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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.236 Lisboa set. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020236.08 

DOSSIÊ

Soberania e legitimidade na União Económica e Monetária: o caso do Mecanismo Europeu de Estabilidade.

Sovereignty and Legitimacy in the Economic and Monetary Union: the case of the European Stability Mechanism.

Gabriele De Angelis1
https://orcid.org/0000-0002-6999-9532

1IFILNOVA FCSH, Universidade Nova de Lisboa. Av. de Berna 26 - 1069-061 Lisboa, Portugal. gabriele@fcsh.unl.pt


 

RESUMO

O presente artigo ilustra a arquitetura do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), e, com base numa análise da sua estrutura de incentivos, explica por que razão parece inadequado para prevenir, mitigar e resolver crises financeiras. Ilustra também como a arquitetura do MEE resulta de um modelo de integração europeia no qual a partilha de poderes soberanos é, em princípio, mitigada através do controlo que os Estados-membros supostamente mantêm sobre a utilização de tais poderes. No âmbito da integração monetária, tal modelo resulta disfuncional, pois não permite uma gestão adequada dos riscos sistémicos. O artigo sugere formas de ultrapassar tal impasse no caso específico do MEE, ilustrando as consequências que isso teria para a forma como a União tentou até agora manter a primazia da soberania nacional no seio das suas próprias instituições.

Palavras-chave: crise; Euro; União Económica e Monetária (UEM); défice democrático; legitimidade política; equidade; Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).


 

ABSTRACT

Based on an analysis of the structure of incentives inherent to the architecture of the European Stability Mechanism (ESM), the paper defends the ESM’s inability to prevent, mitigate, and resolve financial crises. The paper presents the main features of the ESM, and illustrates how its governance architecture results from a model and a practice of European integration in which the pooling of sovereign powers goes along with the member states’ attempt to maintain control over the use of those powers. In the case of monetary integration, such a model produces dysfunctional results in that it impedes efficient control of systemic risks. The paper puts forward a number of suggestion as to how a restructuring of the ESM’s institutional architecture could enable it to perform the role it has been designed for. The paper also shows what ought to change in the relation between national and supranational sovereignty for this to happen.

Keywords: Euro; Economic and Monetary Union (EMU); democratic deficit; political legitimacy; economic justice; European Stability Mechanism (ESM).


 

Introdução

O presente artigo debruça-se sobre a relação entre a legitimidade política e a eficácia da governança económica no seio da União Económica e Monetária da União Europeia (UEM), e ilustra o caso específico do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).

Muitos comentadores das reformas que se seguiram à crise da zona euro, que começou em 2009, sublinham o duplo problema da incompletude do percurso de reforma e da escassa legitimidade política das instituições da governança económica perante um acrescido poder de ação, seja perante os orçamentos nacionais, seja perante as reformas económicas no seio dos países membros (Hennette et al., 2017; Adalid, 2018; White, 2015).

Sendo um elemento fulcral do novo sistema institucional que veio à luz em consequência da crise de 2009, o MEE também suscita críticas, tanto pelo impacto que a sua condicionalidade tem no percurso de reforma dos países que se auxiliam da sua assistência financeira, como pelas características da sua arquitetura institucional.

De facto, o MEE ilustra de forma paradigmática a interligação que existe entre as questões da legitimidade e da funcionalidade. Provavelmente devido à distinção profissional entre os teóricos da política (que pouco se interessam pelas questões aparentemente mais “técnicas” da governança económica) e os economistas (que pouco se interessam pelas questões da legitimidade política), tal interligação é normalmente negligenciada nos estudos correntes. Pelo contrário, o presente artigo pretende ilustrar a importância da interligação entre os dois aspetos.

Com base nos documentos oficiais das instituições europeias e dos tratados internacionais, a primeira secção ilustra o funcionamento do MEE, debruçando-se em particular sobre a articulação das suas funções, e nomeadamente nos seus objetivos de prevenir, mitigar e resolver crises financeiras de importância sistémica.

A segunda secção ilustra as razões que levam a considerar o MEE como não apto a desempenhar tais funções por causa da sua arquitetura institucional e dos incentivos que esta gera para os decisores. De um ponto de vista metodológico, tal conclusão é suportada pelas informações disponíveis sobre as decisões de financiamento às finanças públicas e às bancas de Estados-membros que a mesma estrutura tomou durante a fase aguda da crise da zona euro.

Com base nas normas que regem a gestão do MEE, a terceira secção ilustra duas características ulteriores da sua arquitetura institucional: a escassa transparência dos critérios de avaliação que determinam a atribuição de assistência financeira e os problemas inerentes aos mecanismos de prestação de contas. Nesta secção relaciona-se a arquitetura institucional do MEE com a conceção da soberania nacional que subjaz à construção da UE no seu conjunto: mesmo que a União Europeia seja construída com base no princípio da partilha de poderes soberanos, tal partilha é realizada de forma a permitir aos Estados-membros manter um controlo substancial sobre a utilização e a futura evolução de tais poderes.

