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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.25 no.2 Braga  2012

 

Desafios da inclusão: uma proposta para a qualificação de docentes no Ensino Superior via tecnologias digitais*

Challenges of inclusion: a proposal to qualify teachers in higher education through digital technologies

Défis d'inclusion: une proposition pour la qualification des enseignants de l'enseignement supérieur au moyen de technologies numériques

 

Claudia Alquati Bisol & Carla Beatris Valentini

Universidade de Caxias do Sul, Brasil

 

RESUMO

As universidades são historicamente conhecidas por serem instituições elitistas e meritocráticas. Porém, nos anos 90, políticas de expansão do Ensino Superior brasileiro modificaram o perfil dos estudantes, tornando premente a questão da qualificação dos docentes. Este artigo relata a construção de um objeto digital de aprendizagem concebido com o objetivo de promover reflexão sobre a inclusão, contribuir para uma mudança na forma como os docentes percebem a diversidade e para a ressignificação da prática docente. Foi desenvolvido inicialmente com foco na inclusão de estudantes surdos. O objeto de aprendizagem, intitulado Incluir, procura conciliar aspectos técnicos e pedagógicos a fim de concretizar uma metodologia reflexiva e problematizadora, de base interacionista.

Palavras-chave: Objeto de aprendizagem; Inclusão; Ensino Superior; Surdez

 

ABSTRACT

Universities are historically known by being elitist and meritocratic institutions. However, in the 90’s, expansion policies in Brazilian higher education changed the students’ profile, making teachers qualification a pressing issue. This article reports the construction of a digital learning object conceived with the objective of promoting reflection about inclusion, contributing for a change in the way teachers perceive diversity and for a resignification of the teachers’ practice. It was developed initially with a focus in the inclusion of deaf students. The learning object, entitled Incluir, intends to conciliate technical and pedagogical aspects in order to materialize an interactionist, reflexive and problematizing methodology.

Keywords: Learning object; Inclusion; Higher Education; Deafness

 

RESUMÉ

Les universités sont historiquement connues pour être des institutions méritocratiques et d’élite. Mais, dans les années 90, des politiques visant à développer l'enseignement supérieur au Brésil ont changé le profil des élèves, ce qui rend urgent la question de la qualification des enseignants. Cet article présente la construction d’un objet d’apprentissage numérique conçu pour promouvoir la réflexion sur l’inclusion, ce qui contribue à un changement dans la façon dont les enseignants perçoivent la diversité et la redéfinition des pratiques d’enseignement. Il a été initialement développé avec un accent sur l’inclusion des élèves sourds. L'objet d'apprentissage, appelée Incluir (Inclure), cherche à concilier les aspects techniques et pédagogiques, afin de parvenir à une méthodologie de réflexion et de problématisation, sur une base interactionniste.

Palabras-clave: Objet d'apprentissage; Inclusion; Enseignement Supérieur; Surdité

 

Introdução

A maior parte das melhores instituições de Ensino Superior do mundo têm uma longa história e cultura de exclusão (Brown, 2004). No Brasil isto não é diferente, uma vez que o predomínio de jovens provenientes das camadas mais ricas da população era muito claro até os anos 1990, tanto na rede particular quanto nas universidades públicas (Neves, Raizer, & Fachinetto, 2007). No entanto, a maioria dos professores que estão diariamente nas salas de aula das faculdades e universidades brasileiras concordará que o perfil dos estudantes tem mudado muito nos últimos anos.

A diversidade não é mais um discurso ou uma promessa neste início da segunda década do século XXI. Incentivados por políticas afirmativas que oferecem condições a segmentos historicamente marginalizados, estudantes oriundos de camadas de menor renda, estudantes negros e índios e, entre eles, estudantes com necessidades especiais, buscam cursos de graduação em instituições de Ensino Superior públicas e privadas. Cunha e Pinto (2009) mencionam alguns fatores que reforçam a necessidade de incorporação desses novos grupos sociais. São eles: a valorização do conhecimento técnico e científico, os movimentos em prol dos direitos sociais, o desejo de mobilidade social, o mercado de trabalho mais instável e seletivo e as transformações tecnológicas que incentivam a volta aos estudos por parte de populações adultas. Também se reconhece que, para que o país assegure algum papel internacional em um mundo globalizado, a democratização do acesso à Educação Superior de qualidade tem um papel fundamental (Neves, Raizer, & Fachinetto, 2007).

