1. Introdução
Este artigo investiga a profunda influência da militarização na juventude portuguesa durante o Estado Novo, focando no papel multifacetado da farda da Mocidade Portuguesa. Mais do que uma simples vestimenta, a farda transcendeu a sua função prática, tornando-se um símbolo poderoso de propaganda e controlo social, intrinsecamente ligado à construção de uma identidade nacional autoritária e militarizada. Ao longo do artigo analisaremos como cada elemento da farda, desde as cores e insígnias até ao corte e os acessórios, foi cuidadosamente concebido para transmitir mensagens específicas e moldar as perceções das crianças e jovens, inculcando valores como obediência, disciplina e o nacionalismo exacerbado. Através da análise da estética e da simbologia da farda, desvendamos como o regime ditatorial salazarista explorou a vestimenta para influenciar comportamentos e construir uma juventude subserviente aos seus ideais.
A investigação sobre a Mocidade Portuguesa e a sua farda abre caminho para uma compreensão mais profunda da história da educação em Portugal durante o Estado Novo, revelando como o regime ditatorial manipulou o sistema educacional para fins de propaganda e controlo social. Mais do que transmitir conhecimento, a educação servia para moldar mentalidades e perpetuar a ideologia salazarista. A farda, neste contexto, atuava como um instrumento de doutrinação constante, um lembrete visual onipresente da ideologia do regime e de seus valores autoritários. As crianças e jovens, imersos nesse ambiente controlado, eram influenciados a internalizar e reproduzir os ditames do Estado Novo, limitando o desenvolvimento do pensamento crítico e da autonomia individual.
Para além da sua dimensão histórica, este estudo possui relevância no contexto atual, marcado pela ascensão de movimentos populistas e autoritários em diversas partes do mundo. Ao analisarmos as estratégias de controlo e doutrinação utilizadas por regimes ditatoriais do passado, como o Estado Novo, podemos identificar padrões e táticas que se repetem ao longo da história. Compreender como a farda da Mocidade Portuguesa foi utilizada para moldar mentalidades e comportamentos alerta-nos para os perigos da manipulação e da propaganda, e contribui para o desenvolvimento de uma maior consciência crítica face a discursos e práticas que visam restringir liberdades individuais e o pensamento crítico.
2. A Mocidade Portuguesa: Enquadramento Histórico e Ideológico
Para compreender a Mocidade Portuguesa e o seu papel na militarização da juventude, é crucial analisar o contexto histórico e ideológico em que a organização surgiu e se desenvolveu. Como refere Rosas (2012), a Mocidade Portuguesa constituiu um instrumento fundamental na estratégia de controlo social e político do Estado Novo, moldando gerações de jovens de acordo com os seus princípios. A Mocidade Portuguesa foi criada em 1936, no auge da consolidação do regime do Estado Novo, liderado por António de Oliveira Salazar. Inspirada em organizações juvenis de regimes fascistas, como a Juventude Hitleriana, na Alemanha, e a Opera Nazionale Balilla, em Itália, a Mocidade Portuguesa visava o enquadramento da juventude portuguesa nos ideais do regime. O objetivo primordial era moldar as crianças e jovens de acordo com os valores do nacionalismo, da disciplina, da obediência e do culto da pátria, criando cidadãos obedientes e submissos ao regime. A Mocidade Portuguesa procurava incutir nos jovens uma forte identidade nacional, baseada na exaltação do passado histórico de Portugal e na glorificação dos heróis nacionais. Para além disso, a organização promovia a formação física e moral dos jovens, preparando-os para o serviço militar e para a defesa da nação. Este processo de “militarização cívica”, como lhe chamou Rosas (1998), visava não só preparar os jovens para o serviço militar, mas também inculcar neles valores como a hierarquia, a obediência e o espírito de sacrifício. A criação da Mocidade Portuguesa foi oficializada pelo Decreto-Lei n.º 26611, de 19 de abril de 1936, que definia os seus objetivos e estrutura. Entre os principais responsáveis pela sua implementação destacam-se figuras como Francisco Cabral, o seu primeiro comissário nacional, e Marcelo Caetano, que teve um papel importante na definição da sua ideologia.
