Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica v.27 n.2 Lisboa jun. 2009
A abordagem cognitivo-comportamental no tratamento das perturbações do comportamento alimentar
Ana Rita Vaz (*)
Eva M. Conceição (*)
Paulo P.P. Machado (*)
RESUMO
As Perturbações do Comportamento Alimentar (PCA) são doenças raras, mas que implicam grande comorbilidade psíquica e têm, por vezes, complicações médicas sérias. Apesar do tratamento ser complexo e difícil, os estudos tem demonstrado que o tratamento Cognitivo-Comportamental se apresenta como o mais eficaz e o de primeira escolha para estas perturbações. A investigação tem vindo a focar-se no estudo dos processos psicopatológicos que mantém o problema, e nas componentes terapêuticas que permitem melhorar a eficácia do tratamento.
Este comentário propõe-se a fazer uma análise das particularidades e evolução do tratamento Cognitivo-Comportamental para as Perturbações Alimentares, enquadrando-o na teoria Cognitivo-Comportamental e na perspectiva transdiagnóstica das PCAs.
O comentário reflecte ainda sobre a importância de uma abordagem de tratamento por passos, que permite uma adaptação da intensidade terapêutica às necessidades pessoais do paciente, de forma a maximizar a relação custo-eficácia e a fazer chegar a cada paciente, a quantidade de tratamento adequada.
Palavras chave: Perturbações do comportamento alimentar, Terapia cognitivo-comportamental.
ABSTRACT
Eating disorders are rare disorders associated with a great psychological comorbility and often with serious medical complications. Although treatment is difficult and complex, several studies have showed that Cognitive-Behavioral Treatment is effective and the first choice treatment for these disorders. Research has been focusing on the study of the psychopathological processes that maintain the problem, and in the treatment components that contribute to enhance treatment efficacy. This paper intends to describe the characteristics of the cognitive-behavioral treatment for Eating Disorders, in a transdiagnostic perspective. Finally, a stepped care approach for eating disorders’ treatment is presented as a strategy for adjusting treatment intensity to each patient's particular needs.
Key words: Cognitive behavioral therapy, Eating disorders.
INTRODUÇÃO
As Perturbações do Comportamento Alimentar (PCA) têm vindo a ser alvo de atenção por parte da comunidade científica nas últimas décadas, não só pelo comprometimento e morbilidade psiquiátrica associada, mas também pelo facto de afectarem um número importante de mulheres jovens. Estudos recentes (Machado, Machado, Gonçalves, & Hoek, 2007) indicam uma prevalência de 0.39% para a Anorexia Nervosa, 0.30% para a Bulimia Nervosa e 3.06% para PCA Sem Outra Especificação (PCA-SOE), em mulheres entre os 15 e 18 anos de uma amostra nacional representativa. Embora pouco prevalentes em termos de população geral, as Perturbaçõesl do Comportamento Alimentar tornam-se num problema importante de saúde pública por envolverem maioritariamente uma faixa da população jovem para a qual não se antecipariam problemas de saúde com este de nível de comprometimento funcional.
São várias as formulações teóricas que tentam conceptualizar os mecanismos associados ao desenvolvimento e manutenção das perturbações do comportamento alimentar. No entanto, os modelos Cognitivo-Comportamentais (CC) para a conceptualização e tratamento das Perturbações Alimentares têm vindo conhecer um desenvolvimento e apoio empírico significativo (Fairburn, 1997a; Wilson, Fairburn, Agras, & Walsh, 2002). Neste momento o tratamento CC é um dos tratamentos aceites pela comunidade científica como empiricamente validado e, portanto, de referência para estas perturbações (Fairburn, 1997a,b; Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003).
Este artigo pretende fazer uma revisão da teoria cognitivo-comportamental, reflectindo sobre a sua evolução temporal, assim como do tratamento do tratamento CC para as PCA. Ao longo deste artigo, os autores irão enquadrar a teoria subjacente ao tratamento cognitivo-comportamental, numa perspectiva transdiagnóstica (Fairburn & Harrinson, 2003) das perturbações alimentares.
Descreveremos as perturbações alimentares tendo em conta as suas semelhanças e especificidades, passando para a discussão da teoria cognitivo-comportamental de manutenção do problema. O artigo terminará com a apresentação sumária do tratamento cognitivo-comportamental, apresentando as diferentes possibilidades de intensidade terapêutica estudadas em termos de eficácia, e fazendo referência à abordagem de tratamento por passos.
