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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.3 Braga  2015

 

DOSSIER PRÉMIOS LITERÁRIOS. O PODER DAS NARRATIVAS E /OU AS NARRATIVAS DO PODER

Acerca dos prémios literários

 

Germano Almeida

 

Considero uma provocação pedir a um escritor, afinal das contas um eterno potencial candidato a ser agraciado com um prémio literário, que opine acerca dos mesmos.

Sobretudo se ele não estiver inclinado a ser politicamente correto, caso em que pode correr o risco de nunca vir a receber nenhum. Ainda que esta regra possa não ser de todo exata. Por exemplo, Camilo José Cela foi prémio Nobel em 1989 e parecia lógico que também recebesse o prémio Cervantes, o mais importante da Espanha, tributo que ele achava que o seu país lhe devia. Porém, esteve ainda um bom número de anos sem ser agraciado com esse prémio, algo que parecia incomodá-lo. E certa vez questionado sobre isso por um jornalista, ele não esteve com meias medidas e fez um comentário desbocado: o prémio Cervantes “está cubierto de mierda”, não vale nada! Foi realmente um escândalo, que no entanto não impediu que lho outorgassem em 1995 e que ele o recebesse das mãos do rei de Espanha com muita felicidade e muitos agradecimentos.

Mas Cela é um caso de um escritor politicamente incorreto e desbocado que ao longo da sua vida teve sempre prazer em desconcertar as pessoas com as suas saídas verbais.

Porque um escritor que quer ser visto como politicamente correto e não desdenha ser homenageado com um prémio, irá certamente elogiar a existência de prémios literários, as suas vantagens no que concerne, por exemplo, em trazer visibilidade a um escritor, especialmente se se trata de um jovem escritor, porque em princípio vai propiciar maior visibilidade junto do público leitor, novos contratos de edição, traduções estrangeiras, etc.

E acresce este lado humano: por mais que queiramos ou aparentemos ser desprendidos das glórias do mundo, nenhum de nós fica indiferente perante um simples elogio, quanto mais perante um prémio, gostamos de ver apreciado positivamente o que fazemos.

Quando se fala de prémios literários, raramente se ousa falar do que neles, para muitos dos escritores, é mais importante, a saber, o seu valor pecuniário.

Isso porque uma espécie de pudor inibe-os de falar em dinheiro, afinal das contas somos vistos como gente que vive nas nuvens ou então de palavras, intelectuais preocupados com as grandes questões que transcendem a vil matéria e elevam o homem a uma dignidade quase superior.

Terá sido assim noutros tempos, quando os poetas se alimentavam da sua própria poesia, quando muito aceitando comer um ovo por dia.

As coisas já não são assim, as mudanças sociais que têm vindo a acontecer ao longo da história mostram que grandes escritores têm participado com maior à vontade nas grandes questões da sociedade porque possuem uma retaguarda económico-financeira que lhes proporciona essa independência material necessária a uma mais livre expressão das suas ideias. Por exemplo, muitos historiadores sustentam que Zola nunca teria tomado tão a peito o caso Dreyfus, se não tivesse a ampará-lo uma mulher não só rica como condescendente com algumas das suas safadezas.

Li de um poeta português que por alguns anos viveu de concorrer e ganhar prémios literários. Tendo ficado desempregado nos inícios dos anos 80, diz que decidiu usar a enxada que tinha mais à mão para se defender das vicissitudes da vida, isto é, a palavra escrita. E começou a enviar os seus livros para concursos literários, e de facto deviam ser bons porque os resultados não se fizeram esperar. Ganhou diversos prémios de 2500€, outros de 5000€, felizmente que vive num país que se presta a isso porque uma breve pesquiza indicou-me existir em Portugal à volta de cem prémios literários, o que permite certamente, se não viver de prémios, pelo menos ter uma ajuda considerável no orçamento familiar.

E não é vergonha nenhuma. Todos nós precisamos ter um pretexto para escrever, seja ele ganhar prémios, seja impressionar os amigos. O maior acicate de Dostoievski para escrever era arranjar dinheiro para jogar, e no entanto os seus livros são reconhecidamente superiores, na análise da alma humana até agora não foi ultrapassado.

No entanto há muitas coisas que se recomenda que os escritores devem evitar dizer. Por exemplo, no geral os leitores são pouco condescendentes e partem com evidente desconfiança para um livro que sabem ter sido escrito de encomenda, ainda que seja verdade ele pode ser melhor que qualquer outro dos livros do mesmo escritor. Já Somerset Maugham, no seu excelente livro “Exame de Consciência” alerta para os perigos em que pode incorrer um escritor desbocado sobre si próprio. E lembra um outro escritor inglês de nome Anthony Trollope que deixou de ser lido durante 30 anos, só porque confessou que costumava escrever a horas regulares e tinha o cuidado de procurar e conseguir o melhor preço para o seu trabalho.

E no entanto, a questão pecuniae atravessa a vida da maioria dos escritores, e aqueles que não têm um salário fixo, de preferência uma sinecura, que lhe garanta uma renda no fim de cada mês para além de tempo disponível para a escrita, terão certamente razões de muita preocupação, a menos que a sorte de um prémio literário-pecuniário os alcance com a sua bênção.

Muitos escritores o confessam abertamente. Certa vez aconteceu estarmos em Paris o João Ubaldo, o Craveirinha, Pepetela, e também o Virgílio de Lemos que ali residia e tinha ido ao nosso hotel cumprimentar-nos. Estávamos à espera de um transporte que deveria conduzir-nos a um encontro, porém o tal nunca mais chegava, fomo-nos distendendo para melhor conversar, e no meio disso alguém se lembrou de um calvados muito bom que tinha bebido na véspera. Teria o hotel calvados? Tinha! E começamos a beber, menos o Craveira que disse ser boémio, porém abstémio.

