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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.28 n.1 Lisboa jan. 2010

 

O estado de arte do conceito de psicopatia

Cristina Soeiro (*), Rui Abrunhosa Gonçalves (**)

 

(*) Escola de Polícia Judiciária; Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz; e-mail: cristina.soeiro@pj.pt.

(**) Escola de Psicologia, Universidade do Minho, Braga, Portugal; e-mail: rabrunhosa@psi.uminho.pt.

 

RESUMO

Este artigo tem como objectivo efectuar uma análise do conceito de psicopatia, tendo presente a sua evolução e as principais questões que se colocam na sua relação com o estudo do comportamento criminal. São analisados os principais indicadores que caracterizam as perspectivas clínica, categorial, tipológica e dimensional do conceito de psicopatia, assim como os principais aspectos que as diferenciam. No final do artigo é discutido o impacto, quer em termos teóricos quer empíricos, dos aspectos que são defendidos como centrais, na definição de psicopatia, para cada uma das abordagens apresentadas.

Palavras-chave: Comportamento criminal, Personalidade anti-social, Psicopatia.

 

ABSTRACT

The aim of this article is to make an analysis of the concept of psychopathy, bearing in mind the implication of the concept in the study of criminal behaviour. We analyze the most important factors that characterize the several perspectives related with the conceptualization of psychopathy: the clinical, categorical, typological and dimensional perspectives of the concept. Is also discussed the impact, both theoretical and empirical, of the aspects that are defined as essential in the definition of psychopathy, for each of the approaches presented.

Key-words: Anti-social personality, Criminal behavior, Psychopathy.

 

A psicopatia é uma das perturbações da personalidade mais estudada, atendendo ao impacto negativo que os comportamentos associados a esta perturbação possuem na comunidade onde o psicopata vive, nomeadamente a forte relação com o cometimento de comportamentos criminais. Nos estudos criminológicos aparecem referidos, desde de sempre, determinados indivíduos que dispõem, de forma continuada, de uma grande capacidade de agressão, tanto no sentido físico como no psicológico, e que englobam comportamentos de hostilidade e manipulação. Na verdade, a identificação de indivíduos que são responsáveis por agressões sistemáticas, em muitas ocasiões com grave dano para as suas vítimas, e que se caracterizam por serem cruéis, irresponsáveis e por não terem vida emocional real, nem sintomas característicos de enfermidade mental, possuem todos os indicadores para se inserirem num diagnóstico de psicopatia.

De um modo geral, os estudos indicam que a psicopatia se manifesta numa série de condutas que são resultado de factores biológicos e da personalidade, relacionados com uma série de antecedentes familiares e outros factores ambientais. No entanto, a definição do conceito de psicopatia, e o impacto que esta perturbação apresenta nos contextos forense e clínico, implicam o desenvolvimento de mais investigações.


No sentido de enquadrar a importância deste conceito e definir o seu “estado de arte”, serão apresentados neste artigo os aspectos que definem o conceito de psicopatia e a sua evolução. Procura-se assim, contribuir para uma sistematização deste conceito tão importante para a compreensão do fenómeno da criminaidade, e para a prevenção e intervenção nos contextos da criminalidade com contornos de maiores índices de reincidência e violência.

O CONCEITO DE PSICOPATIA

Definir psicopatia, reveste-se de grande complexidade. Na verdade, a definição deste conceito foi alvo de várias influências, quer em termos da sua evolução na vertente científica, quer em termos da sua utilização ao nível da linguagem de senso comum, onde este conceito surgiu como sinónimo de “louco” ou “criminoso” (Gonçalves, 1999b).

A evolução científica do conceito apresentou vários percursos determinados por aspectos sociais, morais e estereótipos associados à comunidade científica (Gonçalves, 1999a). A falta de consenso relativamente à designação atribuída à perturbação em análise e aos indicadores que a caracterizam são os aspectos que marcaram esta fase de definição do conceito. Na verdade, como alternativa ao termo de psicopatia, surgiram designações como perturbação de carácter (Millon, 1981), perturbação da personalidade anti-social (American Psychiatric Association – APA, 1980), perturbação da personalidade dissocial (World Health Organization – WHO, 1965, citado por Gonçalves, 1999b) e sociopatia (Partridge, 1930) diversidade que introduziu limitações no enquadramento conceptual e avaliativo desta perturbação grave da personalidade.

Estas definições integravam indicadores diversos da perturbação, sendo, por exemplo, o conceito de perturbação de carácter muito abrangente, enquanto os conceitos de perturbação da personalidade anti-social e de personalidade dissocial e sociopatia se referiam principalmente aos indicadores comportamentais associados a esta perturbação.

A definição clara de psicopatia é algo fundamental, devido às suas implicações na investigação, diagnóstico, avaliação, intervenção e replicabilidade de resultados na área de estudo referente às perturbações da personalidade (Gonçalves, 1999b). Atendendo à importância de uma clara definição deste conceito, serão analisados, no presente artigo, os aspectos mais relevantes que surgem associados a esta problemática.

A evolução da definição do conceito de psicopatia pode ser dividida em dois grandes momentos que são marcados pelo trabalho efectuado por Cleckley (1941/1976) e pelo desenvolvimento, a partir de 1952, da classificação das perturbações mentais realizada pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association) (cf. DSM-I; American Psychiatric Association, 1952, citado por Soeiro, 2006), trabalhos que marcaram as definições mais recentes.

AS PRIMEIRAS ABORDAGENS DO CONCEITO DE PSICOPATIA

É pacífico que o conceito de psicopatia surgiu do trabalho desenvolvido por Pinel em 1809, que de forma mais específica introduziu o conceito de “mania sem delírio” para designar aqueles indivíduos que mostravam acções atípicas e agressivas. Em 1812 o americano Rush nos seus trabalhos atribuiu a insensibilidade dos psicopatas a um defeito congénito que, no entanto, não identificou (Cantero, 1993).