Segundo o Decreto n.º 27:301 (1936), datado de 4 de dezembro de 1936, a Mocidade Portuguesa possuía uma estrutura hierárquica e organizada, que abrangia jovens de diferentes faixas etárias, assemelhando-se, em alguns aspetos, à estrutura militar. A organização era dividida em escalões, cada um com as suas próprias atividades e uniformes, progressivamente mais exigentes à medida que a idade dos jovens aumentava. Os escalões mais jovens, como os “lusitos” (dos sete aos 10 anos) e os “infantes” (dos 10 aos 14 anos), focavam-se em atividades recreativas e de formação moral, com ênfase no desenvolvimento do espírito patriótico e na aprendizagem dos valores do regime. Já os escalões mais velhos, como os “vanguardistas” (dos 14 aos 17 anos) e os “cadetes” (dos 17 aos 21 anos), incluíam treino militar e preparação para o serviço militar obrigatório, com instrução em ordem unida, tiro e outras atividades de caráter militar. Para além destes escalões, existia ainda a Mocidade Portuguesa Feminina, criada em 1937, que visava preparar as raparigas para o seu papel de “esposas e mães exemplares”, de acordo com os ideais do regime. A Mocidade Portuguesa estava presente em todo o país, com delegações em todas as cidades e vilas, o que permitia ao regime exercer um controlo efetivo sobre a juventude e, assim, discipliná-la. Desse modo, a Mocidade Portuguesa era como um dispositivo de poder que fabricava indivíduos com “corpos dóceis” e úteis (Foucault, 1975/2023, p. 160). A presença da mesma era omnipresente na vida social e cultural do país, desde as escolas aos estádios de futebol.
A ideologia da Mocidade Portuguesa estava profundamente enraizada nos princípios do Estado Novo: nacionalismo, autoritarismo, catolicismo e anticomunismo. A organização utilizava diversos mecanismos de doutrinação, como a propaganda, a censura e o controlo da informação, para moldar a mentalidade dos jovens e inculcar os valores do regime. Os manuais escolares, as publicações da Mocidade Portuguesa e os discursos dos seus dirigentes estavam repletos de mensagens que exaltavam a figura de Salazar, a grandeza de Portugal e a superioridade da “raça portuguesa”. A história de Portugal era apresentada de forma idealizada e mitificada, com ênfase nos feitos heroicos e nas conquistas do passado. O catolicismo era apresentado como a religião oficial do Estado e os jovens eram incentivados a participar em atividades religiosas. O anticomunismo era outro pilar da ideologia da Mocidade Portuguesa, que apresentava o comunismo como uma ameaça à ordem social e aos valores tradicionais. Através destes mecanismos de doutrinação, o regime procurava criar uma “geração nova” fiel aos seus princípios e disposta a defender a nação.
3. A Farda da Mocidade Portuguesa: Simbolismo e Significado
Barthes (1967/2015), na sua obra Sistema da Moda, argumenta que cada peça de roupa, cada acessório, carrega consigo uma série de significados codificados que podem ser lidos e interpretados como um texto. Nesse sentido, tal como a roupa e os acessórios a que Barthes se referia, a farda também pode ser analisada e estudada como um suporte de significado e como um meio de comunicação móvel utilizado pelo regime. Levando isso em consideração, após a analise do contexto histórico e ideológico da Mocidade Portuguesa, vamos descrever e analisar a farda, elemento central da identidade visual da organização e instrumento fundamental na militarização da juventude.