A quarta secção aborda os limites funcionais de tal conceção da soberania e, por conseguinte, da forma da sua realização institucional, debruçando-se sobre as consequências dessa conceção para a gestão da zona euro e ilustrando por que motivo a mesma é insuficiente para garantir a estabilidade, a equidade e a legitimidade da construção da governança económica da moeda comum.

Finalmente, a última secção traça os contornos de uma forma alternativa de partilha de soberania na zona euro, tomando como exemplo algumas propostas de reforma do MEE.

O mecanismo europeu de estabilidade

O MEE é uma instituição que visa garantir liquidez a países membros da zona euro que estejam a (ou corram o risco de) encontrar dificuldades em financiar-se nos mercados. O MEE intervém desde que o problema seja a falta de liquidez, e não a insolvência, dos Estados em questão, e que os mesmos tenham relevância sistémica para a zona euro. Está em vigor desde outubro de 2012 na consequência de um tratado internacional. Por isso, e não obstante a sua recente renegociação (Euro Summit, 2019), o MEE atualmente não faz parte do quadro jurídico da União Europeia, embora existam propostas para integrá-lo sob a forma de um Fundo Monetário Europeu (Comissão Europeia, 2017a).

O MEE financia-se através dos contributos dos seus acionistas, que são membros da zona euro e que contribuem com base na respetiva proporção de população e PIB. Tem acesso aos mercados financeiros em virtude do rating dos seus acionistas e está, portanto, em condição de “transmitir” tais condições favoráveis àqueles países que peçam acesso aos seus recursos. Enquanto sucessor do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), o MEE financiou a recapitalização da banca espanhola em 2012, o resgate cipriota em 2013 e o terceiro programa de assistência financeira à Grécia, em 2015. O MEE financia dívida pública ou sistemas bancários, e desenvolve a sua atividade através de um conjunto de instrumentos, todos sujeitos a uma condicionalidade variável em função dos objetivos e do estado das finanças públicas do destinatário. Tal condicionalidade tem por objetivo um conjunto de reformas preparadas e acompanhadas pela Comissão Europeia em articulação com o Banco Central Europeu (BCE) e, eventualmente, o Fundo Monetário Internacional (FMI).

O MEE reveste-se da maior importância, tendo em consideração os atrasos e as incertezas nos mercados que a necessidade de forjar repentinos e inesperados instrumentos de resgate causou em 2011. A sua função principal consiste em enfraquecer o laço entre a banca e as finanças públicas dos países da zona euro - um laço que, em tempos de crise, se transforma facilmente num círculo vicioso de insolvências bancárias e sobre-endividamento do Estado. Na medida em que o MEE disponibiliza financiamentos à banca nacional, tal laço fica enfraquecido. Esta função do MEE saiu reforçada pela decisão dos líderes da UE de utilizar os seus fundos para garantir o backstop do Fundo Único de Resolução dos bancos europeus de importância sistémica através de uma linha de crédito (Eurogrupo, 2018a, 2018b).

De um ponto de vista metodológico, podemos distinguir os instrumentos de combate a uma crise financeira em três categorias, consoante sirvam para prevenir ou mitigar uma crise, ou para absorver as suas consequências em termos de dívida, crescimento, emprego, etc. O MEE é uma parte fulcral das políticas de mitigação de uma crise financeira, o que, idealmente, deve acontecer antes que seja cortado a um país o acesso aos mercados.

Todavia, em virtude da condicionalidade dos seus programas, o MEE é, ao mesmo tempo, suposto ser parte dos mecanismos de prevenção e resolução.

É parte dos mecanismos de prevenção, na medida em que o acesso aos seus fundos é garantido só aos países cuja estrutura financeira seja “sólida”. Em segundo lugar, o espectro da condicionalidade é suposto desincentivar os comportamentos que possam levar à insurgência da crise.

O MEE é parte dos mecanismos de resolução na medida em que a condicionalidade visa restituir ao requerente as condições de competitividade que lhe permitam devolver o empréstimo, regressar aos mercados e voltar a ter finanças públicas sustentáveis graças a fundamentos económicos mais sólidos.

Não obstante a sua importância, o MEE desperta um conjunto de perplexidades em relação à sua eficácia relativamente à prevenção, mitigação e resolução de crises de liquidez.

A dúbia eficácia do MEE

A eficácia do MEE é dúbia na medida em que a sua função de mitigação pode ser limitada ou impedida, assim que a crise financeira se agudize antes da entrada em ação dos seus financiamentos, o que daria azo a custos acrescidos, no melhor cenário, ou ao contágio e à necessidade de outro tipo de intervenções, no pior caso. Isso por causa da sua limitada dotação financeira e dos seus mecanismos de decisão.

