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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.2 Braga  2014

 

40 ANOS DE ABRIL

 

O que resta da Revolução dos Cravos

Antonio Tabucchi (1943-2012)[1]

 

Ao reviver o filme da memória, a primeira imagem da "Revolução dos Cravos" que me vem à cabeça é a do meu amigo Alexandre O’Neill, grande poeta do verso trocista cuja vida antissalazarista foi marcada por detenções, perseguições, pela apreensão do passaporte, fugas limitadas. Estamos em minha casa em Itália, a 26 de abril de 1974; no dia anterior os militares entraram em Lisboa, prenderam o Presidente do Conselho Marcelo Caetano, o seu guarda-costas e todos os agentes da polícia política, ocuparam a televisão e encerraram os aeroportos. O Alexandre encontrava-se em Genebra e devia voltar a Portugal. Apanhou um comboio e veio para minha casa. Estamos sentados à frente da televisão, o Alexandre de vez em quando salta a pés juntos e abraça as pessoas que aparecem no ecrã. A RAI está a retransmitir as imagens da televisão portuguesa, as pessoas que o Alexandre abraça estão a sair da prisão de Caxias, uma fortaleza perto de Lisboa para onde Salazar mandava "de férias" os opositores do regime. Os prisioneiros do regime tinham um ar perdido e quase incrédulo, enquanto a multidão os acolhia lançando-lhes flores. Muitos são intelectuais, escritores, artistas, ativistas políticos das várias correntes democráticas. Alguns também eu os conheço, tive o prazer de os encontrar nos meus dez anos de conhecimento de Portugal. O Alexandre chama-os pelo nome, chora, ri, dança. Eu também danço. É bom celebrar com os amigos que regressam "das férias", ainda que apenas pela televisão. Logo que possível fomos festejar com eles pessoalmente. Quando tinha chegado a Portugal, dez anos antes, tinha-me deparado com um país com um sistema político que Salazar havia copiado tal e qual do Estado Corporativo de Mussolini. Um país fascista dotado de uma polícia extremamente eficiente (a PIDE, Polícia Internacional de Defesa do Estado) que nos anos trinta Salazar tinha organizado a partir do nazismo; uma censura preventiva implacável que incluía responsabilidades de alto risco para os diretores e jornalistas da imprensa, dos quais se excluíam apenas os tipógrafos, chamados à corresponsabilidade em 1969 pelo delfim de Salazar, em plena guerra colonial; e as prisões apinhadas de presos políticos. Os campos de concentração, para não incomodar os poucos turistas, situavam-se nas colónias africanas, por exemplo o Tarrafal, em Cabo Verde, zona deserta e de quarenta graus à sombra, onde um dos maiores escritores da língua portuguesa, Luandino Vieira, passou quinze anos de "férias", e que agora vive em Portugal porque a sua Angola "livre" está nas mãos dos sátrapas assustadores e muito bem vistos no Ocidente democrático. Também Mário Soares, secretário do Partido Socialista clandestino, a quem Portugal deve a ordem democrática do pós-revolução e a entrada na Comunidade Europeia, passou umas longas "férias" num campo de concentração em S. Tomé, antes de conseguir refugiar-se em França. Se Portugal se tinha esquecido da Europa, também a Europa se tinha esquecido de Portugal. Quanto aos americanos, naquele tempo não tinham a pressa que têm hoje de abater os tiranos, aliás, Franco e Salazar eram dois aliados preciosos e aos presidentes dos Estados Unidos de então nunca lhes viria à cabeça a ideia de "libertar" Lisboa ou Madrid. Os portugueses libertaram-se sozinhos. O 25 de abril de 1974, que ficou na história como "Revolução dos Cravos", foi na realidade um golpe de estado em sentido inverso, ao contrário de todos aqueles conhecidos: as Forças Armadas insurgiram-se contra um regime totalitário para restabelecer a democracia, e esta foi a verdadeira revolução, politicamente falando. Seguiu-se também uma revolução popular, mas essa foi sobretudo uma adesão entusiasta, uma explosão de alegria coletiva, uma espécie de embriaguez de liberdade por um povo que tinha estado oprimido durante quarenta e oito anos (o fascismo português detém o recorde de duração na Europa). A euforia desta revolução propagou-se rapidamente, era contagiosa, e a partir de Lisboa alcançou, num abrir e fechar de olhos, todo o país. Porque a opressão que Portugal tinha sofrido não foi só política: fora social, cultural, antropológica, e tinha reduzido os portugueses a um povo triste e deprimido, deformando a natureza de um povo espontaneamente alegre e afável. E agora esta alegria que lhes fora negada explodia numa festa coletiva. Mas era também a festa pelo final de uma longa guerra colonial que havia ensanguentado o Portugal do Ultramar (assim eram definidos Moçambique, Angola e Guiné), que tinha dizimado quase uma geração de portugueses (a nascida nos anos 40), que arrasara um país reduzindo-o ao luto e miséria pelo interesse dos poucos que do Ultramar recolhiam/retiravam fortunas. E dada a consciência de serem carne para canhão, e a sucessiva aquisição de uma consciência antifascista, e por fim a ideia de uma revolta contra o regime que surgiu exatamente entre os militares enviados para as colónias, pode-se dizer que paradoxalmente foi a África ainda colonial a "libertar" o país que a colonizava. A descolonização foi o primeiro problema que a Junta Militar Provisória teve de enfrentar depois destes primeiros dias de celebração popular. E outros problemas gravíssimos, de natureza social e cultural que depois da festa se apresentaram com toda a sua intensidade dramática. Sobretudo a arriscada passagem de uma gestão militar improvisada para eleições livres e uma democracia parlamentar. E, de facto, na delicada fase de transição para a democracia não faltaram momentos em que essa correu alguns perigos. Inicialmente, com a tentativa de restauração do general Spínola, refugiado com alguns partidários na Espanha ainda fascista; mais tarde, com as manobras de uma esquerda antidemocrática e sovietizante que ambicionava um golpe de estado como o de Praga (em 1948) ou remava em direção a aventurosos terceiro-mundismos cubanos. Os militares democráticos do 25 de abril souberam impedir ambas as tentativas: a segunda, talvez a mais traiçoeira, foi impedida com uma capacidade política extraordinária, sem recorrer à força, devido a um manifesto, chamado "Documento dos 9", porque foi assinado por nove oficiais democráticos, que desencorajou a tentativa aventureira dos estalinistas e dos revolucionários improvisados. Concebeu-o o coronel Ernesto Melo Antunes, um oficial leal para com o seu país, um intelectual admirável que foi o garante da democracia portuguesa e um dos autores da "Revolução dos Cravos". Gosto de o recordar nesta minha breve evocação desta época. Foi um grande e caro amigo meu e Portugal deve-lhe muito. Mas penso que todos nós devemos algo a quem viveu para tornar melhor a nossa Europa. O que resta dum facto histórico determinante para um povo é a capacidade deste permanecer na sua memória.

 

[Tradução submetida em 15 de junho de 2014 e aceite para publicação em 3 de setembro de 2014.]

 

Notas

[1]Artigo originalmente publicado no diário italiano La Repubblica, em 21 de abril de 2004, com o título "Quel che resta della rivoluzione dei garofani". Traduzido do italiano por Bárbara Filipa Gomes Pinho (Aluna do 3º ano da licenciatura em Línguas Aplicadas, Universidade do Minho), sob a supervisão do docente Emanuele Ducrocchi.