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTOALIMENTAR: SEMELHANÇAS OU DIFERENÇAS?
Apesar da Anorexia (AN) e Bulimia Nervosa (BN) serem perturbações sistematicamente referidas pelos clínicos e investigadores, a investigação tem vindo a mostrar que as PCA Sem Outra Especificação representam a categoria de diagnóstico mais comum nos estudos de prevalência (Machado et al. 2007), estando associada a níveis de comprometimento funcional semelhantes ao da AN e BN e sendo frequentemente encontradas na prática clínica. As PCA-SOE correspondem a 60% dos casos clínicos quando comparados com 14,5% de AN e 25,5% de casos de BN (Fairburn & Bohn, 2005).
Por outro lado, a investigação sobre o curso natural e a evolução das Perturbações Alimentares tem demonstrado que se assiste frequentemente a uma migração temporal dos pacientes entre as categorias diagnósticas. Num artigo de Fairburn e Harrison (2003), os autores descrevem a tendência para pacientes passarem, ao longo do tempo, por mais do que uma categoria de diagnóstico.
Após um período de restrição alimentar intensa, habitualmente com início em idades mais jovens, a evolução dos sintomas passa frequentemente pelo início de ocorrência de episódios de Ingestão Alimentares Compulsiva (IAC), podendo haver a instalação de uma perturbação bulímica ou mesmo do quadro completo de Bulimia Nervosa. Da mesma forma, é comum assistir-se à remissão do uso de comportamentos compensatórios e à instalação de quadros parciais, onde persistem os comportamentos de ingestão alimentar compulsiva ou de restrição alimentar, com comprometimento do funcionamento clinicamente significativo. Numa percentagem destas pacientes, os sintomas acabaram por remitir naturalmente, ou após intervenção terapêutica. Contudo, a cronicidade é frequente, nestas perturbações (Cachelin, Striegel-Moore, Elder, Pike, Wilfley, & Fairburn, 1999; Hsu, 1995; Steinhausen, 1995).
A constatação da migração intradiagnóstica comum nas Perturbações Alimentares, e as grande prevalência de Perturbações Atípicas faz com que diversos investigadores (Fairburn & Bohn, 2005; Fairburn & Harrison, 2003; Fairburn, Cooper, Bohn, O’Connor, Doll, & Palmer, 2007) ponham em questão a validade das categorias diagnósticas actuais, argumentando que são mais as características comuns do que as que as diferenciam.
DA TEORIA À PRÁTICA: O TRATAMENTO DAS PCA
O Tratamento Cognitivo-Comportamental para a Bulimia Nervosa (CBT-BN) foi primeira vez descrito por Fairburn (1981), tendo sido, anos depois, elaborado e ampliado, em conjunto com a teoria em que este autor se baseia actualmente para a conceptualização das Perturbações Alimentares (Cooper, 1986; Fairburn, 1985; Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003).
Em 1993, Fairburn, Marcus, e Wilson publicaram o manual de tratamento para esta perturbação. Ao longo do tempo, este tratamento têm vindo a ser amplamente utilizado e a sua eficácia testada em diversos estudos (e.g., Agras, Walsh, Fairburn, Wilson, & Kramer, 2000).
A Teoria Cognitivo-Comportamental, ao contrário de outras teorias para a Bulimia Nervosa, não se encontra tão focada na procura de causas da perturbação, mas está mais interessada em fornecer uma teoria explicativa e compreender os mecanismos de manutenção do problema. Ou seja, pretende responder à questão: Que factores estão a manter os sintomas? A resposta permitirá estratégias de intervenção intencionais e potencialmente mais eficazes.
A TCC considera como um dos principais factores de manutenção da Bulimia Nervosa a presença de um sistema disfuncional de auto-avaliação valor pessoal (Fairburn, 1985; Fairburn, Cooper, & Cooper, 1986). Para a maioria das pessoas, o seu valor pessoal é resultado da percepção do seu desempenho em diversas áreas da sua vida, como por exemplo, a qualidade do seu desempenho na escola, no trabalho, o modo como se organizam as suas relações interpessoais, como desempenham diferentes papéis sociais, o grau de eficácia e sucesso em actividades de lazer e desporto, etc. No entanto, para as pessoas com Perturbações Alimentares, todas estas áreas parecem ter um peso reduzido no modo como contribuem para a avaliação pessoal dos sujeitos e no modo como se sentem em relação a si próprias, na medida em que estes tendem a avaliar-se quase exclusivamente com base na sua capacidade de controlar os aspectos relacionados com a dieta restritiva, com o peso e a forma corporal. Estes aspectos são um factor característico e distintivo das perturbações alimentares e são, eles próprios, um factor-chave na manutenção dos sintomas (Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003).