Pritchard, um psiquiatra inglês, introduziu em 1835, o termo de insanidade moral para se referir aos sujeitos cuja moral ou princípios de conduta eram fortemente pervertidos e indicadores de comportamento anti-social. Prichard, seguidor da escola ambientalista, foi o primeiro a atribuir a esta perturbação a influência do meio, propondo como meio de intervenção, na psicopatia, o recurso a medidas ambientais que possibilitassem a estes indivíduos integrar-se num meio adequado e ultrapassar assim o problema (Cantero, 1993).

Esta concepção contribuiu para o desenvolvimento de escolas educativas para jovens com comportamento desviante. A designação de insanidade moral, apresentada por Pritchard, foi posteriormente colocada em causa, já que este termo surgia associado, igualmente, a outras anomalias psíquicas que não integravam a psicopatia e porque o termo moral foi questionado por vários actores sociais, desde a área jurídica até à religiosa.

Koch, psiquiatra alemão, como resposta à problemática introduzida por Pritchard, apresentou em 1888 uma outra proposta de conceito para esta perturbação da personalidade. Assim, este autor apresentou o conceito de “inferioridade psicopática”, que definiu como uma anomalia de carácter, em grande parte devido a aspectos congénitos ou ainda a aspectos resultantes de enfermidade psíquica (Gonçalves, 1999a).

Mas é Kraepelin entre 1896 e 1915, que introduziu o termo de “personalidade psico-pática”, conceito utilizado até aos dias de hoje. Esta designação surgiu integrada numa tipologia mais vasta de treze categorias base, elaborada por este autor, e que procurava descrever um tipo de indivíduos com indicadores de comportamento criminal anormal ou imoral (Lykken, 1995).

O início do século XX é marcado por um conjunto importante de desenvolvimentos relativamente ao estudo da psicopatia, identificando-se uma maior orientação para o estudo dos indicadores comportamentais desta perturbação (Cantero, 1993).

Entre 1923 e 1955 Schneider realizou importantes contribuições no campo da psicopatia. Este autor utilizou o termo “personalidade psicopática” como uma entidade integradora de certas patologias, apresentando uma clara distinção entre os conceitos de doença mental e de psicopatia. O autor considerou ser errado definir como doença mental uma perturbação que tem por base traços psíquicos (Cantero, 1993). A sua classificação baseava-se, então, nos traços disposicionais associados ao estudo da personalidade e das vivências que determinavam o desenvolvimento da mesma. Nesta perspectiva, a psicopatia está relacionada com desvios quantitativos das características normais da personalidade, salientando-se, desta forma, a importância dos aspectos predisposicionais (Gonçalves, 1999a). Este conjunto de indicadores está na base da sua tipologia das personalidades psicopáticas.

Schneider (1923/1955), classificou as personalidades psicopáticas em 10 categorias distintas: (1) Hipertímicos; (2) Depressivos; (3) Inseguros; (4) Fanáticos; (5) Carentes de valor; (6) Lábeis de humor; (7) Explosivos; (8) Apáticos; (9) Abúlicos; (10) Asténicos. Apesar desta tipologia, o autor chamou ainda a atenção para a identificação de diversas combinações com gradações diferentes. Segundo Gonçalves (1999a), este trabalho corresponde a uma tentativa de precisão do diagnóstico da psicopatia, que teve já o contributo de outros autores como Koch e Kraepelin.

As definições até aqui apresentadas podem ser consideradas como as primeiras tentativas de definir este conceito. Segue-se uma análise das definições mais actuais do conceito.

AS ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DO CONCEITO DE PSICOPATIA

A perspectiva clínica do conceito

Uma das contribuições mais importantes na definição actual de psicopatia deve-se ao trabalho de Cleckley, que proporcionou uma descrição clínica mais detalhada da psicopatia e suas diversas manifestações. São os critérios clínicos a base da investigação desenvolvida por este autor. No seu livro “The Mask of Sanity” (1941/1976) apresentou um perfil da psicopatia, indicando os traços mais significativos da perturbação: (1) Encanto superficial e boa inteligência; (2) Inexistência de alucinações ou de outras manifestações de pensamento irracional; (3) Ausência de nervosismo ou de manifestações neuróticas; (4) Ser indigno de confiança; (5) Ser mentiroso e insincero; (6) Egocentrismo patológico e incapacidade para amar; (7) Pobreza geral nas principais relações afectivas; (8) Vida sexual impessoal, trivial e pouco integrada; (9) Ausência de sentimentos de culpa ou de vergonha; (10) Perda específica da intuição; (11) Incapacidade para seguir qualquer plano de vida; (12) Ameaças de suicídio raramente cumpridas; (13) Raciocínio pobre e incapacidade para aprender com a experiência; (14) Comportamento fantasioso e pouco recomendável com ou sem ingestão de bebidas alcoólicas; (15) Incapacidade para responder na generalidade das relações interpessoais; (16) Exibição de comportamentos anti-sociais sem escrúpulos aparentes. Para este autor a principal característica do psicopata é a deficiente resposta afectiva face aos outros, o que explicaria a forte relação com condutas anti-sociais.

É no trabalho de Cleckley (1941/1976) que se baseiam as definições mais recentes de psicopatia, principalmente as que se inserem numa vertente clínica do conceito. São os critérios clínicos definidos por este autor que estão na base das investigações desenvolvidas, e que assentam sobretudo no recurso a questionários de personalidade, entre os quais se destacam o Minnesota Multiphasic Personality Inventory – MMPI (Hare, 1996; Hare & Cox, 1978).