A primeira representa um problema de credibilidade para uma instituição que deveria desempenhar o papel de credor de última instância. Com base num capital de 80b€, o MEE atinge os mercados financeiros, utilizando esta alavanca para financiar as suas operações. As subscrições dos seus membros somam cerca de 700b€, e a capacidade de empréstimo do MEE é limitada a 500b€. Quando a fase aguda da crise de 2009 ainda não estava ultrapassada e países como Itália e Espanha estavam ainda em risco de necessitar de ajuda financeira, tal limite já demonstrava a insuficiência do instrumento face a uma crise que envolvesse só um dos dois países (de Grauwe, 2012). Tal avaliação mantém hoje a sua validade (Vihriälä, 2018, p. 2).

Um tal limite à capacidade de empréstimo pode resultar não só numa seleção dos candidatos ao resgate, mas também num falhanço global do instrumento no momento em que os operadores do mercado antecipam a altura em que o MEE esgotará os seus recursos e, por conseguinte, a queda abrupta dos valores das dívidas públicas dos países em risco. Isso anteciparia as vendas, provocando a crise sistémica que a intervenção do MEE tencionava impedir. Efeitos similares podem resultar da seniority do empréstimo do MEE (Gros, 2012). Por conseguinte, a capacidade do MEE de mitigar uma crise sistémica parece limitada pela sua própria dotação financeira.

Há, todavia, outra e mais séria ameaça à capacidade do MEE de mitigar uma crise. Tal ameaça advém da estrutura da sua governança, e especialmente do papel do Conselho dos Governadores (e, secundariamente, dos Diretores) no que diz respeito ao critério da unanimidade na tomada de decisões sobre a assistência financeira (ESM, 2019, Art.º 5.6). Como resulta da experiência com os resgates da última década, e especialmente com os mais problemáticos, ou seja, os resgates gregos, o critério da unanimidade dos votos dos representantes dos governos ameaça a eficácia da tomada de decisões, seja em termos de rapidez, seja pelo poder que atribui a cada um dos 19 membros, seja por causa da incerteza que um tal atraso decisório pode vir a provocar nos mercados.

Enquanto coincide, de facto, com o Eurogrupo, as decisões do Conselho dos Governadores, são necessariamente expostas às condições políticas dos vários contextos nacionais. Por isso, o próprio tratado prevê um procedimento decisório de urgência (Art.º 4.4) para o qual são suficientes 85% dos votos. Tal regra simplifica, por um lado, a decisão, mas atribui, por outro, a três membros (nomeadamente Alemanha, França e Itália, cada um dos quais detém mais do que 15% dos votos) um substancial poder de veto e, por isso, um peso proporcionalmente maior na determinação das condições da assistência financeira.

Em relação à situação em 2010, a existência do MEE abre a perspetiva de uma abordagem ordenada e não-arbitrária à restruturação da dívida pública (Mody, 2013). Para isso é, todavia, necessário que as decisões sejam previsíveis, tempestivas e certas. A dimensão política do maior órgão de decisão do MEE não satisfaz estes requisitos, o que limita a sua capacidade de mitigação.

Também a capacidade de prevenção do MEE é limitada. Tal capacidade deveria resultar dos incentivos que as condições de financiamento colocam aos Estados em termos de cumprimento das regras orçamentais. Isso pressupõe que o problema da zona euro seja a indisciplina fiscal, o que não é necessariamente o caso. Contudo, mesmo que fosse, o MEE pouco acrescenta à credibilidade da disciplina fiscal da zona euro, na medida em que um país que representa um risco sistémico pode razoavelmente esperar ser alvo de resgate independentemente da solidez do seu desempenho financeiro (Fuest, 2011, p. 34).

O caso da banca pode ser algo diferente, seja por causa do bail-in previsto pelas normas da união bancária, seja porque a intervenção do MEE representa a ultima ratio. Por isso, os adeptos de uma visão mais “rigorista” do problema da dívida pública sublinham a necessidade de limitar a capacidade de endividamento do MEE, de forma a limitar os riscos suportados pelos países “virtuosos” e de introduzir um mecanismo de bail-in automático dos credores, que se aplique também à dívida pública (Matthes, 2017, p. 3), como é, de resto, previsto desde 2012 em consequência do Tratado MEE (ESM, 2012, Art.º 12.3; 2019, Art.º 12.4).

Duvida-se da eficácia de tais medidas em momentos agudos de crise. Em momentos “normais”, a sua eficácia depende da capacidade, por parte dos operadores nos mercados, de atribuir à dívida pública um preço realmente correspondente aos fundamentais do país em questão, o que também parece não corresponder aos dados empíricos (Dullien, 2017).