Segundo Fairburn e colaboradores (2003), a maior parte dos aspectos clínicos das Perturbações Alimentares, sejam os comportamentos extremos de controle de peso (por exemplo, a dieta restritiva), os comportamentos compensatórios ou a preocupação recorrente com o peso e a forma corporal, podem ser entendidos como uma consequência directa desta “psicopatologia central”.
Para os autores, esta sobrevalorização do peso, forma corporal e alimentação, é responsável pela manutenção dos comportamentos alimentares disfuncionais, que são mantidos de um modo circular e de auto-perpetuação, em que a sobrevalorização do peso, da forma e da alimentação, têm como consequência a persecução de uma dieta restritiva, caracterizada por regras rígidas e específicas. Se por um lado o não cumprimento destas regras alimentares (“só vou comer fruta e beber água durante todo o dia”) é visto como uma falha grave e inadmissível, como uma falha no controle sobre a alimentação, por outro, a restrição intensa na qualidade e quantidade alimentar conduz, muitas vezes, ao descontrolo alimentar e ao abandonar as tentativas de restrição, surgindo assim episódios de ingestão alimentar compulsiva.
Este “quebrar das regras alimentares” é frequentemente apontado pelos sujeitos como um dos factores desencadeantes dos episódios de ingestão alimentar compulsiva (Fairburn, Cooper, & Cooper, 1986; Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003). O ciclo é, assim, perpetuado, sendo que a ingestão alimentar compulsiva é normalmente seguida de sentimentos de culpa e angústia pela perda de controlo e pelos efeitos temidos da ingestão exagerada no peso e forma corporal, ampliando a preocupação com estes aspectos. O recurso a métodos compensatórios, como o vómito, surge como forma de controlar os efeitos da ingestão alimentar e de trazer alívio aos sujeitos, interrompendo temporariamente o desconforto e a ansiedade provocados pela ingestão exagerada. No entanto, estes mecanismos compensatórios deixam os sujeitos mais vulneráveis para a ocorrência de um novo episódio de descontrolo alimentar. Este ciclo favorece a procura de novas tentativas de controlo do peso e aumenta a rigidez das regras alimentares, intensificando e mantendo assim as preocupações com o peso e controlo alimentar, num ciclo caracterizado pela restrição-compulsão alimentar.
FIGURA 1
Esquema representativo da Teoria Cognitivo Comportamental da Manutenção da Bulimia Nervosa (Traduzido e adaptado de Fairburn et al., 2003)
Embora este mecanismo pareça explicar um grande número dos episódios de ingestão alimentar compulsiva observados em pacientes com Bulimia Nervosa, existem outros factores potencialmente associados a estes. Por exemplo, nas formulações iniciais da TCC-BN, os autores verificaram que os episódios de ingestão compulsiva não ocorriam de um modo aleatório, mas estavam frequentemente associados a respostas a alterações no estado de humor. Estas alterações pareciam interferir com a capacidade de manter o controlo sobre a dieta restritiva, levando à ingestão compulsiva. Por outro lado, comer compulsivamente parece distrair as pessoas de sentimentos e estados emocionais adversos, o que actuaria como reforço da ingestão alimentar compulsiva (Fairburn, Cooper, & Cooper, 1986).
Uma outra característica distintiva destes pacientes é o facto de serem altamente críticos em relação a si próprios, e de estabelecerem para si padrões demasiado elevados de realização e de desempenho em relação à sua vida no geral e ao controle da alimentação, peso e forma corporal em particular (Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003; Fairburn, Marcus, & Wilson, 1993). No contexto destes padrões altamente exigentes e elevados em relação a si próprios, uma falha no cumprimento do plano rígido alimentar é visto como uma falha pessoal e não como um reflexo de padrões demasiado exigentes, o que reforça uma auto-avaliação extremamente negativa de si e tem como consequência um maior empenho (maior restrição, mais tentativas de controle do peso), nesta área que é por si considerada como central na sua auto-avaliação. Mantem-se deste modo, a preocupação elevada com a alimentação, o peso e com a forma corporal, central para a manutenção das PCA.