Buss (1966) descreveu a psicopatia de acordo com dois componentes distintos: sintomas e traços da personalidade. Os sintomas consistiam em comportamentos centrados na busca de estimulação, desrespeito pelas convenções, incapacidade para controlar impulsos ou adiar gratificações, rejeição da autoridade e disciplina, raciocínio pobre na avaliação de comportamentos mas bom em situações e comportamentos associais e anti-sociais. Os traços de personalidade referem-se a relações interpessoais defeituosas ou uma incapacidade fundamental para amar ou para estabelecer amizades verdadeiras, inexistência de intuição própria, ausência de culpa ou vergonha e, por último, uma fachada de competência e maturidade que mascaram uma inconsistência geral e a incapacidade para ser digno de confiança.

Buss (1966) propôs ainda um padrão tridimensional de características manifestas da psicopatia. Assim o psicopata é: (a) uma pessoa vazia e isolada; (b) não tem uma identidade basilar e (c) não tem perspectiva de controlo do tempo.

McCord e McCord (1964) efectuaram uma extensa revisão de literatura relativa ao conceito de psicopatia, de onde resultou a identificação de um conjunto de características que melhor define esta perturbação. Segundo estes autores a psicopatia estaria relacionada com a “incapacidade para amar” e a “ausência de sentimentos de culpa”. Estas características estariam na base dos comportamentos anti-sociais apresentados pelos indivíduos com este tipo de perturbação.

McCord e McCord (1964) caracterizaram os psicopatas como pessoas associais, agressivas, altamente impulsivas, egocêntricas, com baixo limiar de tolerância à frustração e incapazes de manter laços afectivos com outros humanos. O psicopata é assim descrito como possuindo uma personalidade desajustada e regulada por desejos primitivos e por uma busca exagerada de sensações.

Perante este conjunto vasto de alterações da personalidade que surgem associadas ao conceito de psicopatia, na sua vertente mais clínica, muitas áreas de investigação deste tipo de perturbação abandonam a utilização do mesmo, considerando-o como inoperante e moralista (Doren, 1987). Este contexto levou ao desenvolvimento de outras perspectivas de investigação com impacto na definição do conceito de psicopatia.

As classificações nosológicas e a perspectiva categorial de psicopatia

Pichot (1978, citado por Soeiro, 2006) ao procurar fazer um ponto de situação relativamente à definição de psicopatia, identificou a influência de duas posições distintas na sua caracterização: uma das posições baseava-se no trabalho de Pritchard (1985, citado por Gonçalves 1999a) e do seu conceito de insanidade moral, e a outra no trabalho de Schneider (1923/1955), relativo ao termo de “personalidade psicopática” (Gonçalves, 1999b). Para Pichot a confusão surgiu quando a perspectiva inglesa recorreu ao termo germânico e lhe atribui um significado que nem sempre lhe era aplicado, já que para Schneider a psicopatia não resultava forçosamente de uma inadequação social. Segundo Pichot, esta confusão no uso dos termos acabou por influenciar a elaboração das classificações nosológicas das doenças mentais.

As classificações nosológicas das doenças mentais permitiram o desenvolvimento de uma abordagem categorial no que se refere à definição de psicopatia. Assim, nesta vertente de estudo da perturbação salientou-se, em primeiro lugar, a influência do conceito de personalidade sociopática de Partridge (1930, citado por Gonçalves, 1999a), que foi adoptado pela American Pychiatric Association, na 1ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-I; APA, 1952, citado por Cantero, 1993).

Partridge (1930) referiu-se ao conceito de personalidade sociopática para designar a incapacidade ou falta de vontade de alguns sujeitos para se sujeitarem às leis da sociedade. O uso deste conceito perdurou até à edição de 1980, ano em que a DSM-III passou a utilizar o termo de “perturbação da personalidade antisocial”, recorrendo ao conceito originalmente empregue por Prichard e aos trabalhos desenvolvidos por Robins (1966, 1978).

Robins (1966) desenvolveu uma descrição comportamental da psicopatia focalizada nos comportamentos observáveis, e, por consequência, mensuráveis, não sendo necessário para definir a perturbação, inferir sobre os processos psicológicos subjacentes. Através desta abordagem a autora procurou clarificar o diagnóstico de psicopatia, excluindo os indicadores que poderiam remeter para o diagnóstico de esquizofrenia, atraso mental, lesão orgânica ou comportamentos anti-sociais relacionados com os consumos de substâncias.

Segundo Robins (1966) esta opção visava responder à necessidade de se estabelecerem critérios psicológicos para um diagnóstico mais objectivo desta perturbação. Deste trabalho resultou um diagnóstico de psicopatia baseado em aspectos comportamentais, que podem ser observados e medidos, não considerando os factores de natureza clínica que definem esta perturbação da personalidade.

Deste modo, na versão da DSM-III-R (American Psychiatric Association, 1987) foram apresentados os indicadores fundamentais para a definição desta perturbação. Assim, o conceito apresentado definiu a perturbação a partir de um conjunto de comportamentos anti-sociais, já identificados antes dos 15 anos de idade, mas que persistiam ou se alteravam para outro tipo de comportamentos anti-sociais. Os comportamentos que definiam a perturbação englobavam: a mentira frequente, roubo, absentismo escolar, vandalismo, fugas de casa e crueldade para com os animais e as pessoas. Estes comportamentos evoluíam para outro tipo de problemas mais complexos como a ausência de responsabilidade financeira e familiar, incapacidade para efectuar projectos futuros e manter um posto de trabalho de forma contínua, envolvimento em actos anti-sociais e criminais que poderiam culminar na prisão.