A farda da Mocidade Portuguesa, inspirada em uniformes militares, era composta por diversos elementos que variavam consoante o escalão e o género. Com base no Decreto n.º 28:410 (1938), de 7 de janeiro de 1938, conseguimos perceber, através da descrição textual, que para os rapazes, a farda base incluía camisa verde, calças castanhas, cinto com fivela em “S” e boina. Nos escalões mais velhos, acrescentava-se o casaco dólman castanho, semelhante ao casaco dólman do exército português da mesma época. Podemos ver a sua representação através da ilustração da Figura 1, contida no próprio decreto. Já através do Decreto-Lei n.º 28:262 (1937), de 8 de dezembro de 1937, conseguimos perceber, através da descrição textual, que as raparigas usavam camisa verde, saia castanha plissada, cinto com fivela e chapéu. Da mesma forma que o decreto anterior, este também inclui a representação ilustrada desses modelos de farda (Figura 2). Apesar da interpretação da cor ser um exercício de análise semiótico um pouco subjetivo, podemos dizer que o verde da camisa poderá simbolizar a esperança e a juventude, enquanto o castanho das calças e do dólman a tradição. No que concerne ao “S” da fivela, embora oficialmente representasse “servir”, era frequentemente associado ao “S” de Salazar, reforçando a ligação entre Mocidade Portuguesa e o regime, devemos ressaltar que essa associação a Salazar acabava por personificar a devoção ao líder. As boinas, elementos distintivos dos uniformes militares, conferiam à farda um ar de autoridade e disciplina. Para além das cores e dos símbolos, o próprio ato de vestir a farda tinha um significado simbólico. Ao vestir o uniforme, os jovens “vestiam” também a identidade nacional e os valores do regime, num processo de integração e conformismo. A farda funcionava como uma segunda pele, moldando o corpo e a mente dos jovens.

Fonte. Retirado de Decreto n.º 28:410, Diário do Govêrno n.º 5/1938, Série I, p. 17. (https://files.diariodarepublica.pt/1s/1938/01/00500/00130023.pdf)
Figura 1 Representação de três escalões masculinos e da sua respetiva farda na Mocidade Portuguesa

Fonte. Retirado de Decreto-Lei n.º 28:262, Diário do Govêrno n.º 285/1937, Série I, p. 1382. (https://files.diariodarepublica.pt/1s/1937/12/28500/13791383.pdf)
Figura 2 Representação de três escalões femininos e da sua respetiva farda na Mocidade Portuguesa
A farda sofreu algumas alterações ao longo do tempo, mas manteve sempre a sua essência militarista e a sua função de uniformizar e disciplinar os jovens. Nesse sentido a farda da Mocidade Portuguesa era um verdadeiro uniforme militar em miniatura, que visava incutir nos jovens o gosto pela ordem e pela disciplina.
A influência militar na farda da Mocidade Portuguesa é inegável. Desde as cores ao corte, dos símbolos aos acessórios, o uniforme evocava claramente os trajes militares, reforçando a associação entre a organização e o universo castrense. O dólman (Figura 3 e Figura 4), peça central da farda dos escalões mais velhos, era uma versão simplificada do casaco militar, com botões trabalhados e platinas que lhe conferiam um ar marcial. As boinas (Figura 5 e Figura 6) também remetiam para os adereços militares. A própria organização da Mocidade Portuguesa, com a sua estrutura hierárquica, os seus comandos e os seus desfiles, seguia o modelo militar. Esta militarização da estética e da organização visava incutir nos jovens o gosto pela ordem, pela disciplina e pela hierarquia, preparando-os para o futuro serviço militar e para a defesa da nação. Como afirma Rosas (1998), a Mocidade Portuguesa funcionava como uma espécie de exército em miniatura, onde os jovens eram treinados para serem soldados disciplinados e obedientes. Esta influência militar refletia a ideologia do Estado Novo, que valorizava o militarismo e o nacionalismo como pilares da ordem social.