TRATAMENTO COGNITIVO-COMPORTAMENTAL
A Teoria Cognitivo-Comportamental tem implicações claras para o tratamento destas perturbações. Nomeadamente, alerta para o facto de o foco do tratamento não dever ser apenas os sintomas de ingestão alimentar compulsiva (apesar deste ser um dos principais sintomas e muitas vezes o que motiva a procura de ajuda), mas que também é necessário dirigir a intervenção para a restrição alimentar, a resposta a estados de humor adversos e a sua sobre-avaliação do peso, da forma corporal e da alimentação (Fairburn, 1985; Fairburn, Marcus, & Wilson, 1993).
O Tratamento Cognitivo-Comportamental aqui descrito deriva dos pressupostos teóricos apresentados e foi desenhado para dirigir a intervenção em relação aos processos de manutenção associados aos sintomas bulímicos. O tratamento proposto desenvolve-se ao longo de 15 a 20 sessões, aproximadamente e durante cinco meses, onde é construída uma formulação clínica individualizada acerca do sistema de manutenção dos sintomas Bulímicos e ensaiadas várias estratégias e procedimentos (Fairburn, Marcus, & Wilson, 1993).
O tratamento consiste num conjunto de estratégias cognitivo-comportamentais, de modo a: (1) desenvolver um plano alimentar regular e flexível que inclua os alimentos até então evitados; (2) lidar com as situações de risco para a ingestão alimentar compulsiva e vómito; (3) aprender a reduzir a preocupação com o corpo e o peso; e, (4) prevenir a recaída após a fase de tratamento. A eficácia do tratamento cognitivo comportamental clássico da Bulimia Nervosa tem sido alvo de intenso estudo e investigação ao longo dos últimos 20 anos. Vários estudos controlados que têm mostrado que a terapia cognitivo-comportamental é um tratamento de 1ª linha para a Bulimia Nervosa (NICE, 2004).
Por outro lado, alguns autores têm sugerido que a terapia cognitivo-comportamental para a Bulimia Nervosa se concentra demasiado na psicopatologia específica das Perturbações Alimentares (e.g., Meyer, Waller, & Waters, 1998). Além disso, Fairburn e colaboradores (2003) consideraram a necessidade de rever as conceptualizações inicias dos processos que mantém a Bulimia Nervosa, como forma aumentar a resposta ao tratamento uma vez que apenas 40% a 50% dos sujeitos recuperam completamente da perturbação e se mantêm livre de sintomas. Esta necessidade motivou o desenvolvimento da TCC já existente expandindo as formulações iniciais e propondo um tratamento mais compreensivo.
TEORIA TRANSDIAGNÓSTICA PARA ASPERTURBAÇÕES ALIMENTARES
Uma extensão da TCC para a manutenção da Bulimia Nervosa
Fairburn e colaboradores (2003) propuseram uma extensão à teoria original para a Bulimia Nervosa. De acordo com esta formulação, são propostos 4 mecanismos adicionais de manutenção dos sintomas bulímicos que se manifestam em alguns pacientes e que interagem com os aspectos psicopatológicos de base descritos anteriormente. Para os autores, a presença de algum destes mecanismos é, muitas vezes, uma dificuldade adicional, aquando do tratamento, e um obstáculo à mudança.
Os quatro mecanismos propostos são:
Perfeccionismo Clínico: O perfeccionismo clínico, consiste no perfeccionismo com significância clínica (Shafran, Cooper, & Fairburn, 2002), e foi definido pelos autores como a busca por e a realização de expectativas de realização extremamente exigentes, sem olhar para as consequências adversas que daí podem vir. Consiste num sistema de avaliação do valor pessoal com base na realização de objectivos e sucessos altamente exigentes. O perfeccionismo é visto como uma forma de psicopatologia que é semelhante à psicopatologia de base das Perturbações Alimentares, sendo que em ambas os sistemas de avaliação disfuncional operam.