Do ponto de vista comportamental eram ainda referidos como indicadores importantes a agressividade e impulsividade e o envolvimento em experiências de risco, como condução veloz sob a influência do consumo de substâncias como álcool ou drogas. No que se refere aos aspectos emocionais, foram definidos como centrais a ausência de sentimentos de culpa e a dificuldade em estabelecer relações afectivas estáveis.

As edições posteriores desta classificação das perturbações psicopatológicas, a DSM-III-R (APA, 1987) e a DSM-IV (American Psychiatric Association, 2002) mantiveram a noção de “perturbação da personalidade anti-social”, se bem que a última edição incluía já características da psicopatia definidas por Cleckley (1976) e apresentadas no trabalho de Hare (1991).

As versões mais recentes, DSM-IV (APA, 1994, citado por Soeiro, 2006) apresentam, assim, algumas alterações que correspondem a uma agregação, simplificação e alteração dos critérios que definem a perturbação. Os indicadores que são considerados nestas versões centram-se claramente em aspectos relativos ao estilo de vida anti-social, e não em indicadores clínicos (sintomas interpessoais e afectivos) (Hart, Cox, & Hare, 1995). Na verdade, estes aspectos têm sido alvo de polémica já que, segundo esta noção, se por um lado se reduz o grupo de indivíduos que podem ser classificados com esta perturbação, a verdade é que os indicadores integram mais facilmente indivíduos que apresentam comportamentos criminais (Hart, Cox, & Hare, 1995; Hare, Hart, & Harpur, 1991). Tal como o refere Gonçalves (1999a,b), cerca de ¾ dos indivíduos presos em Portugal apresentam comportamentos que permitem que sejam classificados como possuindo uma perturbação da personalidade de cariz anti-social. Assim, na prática o que acontece, é incluir os delinquentes comuns reincidentes, com um alargado historial delituoso, nessa classificação, mas excluir muitos sujeitos realmente psicopatas que não mostraram essa actividade tão marcadamente anti-social.

Apesar de a DSM-IV (APA, 1994, citado por Soeiro, 2006) considerar importante os sintomas interpessoais e afectivos, na prática não apresenta uma orientação no modo como podem ser avaliadas (Hart, Cox, & Hare, 1995)1. Esta limitação mantém-se na versão mais recente desta classificação a DSM-IV-TR (APA, 2002).

A DSM não constituiu a única classificação das perturbações psicopatológicas com impacto na definição da psicopatia. Na verdade, a International Classification of Diseases (ICD-8, World Health Organization, 1965; ICD-10, World Health Organization, 1987, citado por Gonçalves, 1999b), baseando-se na terminologia de Schneider, coloca o conceito de psicopatia como termo genérico para este grupo de perturbações. O conceito de perturbação de personalidade dissocial, surge como uma designação específica, que em última análise passou a ser considerado como sinónimo do conceito de personalidade anti-social apresentada pela classificação da American Psychiatric Association. Atendendo ao maior impacto do trabalho desenvolvido pela American Psychiatric Association, e considerando que no contexto dos EUA o termo dissocial possuía um enquadramento diferente de anti-social2, o último termo passou a ser mais utilizado nos trabalhos de natureza científica sobre as temáticas da antisocialidade (Gonçalves, 1999b).

O impacto da perspectiva tipológica

Para além das concepções que se inserem numa vertente clínica e categorial, pode ainda ser identificado um conjunto de definições que se inserem numa abordagem tipológica.

Nos anos sessenta surgiram as definições e classificações de psicopatia que procuravam articular os indicadores da realidade com a definição do conceito. Inserido principalmente numa abordagem clínica de psicopatia, cada autor tendia a descrever esta perturbação em função da importância que dada a uma ou várias características a ela associadas (Cantero, 1993). A maior parte das definições eram centradas nos traços clínicos relativos ao egocentrismo, ausência de empatia e sentimentos de culpa e de estabelecimento de relações afectivas com os outros (Hare, 1970).

Nesta linha de investigação, Karpman (1961, citado por Gonçalves, 2000) definiu o psicopata como uma pessoa instável e emocionalmente imatura. As suas reacções surgem simples e provocadas por situações de frustração ou de algo que incomoda o psicopata. Não experimentam ansiedade nem medo, as suas relações sociais e sexuais são superficiais, as recompensas/castigos não têm qualquer efeito sobre o seu comportamento imediato. Este autor refere, no entanto, que estes indivíduos, apesar de serem simples nas suas reacções emocionais, são capazes de simular estados emocionais e afectos para com os outros sempre que isso lhes permita atingir os objectivos que pretendem.

Karpman (1941, citado por Gonçalves, 2000) distinguiu dois tipos de psicopatas: o sintomático e o ideopático. Posteriormente, este autor apresentou uma outra tipologia que definiu por tipo agressivo-predador e tipo passivo-parasita (Karpman, 1955, citado por Gonçalves, 1999b). Procurando definir, de um modo geral, cada um dos tipos apresentados por este autor, verifica-se que o primeiro corresponde a indivíduos com um comportamento frio, agressivo e insensível e com o objectivo de se apropriarem de tudo o que desejam, enquanto no segundo possuem uma aparente necessidade de ajuda e simpatia, alcançando os seus propósitos de forma parasita.

Nesta linha de investigação podem ser igualmente consideradas as concepções de psicopatia que possuem por base os estudos efectuados a partir de tratamentos estatísticos, principalmente com recurso à análise factorial. Estes estudos procuraram identificar grupos (clusters) de traços de personalidade que permitissem definir os vários tipos de personalidades psicopáticas. Os trabalhos desenvolvidos nesta linha de investigação tiveram por base análise da história de vida dos indivíduos, rating scales, questionários de auto-relato e inventários de personalidade (Gonçalves, 1999a). Importa considerar aqui os trabalhos desenvolvidos por Jenkins (1960, citado por Gonçalves, 2000), Quay e colaboradores (Quay, 1965; Quay & Parsons, 1971) e Blackburn (1971, 1978, 1986).