Fonte. Retirado de Decreto n.º 28:410, Diário do Govêrno n.º 5/1938, Série I, p. 17. (https://files.diariodarepublica.pt/1s/1938/01/00500/00130023.pdf)
Figura 3 Casaco dólman

Fonte. Retirado de Decreto n.º 27:301, Diário do Govêrno n.º 5/1938, Série I, p. 1594. (https://files.diariodarepublica.pt/1s/1936/12/28400/15911594.pdf)
Figura 4 Casaco dólman

Fonte. Retirado de Decreto n.º 28:410, Diário do Govêrno n.º 5/1938, Série I, p. 18. (https://files.diariodarepublica.pt/1s/1938/01/00500/00130023.pdf)
Figura 5 Barrete frente e lateral

Fonte. Retirado de Decreto n.º 28:410, Diário do Govêrno n.º 5/1938, Série I, p. 20. (https://files.diariodarepublica.pt/1s/1938/01/00500/00130023.pdf)
Figura 6 Barrete filiados da Mocidade Portuguesa
4. A Farda Como Instrumento de Propaganda e Controlo
Para além da função estética e simbólica da farda da Mocidade Portuguesa, a mesma desempenhava um papel crucial como instrumento de propaganda e controlo do regime do Estado Novo. Através da farda, o regime procurava não só promover os seus ideais, mas também exercer um controlo efetivo sobre a juventude (Duarte, 2024b).
A farda desempenhava ainda um papel fundamental na construção de uma identidade coletiva e na uniformização dos jovens. Ao vestir o uniforme, os jovens “vestiam” também a identidade nacional e os valores do regime, num processo de integração e conformismo (Duarte, 2024a). A farda criava um sentimento de pertença a um grupo e reforçava a ideia de uma nação unida e coesa sob a liderança de Salazar. Através do uso do uniforme, o regime procurava eliminar as diferenças individuais e criar uma massa homogénea de jovens disciplinados e obedientes. Decerta forma, a farda funcionava como um elemento unificador, que transcendia as diferenças sociais e culturais, criando um sentimento de comunidade entre os jovens (Duarte, 2024a, 2024b).
A disciplina e a farda estavam intrinsecamente ligadas, sendo a disciplina um dos valores centrais da Mocidade Portuguesa e do Estado Novo. O uso do uniforme contribuía para a inculcação de valores como a obediência, a ordem e o respeito pela hierarquia. A farda representava a submissão do indivíduo ao coletivo e a aceitação das regras impostas pelo regime. Os jovens que usavam a farda estavam sujeitos a um código de conduta rigoroso, que ditava não só a sua aparência, mas também o seu comportamento em público e em privado. A farda era um símbolo de disciplina e de conformismo, que visava reprimir a individualidade e promover a obediência cega ao regime (Duarte, 2024a).
A utilização da farda da Mocidade Portuguesa não se resumiu à disciplina, mas, também, foi um instrumento de controlo social. O uso do uniforme permitia ao regime identificar e controlar os jovens, distinguindo os que estavam enquadrados no sistema dos que se lhe opunham. A farda funcionava como um marcador social, que indicava a adesão aos valores do Estado Novo. Os jovens que não usavam a farda, ou que a usavam de forma incorreta, eram vistos com desconfiança e podiam ser alvo de repressão. A farda contribuía assim para a criação de um clima de conformismo e autocensura, onde os jovens se sentiam pressionados a aderir aos ideais do regime para evitar serem excluídos ou perseguidos (Duarte, 2024b).
5. A Mocidade Portuguesa e a Construção do "Novo Homem Português": Corpo e Espírito
A Mocidade Portuguesa, enquanto organização juvenil do Estado Novo (1933-1974), desempenhou um papel crucial na tentativa de moldar o “novo homem português”, idealizado pelo regime. Esta secção analisa como a Mocidade Portuguesa, através das suas atividades, discursos e práticas, promoveu um modelo de juventude alinhado com os valores autoritários e conservadores do Salazarismo, com foco na disciplina corporal e na formação moral (Pinto, 2014). A Mocidade Portuguesa colocava uma forte ênfase na educação física e na disciplina corporal, refletindo a valorização da força física, da virilidade e da saúde na ideologia do Estado Novo. Através de atividades como ginástica, desfiles militares, acampamentos e jogos de guerra, pretendia-se não só desenvolver o corpo dos jovens, mas também inculcar valores como a disciplina, a obediência, o espírito de sacrifício e a resistência física (Duarte, 2024a).
