivo, pois tanto a máthema pode propiciar o páthei máthos como a experiência vivida pode conduzir a uma objetividade racional. A questão posta aqui é o apagamento das fronteiras entre os saberes para a valorização igualitária das duas dimensões da formação, uma vez que estão entretecidas. Os itinerários (auto)formativos ocorrem, portanto, ao longo de toda a vida, mas só se tornam evidência quando os vestígios são interpretados para formar um sentido, que pode ser expresso pela ideia de destino (fatum), o qual pode ser aprovado (amor fati). Portanto, é um movimento que requer o cultivo do pensamento, da sensibilidade e de renovadas reflexões sobre os sentidos que damos aos itinerários que nos formam, deformam e transformam.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou ampliar o sentido de educação, e mais especificamente de processos formativos, a partir da retomada da noção de experiência e do saber que dela advém, reconhecido pelos antigos como páthei máthos. Essa formação de longa duração não se realiza somente pela experiência, mas sobretudo pelo exercício interpretativo que busca compreendê-la, o que possibilita que se formule uma pedagogia pelas obras de arte, considerando seu potencial estético.
Essa pedagogia, que envolve a escolha de participar ou não do jogo estético, apresenta-se como um conjunto de práticas de resistência à estagnação das crenças; de abertura às experiências e suas interpretações; de organização dos saberes formativos e revalorização do páthei máthos, dado o predomínio histórico da máthema, a qual, em vez de ser considerada nos limites de suas possibilidades de conhecimento, foi alçada à condição de única ou melhor forma de conhecimento; e, por fim, de criação de sentidos e valores, em que se busca chegar a ser quem se é, aprendendo com quem se é, como na máxima de Píndaro.
Essas concepções, por sua vez, abrem-se aos desafios do mundo contemporâneo, seja em sua dimensão ambiental, social, econômica, cultural ou educacional. Esses desafios não foram tratados aqui, mas podem ser perspectivados a partir da educação em sua prática hermenêutica: as artes, os textos literários, as obras cinematográficas e as experiências estéticas podem contribuir para os processos formativos de longa duração, apurando, diversificando, construindo e desconstruindo interpretações, perspectivas e modos de compreender e viver. Talvez seja pouco frente aos desafios que os dias que correm nos impõem, mas é um conhecimento do qual não podemos prescindir, pela razão de que são esses saberes, advindos da experiência, que nos formam, que nos tornam humanos e nos fazem viver.