Considerando o trabalho desenvolvido por Jenkins (1960, citado por Gonçalves, 2000), este tinha por base a análise de grupos de crianças com história de comportamento delinquente. Da análise dos resultados do estudo, o autor obteve três tipos distintos de psicopatas: o primeiro grupo, que definiu como “não socializado-agressivo” era definido por tendências agressivas, crueldade, desafio à autoridade e sentimentos inadequados de culpa;

o segundo grupo, definido por “sobre-ansioso”, caracterizava-se por timidez, apatia, sensibilidade e submissão; o terceiro grupo, designado por “socializado”, surge associado a grupos anti-sociais, com envolvimento em grupos com história de roubo e ausências da escola e de casa (Gonçalves, 1999a).

Quanto ao trabalho de Quay e colaboradores (Quay, 1965; Quay & Parsons, 1971), este permitiu a identificação de dois factores que permitiram definir a psicopatia: a delinquência psicopática, que integrava aspectos como fraca moralidade, rebeldia, impulsividade, e ausência de laços familiares; e a delinquência neurótica, que correspondia a tendências agressivas e impulsivas, sentimentos de culpa, remorsos, tensão e depressão. Posteriormente foi identifi-cado por Quay (1977, citado por Gonçalves, 1999a) mais dois grupos de indivíduos, levando ao desenvolvimento de uma tipologia definida por quatro factores: “sub-socialização” e “socialização”, “défice de atenção” e “ansiedade-retraimento-disforia”. Estes trabalhos deram suporte aos estudos da perspectiva clínica, desenvolvidos por Karpman (1955, citado por Gonçalves, 1999b) e de Lykken (1957), já que replicaram uma divisão factorial para definir psicopatia semelhante à apresentada pelos autores da vertente clínica. Assim, o psicopata agressivo corresponde à designação de psicopata primário, enquanto o psicopata neurótico corresponde à caracterização do psicopata secundário.

Os trabalhos desenvolvidos por Blackburn (1971, 1975, 1986), com base em amostras de agressores violentos e com recurso ao MMPI, confirmaram igualmente os dados anteriores. Nos seus estudos Blackburn conseguiu obter duas dimensões distintas em que os agressores podeiam ser diferenciados: os sub-controlados e os sobre-controlados. Destes trabalhos resultou uma tipologia que subdividia os psicopatas em quatro subgrupos: (1) psicopatas primários; (2) psicopatas secundários; (3) psicopatas inibidos; (4) psicopatas conformados (Blackburn, 1984).

Howells e Hollin (1988, citado por Gonçalves, 2000) afirmaram que estes quatro subgrupos podiam ser encontrados na população prisional e que existiam diferenças na personalidade e no comportamento entre os subgrupos. Assim, os psicopatas primários apresentavam baixa ansiedade e elevada extroversão, ao contrário dos psicopatas secundários que eram definidos como introvertidos e com elevada ansiedade. Blackburn (1984) verificou que 52% de psicopatas primários e 8% de psicopatas inibidos tinham história de reincidência de actos violentos.

Estes dados foram igualmente confirmados por trabalhos desenvolvidos posteriormente por Lykken (1995), Levenson, Kiehl, e Fitzpatrick (1995) e Ross, Lutz, e Bailley (2004). Destes estudos resultou uma tipologia que define os psicopatas primários como indivíduos insensíveis, pouco ansiosos, calculistas, manipulativos e mentirosos, e os psicopatas secundários, que genericamente se considera que sofrem de uma desordem neurótica, que estimula o comportamento impulsivo por eles apresentado.

Estes trabalhos envolveram uma abordagem do conceito de psicopatia, que desencadeou o desenvolvimento de uma tipologia que dicotomiza o comportamento destes indivíduos em psicopatas primários e secundários, e que ainda hoje é alvo de discussão e controvérsia (Blackburn, 1993; Blackburn & Coid, 1998; Ross, Lutz, & Bailley, 2004), já que autores como Hare (1991, 2003) defendem uma definição do conceito unidimensional (Soeiro, 2006).

A abordagem dimensional do conceito de psicopatia

Enquadrando uma abordagem unidimensional do estudo do conceito de psicopatia, surgem os trabalhos desenvolvidos por Robert Hare. Este autor é um dos investigadores que mais contribuiu para o estudo do conceito de psicopatia e para a sua avaliação.

A noção de psicopatia que Hare (1991, 2003) apresenta opõe-se a uma abordagem tipológica do conceito, tal como é apresentado pelos trabalhos de Levenson, Kiehl, e Fitzpatrick (1995) e Ross, Lutz, e Bailley (2004). Na verdade, estes autores referem que a sua tipologia, associada à definição da psicopatia, corresponde ao mesmo tipo de dados obtidos por Hare (1991), apesar de não considerarem o conceito de psicopatia como unidimensional. Contudo, Hare (1980, 1991) não aceita esta divisão dos psicopatas em dois tipos de indivíduos, já que os seus estudos são reveladores dos vários critérios/dimensões que definem a desordem e não de tipos diferentes de perfis a ela associados.

Hare (1970) caracterizou o psicopata como alguém incapaz de mostrar empatia ou preocupação genuína por outrem, que manipula e usa os outros para satisfazer os seus próprios desejos. Estes indivíduos, segundo este autor, apresentam ainda uma sinceridade superficial, que os torna capazes de convencer aqueles que usou e a quem prejudicou, da sua inocência ou da sua motivação para mudar.