Como refere Rosas (1998), o corpo jovem era visto como um instrumento a ser moldado, disciplinado e colocado ao serviço da nação. A ênfase na disciplina corporal refletia-se também na própria farda da Mocidade Portuguesa, com o seu design militarista e os seus símbolos de autoridade. O uso da farda contribuía para a construção de uma identidade coletiva baseada na força, na virilidade e na submissão à autoridade.
Para além da disciplina corporal, a Mocidade Portuguesa também se dedicava à formação moral e espiritual dos jovens, promovendo valores como o patriotismo, o civismo, a lealdade ao regime e a fé católica. Através de palestras, cursos, revistas e outras atividades, a organização procurava incutir nos jovens uma visão de mundo conservadora e alinhada com a ideologia do Estado Novo (Duarte, 2024b).
A Mocidade Portuguesa incentivava a participação dos jovens em cerimónias religiosas e em atividades de caridade, promovendo a ideia de que a fé e a moral cristã eram pilares fundamentais da sociedade portuguesa. A organização também promovia o culto da pátria e dos heróis nacionais, através de comemorações, concursos e visitas a locais históricos (Duarte, 2024b).
O objetivo da Mocidade Portuguesa era moldar uma nova geração de portugueses, “regenerados” física e moralmente, e submissos aos valores do regime. O “novo homem português” seria forte, disciplinado, patriota, obediente e moralmente irrepreensível. A organização, através da educação física, da formação moral e da doutrinação ideológica, contribuiu para a formação desse “novo homem”, idealizado pelo Estado Novo (Pinto, 2014).
A Mocidade Portuguesa foi um instrumento fundamental na construção do “novo homem português”, moldando as conceções de corpo e espírito de acordo com os valores autoritários e conservadores do Salazarismo. A organização promoveu a disciplina corporal, a formação moral e a doutrinação ideológica, contribuindo para a manutenção de uma sociedade conservadora e hierarquizada.
6. Comparação com Outras Organizações Juvenis
A Mocidade Portuguesa, embora tenha características únicas, não foi um caso isolado no contexto europeu da primeira metade do século XX. Diversos países, particularmente aqueles com regimes autoritários, criaram organizações juvenis com o intuito de doutrinar e controlar a juventude. Nesta secção, analisaremos algumas dessas organizações, comparando-as com a Mocidade Portuguesa e destacando semelhanças e diferenças.
6.1. Organizações Escutistas Católicas em Portugal
Em Portugal, a par da Mocidade Portuguesa, organizações como os escuteiros católicos ofereciam propostas educativas distintas. Embora compartilhassem o uso de uniformes e promovessem valores como a disciplina e o espírito de equipa, os escuteiros priorizavam a formação moral e religiosa, mantendo-se desvinculados do regime. Essa comparação direta entre a Mocidade Portuguesa e os escuteiros revela as diferentes conceções de juventude e educação que coexistiram durante o Estado Novo.
Ao expandirmos a nossa análise para além das fronteiras portuguesas, encontramos na Alemanha um exemplo marcante de organização juvenil: a Juventude Hitleriana.