Entre os grupos sociais que vêm paulatinamente conquistando maior espaço no Ensino Superior estão os estudantes surdos. Há alguns fatores específicos relativos a este grupo que podem ser considerados para além deste contexto macrossocial de expansão do Ensino Superior, tais como: maior acesso de crianças e adolescentes surdos ao Ensino Fundamental e Médio e aumento da qualidade da educação bilingue em escolas para surdos; consolidação dos Estudos Surdos no país; reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como meio legal de comunicação e expressão dos surdos e regulamentação da profissão de intérprete de língua de sinais, através da Lei n° 10.436 de 24 de abril de 2002 (Brasil, 2002) e do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (Brasil, 2005). Dados do INEP apontam que, no ano de 2005, estavam matriculados 2.428 deficientes auditivos no Ensino Superior. Em 2009, de 20.019 estudantes com deficiências que se matricularam no Ensino Superior, 22% correspondem a deficientes auditivos (INEP, 2009).

Considerando o quanto é recente este processo de expansão do Ensino Superior no país, é coerente supor que o professor de Ensino Superior está se deparando com mudanças profundas em sua sala de aula. Especialmente na rede privada, que responde grandemente pelo processo de expansão (Neves, Raizer, & Fachinetto, 2007), o estudante idealizado, com sólida formação anterior e acesso a bens culturais, está lado a lado com o estudante que não demonstra domínio satisfatório de conteúdos elementares e tem dificuldades na escrita e produção de textos (Franco, 2008). Essas mudanças no perfil do estudante levantam sérias questões quanto à qualificação dos professores, visto que é necessário repensar as práticas pedagógicas e aprender a reconhecer e administrar profundas diferenças individuais. Como facilitar esse processo de mudança no modo de pensar e nas atitudes da comunidade acadêmica, especialmente dos professores?

Este artigo apresenta o processo de construção de um objeto de aprendizagem (OA) digital, intitulado Incluir, concebido com o objetivo de promover reflexão sobre a inclusão, contribuir para uma mudança na forma como os docentes percebem a diversidade e para a ressignificação da prática docente. Trata-se de um recurso desenvolvido para funcionar como se fosse um workshop virtual, cujo público alvo prioritário é o professor de Ensino Superior. Um dos principais temas apresentados e discutidos neste OA visa auxiliar o professor no processo de inclusão de estudantes surdos e deficientes auditivos em sua sala de aula. Após discutir brevemente os desafios da inclusão no Ensino Superior na perspectiva dos estudantes (elencando algumas especificidades do estudantes surdo) e na perspectiva da qualificação do corpo docente, descreve-se o processo de construção do OA, procurando demonstrar como sua concepção procura conciliar aspectos técnicos e pedagógicos a fim de concretizar uma metodologia reflexiva e problematizadora, de base interacionista, coerente com o objetivo deste OA.

 

Adultos jovens (e adultos jovens surdos): os desafios do Ensino Superior

Basicamente, dois tipos de desafios enfrentados pelos jovens ao ingressar no Ensino Superior podem ser facilmente identificados, um de ordem cognitiva e o outro relativo às demandas emocionais. Na melhor das situações, durante os anos de Educação Básica, o estudante desenvolveu razoavelmente bem seu vocabulário e suas competências para a leitura e escrita, além das habilidades lógico-matemáticas. Além disso, ainda no melhor dos cenários, vivenciou condições gerais adequadas para o estudo e adquiriu um bom nível de conhecimento que oferece a ele uma visão coerente da sociedade onde vivemos. Também na melhor das hipóteses, este estudante, que se encontra nos últimos anos da adolescência ou nos primeiros anos da vida adulta, adquiriu uma noção de si razoavelmente clara, está desenvolvendo autonomia em todos os aspectos de sua vida e desenvolveu habilidades sociais que lhe permitem fazer amigos, interagir com os colegas, relacionar-se com os diferentes estilos de professores e se beneficiar das oportunidades e infraestrutura que a vida universitária oferece. Dificuldades em uma ou mais dessas condições podem explicar experiências acadêmicas mal sucedidas (Sampaio & Santos, 2002; Diniz & Almeida, 2005; Ferreira, Almeida, & Soares, 2001).