O trabalho desenvolvido por Hare (1991) apresenta claramente a influência dos estudos de Cleckley (1941/1976) e de McCord e McCord (1964). Assim, para este autor, a psicopatia é definida como um constructo unidimensional composto por dois factores correlacionados (Hare, 1980, 1991; Harpur, Hasktian, & Hare, 1988; Hart, Hare, & Harpur, 1992): um dos factores está associado aos aspectos clínicos (interpessoais e afectivos) que definem esta perturbação da personalidade e o outro mais associado aos aspectos comportamentais que definem o termo de estilo de vida anti-social. Hare apresenta uma definição de psicopatia que engloba um conjunto de traços de personalidade e comportamentos socialmente desviantes, devendo os indivíduos apresentar características dos dois tipos de indicadores para serem classificados como psicopatas. Este modelo de dois factores torna-se, na última década, o dominante no que se refere à definição de psicopatia (Skeem, Mulvey, & Grisso, 2003).

Na sequência do trabalho desenvolvido por Hare (1980, 1991) e Hart, Cox, e Hare (1995), e numa tentativa de estudar a replicação deste constructo de dois factores em termos transculturais, foram desenvolvidas investigações que defendem que o conceito de psicopatia deve ser definido não por dois mas por três factores (cf. Cooke, 1997, 1998; Cooke & Michie, 2001): o primeiro factor foi definido por estilo interpessoal arrogante e dissimulado; o segundo factor corresponde a uma deficiente experienciação dos afectos; e o terceiro factor foi definido por estilo de comportamento impulsivo e irresponsável. Nesta perspectiva, a definição de psicopatia integra três facetas distintas, uma relativa a aspectos de natureza interpessoal, outra relativa a aspectos afectivos e outra que considera indicadores de natureza comportamental (Cleckley, 1941/1976; Cooke & Michie, 2001; Hare, 1991). Tal como é referido por Cooke e Michie (2001), para definir psicopatia é importante considerar o contributo dos três indicadores, que possuem igual peso na caracterização do constructo.

A proposta de definição do conceito de psicopatia a partir de um modelo de três factores, em substituição do modelo de dois factores de Hare (1991), introduz um debate em torno do papel do comportamento anti-social na caracterização do constructo psicopatia. Na verdade, o papel do comportamento anti-social, definido como um sintoma no modelo bi-factorial de Hare (1991), é apresentado como uma consequência da psicopatia nos resultados obtidos pelos trabalhos de Cooke e Michie (2001) e Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004). A forte relação estabelecida entre psicopatia e a variável comportamento anti-social surgiu da associação que existe entre esta perturbação da personalidade e a criminalidade e a violência típica das amostras estudadas (Hare, Cooke, & Hart, 1999, citados por Cooke, Michie, Hart, & Clark, 2004; Hart & Hare, 1997, citados por Cooke, Michie, Hart, & Clark, 2004). Esta relação, tal como já foi referido, surge relacionada com a psicopatia, não apenas no modelo de Hare (1991), mas também nos critérios de diagnóstico apresentados pelos diferentes sistemas nosológicos. Contudo, a natureza da associação entre psicopatia e comportamento anti-social não é clara (Cooke, Michie, Hart, & Clark, 2004; Cooke, Michie, & Hart, 2006).

Assim, a diferença apresentada pelo modelo dos três factores de Cooke e Michie (2001), não está relacionada apenas com a subdivisão em duas partes do Factor 1 do modelo de Hare (1991), que integra os aspectos clínicos da perturbação e que separa os indicadores inter-pessoais dos afectivos. A principal discussão centra-se na eliminação dos indicadores relativos aos comportamentos anti-sociais, mantendo apenas os aspectos comportamentais relativos à impulsividade e irresponsabilidade. Esta posição é igualmente defendida por autores como Lilienfeld, Purcell, e Jones-Alexander (1997, citado por Soeiro, 2006), que partindo dos aspectos definidos por Cleckley (1941/1976), consideram que o comportamento antisocial não é necessário nem suficiente para o diagnóstico da psicopatia. Deste modo, estes autores consideram que esta definição, centrada nos dois factores de Hare (1991), se encontra contaminada por factores não específicos relativos ao comportamento desviante e anti-social.

Como resposta a esta posição apresentada por Cooke e Michie (2001) e ao modelo de três factores para definir o conceito de psicopatia, Hare (2003) apresenta um novo modelo de quatro factores com a mesma finalidade de caracterização da psicopatia. Assim, Hare (2003) apresenta uma nova proposta relativamente aos sintomas de psicopatia e que engloba os três factores apresentados por Cooke e Michie (2001) e um quarto factor que considera os indicadores relativos ao comportamento anti-social. A análise dos indicadores que definem o conceito de psicopatia segundo esta estrutura de quatro factores é aprofundada e confirmada em Hare e Neuman (2006), ao serem comparados os indicadores que caracterizam os instrumentos criados para a avaliação da psicopatia a partir da Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R – Hare, 1991).

Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) estudam a adequação de cada um dos modelos referidos anteriormente e defendem que os indicadores relativos ao comportamento anti-social não podem ser considerados como uma manifestação directa da perturbação psicopatia, para amostras com características culturais distintas. Na verdade, não confirmam a adequação do modelo de Hare (2003) relativamente à introdução de um quarto factor que integra os indicadores relativos ao comportamento anti-social e desviante.

Considerar o comportamento anti-social como um sintoma, implica integrá-lo como um indicador importante para a avaliação e diagnóstico da psicopatia. Os dados empíricos obtidos por Cooke e Michie (2001) e Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) na análise das qualidades psico-métricas de um dos instrumentos mais utilizados para a avaliação da psicopatia, a PCL-R (Hare, 1991, 2003) e a sua versão reduzida PCL:SV (Hart, Cox, & Hare, 1995) permitem, contudo, aceitar a possibilidade do comportamento anti-social ser considerado como uma consequência da psicopatia.