6.2. Juventude Hitleriana (Alemanha)
No que concerne à Juventude Hitleriana (Figura 7), criada na Alemanha em 1926, esta foi uma das principais inspirações para a Mocidade Portuguesa. Ambas as organizações partilhavam uma ideologia baseada no nacionalismo, no autoritarismo e no culto ao líder. A estrutura hierárquica, as atividades paramilitares e o uso da propaganda eram também pontos em comum. Kallis (2002) argumenta que a Juventude Hitleriana visava moldar a juventude de acordo com os ideais do regime, transformando-a num instrumento de poder e de controlo social. Apesar do autor apenas se referir à organização alemã, é percetível que Salazar usava a Mocidade Portuguesa com o mesmo intuito de controlo. No entanto, a Juventude Hitleriana apresentava um caráter mais militarista e violento do que a Mocidade Portuguesa, estando diretamente envolvida no esforço de guerra e na perseguição aos opositores do regime nazi. Enquanto a Mocidade Portuguesa se focava principalmente na formação cívica e moral dos jovens, a Juventude Hitleriana tinha uma forte componente paramilitar, com treino em armas, táticas de combate e ideologização nazi.

Fonte. Bundesarchiv, Bild 183-E12088 / CC-BY-SA 3.0. (https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bundesarchiv_Bild_183-E12088,_Posen,_Amtseinf%C3%BChrung_Arthur_Greiser.jpg)
Figura 7 Adolescentes da Juventude Hitleriana a saudar o ministro do Interior do Terceiro Reich, Wilhelm Frick, em Poznań, 3 de novembro de 1939
A farda da Juventude Hitleriana, com as suas cores escuras e os seus símbolos nazistas, refletia esse caráter mais agressivo. As camisas castanhas, as braçadeiras com a suástica e as calças pretas criavam uma imagem intimidante e marcial. Em contraste, a farda da Mocidade Portuguesa, com as suas cores mais claras e os seus símbolos menos ostensivos, projetava uma imagem de juventude saudável e disciplinada, mas não explicitamente belicosa. Esta diferença na estética reflete as diferentes funções e objetivos de cada organização. Enquanto a Juventude Hitleriana era concebida como uma força auxiliar do exército alemão, a Mocidade Portuguesa tinha um papel mais focado na formação cívica e na doutrinação ideológica. Apesar das diferenças, ambas as organizações utilizaram a farda como um instrumento poderoso para promover os seus ideais e controlar a juventude. A análise comparativa não se esgota na Alemanha, pois a Itália também ofereceu um modelo relevante para a Mocidade Portuguesa, através da Opera Nazionale Balilla.
6.3. Opera Nazionale Balilla (Itália)
A Opera Nazionale Balilla1, criada em Itália em 1926, foi outra organização juvenil que serviu de modelo para a Mocidade Portuguesa. Ambas visavam incutir nos jovens os valores do nacionalismo e da disciplina, e ambas utilizavam a farda como instrumento de propaganda e controlo. Como descreve Mallett (2013), a Opera Nazionale Balilla tinha a ambição de criar uma “nova geração” de cidadãos, fisicamente aptos, moralmente fortes e profundamente dedicados à nação. Apesar de Mallett (2013) se referir apenas à organização italiana, as mesmas afirmações também se podem aplicar no contexto da Mocidade Portuguesa. Salazar tinha a intenção de criar e moldar “o novo homem português” e sabia que a Mocidade Portuguesa era um instrumento essencial para esse processo. No entanto, a organização italiana tinha um caráter mais desportivo e menos militarista do que a Mocidade Portuguesa. Enquanto esta última incluía treino militar e preparação para o serviço militar obrigatório nos seus escalões mais velhos, a Opera Nazionale Balilla focava-se mais na educação física e desportiva, com o objetivo de promover a saúde e a robustez física dos jovens.
A farda da Opera Nazionale Balilla, com as suas cores vivas e o seu design mais simples, refletia essa diferença. As camisas pretas, os lenços coloridos e os calções criavam uma imagem juvenil e enérgica, associada à prática desportiva e ao ar livre. Em contraste, a farda da Mocidade Portuguesa, com as suas cores mais sóbrias e o seu design mais formal, projetava uma imagem de disciplina e rigor, mais próxima do universo militar. Esta diferença na estética reflete as diferentes prioridades de cada organização. Enquanto a organização italiana privilegiava a formação física e o espírito desportivo, a organização portuguesa dava maior ênfase à formação cívica e moral, com uma forte componente de doutrinação ideológica. Apesar das diferenças, ambas as organizações reconheciam a importância da farda como um instrumento de identificação coletiva e de promoção dos valores do regime.