Do lado da resolução da crise, ou seja, da recuperação do normal funcionamento do ciclo económico, o MEE parece igualmente carente. A condicionalidade dos seus programas, que se concretiza na formulação de um Memorando de Entendimento entre o MEE e os destinatários da assistência financeira, impõe um ajustamento macroeconómico assimétrico, ou seja, exclusivamente do lado do país que solicita assistência. Uma tal estratégia só funciona se o problema não for originado pelo pânico nos mercados (de Grauwe e Ji, 2012). Mesmo que não seja este o caso, uma tal assimetria no ajustamento pressupõe que as causas da crise estejam inteiramente ao dispor do governo do país requerente. Não obstante uma tal atribuição de responsabilidades ser coerente com as estratégias de contenção da crise de 2010 (MoU, 2011), essa não corresponde às interpretações maioritárias dos desequilíbrios macroeconómicos que a causaram (Baldwin e Giavazzi, 2015).[1] Por isso, mesmo que os instrumentos de resolução correspondam ao interesse dos credores em garantir o seu empréstimo, as medidas implementadas não têm necessariamente uma correlação estrita com o objetivo de impedir crises futuras.

Percebe-se, a partir das dúvidas que surgem em relação à eficácia do MEE, que a sua estrutura decisional desempenha um papel de grande importância em determinar a sua funcionalidade ou disfuncionalidade. A arquitetura institucional do MEE terá agora de ser aprofundada.

A arquitetura institucional do MEE e o problema da responsabilidade política

O MEE tem sido constituído através de um acordo intergovernamental fora do quadro legislativo da União. A principal consequência de tal escolha jurídica é uma falta de accountability, que se articula numa falta de transparência das suas operações e decisões, numa falta de responsabilização, e numa falta de responsabilidade política.

A evidência maior da falta de transparência dos procedimentos do MEE vem do facto de não estarem sujeitos às regras da União sobre o acesso público aos documentos. Uma das consequências disto é que os seus modelos econométricos não são acessíveis (Ban and Seabrooke, 2017, p. 6). Tal tem relevância não só na fase de formulação e implementação dos programas de assistência (por exemplo nas previsões de impacto), mas também na avaliação da sustentabilidade da dívida, que é um pressuposto para o acesso aos fundos. O Eurogrupo reconheceu, recentemente, um tal estado das coisas, anunciando que os critérios utilizados para a avaliação precisarão de ser especificados, juntamente com os critérios de solvibilidade do requerente, que será apreciada pela Comissão, em conjunto com o BCE e o próprio MEE, de uma forma “transparente e previsível” (Eurogrupo, 2018a, p. 3; ESM, 2019, Art.º 13.1.b).

A falta de responsabilização é devida aos múltiplos atores que colaboram na definição e na implementação da condicionalidade dos programas de assistência: a Comissão Europeia, o Conselho dos Governadores, o BCE, etc. O Eurogrupo reconheceu também este facto, anunciando uma reforma no funcionamento do MEE no sentido do seu maior envolvimento na negociação e monitorização dos programas de assistência financeira num quadro de cooperação com a Comissão (Eurogrupo, 2018a; ESM, 2019, Art.º 13.7). Continuando a não ser parte do quadro jurídico da União, os programas do MEE ficarão, todavia, isentos da obrigação de prever um impacto sobre as condições sociais no país requerente (Monti, 2018, p. 93) e não terão responsabilidade legal perante os órgãos jurídicos da União.

A falta de responsabilidade política reside no facto de o órgão de decisão do MEE, nomeadamente o Conselho dos Governadores, ser soberano nas suas decisões, e não sujeito, no seu conjunto, a nenhum mecanismo de autorização política. Isso não é um escândalo em si. A dotação do MEE é constituída pelos contributos dos países membros, cujo capital é administrado visando não lhes provocar prejuízo. O papel do Conselho dos Governadores e as regras que regem o seu regime de votos correspondem a tal objetivo: a instituição foi desenhada com o duplo objetivo de garantir a função de absorção de choques e os interesses dos estados membros, seja no sentido de limitar a dimensão de uma crise sistémica, seja no sentido de garantir os recursos dos acionistas do MEE. É por isso que a arquitetura da instituição é intergovernamental.

Uma tal arquitetura expõe, todavia, o MEE ao problema que aflige todas as instituições intergovernamentais da União: decisões que afetam o conjunto dos seus membros - mas em que alguns têm, por necessidade (por exemplo por causa da pressão dos mercados interbancários ou da dívida pública), um interesse maior do que os outros - são tomadas por representantes políticos inseridos numa estrutura nacional de prestação de contas. Os mesmos são, por isso, incentivados a analisar a decisão a tomar do ponto de vista das prioridades que podem ser defendidas perante o seu eleitorado nacional. A dimensão sistémica corre, portanto, o risco de ser negligenciada, na medida em que a decisão é tomada através da contraposição de interesses nacionais.

O resultado mais provável é que a decisão final seja tomada com base no “mínimo denominador comum”, e que se lhe aplique o que foi repetidamente dito sobre os primeiros resgates de 2010-2011: “too little, too late” (Buti e Lacoue-Labarthe, 2016, p. 2). No momento da negociação, e na ausência de mecanismos claros e transparentes de tomada de decisão, os atores são, de facto, tentados a minimizar os seus custos, aumentando os dos outros, no que, na linguagem da teoria dos jogos, se pode definir por “game of chicken”, no qual cada um tenta maximizar a utilidade do próprio poder de negociação numa situação à beira do abismo (Schimmelfennig, 2014, p. 329).