Estudantes surdos, como quaisquer outros estudantes, têm que lidar com essas demandas cognitivas e emocionais. No entanto, os estudantes surdos pertencem a um grupo minoritário e, como tal, tendem a ser estigmatizados e segregados (Barnett, 1999; Padden, 2000). Sua experiência escolar anterior também é um aspecto importante a ser considerado. Assim como os demais, os estudantes surdos provêm de contextos educativos diversos, portanto trazem ao Ensino Superior uma diversidade de experiências ligadas ao ensino e à aprendizagem (Jarvis & Knight, 2003). Entretanto, além da frequente dúvida sobre a qualidade do Ensino Básico, seja ele privado ou público, para os surdos pesa ainda a questão de terem frequentado escolas especiais ou escolas regulares. Aqueles que estudaram em escolas especiais para surdos passaram os anos do Ensino Básico cercados por colegas surdos e um número razoável de professores e instrutores surdos. Imersos na cultura surda, sua língua (a língua de sinais) foi valorizada e utilizada diariamente. Construíram uma identidade surda baseada na valorização de uma modalidade visual de estar no mundo mais do que em ideias relativas à deficiência. Os que estudaram em escolas regulares podem ter se deparado com uma boa estrutura para suporte de crianças surdas. Espera-se que tenham tido apoio em sala de aula, cuidado por parte dos professores em adequar os recursos, contato com outros estudantes surdos, monitorias e acompanhamento extra-classe.

Não é incomum, porém, encontrarmos histórias de surdos que tiveram um mínimo de suporte ao longo de toda a sua história escolar. De qualquer maneira, seja uma ou outra a experiência anterior, estar em uma universidade significa estar imerso no mundo ouvinte: as regras, o funcionamento, a comunicação cotidiana, a forma como as aulas são conduzidas. A comunicação direta com colegas professores e ouvintes é rara porque a maioria ignora a língua de sinais e a cultura surda (Lang, 2002). Um desafio importante é o de lidar constantemente com as demandas do mundo ouvinte e com a realidade da diferença, o que pode acarretar uma sobrecarga emocional (Bisol, Valentini, Simioni, & Zanchin, 2010).

A questão da língua também é importante. A mediação realizada por intérpretes de língua de sinais diminui as diferenças linguísticas e favorece a integração. No entanto, a interpretação em aulas do Ensino Superior requer conhecimento sólido em diferentes campos do conhecimento. As perdas que ocorrem no processo da interpretação acabam tornando deficitário o acesso ao conhecimento (Foster, Long, & Snell, 1999; Martins, 2006; Bisol et al., 2010). Além disso, os estudantes surdos tendem a apresentar dificuldades de leitura e escrita (Watson, 1999; Padden & Ramsey, 2000), o que acarreta uma sobrecarga cognitiva, uma vez que a Educação Superior pressupõe um tipo de trabalho intelectual principalmente exigido através de atividades de leitura e escrita (Sampaio & Santos, 2002).

 

Diversidade na sala de aula: desafios para o professor

A criação de espaços e estratégias que contribuam para a reflexão sobre a ação pedagógica é indispensável para que as propostas de inclusão produzam efeitos concretos (Carvalho, 2008). Esta reflexão deve levar em conta a diversidade que caracteriza as salas de aula do século XXI, pois a docência não pode ser exercida independentemente do perfil do estudante. Portanto, há que pesquisar, propor, criar novas formas de estabelecer a relação do ensinar e do aprender. Quando o professor está aberto à mudança, aberto à necessidade de pensar sobre suas concepções, ele se torna um elemento fundamental na construção de um cenário rico onde pode haver espaço para todos. A preocupação com a qualidade, o currículo, as estratégias pedagógicas e a avaliação são aspectos que resumem os principais pontos a serem considerados pelos professores ao repensar seu fazer docente.