Prosseguindo com a análise das organizações juvenis europeias, voltamo-nos agora para a Espanha, onde as Juventudes Falangistas desempenharam um papel significativo.
6.4. Juventudes Falangistas (Espanha)
As Juventudes Falangistas2, criadas em Espanha em 1937, em plena Guerra Civil Espanhola, apresentavam algumas semelhanças com a Mocidade Portuguesa, nomeadamente no que se refere à ideologia nacionalista e ao uso da farda como instrumento de propaganda. Ambas as organizações surgiram em regimes autoritários e visavam a doutrinação da juventude e a sua mobilização para a causa nacional. Payne (1999) destaca que as Juventudes Falangistas, tal como a Mocidade Portuguesa, procuravam criar uma nova geração de cidadãos, imbuídos dos valores do regime e dispostos a lutar pela pátria. No entanto, as Juventudes Falangistas estavam mais diretamente ligadas ao partido único do regime franquista, a Falange Espanhola, e tinham um papel mais ativo na repressão aos opositores do regime. Enquanto a Mocidade Portuguesa era uma organização estatal, com uma estrutura mais autónoma, as Juventudes Falangistas estavam integradas na estrutura da Falange, o que lhes conferia um caráter mais político e partidário tendo um papel mais ativo na repressão aos opositores do regime.
Esta diferença refletia-se também na farda. A farda das Juventudes Falangistas, com a sua camisa azul, o seu cinto com a fivela com o símbolo da Falange (o jugo e as flechas) e a boina vermelha, era uma cópia quase exata da farda da Falange, o que reforçava a sua identificação com o partido. A Mocidade Portuguesa, por outro lado, tinha uma farda com um design próprio, que embora se inspirasse em uniformes militares, não estava diretamente associada a nenhum partido político. Para além disso, as Juventudes Falangistas tiveram um papel mais ativo na repressão aos opositores do regime, participando em ações de vigilância, denúncia e perseguição. A Mocidade Portuguesa, embora também contribuísse para a manutenção da ordem social, não teve um papel tão direto na repressão política. Estas diferenças refletem o caráter mais violento e repressor do regime franquista, em comparação com o Estado Novo português.
7. A Mocidade Portuguesa e as Questões de Género
A Mocidade Portuguesa, embora tenha sido concebida inicialmente para rapazes, rapidamente se estendeu às raparigas, com a criação da Mocidade Portuguesa Feminina em 1937. Esta secção analisa as especificidades da organização para as jovens, explorando os seus objetivos, atividades e a farda utilizada, e como estes elementos contribuíam para reforçar os papéis de género tradicionais.
Tal como Pimentel (2007) salienta, a Mocidade Portuguesa Feminina tinha como principal objetivo preparar as raparigas para o seu papel de “esposas e mães exemplares”, de acordo com os ideais do Estado Novo. As atividades promovidas pela organização visavam incutir nas jovens valores como a modéstia, a submissão, o espírito de sacrifício e a dedicação à família. As raparigas aprendiam tarefas domésticas, como cozinhar, coser e cuidar de crianças, e eram incentivadas a participar em atividades culturais e recreativas que reforçavam os papéis de género tradicionais. A formação física era também valorizada, mas com um enfoque diferente da dos rapazes, privilegiando atividades como a ginástica rítmica e a dança, que visavam promover a graça e a feminilidade.
A farda feminina diferia da farda masculina, tal como salientado anteriormente através do Decreto-Lei n.º 28:262 (1937), de 8 de dezembro de 1937, em vez das calças castanhas, as raparigas usavam uma saia castanha plissada, que representava a feminilidade e a modéstia. O cinto com fivela e o chapéu completavam o uniforme, conferindo-lhe um ar distinto e elegante. A farda feminina, tal como a masculina, funcionava como um instrumento de propaganda e controlo, mas também reforçava os estereótipos de género e as expectativas sociais em relação às mulheres.