O perfeccionismo é uma característica que normalmente se encontra associada às Perturbações Alimentares (Shafran, Cooper, & Fairburn, 2002). Na conceptualização de Fairburn e colaboradores (2003) é defendido que, por vezes, estas duas formas de psicopatologia interagem, sendo que o funcionamento perfeccionista do paciente é posto a operar em relação às tentativas de controlo sobre a alimentação, o peso e a forma corporal, bem como em relação a outros aspectos da sua vida. Como consequência, o medo de fracassar é assim vivido, também, na forma de medo de engordar. As pacientes dirigem, normalmente, a atenção de um modo selectivo em relação seu desempenho no que diz respeito à alimentação e incorrem em comportamentos, tais como, a contagem de calorias, repetida verificação corporal, e a emergência de grande auto-crítica com origem nas consequentes avaliações negativas do seu desempenho e das suas tentativas de controlo do peso, forma corporal e da alimentação. Novamente, esta auto-avaliação negativa é mantida, sendo exacerbadas as tentativas de controlo. Este mecanismo acaba por ser responsável pela manutenção dos sintomas, e, como tal, deve ser alvo de intervenção no tratamento.
Baixa Auto-Estima de Base: As Perturbações Alimentares estão, frequentemente, relacionadas com problemas de auto-estima, em que o sujeito apresenta de si uma imagem negativa em termos do seu valor, em variadas aspectos da sua vida. Nos pacientes bulímicos, a baixa auto-estima, surge, também, muitas vezes, como consequência da falha em atingir os seus objectivos de dieta e de restrição, quando interrompidos por episódios de ingestão alimentar compulsiva. Neste doentes, este sentimento, normalmente deixa de existir quando existe uma melhoria dos sintomas alimentares. No entanto, segundo Fairburn e colaboradores (2003), existe um grupo de pacientes que mostram um sentimento geral mais negativo e generalizado em relação a si próprios. Nestes pacientes, os sentimentos negativos não resultam apenas da sua incapacidade para controlar a sua alimentação e o seu peso, mas antes aparecem como uma forma de se verem a si próprios extremamente negativa e como parte permanente da sua identidade. Esta baixa auto-estima parece resistir apesar de uma melhoria na sintomatologia alimentar e tende a ser um obstáculo à mudança. Se, por um lado, influencia a sua capacidade de acreditar na possibilidade de mudar, o que mina a sua adesão ao tratamento, por outro, estes pacientes fazem depender o seu valor completamente da área que valorizam, neste caso, a alimentação, o que, à partida, dificulta a mudança. O fracasso é visto como uma confirmação da sua incapacidade para mudar, o que reafirma a visão negativa que têm de si próprios (Fairburn et al., 2003).
Intolerância Afectiva: Já nas formulações iniciais da Teoria Cognitivo Comportamental (Fairburn, Cooper, & Cooper, 1986) havia sido reconhecido que as alterações de humor podem, muitas vezes, funcionar como antecedentes dos episódios de ingestão alimentar compulsiva, que acontecem em muitas situações, como uma forma de resposta a estas alterações do estado de humor. No entanto, vários autores têm vindo a referir que a relação entre estas alterações emocionais e a ingestão compulsiva são mais complexas (Steinberg, Tobin, & Johnson, 1989; Stice, 2001; Waller, 2002).
Verifica-se que, um grupo de pacientes com Perturbações Alimentares parece mostrar-se incapaz de lidar com os estados emocionais intensos, sendo que não conseguem lidar com as mudanças de humor e incorrem, naquilo que Fairburn e colaboradores (2003) caracterizam por comportamentos disfuncionais modulatórios do humor. Estes comportamentos reduzem a capacidade para discernir quais os antecedentes das ingestões alimentares compulsivas e cognições associadas, embora, por outro lado, as neutralizem. Estes comportamentos podem ter a forma, por exemplo, de comportamentos de mutilação ou consumo de substâncias, muitas vezes utilizados como forma de dissipar o estado de humor inicial (e.g., tristeza, raiva, aborrecimento). Estes comportamentos são, muitas vezes, encontrados em pacientes com Perturbações Alimentares (Claes, Vandereycken, & Vertommen, 2002). Nos pacientes com Bulimia, a ingestão compulsiva, o vómito ou o exercício excessivo, podem, eles próprios, ser utilizados como forma de modular o humor (Fairburn et al., 2003). Se por um lado estes pacientes parecem experienciar os estados emocionais de um modo mais intenso, por outro, parecem ser mais sensíveis a pequenas alterações do estado emocional, sendo que, muitas vezes, se julgam incapazes de lidar com os sentimentos e pensamentos que daí advém, reacção esta que, por sua vez, pode amplificar o estado emocional inicial (Fairburn et al., 2003). Os pacientes com Bulimia Nervosa parecem ser aqueles para quem a intolerância afectiva é mais comum, funcionando, frequentemente, a ingestão alimentar compulsiva e o vómito como forma de lidar estados de humor intensos, sendo utilizados pelos pacientes como forma de lidar com os sentimentos, pensamentos e emoções adversos (ou não) e que não conseguem fazer dissipar de um outro modo. O vómito e a ingestão alimentar compulsiva funcionam para estes pacientes como forma de modular o humor e deste modo, como forma de lidar com diferentes estados emocionais intensos.