Os membros potencialmente mais propensos a crises serão também sujeitos a decisões de resgate tomadas por uma instituição supranacional cujos representantes, sendo emissários dos estados membros, não são responsáveis perante a constituency que suportará as consequências das ditas decisões, mesmo que as causas sejam só limitadamente atribuíveis aos países que se encontrarão na situação de pedir a ajuda financeira. O resultado é uma reduzida soberania de alguns perante o acrescido poder de outros.

Emerge, portanto, um paradoxo inerente à arquitetura institucional do MEE. Tal arquitetura resulta da forma como o problema da soberania nacional é abordado no concerto dos países membros: quando tocam funções fundamentais dos Estados, as instituições comuns devem poder preservar os poderes soberanos dos Estados. Contudo, a natureza sistémica dos problemas que tais instituições são chamadas a gerir provoca, pelo contrário, uma limitação assimétrica da soberania nacional, para a qual não está prevista uma solução nas instituições comunitárias.

A escolha deste modelo foi feita com o objetivo de garantir o máximo grau possível de soberania aos Estados membros, que queriam partilhar só e exclusivamente as instituições que achassem suficientes para alcançar as metas que, no entendimento dos legisladores da época, justificavam a criação de uma moeda única. A preservação da soberania aconteceu tanto com a decisão de não criar estruturas comuns de política económica (tal como um orçamento comum, um credor de última instância, etc.), que teriam requerido uma maior integração política, quanto com a escolha de manter ao nível dos tratados e, com isso, ao abrigo do princípio da unanimidade, as alavancas de qualquer reforma futura da zona euro (De Angelis, 2018).

Quando as regras comuns revelam a própria insuficiência relativamente ao objetivo de garantir um crescimento sustentável e equitativo entre os países membros, como é de facto o caso da arquitetura da UEM, os mecanismos decisórios põem um obstáculo muito consistente no caminho das reformas, pois os Estados membros, cada um deles com poder de veto, tentam promover interesses tanto mais divergentes quanto mais a crise os tem divididos em credores e devedores, países com mais ou menos facilidade de recuperação económica, espaço orçamental, etc.

Um mecanismo decisório pensado para maximizar o controlo que os estados membros têm sobre o processo de integração revela-se, assim, funcional na reprodução de diferentes pesos económicos e políticos, o que se reflete também na discussão sobre os instrumentos que poderiam levar a uma maior cooperação no seio da UEM. Em consequência de uma tal arquitetura política, a UEM ainda não é, nas palavras da própria Comissão Europeia, “à prova de choque” (Comissão Europeia, 2017b, p. 3).

É, todavia, evidente, que há diferentes maneiras de se entender uma UEM “à prova de choque”. Na aparência, o problema é simples e de interpretação inquestionável: trata-se de modificar a arquitetura da zona euro, para que os choques assimétricos como os que se abateram sobre os países membros em 2007-2009 sejam menos prováveis ou mais controláveis nos seus efeitos. Contudo, há diferentes entendimentos sobre a maneira de se alcançar tal objetivo.

O debate atual sobre as reformas da zona euro reflete os principais dilemas que caracterizam o processo de integração europeia a partir do Ato Único Europeu (1987). O dilema principal consiste na possibilidade de se combinar a manutenção de um poder substancial de controlo sobre o processo de integração por parte dos países membros com a funcionalidade do próprio processo. O processo poderia produzir consequências, de facto, cujos remédios requerem um nível de partilha de poder e de responsabilidade que dificilmente se reconcilia com a vontade de controlo dos estados membros. É, no fundo, o problema do funcionalismo, que acompanha o processo de integração europeia desde o seu início.

Hoje em dia, tal problema, que é tanto de estrutura política, como relativo à visão da soberania dos Estados em condições de alta interdependência económica, é acompanhado por uma fratura no seio da UEM entre interesses diferentes e visões divergentes das tarefas comuns. Tais diferenças refletem a posição económica, assim como as tradições monetárias, dos seus membros (Frieden, 2015). De particular importância é a diferença entre os dois grupos de países acima mencionados: os com necessidade de convergência e os com interesse em manter a própria posição competitiva. É, portanto, compreensível que o debate atual se foque sobre duas opções alternativas de reforma da zona euro.

A primeira, que será aprofundada na secção seguinte, visa reforçar o modelo de cooperação competitiva, de acordo com o qual os países são responsáveis, autonomamente, por conseguir o seu próprio avanço dentro do mercado continental e global. Nesta visão, as instituições comuns só têm de impedir que os comportamentos oportunistas, por exemplo em matéria fiscal ou de endividamento, ameacem os bens comuns, nomeadamente a estabilidade monetária.