Mas, para além dos indicadores empíricos, Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) referem ainda quatro argumentos de natureza teórica na defesa da “hipótese de consequência”, quando se considera o papel dos indicadores relativos ao comportamento anti-social, na definição do conceito de psicopatia.

Em primeiro lugar, estes autores defendem que as definições clínicas mais clássicas de psicopatia (Cleckley, 1941/1976; Karpman, 1961, citado por Gonçalves, 2000; McCord & McCord, 1964) não definem o comportamento anti-social como um sintoma central na caracterização da perturbação. Este aspecto é reforçado por Schneider (1950/1958, citado por Gonçalves, 1999b) e por Cleckely (1941/1976) que consideraram a possibilidade de que muitos indivíduos com psicopatia não apresentam história de comportamento anti-social, tendo Scnheider afirmado que o comportamento anti-social deve ser considerado como secundário para a definição desta perturbação da personalidade. Esta mesma posição foi apresentada por Lykken (1995) ao considerar que, apesar dos psicopatas apresentarem risco elevado para se envolver em actos criminosos, nem todos sucumbem a este risco.

Em segundo lugar, Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) defendem que existem indicadores de que determinados sintomas da psicopatia são a causa da exibição de condutas anti-sociais: os sintomas interpessoais como grandiosidade, implicam os psicopatas em actos criminosos sádicos, motivados por desejos de controlo; limitações afectivas como a ausência de empatia e a ansiedade resultam numa dificuldade em inibir os pensamentos violentos; a impulsividade, por sua vez, surge associada ao cometimento de actos criminosos sem que o sujeito tenha presente a consequências associadas a este tipo de actos (e.g., Blackburn, 1993; Blackburn & Coid, 1998)

Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) referem como terceiro ponto fundamental a análise dos aspectos qualitativos que definem o comportamento anti-social, e que se distinguem dos sintomas da psicopatia. Na verdade, enquanto o comportamento anti-social está relacionado com actos, os restantes sintomas da psicopatia relacionamse com traços de personalidade. Blackburn (1987) defendeu que um diagnóstico baseado em actos e traços da personalidade é feito recorrendo a critérios que integram domínios conceptuais distintos. A mesma posição é apresentada por Widiger e Lynam (1998) e Lilienfeld (1994).

O quarto aspecto de natureza conceptual sugere que o comportamento anti-social resulta da influência de um conjunto variado de factores de natureza biológica, psicológica e social. Na verdade, no estudo do comportamento criminal, indica que a psicopatia é apenas uma das causas, podendo encontrar-se igualmente como fonte de causalidade as desordens psicóticas, o atraso mental, uso e dependência de substâncias ou outras perturbações da personalidade (Cooke, Michie, Hart, & Clark, 2004).

Perante este conjunto de dados conceptuais e empíricos, a definição do conceito de psicopatia necessita, segundo a perspectiva de Cooke et al. (2004) e Cooke, Michie, e Hart (2006) de uma redefinição que deve considerar os factores do comportamento desviante e anti-social como consequência da psicopatia e não como um sintoma desta desordem da personalidade. A definição de psicopatia deve, segundo esta perspectiva, eliminar os critérios que se encontram relacionados com o comportamento desviante e anti-social.

Nesta perspectiva Cook, Hart, Logan, e Michie (2004) apresentam uma nova proposta no que se refere à identificação de domínios que definem e permitem avaliar a psicopatia. A avaliação compreensiva da personalidade psicopática (Comprehensive Assessment of Psychopathic Personality – CAPP) corresponde a um modelo que define a psicopatia em cinco domínios: (1) Domínio da vinculação, que avalia as dificuldades do psicopata em estabelecer relações interpessoais; (2) Domínio comportamental, que analisa os problemas relativos ao planeamento e cumprimento das tarefas e responsabilidades; (3) Domínio cognitivo, que reflecte os problemas com a adaptabilidade e flexibilidade mentais; (4) Domínio da dominância, relacionado com questões de gestão do poder e controlo; (5) Domínio do Self, que define problemas relacionados com a identidade e individualidade do psicopata.

O CAPP pretende diferenciar os domínios ou áreas da psicopatia dos seus sintomas, procurando elaborar um instrumento de avaliação que seja discriminatório em termos de diagnóstico da psicopatia.

Esta separação entre os aspectos da personalidade e os critérios relativos ao comportamento anti-social podem facilitar, em termos teóricos, o estudo da relação entre a psicopatia e o comportamento desviante e, em termos práticos, a clarificação dos critérios de avaliação facilitam a decisão a ser tomada relativamente à classificação, avaliação de risco de violência e tratamento dos indivíduos em contexto clínico/ /forense (Soeiro, 2006).

O “ESTADO DE ARTE” DO CONCEITO DE PSICOPATIA

Após a análise dos aspectos relacionados com a definição de psicopatia, verifica-se que são diversas as influências que se encontram associadas à sua caracterização e que, por isso, originaram várias definições do constructo. Apesar desta diversidade, observa-se, no entanto, uma evolução relativamente ao consenso sobre os indicadores deste constructo (Gonçalves, 2000; Soeiro, 2006).

Como forma de sistematização, Blackburn (1992) identifica três formas distintas de utilização do conceito de psicopatia, na literatura. Uma que se relaciona com a ideia de desvio/deterioração, pessoal ou psicológica, em relação à normalidade, baseada na tradição de Schneider e reconhecida na ICD-10 (World Health Organization, 1987, citado por Gonçalves, 1999b). A segunda define o conceito como um desvio/deterioração social, apresentando o comportamento desviante e anti-social um lugar de destaque na explicação da perturbação. Esta influência está presente na DSM-IV-TR (American Psychiatric Association, 2002). A terceira perspectiva de psicopatia é definida por Blackburn como híbrida, já que conjuga os aspectos da deterioração da personalidade, enquanto desvio social, com os critérios clínicos associados à perturbação. Os autores que melhor exemplificam esta concepção são Cleckley (1951/1976) e mais recentemente Hare (1991, 2003).