Dificuldades Interpessoais: Os antecedentes dos episódios de ingestão compulsiva estão frequentemente associados a circunstâncias de vida dos pacientes. Este facto poderá explicar os bons resultados terapêuticos demonstrados pela terapia interpessoal no tratamento da Bulimia (Agras, Walsh, Fairburn, Wilson, & Kraemer, 2000). Esta abordagem chama à atenção para a importância destes factores na manutenção da perturbação. Estes factores podem ser dificuldades familiares, contextos que enfatizam o valor da magreza, acontecimentos interpessoais negativos e são, com frequência, os antecedentes dos episódios de ingestão compulsiva. Também as dificuldades interpessoais mantidas e prolongadas ao longo do desenvolvimento são, elas próprias, fundamentais para a construção de uma imagem negativa de si e do seu valor, o que têm óbvias implicações na construção de uma auto-estima positiva.
Deste modo, é reconhecido que as dificuldades interpessoais têm um papel extremamente importante no perpetuar das dificuldades alimentares, sendo que intervir sobre estes aspectos pode, igualmente, ter um papel na facilitação da mudança em termos do comportamento alimentar (Fairburn et al., 2003).
Mecanismos comuns de manutenção do problema alimentar
A par da inclusão dos quatro novos mecanismos que actuam para a manutenção dos problemas, os mesmos autores (Fairburn et al., 2003) sugerem ainda que apesar das diferentes perturbações apresentarem algumas características distintivas, elas partilham a mesma base psicopatológica, sendo comuns os mecanismos envolvidos na manutenção das diferentes perturbações. Esta evidência é suportada também pelo facto de os pacientes se movimentarem, ao longo do tempo, entre os diferentes diagnósticos, tal com foi exposto anteriormente neste comentário. Fairburn e colaboradores (2003) propõem assim esta perspectiva transdiagnóstica de manutenção do problema, transversal às diferentes perturbações alimentares (Bulimia Nervosa, Anorexia Nervosa, Perturbações Alimentares Atípicas).
O TRATAMENTO REFORMULADO
A conceptualização clínica das Perturbações Alimentares segundo este modelo cognitivo-comportamental revisto (Fairburn, Cooper, & Shafran, 2003) tem algumas implicações para o tratamento.
Assim, foi proposto um novo tratamento Terapia Cognitivo-Comportamental para as Perturbações Alimentares. O tratamento deriva da perspectiva transdiagnóstica, na medida em que é desenhado para ser realizado junto de pacientes com Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa ou PCA SOE, e na medida em que é defendido que são partilhadas por estes pacientes características psicopatológicas comuns.
Assim, deixa de ser relevante a perturbação alimentar específica, sendo que cada caso é formulado com base nos aspectos psicopatológicos presentes e nas particularidades de manutenção do problema (Fairburn et al., 2003). Por outro lado, o tratamento desenha-se inicialmente do modo tradicional, para depois, num segundo passo serem abordados os mecanismos adicionais de manutenção da perturbação eventualmente presentes.
A ABORDAGEM COGNITVO-COMPORTAMENTAL POR PASSOS
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) está bem estabelecida como um tratamento eficaz para as PCA (Fairburn, 1997a; Wilson et al., 2002). No entanto, o facto de ser um tratamento com elevado nível de intensidade e de requerer profissionais especializados para a implementação do programa, torna-o uma alternativa que comporta custos elevados e que não se encontra ainda disponível de um modo generalizado, sendo fundamental maximizar a relação custo-eficácia da terapêutica (Carter & Fairburn, 1998).