O paradigma da “cooperação competitiva”

A posição “ortodoxa” do “Conselho dos Peritos”, um órgão que aconselha o Governo Federal alemão, é uma ótima ilustração do primeiro paradigma. Na opinião do Conselho (2013, 2014, 2015a, 2015b), o nó consiste na eficácia do controlo da dívida pública e privada. Ou seja, a dinâmica dos fluxos financeiros dentro da zona euro tem de ser controlada do lado dos devedores. Por isso, a disciplina fiscal é o ponto fulcral de uma governança eficaz da zona euro. Por sua vez, só se pode implementar a disciplina fiscal se houver meios suficientes a reduzir o “risco moral”, ou seja, a tentação de socializar ou externalizar as perdas provocadas pelo desequilíbrio orçamental, público ou privado. A existência de mecanismos de financiamento em caso de crise é considerada um desincentivo à disciplina orçamental, na medida em que alimenta expectativas de resgate, reduzindo, por conseguinte, a autodisciplina que um ator praticará tendo consciência do facto de que terá que suportar sozinho as consequências das suas ações. Por isso, é imprescindível que a impossibilidade de resgate financeiro, ou seja, a regra de no-bailout dos tratados europeus tenha credibilidade.

Não surpreende que a forma atual do MEE encontre o favor dos representantes desta linha de pensamento. Três condições, todas satisfeitas pelo atual estatuto, determinam a neutralidade do MEE no que diz respeito à disciplina orçamental: o facto de o acesso aos fundos de resgate ter o cumprimento das regras orçamentais, como pressuposto, o facto de as suas tranches dependerem de programas de ajustamento, e a subordinação da intervenção do MEE à prévia reestruturação da dívida (o que é realizado através das cláusulas de ação coletiva). O Conselho dos Peritos espera que os mercados consigam, desta forma, atribuir aos títulos da dívida pública um preço corretamente estimado e adequado aos riscos relativos. O custo da dívida penalizaria os países instáveis de um ponto de vista orçamental, garantindo que o nível de endividamento corresponda à capacidade da economia nacional de produzir um rendimento para a financiar. A prevenção dos riscos seria assim entregue aos mercados. Para os países que recusem adequar-se a um tal quadro normativo deve ser prevista a exclusão da zona euro.

O modelo proposto pelo Conselho dos Peritos apresenta alguns aspetos problemáticos, seja de um ponto de vista meramente empírico, seja de um ponto de vista normativo: em primeiro lugar pela confiança que coloca na capacidade dos mercados atribuírem um preço “justo” à dívida pública - uma capacidade que não se manifestou nas primeiras duas décadas de vida da moeda única - e, secundariamente, por atribuir aos devedores a responsabilidade exclusiva de uma relação mútua de crédito e dívida que resulta, ainda por cima, de uma dinâmica de fluxos financeiros produzida pelas características da arquitetura da zona euro e pelas políticas orçamentais de todos os países membros.

Resumindo, os problemas inerentes à visão sugerida pelo Conselho dos Peritos resultam primeiramente da interpretação da crise de 2009 como sendo uma crise da dívida soberana, e não uma crise causada e amplificada por desequilíbrios macroeconómicos reforçados pela arquitetura da zona euro. Tal interpretação é, por sua vez, coerente com a visão de uma zona euro na qual a autorresponsabilidade dos seus membros predomina sobre a partilha de responsabilidade por riscos comuns. As funções e a arquitetura do MEE são desenhadas de forma correspondente. A sua governança visa proteger os seus acionistas, ou seja, os Estados membros, do excessivo endividamento de outrem, o que explica o papel da unanimidade, e que por sua vez significa o poder de veto dos seus membros nos órgãos decisionais. Os mesmos princípios explicam a limitação do poder de intervenção do MEE, pois não só corresponde a sua dotação à disponibilidade dos seus membros, como tem também de refletir o peso relativo das economias dos Estados membros. O resultado global é um défice funcional do MEE nas suas funções de prevenção, mitigação e resolução de crises financeiras. Se a visão da zona euro sugerida pelo Conselho dos Peritos - e a conseguinte arquitetura do MES - resulta disfuncional, resta definir que visão poderia resultar mais funcional e que tipo de implementação institucional seria mais eficaz. As considerações que se seguem baseiam-se no pressuposto de que o MEE venha um dia a integrar o quadro jurídico da União, e dispensa as considerações de carácter constitucional que isso implica.

Um equilíbrio diferente entre estados membros e instituições supranacionais

Em primeiro lugar, uma visão alternativa à anterior deveria distinguir entre a tarefa de se prevenir uma crise sistémica e a tarefa de se atribuir a responsabilidade a um ator específico. No caso concreto da dotação do MEE, soluções práticas poderiam ser as que de seguida se apresentam.