Segundo Gonçalves (1999a) as definições de psicopatia podem ser agrupadas em quatro abordagens distintas: as concepções tipológicas, dimensionais, categoriais e clínicas. Para este autor, os trabalhos desenvolvidos por Hare inserem-se na abordagem dimensional, apesar de salientar a forte influência de autores oriundos da vertente clínica.

De uma forma geral, e como resultado do que até aqui foi exposto, pode considerar-se que o conceito de psicopatia pode ser definido por um conjunto de características ou traços de personalidade (Cleckley, 1951/1976; Hare, 1991, 2003) que podem estar presentes em indivíduos com ou sem história de anti-socialidade e que surgem desde a infância, piorando na adolescência e persistindo na fase da adultez (Gonçalves, 2000). Deste modo, define-se aqui o contorno de uma perturbação da personalidade, salvaguardando-se os aspectos relacionados com o papel do comportamento anti-social como sintoma ou como consequência desta perturbação (Soeiro, 2006).

Quanto à articulação, quando se considera o conceito de psicopatia, entre uma abordagem dimensional (e.g., Hare, 1991, 2003) e uma abordagem tipológica (e.g., Blackburn, 1971, 1984, 1986) os dados relativos aos estudos sobre a psicopatia primária e secundária parecem indicar que esta abordagem apresenta um contributo importante para a compreensão do fenómeno. Para alguns autores (cf. Gonçalves, 1999a,b), estas duas abordagens podem mesmo ser vistas como conciliáveis, principalmente quando se considera o estudo de populações com história criminal.

DISCUSSÃO

De um modo geral, pode considerar-se que existem várias definições de psicopatia. A sua utilização é influenciada por vários aspectos como sejam, o país, a legislação e a tradição científica.

Um dos aspectos interessantes que ressaltam da análise da área de estudo da psicopatia, quer em termos teóricos, quer práticos, é o grande impacto, nas últimas décadas, que o trabalho desenvolvido por Hare (1991) possibilitou na realização concertada de investigações em diferentes contextos (forense, clínico-forense e clínico) e em diferentes realidades culturais.

Esta diversidade de estudos permitiu analisar quais os indicadores que melhor definem esta perturbação da personalidade, possibilitando o desenvolvimento de uma forte relação entre os aspectos empíricos relacionados com a avaliação dos indicadores de psicopatia e os aspectos conceptuais, relacionados com a definição do constructo. A revisão do modelo e do respectivo instrumento que o originou, pode então levar a alterações na vertente teórica do constructo, demonstrando a importância da articulação que pode ser estabelecida entre a prática e a teoria.

Do ponto de vista teórico, considerando os aspectos referidos ao longo deste artigo, ficam por analisar dois problemas fundamentais no estudo da psicopatia: um, é se o conceito de psicopatia deve ser definido de uma forma categorial ou dimensional; e outro é se existem dois tipos de psicopatas – primários e secundários.

Quanto ao estudo da relação entre uma abordagem categorial, centrada num conjunto de critérios que definem a desordem (e.g., DSM-IV-TR; APA, 2002) e a dimensional, que considera os atributos clínicos específicos da psicopatia, os resultados das investigações, parecem mostrar que não faz sentido reduzir esta perturbação a aspectos relativos ao estilo comportamental, tal como é apresentado pela abordagem categorial.

No contexto da discussão relativa à existência de uma divisão entre psicopatas primários e secundários, autores como Hare não consideram os segundos como psicopatas verdadeiros. No entanto, alguns dos estudos mencionados (e.g., Lykken 1995; Blackburn & Coid, 1998) mostram que esta distinção faz sentido (cf. Soeiro, 2006).

Cook, Hart, Logan, e Michie (2004) defendem que um modelo de 5 factores se encontra mais próximo do trabalho desenvolvido por Cleckley (1941/1976) e por McCord e McCord (1964), já que ao centrar a definição de psicopatia em indicadores específicos relativos à personalidade, permite afastar o impacto de índices não específicos relativos ao comportamento anti-social e colocar de forma mais firme o conceito de psicopatia, no domínio das perturbações da personalidade. A contra proposta de Hare (2003) e Hare e Neumann (2006), com a apresentação de uma estrutura de quatro factores, insere-se claramente na problemática da definição de qual o papel do comportamento anti-social na explicação do conceito de psicopatia, definindo esta variável como um sintoma de psicopatia. Assim, a questão persiste: o seu papel será de sintoma ou de consequência da perturbação? Esta é uma questão importante, para esta área de estudo e para a compreensão do comportamento criminal, que merece uma análise mais detalhada em investigações futuras.

 

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1 A ausência de empatia, imagem inflamada de si próprio e o charme superficial são indicadores que têm sido incluídos nas concepções tradicionais de psicopatia e podem ser particularmente distintivos da perturbação anti-social da personalidade, e factores de predição de recidiva na prisão, ou nos contextos forenses onde os actos criminais, delinquentes e agressivos podem não ser específicos” (American Psychiatric Association, 1994, citado por Soeiro, 2006).

2 Nos EUA dissocial refere-se aos contextos onde os indivíduos apresentam dificuldades no cumprimentos de regras sociais, enquanto o conceito de anti-social se refere aos indivíduos que se apresentam incapazes quanto à tolerância das regras sociais, entrando em ruptura com as mesmas.

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