A evidência de que diferentes pacientes respondem com sucesso a diferentes tipos e intensidades de tratamento (Haaga, 2000), nomeadamente manuais de auto-ajuda, tem levado a que novas variantes do tratamento CC tenham sido desenvolvidas, permitindo, por um lado, uma melhor disseminação de serviços especializados, e por outro, que cada paciente obtenha a intensidade terapêutica de que necessita.
Num ambiente de recursos limitados, uma abordagem de tratamento por passos de acordo com as necessidades pessoais, parece ser a alternativa mais sensata de modo a assegurar que todos recebam a quantidade de tratamento que necessitam.
Esta necessidade tem levado ao desenvolvimento de programas/manuais de Auto-ajuda e a Auto-ajuda Guiada, que se tem vindo a provar eficazes, para determinados indivíduos (Carter & Fairburn, 1998), menos dispendiosas e que possam ser mais facilmente difundidas e acessíveis aos pacientes com estas perturbações. Tendo em consideração o corpo empírico produzido nos últimos anos em relação à eficácia dos programas de auto-ajuda, é possível afirmar que estes apresentam resultados positivos, sendo que o National Institute for Clinical Excelence (2004) reconhece a auto-ajuda como um “possível primeiro passo no tratamento da Bulimia Nervosa, pelo que estes pacientes devem ser encorajados a seguir programas de auto-ajuda empiricamente validados” e que os “profissionais de saúde devem considerar fornecer encorajamento directo e apoio” a pacientes a realizarem este programa, como forma de melhorar os resultados terapêuticos (NICE, 2004, p. 14).
Assim, numa lógica de tratamento por fases, só os indivíduos que não respondessem a este tipo de tratamento é que integrariam uma fase terapêutica de maior intensidade (Birchall & Palmer, 2002), restringindo, deste modo, o uso da TCC aos pacientes que tem realmente necessidade (Carter & Fairburn, 1998).
Como nos foi possível verificar, o tratamento das Perturbações de Comportamento Alimentar, especialmente para a Bulimia Nervosa, tem sido amplamente investigado. A terapia cognitivo-comportamental aparece como o tratamento de primeira escolha para a Bulimia Nervosa (NICE, 2004; Wilson & Fairburn, 2000; Wilson, Vitousek, & Loeb, 2000), que tem vindo a ser melhorado de modo a responder ao crecente interesse de encontrar formas de tratamento alternativas, menos dispendiosas e que possam ser facilmente difundidas e acessíveis aos pacientes com estas perturbações, como sejam os manuais de auto-ajuda.
REFERÊNCIAS
Agras, W. S., Walsh, B. T., Fairburn, C. G., Wilson, G. T., & Kraemer, H. C. (2000). A multicenter comparison of cognitive-behavioral therapy and interpersonal psychotherapy for bulimia nervosa. Archives of General Psychiatry, 57, 459-466.
[ Links ]Birchall, H., & Palmer, B. (2002). Doing it by the book: What place for guided self-help for bulimic disorders? European Eating Disorders Review, 10, 379-385.
Cachelin, P. M., Striegel-Moore, R. H., Elder, K. A., Pike, K. M., Wilfley, D. E., & Fairburn, C. G. (1999). Natural course of a community sample of women with binge eating disorder. International Journal of Eating Disorders, 25, 45-54.
Carter, J., & Fairburn, C. (1998). Cognitive self-help for binge eating disorder: A controlled effectiveness study. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 66, 616-623.
Claes, L., Vandereycken, W., & Vertommen, H. (2002). Impulsive and compulsive traits in eating disordered patients compared with controls. Personality and Individual Differences, 32, 707-14.
Fairburn, C. G. (1981). A cognitive behavioural approach to the management of bulimia. Psychological Medicine, 11, 707-711.
Fairburn, C. G. (1985). Cognitive-behavioral treatment for bulimia. In D. M. Garner & P. E. Garfinkel (Eds.), Handbook of psychotherapy for anorexia nervosa and bulimia (pp. 160-192). New York: Guilford Press.
Fairburn, C. G. (1997a). Eating disorders. In D. M. Clark & C. G. Fairburn (Eds.), Science and practice of cognitive behaviour therapy (pp. 209-241). Oxford: Oxford University Press.