Paralelamente às atividades do MEE, o BCE poderia impor um limite superior ao spread da dívida soberana, de forma a limitar os efeitos de uma crise de endividamento nos mercados financeiros (de Grauwe, 2012). Tal solução mantém uma pressão sobre a fiscalidade nacional, mas reduz tanto o risco de contágio, como de default. Note-se que tal solução foi de facto adotada, por iniciativa própria do BCE, desde o início da crise sanitária do Covid-19 (Lagarde, 2020). O efeito primeiro de uma tal solução é alterar os incentivos na fase negocial, enquanto a intervenção do BCE ganha tempo para os atores poderem definir a intervenção do MEE sem que criem as condições para o “jogo da galinha” acima mencionado. Adicionalmente, o MEE poderia utilizar os fundos do BCE para alcançar a necessária capacidade de financiamento (Vihriälä, 2018, p. 2).

Nos dois casos, a tarefa de impedir o contágio ou o agravar-se da crise de spread deveria ser prioritária e imune à lentidão das negociações entre chefes de Estado e de governo (ou seus diretos representantes). Por isso, uma ulterior sugestão de reforma poderia ser a seguinte: o órgão decisório do MEE deveria ser composto por funcionários que não sejam membros dos governos nacionais, e que sejam, pelo contrário, escolhidos pelas instituições supranacionais (preferencialmente o Parlamento Europeu, com a confirmação do Conselho de Ministros), com um mandato plurianual. Também essa sugestão visa alterar os incentivos dos decisores, cuja tarefa não consistiria em proteger os interesses e os investimentos dos Estados membros, mas sim em mitigar uma crise financeira, respondendo eles pelo próprio desempenho às instituições supranacionais. No caso do BCE, o atual órgão decisório já parece gozar de suficiente autonomia para garantir a funcionalidade da decisão, em virtude da autonomia política dos seus membros, embora sejam representantes de bancos centrais nacionais.[2] Nesse sentido, o BCE exemplifica as virtudes da autonomia política dos decisores em relação aos Estados-membros.

Tais sugestões têm uma implicação ao nível da prevenção de crises. Para além dos mecanismos do Semestre Europeu, tal capacidade de prevenção é atualmente atribuída, por um lado, ao “medo” da condicionalidade do MEE, que visa incentivar a credibilidade fiscal dos governos e, por outro lado, às regras de bail-in, que visa responsabilizar os credores na apreciação da capacidade fiscal dos devedores. Tal tarefa, todavia, leva o MEE a condicionar os empréstimos a condições “punitivas”, que mal se relacionam com o que deveria ser o seu objetivo principal, ou seja, permitir o regresso ao mercado do Estado resgatado, logo que possível. Por isso, tal princípio introduz um elemento disfuncional nos empréstimos do MEE. As sugestões acima mencionadas enfraquecem a capacidade de prevenção do MEE, que é, de resto, dúbia. Por isso, essa função deveria ser inteiramente atribuída ao Semestre Europeu, enquanto a ação do MEE se focaria no apoio financeiro ao Estado impossibilitado no acesso aos mercados, e com o objetivo de reestabelecer tal acesso. Tal deveria ser o objetivo do programa de ajustamento. O facto de os órgãos decisórios serem designados pelo Parlamento pode ser uma garantia de que haverá uma adequada transparência, responsabilização dos atores em jogo, e responsabilidade política nesse sentido. O Parlamento pode até incluir a obrigatoriedade de uma avaliação de impacto social na formulação ou na implementação do programa (Monti, 2018, p. 95). A prestação de contas dos decisores do MEE perante o Parlamento seria uma condição suficiente para garantir a transparência e a responsabilidade política que faltam no modelo atual.

A intervenção do BCE acrescentaria um aspeto importante aos mecanismos de gestão de uma crise de spread: a separação entre mitigação da crise e necessidade de ajustamento macroeconómico na fase aguda (uma diferença que já é latente nas OMT, devido ao diferente timing das eventuais operações do BCE no mercado em relação à implementação do programa de ajustamento). Tal separação coincide com a separação de “liability” e “control”, o que parece ser desfavorável na ótica de prevenção do risco moral, mas que pode ser oportuno na lógica da contenção das consequências de uma crise aguda. Nesta lógica, o programa de ajustamento poderia ser discutido com as instituições supranacionais (a Comissão ou o MEE) durante, ou mesmo depois, do procedimento de ativação do mecanismo de proteção por parte do BCE.

Conclusão

Desde a sua origem, a zona euro é caraterizada por níveis desiguais de desenvolvimento e de especialização. Tais diferenças não são, em si próprias, desfavoráveis à coesão da zona euro, podendo dar lugar, pelo contrário, a uma complementaridade de interesses económicos entre os países membros: ao interesse na estabilização e na integração dos mercados por parte dos países com economias mais produtivas corresponde o interesse dos outros em segurar um acesso estável aos recursos, principalmente financeiros, que podem financiar um maior e mais rápido desenvolvimento (Schelkle, 2017).