Em relação ao primeiro aspecto mencionado, a qualidade, parece haver uma tendência muito grande de se imaginar que a diversidade necessariamente afeta a qualidade do ensino. Estudantes com perfil não tradicional1 tendem realmente a não ter sucesso acadêmico se o modo tradicional de ensinar e avaliar são mantidos. Cunha e Pinto (2009) mencionam a necessidade de construir indicadores de qualidade que reconheçam os limites da racionalidade técnica, investindo-se em reflexões epistemológicas e questionando se a erudição deve sempre pautar a discussão sobre a qualidade.

A construção de um ambiente positivo para todos os estudantes também requer transformações curriculares. Smith (1991) refere a importância de ir além de adaptações secundárias, tais como a inclusão de um tópico sobre racismo ou estudos feministas, que geralmente são detalhes pequenos em programas que praticamente permanecem iguais. O autor propõe que sejam feitas mudanças que abarquem novos campos de estudo e novas perspectivas capazes de questionar as concepções tradicionais baseadas nas experiências de homens brancos, de classe média, heterossexuais. Trabalhar para transformar o currículo pode ser também uma oportunidade de engajar os professores em uma revisão profunda de suas concepções a fim de oferecer conteúdo relevante a todos os estudantes, em uma visão pluralista de cada área do conhecimento.

Em relação às estratégias pedagógicas, Smith (1991) menciona algo do cotidiano da maioria dos professores no Ensino Superior: salas de aula com muitos estudantes onde a transmissão oral, ao estilo de palestras, é geralmente considerada a forma mais adequada de transmitir informação. Formas alternativas de ensinar não são muito comuns e estilos diferentes de aprender são raramente considerados. É óbvio que, por exemplo, os estudantes surdos são aprendentes visuais. No entanto, vê-se aulas tradicionais serem ministradas mesmo quando estudantes surdos estão matriculados, deixando a acessibilidade literalmente "nas mãos" exclusivas do intérprete de língua de sinais. O interessante é que quando novas formas de ensinar são introduzidas considerando as necessidades dos estudantes surdos, todos os estudantes acabam se beneficiando de diagramas, slides, resumos e experimentos.

Finalmente, a questão da avaliação. Este é um dos aspectos mais complexos da prática docente. Avaliar levando em conta diferenças em termos de acessibilidade, comunicação, estilos de aprendizagem e, ao mesmo tempo, observando os critérios mínimos estabelecidos para a formação superior é mais complexo ainda. Um exemplo de discussão seriam as propostas de realizar avaliação de outras formas que não a somativa. Romanowski e Wachowicz (2006) elencam a avaliação diagnóstica, a contínua, a emancipatória, a democrática e a processual (ou formativa) como alternativas para a avaliação somativa. A avaliação somativa é a abordagem tradicional, centrada na verificação de desempenho a partir de critérios estabelecidos no planejamento. Ela é centrada no professor. Novas práticas de avaliação centradas na relação pedagógica, entendida como relação social, podem contribuir com o processo de inclusão por serem processuais e por considerarem as diferenças individuais.

É importante lembrar que há dificuldades que tornam mais árdua para os professores a tarefa de lidar com os desafios da inclusão no Ensino Superior. Dentre estas dificuldades, devem-se considerar as fragilidades na formação oferecida ao futuro docente no que tange ao trabalho específico com pessoas com necessidades educacionais especiais e a pouca ênfase que ainda existe na formação continuada (Reis, Eufrásio, & Bazon, 2010). Também se deve considerar a necessidade de ampliar a infraestrutura e melhorar a qualidade em todos os níveis de ensino para assegurar o acesso e a permanência de todos os estudantes, transformando assim as políticas educacionais de democratização do ensino em uma realidade concreta (Sobrinho, 2010).