Fairburn, C. G. (1997b). Interpersonal psychotherapy for bulimia nervosa. In D. M. Garner & P. E. Garfinkel (Eds.), Handbook of treatment for eating disorders (pp. 278-294). New York: Guilford Press.
Fairburn, C. G., & Bohn, K. (2005). Eating disorder NOS (EDNOS): An example of the troublesome “not otherwise specified” (NOS) category in DSM IV. Behavior Research and Therapy, 43, 691-701.
Fairburn, C., & Harrison, P. (2003). Eating Disorders. The Lancet, 361, 407-416.
Fairburn, C. G., Cooper, Z., & Cooper, P. J. (1986). The clinical features and maintenance of Bulimia Nervosa. In K. D. Brownell & J. P. Foreyt (Eds.), Handbook of eating disorders: Physiology, psychology and treatment of obesity, anorexia and bulimia (pp. 389-404). New York: Basic Books.
Fairburn, C., Cooper, Z., & Shafran, R. (2003). Cognitive behaviour therapy for eating disorders: A “transdiagnostic” theory and treatment. Behaviour Research and Therapy, 41, 509-528.
Fairburn, C. G., Marcus, M. D., & Wilson, G. T. (1993). Cognitive-behavioral therapy for binge eating and Bulimia Nervosa: A comprehensive treatment manual. In C. G. Fairburn & G. T. Wilson (Eds.), Binge eating: nature, assessment and treatment (pp. 361-404). New York: Guilford Press.
Fairburn, C. G., Cooper, Z., Bohn, K., O’Connor, M. E., Doll, H. A., & Palmer, R. L. (2007). The severity and status of eating disorder NOS: Implications for the DSM-V. Behaviour Research and Therapy, 45, 1705-1715.
Haaga, D. A. F. (2000). Introduction to the special section on stepped care models in psychotherapy. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 68(4), 547-548.
Hsu, G. L. K. (1995). Outcome of bulimia nervosa. In K. D. Brownell & C. G. Fairburn (Eds.), Eating disorders and obesity: A comprehensive handbook (pp. 238-244). New York: Guilford Press.
Machado, P., Machado, B., Gonçalves, S., & Hoek, H. (2007). The prevalence of eating disorders not otherwise specified. International Journal of Eating Disorders, 40, 212-217.
Meyer, C., Waller, G., & Waters, A. (1998). Emotional states and bulimic psychopathology. In H. W. Hoek, J. L. Treasure, & M. A. Katzman (Eds.), Neurobiology in the treatment of eating disorders (pp. 271-287). Chichester: Wiley.
National Institute for Clinical Excellence. (2004). CG9 Eating Disorders: Core interventions in the treatment and management of anorexia, bulimia and related eating disorders – NICE Guidelines. NICE: UK.
Shafran, R., Cooper, Z., & Fairburn, C. G. (2002). Clinical perfectionism: A cognitive-behavioural analysis. Behaviour Research and Therapy, 40, 773-791.
Steinberg, S., Tobin D., & Johnson, C. (1989). The role of bulimic behaviors in affect regulation: different functions for different patient subgroups? International Journal of Eating Disorders, 9, 51-55.
Steinhausen, H. C. (1995). The course and outcome of anorexia nervosa. In K. D. Brownell & C. G. Fairburn (Eds.), Eating disorders and obesity: A comprehensive handbook (pp. 234-237). New York: Guilford Press.
Stice E. (2001). A prospective test of the dual pathway model of bulimic pathology: Mediating effects of dieting and negative affect. Journal of Abnormal Psychology, 110, 1-12.
Waller, G. (2002). The psychology of binge eating. In C. G. Fairburn & K. D. Brownell (Eds.), Eating disorders and obesity: A comprehensive handbook (2nd ed., pp. 98-102). New York: Guilford Press.
Wilson, G. T., & Fairburn, C. G. (2000). The treatment of binge eating disorder. European Eating Disorders Review, 8, 351-354.
Wilson, G. T., Vitousek, K. M., & Loeb, K. L. (2000). Stepped care treatment for eating disorders. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 68, 564-572.
Wilson, G. T., Fairburn, C. G., Agras, S., Walsh, B. (2002). Cognitive-Behavioral Therapy for bulimia nervosa: Time course and mechanisms of change. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 70(2), 267-274.
(*) Universidade do Minho.