O risco da insurgência de crises da balança de pagamentos é intrínseco a uma tal dinâmica de integração económica, e é sobre a prevenção de um tal risco que, na década de 1970, se concentraram as reflexões sobre a moeda única (Werner, 1970; MacDougall, 1977). Todavia, a versão final da UEM de 1992 não inclui instrumentos de redução dos riscos de crises da balança de pagamentos. Pelo contrário, as regras da UEM perseguem uma lógica de minimização dos riscos macroeconómicos que cada um dos seus Estados membros pode vir a ter de suportar por causa de choques que afetem os seus parceiros.

Num contexto de assimetria económica, uma tal lógica entrega a cada membro a responsabilidade de se adaptar às condições do mercado internacional sem o suporte de uma estratégia conjunta de minimização dos relativos riscos macroeconómicos. O resultado é a continuidade das assimetrias económicas. Quando as instituições da UEM, tal como o MEE, são desenhadas sem abordar o problema das tais assimetrias, o resultado final é uma assimetria política no seio das instituições da governança económica. Como ilustrado no presente artigo, uma tal falha caracteriza não só os primeiros passos da UEM, mas também a sua fase atual. Um tal êxito do processo de reforma é problemático por razões de legitimidade e de funcionalidade.

É problemático por razões de legitimidade, enquanto os cidadãos de países diferentes enfrentam condições de maior ou menor autonomia política, na medida em que têm diferentes hipóteses de influenciar os processos de decisão no seio da União. Ao mesmo tempo, a autonomia política dos governos nacionais diminui, também de forma desigual, nos vários países.

É problemático também por razões de funcionalidade, na medida em que as instituições da governança da UEM apresentam uma dúbia capacidade de lidar com o tipo de choques que deu início à crise financeira de 2009-2010.

Os défices de funcionalidade e de legitimidade resultam do propósito de permitir aos Estados membros manter o controlo formal sobre os processos de decisão através dos mecanismos de unanimidade. Perante as assimetrias macroeconómicas acima mencionadas, o que era inicialmente uma garantia de autonomia política para os Estados membros torna-se um veículo de desigualdade financeira e política. A UEM enfrenta, desta forma, um clássico dilema neofuncionalista: a preservação da soberania nacional no contexto do processo de integração tem um custo em termos de funcionalidade e de legitimidade.

No presente artigo ilustraram-se as consequências de tal impasse neofuncionalista no caso específico do MEE. Em primeiro lugar, ilustrou-se como as condições de unanimidade que constituem os moldes nos quais os decisores costumam operar, causam, na urgência de uma crise, uma dinâmica negocial que, na linguagem da teoria dos jogos, se designa como “a game of chicken”, o “jogo da galinha”. Tal favorece não só um agravamento desnecessário da crise por causa da dilatação dos tempos da decisão, mas também uma politização dos termos da intervenção das instituições intergovernamentais, que detêm o poder de gestão da crise. Tal politização resulta evidente dos termos em que foi interpretada a crise da zona euro de 2009 e em que foi instituído o próprio MEE. A condicionalidade do MEE é expressão de tal interpretação.

Tanto a arquitetura institucional, quanto as condições de utilização dos recursos do MEE, determinam, todavia, a substancial falta de eficácia dos seus instrumentos no que diz respeito às funções de prevenção, mitigação e resolução de crises financeiras, especialmente na medida em que tais crises não se devem à falta de disciplina orçamental, mas sim a mais complexas externalidades negativas entre as economias e as políticas económicas nacionais.

O défice de legitimidade política é outro resultado da arquitetura do MEE. Em primeiro lugar, a sua dimensão intergovernamental determina uma falta de transparência relativamente aos pressupostos “técnicos” da sua ação, tal como a avaliação da sustentabilidade da dívida soberana. Isto permite negociação política mesmo onde se pretende bani-la. Ao mesmo tempo, à falta de transparência corresponde uma falta de responsabilidade política, na medida em que não existe uma cadeia de autorizações que legitime o órgão decisional do MEE no seu conjunto, mas só cadeias nacionais que legitimam os representantes nacionais no dito órgão. Emerge aqui a relação estrita entre legitimidade e eficácia, pois tal estrutura de decisão resulta na ausência de um decisor que represente o ponto de vista sistémico da zona euro no seu conjunto, representando cada membro do Conselho dos Governadores o ponto de vista da sua própria nação.

O artigo ainda ilustrou como a instituição do MEE resulta de uma conceção da soberania nacional, muito bem representada na própria arquitetura do MEE, que é predominante entre os Estados membros. Tal conceção é profundamente disfuncional quando se trata de enfrentar crises sistémicas por causa da estrutura dos incentivos que caracteriza as instituições que nela se fundamentam. Tal estrutura faz com que os decisores reajam a crises sistémicas visando maximizar a vantagem nacional, mesmo quando tal signifique um resultado globalmente disfuncional.[3]

 

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Recebido a 15-06-2019. Aceite para publicação a 08-07-2020.

 

[1] Veja-se o contributo de Ricardo Paes Mamede no presente dossiê.

[2] Veja-se Eichengreen (2017) com uma proposta análoga.

[3] A pesquisa que está na base do presente artigo foi financiada pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia (UIDB/00183/2020).

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