De salientar também que a Mocidade Portuguesa Feminina desempenhava um papel importante na manutenção dos papéis de género tradicionais e na promoção de uma visão conservadora da mulher. As jovens eram educadas para serem esposas e mães dedicadas (Belo et al., 1987), submissas aos seus maridos e responsáveis pelo lar e pela educação dos filhos. As normas do que significava ser mulher estão aliás bem definidas numa das publicações da Mocidade Feminina (Azevedo, 2011): Menina e Moça, que, segundo Braga e Drumond Braga (2012), era considerada pelo Regime “a melhor revista para todas as raparigas” (p. 204). Os valores eram os da organização, que reforçava por vários meios a ideia de que o papel principal da mulher era o de esposa e mãe, e que a sua realização pessoal passava pelo casamento e pela maternidade. Esta visão conservadora da mulher estava em consonância com a ideologia do Estado Novo, que defendia a família tradicional como pilar da sociedade.
Apesar das diferenças, é crucial notar que a Mocidade Portuguesa Feminina e a Mocidade Portuguesa Masculina partilhavam o objetivo comum de moldar a juventude de acordo com os ideais do Estado Novo. Ambas as organizações promoviam o nacionalismo, a disciplina e a obediência, embora com nuances e ênfases distintas de acordo com os papéis de género tradicionais. Enquanto os rapazes eram preparados para serem futuros soldados e líderes, as raparigas eram educadas para serem esposas e mães exemplares, garantindo a reprodução dos valores do regime no seio familiar. Ambas as organizações utilizavam a farda como instrumento de propaganda e controlo, mas com simbolismos e significados adaptados a cada género. A farda masculina, com o seu caráter militarista, visava incutir nos rapazes a coragem, a força e o espírito de sacrifício, enquanto a farda feminina, com o seu design mais discreto e elegante, visava promover a modéstia, a delicadeza e a submissão.
8. Conclusões
O presente artigo propôs-se analisar a militarização da juventude portuguesa durante o Estado Novo, com foco no papel da farda da Mocidade Portuguesa como instrumento de propaganda e controlo. Através da análise do contexto histórico e ideológico da organização, da descrição e interpretação da farda e da comparação com outras organizações juvenis, foi possível compreender como o regime utilizou a Mocidade Portuguesa para moldar as gerações futuras de acordo com os seus ideais.
A farda, com os seus símbolos e cores, desempenhou um papel central neste processo, funcionamento como um instrumento de propaganda, de construção da identidade e de controlo social. Ao vestir a farda, os jovens “vestiam” também a identidade nacional e os valores do regime, num processo de integração e conformismo. A farda contribuiu para a inculcação da disciplina, da obediência e do espírito de sacrifício, preparando os jovens para o futuro serviço militar e para a defesa da nação.
A comparação com outras organizações juvenis da época, como a Juventude Hitleriana, as Juventudes Falangistas e a Opera Nazionale Balilla, permitiu contextualizar a Mocidade Portuguesa no panorama internacional e evidenciar as suas especificidades. Já a análise da Mocidade Portuguesa Feminina revelou como a organização reforçava os papéis de género tradicionais e promovia uma visão conservadora da mulher.
Em suma, a Mocidade Portuguesa e a sua farda constituíram instrumentos eficazes na estratégia de controlo e doutrinação do Estado Novo. A organização contribuiu para a militarização da juventude, para a perpetuação da ideologia do regime e para a construção de uma identidade nacional autoritária. O estudo da Mocidade Portuguesa e do seu legado é essencial para compreender a história de Portugal no século XX e para refletir sobre os perigos dos regimes autoritários e das ideologias extremistas.










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