 

Objetos de aprendizagem

O que é um objeto de aprendizagem? Segundo McGreal (2004), existem várias propostas de conceituação que podem variar de amplitude. As definições mais abertas sugerem que qualquer coisa utilizada para ensinar ou aprender é um objeto de aprendizagem. Um pouco menos ampla seria a proposta de que o termo "objeto de aprendizagem" deveria ter seu uso restrito a entidades digitais, não incluindo um livro, por exemplo. Nesse caso, a palavra "objeto" teria sua origem diretamente relacionada ao termo "programação orientada ao objeto" e qualquer informação disponível na Internet poderia ser considerada um objeto de aprendizagem.

Outras propostas vinculam esses recursos às características de reutilização e capacidade de dar suporte a atividades voltadas à aprendizagem (seja um blog ou um microscópio), estendendo então a objetos não digitais. McGreal (2004) identifica também os autores que consideram que um objeto de aprendizagem deve ser digital e ter um objetivo educacional formal, ou seja, um uso intencionalmente pedagógico, utilizado isoladamente ou em combinação com outros objetos midiáticos.

E, finalmente, nas definições mais restritas, encontram-se os autores que não aceitam a ideia de um objeto digital genérico, complementando com a exigência de endereçamento a problemas específicos, ou delineamento de operações precisas, determinadas combinações ou sequenciamento associado a propostas curriculares para públicos determinados ou como "unidades de estudo" ou "unidades de aprendizagem", com padrões pré-estabelecidos de funcionamento, propriedade e direitos autorais.

É possível considerar que a proposta de definição de Polsani (2003) se adequa às duas últimas correntes, quando este autor argumenta que, para que um objeto digital seja um OA, este tem que ser direcionado para a aprendizagem tanto no que diz respeito à forma como à relação. A forma refere-se ao enquadramento, contexto e ambiente no qual o objeto está inserido: esta faz com que, além de se constituir um objeto de apreensão intuitiva, este objeto se constitua um objeto para a compreensão, um objeto de pensamento, o que transforma o sujeito em um aprendiz. A relação refere-se ao contexto discursivo: a compreensão que transforma um objeto qualquer em objeto de conhecimento não é arbitrária nem fundada somente em reações imediatas baseadas na sensibilidade. A sensibilidade deve ser reorganizada argumentativamente dentro de um contexto discursivo.

 

Metodologia de construção do objeto de aprendizagem Incluir

O objeto digital Incluir foi concebido a partir de uma proposta pedagógica de base interacionista, mais especificamente tendo como referencial teórico a Epistemologia Genética de Jean Piaget, com um objetivo específico no que concerne à aprendizagem e direcionado a um público determinado. A fonte do desenvolvimento, nessa teoria, está no desequilíbrio e na busca constante, pelo sujeito, de novas reequilibrações. Assim, o OA Incluir foi concebido visando promover situações que possam desequilibrar ou colocar em xeque algumas certezas provisórias dos usuários com relação à inclusão.

Foram seguidos padrões computacionais que permitem a reutilização em diferentes contextos educativos. O objeto foi construído a partir de quatro grandes temas de discussão. Cada um destes temas foi organizado em módulos que integram os recursos e materiais (vídeos, animações, imagens e informações), criados especificamente para este objeto.

O OA Incluir foi organizado em uma estrutura não linear: procurou-se construir uma estrutura hipertextual e hipermidiática, de forma a possibilitar ao usuário iniciar sua navegação por qualquer um dos módulos, avançar dentro do módulo ou mudar de módulo a qualquer momento. Cada um dos quatro módulos possui independência dos demais em termos de argumento, problematização e interação, o que permite a sua utilização separadamente, conforme a necessidade do público usuário, e também permite futura introdução de novos módulos sem modificar a estrutura do objeto. Ao mesmo tempo, os quatro módulos se organizam na mesma proposta de níveis e podem ser trabalhados de forma interligada. A figura a seguir representa a concepção do objeto:

 

 

Como pode ser visto na figura 1, cada módulo está organizado em três níveis: 1) mobilização, 2) provocação e 3) informação. Estes níveis foram concebidos na tentativa de tornar efetivos os pressupostos construtivistas/interacionistas de aprendizagem. Segundo estes pressupostos, para que a aprendizagem possa acontecer, é necessário que o sujeito da aprendizagem, ou seja, o usuário do OA, esteja mobilizado para que cognitivamente se abram novas possibilidades de significações. Dito de outro modo, o conhecimento é construído a partir das significações que o sujeito atribui ao mundo (Piaget, 1987).

A mobilização, a partir da concepção teórica adotada, pode ser compreendida como o movimento provocado pela interação entre o usuário e o OA, levando uma atribuição de significação que pode vir a desestabilizar algumas certezas iniciais ou hipóteses do usuário, necessitando assim movimentar seu sistema cognitivo para novas adaptações, ou seja, em busca de um novo equilíbrio (Piaget, 1976; Vasconcelos, 1994).

Os três níveis acima citados podem assim ser compreendidos: a) mobilização: o usuário se depara com elementos que indicam os conceitos e ideias que serão aprofundados no nível seguinte; b) provocação: são utilizados recursos multimídia como imagem, som e texto para desestabilizar os conceitos prévios ou visão de mundo do usuário, na forma de pequenas problematizações; c) informação: o usuário tem acesso à informação em textos construídos para este objeto de aprendizagem, trazendo reflexões e informações relativas aos temas abordados.

Foi preciso atentar para a relação entre as soluções de programação e a expressividade hipermidiática conceitual. Esse encontro promove uma autoria na relação entre a construção imagética e a programação do OA, entre a equipe de pesquisadores que concebem o OA e a equipe técnica de programação. A disponibilidade ou não de certos recursos tecnológicos ampliam ou reduzem a forma como o objeto poderá ser construído, exigindo flexibilidade em relação ao planejamento inicial, porém mantendo-se o foco no objetivo do projeto. O OA foi desenvolvido com as seguintes tecnologias: Adobe Flash (desenvolvimento de animações e sons), Adobe Dreamweaver (para programação em PHP), Adobe Fireworks (edição das imagens). O objeto está acessível através do endereço: http://www.ucs.br/projetos/incluir

 

Apresentação do objeto de aprendizagem Incluir

A página introdutória do objeto apresenta uma imagem inspirada na idéia de neurônios e suas sinapses, na qual se vê os quatro módulos que podem ser acessados segundo escolha do usuário. Na tela do computador, a imagem não é estática: o neurônio se movimenta e efeitos visuais simulam sinapses ou trocas de energia. A imagem de um neurônio ajuda a estabelecer um campo discursivo relacionado à não-linearidade, conectividade, rede, como pode ser visto na figura 2:

 

 

Os quatro módulos que compõem o objeto foram concebidos a partir de objetivos específicos: o módulo dos "Limites" tem por objetivo questionar ideias do senso-comum relativas aos limites do outro, buscando diferenciar aquilo que é uma condição física, médica, do potencial criativo que uma pessoa pode ter no sentido de reinventar sua vida e suas possibilidades de realização; o módulo "Diversidade" visa introduzir uma discussão sobre os termos normalidade, desigualdade e diferença; o módulo "Docência" discute a inclusão escolar apresentando algumas implicações nas relações professor-estudante, estudante-estudante e suas implicações pedagógicas; por fim, foi criado um módulo dedicado à "Surdez", através do qual se propõe uma introdução à língua de sinais, interpretação de língua de sinais, diferenças entre surdos e deficientes auditivos, cultura surda e questões relativas à escrita do surdo. Este módulo mais específico fornece um bom exemplo do que poderiam ser futuros módulos (por exemplo, um módulo dedicado à deficiência visual). A figura 3 representa como cada módulo está organizado nos três níveis mencionados anteriormente:

 

 