Foi no meio dos copos que o Lemos, que era poeta e jornalista, lançou a questão: de que falam os escritores quando se encontram?

A princípio pareceu que tal tema nunca tinha ocorrido a nenhum de nós porque todos começamos a tuntunhir, sei lá, falam da vida, falam da família, falam das mulheres, da política… João Ubaldo calado a ouvir-nos e a sorrir de nós. Depois interrompeu-nos: Não é nada disso, declarou, vocês estão a inventar, os escritores quando se encontram não falam de nada dessas coisas que vocês estão aí a dizer, isso é conversa de intelectuais bem instalados na vida e sem preocupações de dinheiro, os escritores no geral são gente normal, chefes de família, com filhos para sustentar, de modo que quando se juntam, o tema que mais se ouve entre eles é o tema do dinheiro, falam de dinheiro, direitos de autor, quanto o teu editor te paga? Dez por cento? Ah, a mim aquele malandro só me paga cinco por cento, e ainda por cima tarde e a más horas…

Bem, por verdadeira que possa ser, essa postura do João Ubaldo não é considerada comum nem simpática, ainda que escritores mais terra-a-terra não tenham desdenhado falar dela com à-vontade.

Mas esse lado económico-financeiro parece ser considerado marginal, se não mesmo desprezível, frequentemente os escritores recebem convites, Gostaria que você escrevesse um artigo para a revista ou jornal tal, ou então, Dar-nos-ia muito prazer se aceitasse deslocar-se (aos países mais diversos!) para nos fazer uma palestra sobre tal e tal tema… Ainda há dias recebi um mail de uma senhora que me convidava a ir fazer uma palestra numa cidade no interior da França. Indicava a data, o tema e que eu deveria falar por um período de duas horas. Resolvi então responder dizendo que ela tinha indicado o local, a data e o tempo, mas tinha-se esquecido de dizer quanto pretendia pagar-me por esse serviço. Respondeu candidamente que me pagava as passagens e que eu teria 50 euros de per diem durante a estadia.

Penso que deu para ver que sou defensor da existência dos prémios literários, ainda que no meu país isso seja coisa irrisória, muito por força da pobreza da terra.

E conforme a sua maior ou menor importância, pelo menos num certo momento eles chamam a atenção sobre o autor a quem é atribuído: são entrevistas, televisão, fato e gravata, etc., ainda que esteja convencido de que a larga maioria dos premiados dispensaria essas honrarias, contentando-se em receber o cheque, de preferência via correio.

Porém, mesmo aqueles que apreciam esses momentos de glória, é importante que não percam de vista que atribuírem-nos um prémio não faz de nós automaticamente os melhores entre os demais, apenas acontece termos tido a sorte de apanhar um júri mais próximo da nossa forma de pensar e escrever ou que muitas vezes não teve acesso a tudo que se publicou nesse período.

Mas há aqueles escritores corajosos ou desprendidos que simplesmente recusam prémios. As razões podem ser as mais diversas. Luandino Vieira recusou o prémio Camões alegando razões pessoais e íntimas. Herberto Hélder recusou o prémio Pessoa. As descrições de Clara Ferreira Alves e de António Alçada Baptista sobre a reação do poeta quando lhe levaram a notícia do prémio são comoventes. Ele terá dito, Não digam a ninguém e dêem o dinheiro a outro.

Há gente assim desinteressada. Mas não são muitos.

E há aqueles que recusam os prémios com fundamento em razões outras que não pessoais e íntimas, antes baseadas em fundamentos de natureza politico-ideológica. Sartre recusou o prémio Nobel escrevendo à Academia sueca que “Um escritor que adopta posições políticas, sociais ou literárias deve agir apenas com os meios que são os seus – ou seja a palavra escrita. E concluía: Assinar JPS não é o mesmo que assinar JPS, vencedor do Nobel”.

E ele tinha razão, sem dúvida. Como aliás ficou demonstrado com o exemplo de Saramago aquando da execução dos três cubanos acusados de sequestrar um navio carregado de passageiros. O mundo ocidental exprobou a sentença e o próprio Saramago, comunista e amigo de Cuba e já Nobel de Literatura, não resistiu a tomar posição.

Só que tinha deixado de ser apenas José Saramago, comunista, agora já era Nobel da Literatura, como se pode ler no seguinte excerto de um jornal da altura:

Referindo-se à execução, após um “julgamento” sumário, de três dos cubanos que tentaram sequestrar uma lancha, na esperança de deixar o regime repressivo de Havana para trás, o Nobel da Literatura deixa clara a sua opinião: “Cuba não ganhou nenhuma heróica batalha fuzilando esses três homens, mas perdeu a minha confiança, destruiu as minhas esperanças e defraudou as minhas expectativas.”

Palavras duras, sem dúvida e que mereceram eco alargado porque vinham não de um comunista qualquer, mas de um comunista prémio Nobel. E quando tempos depois veio dizer que afinal não estava zangado com Cuba, Fidel Castro ironizou dizendo que tinha entendido aquela tirada como um rasgo de um escritor deslumbrado com o prémio Nobel.

Admito que em qualquer país, mas pensando especialmente nos nossos, e estou a referir a Portugal e Cabo Verde, onde o mercado livreiro é fraco e as edições pequenas, a existência de apoios literários revela-se de importância fundamental. Esses apoios podem surgir em forma de prémios literários, apoios às edições e traduções, concursos literários, todas formas de estimular os criadores, conforme aliás certa vez pediu um poeta, “praza a Deus dar-me víveres e livros/sem uns não posso viver/sem outros não sei viver”.

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