Além dos quatro módulos, o OA Incluir apresenta uma página destinada aos créditos, uma página intitulada "Projeto Incluir", onde se apresenta sucintamente o objeto ao usuário, e um formulário de avaliação intitulado "Livro de Visitas". Através do livro de visitas, pretende-se realizar uma segunda etapa deste projeto, que consiste na avaliação do objeto. A qualidade de um OA pode ser aprimorada através da avaliação, tanto ao longo de seu desenvolvimento como através de sua aplicação com o público alvo. Diferentes possibilidades são utilizadas para a avaliação de OAs; dentre elas estão a aplicação de listas de verificação e critérios de avaliação para usuários ou especialistas, entrevistas ou observação prolongada com o público usuário ou via web mediante coleta de opiniões.

A partir da abordagem do sistema Merlot2 que propõe a avaliação de um OA considerando a qualidade do conteúdo, usabilidade, eficácia ou potencial como ferramenta de ensino, foi construída a proposta de avaliação para este objeto. Assim, pretende-se avaliar, através do livro de visitas, questões de ordem técnica e pedagógica: a) o lay-out, navegação e usabilidade deste objeto são adequados e favorecem ao usuário a interação, como objeto de conhecimento?; b) a estrutura dos módulos e dos níveis e a forma em que é problematizado o conhecimento favorecem a reflexão e a ressignificação, concretizando em uma proposta pedagógica os pressupostos epistemológicos que embasaram a construção deste objeto?

 

Considerações Finais

Duas áreas complexas se entrecruzam neste projeto: o uso de tecnologias digitais na educação e a inclusão. Quanto à primeira, existem muitas discussões sobre os objetos de aprendizagem e tentativas de sistematizar metodologias de construção de objetos. A quantidade de material disponibilizado na Internet elaborado com fins educativos é, atualmente, muito grande. No entanto, um rápido olhar aos objetos digitais e aos ambientes virtuais de aprendizagem desenvolvidos como suporte para cursos presenciais ou como base para cursos a distância é suficiente para perceber que esses recursos têm sido preferencialmente usados como meio para transmitir informação. Sabemos, porém, que a informação, por si só, não é suficiente para que haja aprendizagem e mudança de conduta. É necessário ocorrer perturbação cognitiva para gerar novas aprendizagens e ressignificar a si mesmo, ao outro e a experiência vivida. A perturbação, segundo Piaget (1976), compõe o processo de equilibração e acontece na medida em que uma hipótese do sujeito é desestabilizada por algo externo, nesse caso pela interação com o OA. É a perturbação que aciona a busca de soluções ou novas equilibrações (novas significações ou explicações que o sujeito constrói). A proposta desenvolvida ao longo deste projeto é relevante ao delimitar com clareza uma base epistemológica e buscar efetivá-la através de um objeto que não se restringe à informação ou ao texto.

Quanto à inclusão, a expansão do Ensino Superior que ocorre a partir dos anos 90 levanta a questão da qualificação dos docentes para trabalhar com uma população cada vez mais heterogênea em suas salas de aula. Segundo Freitas (2006, p. 40), "o princípio fundamental da escola inclusiva é que todos os estudantes devem aprender juntos, independente de suas dificuldades ou talentos, deficiência, origem sócio-econômica ou cultural". Para que se criem condições de acesso e permanência desses estudantes nas escolas e universidades, velhos conceitos de normalidade e padrões de aprendizagem precisam ser revistos (Dutra, 2006). A formação dos professores é, nesse sentido, essencial. Além de capacitar instrumentalmente o professor para lidar com as diferentes formas de aprender, é necessário promover uma mudança de atitudes: promover o desenvolvimento do respeito pela diferença, da capacidade de perceber a heterogeneidade que existe em uma sala de aula e de aproveitá-la produtivamente para o enriquecimento do processo de ensino e aprendizagem. Para além da informação, portanto, é necessário ressignificar a forma de conviver com o outro diferente (diferenças físicas, intelectuais, étnicas, religiosas, socioeconômicas, etc.), num espaço permeado de preconceitos, estereótipos, mitos, e emocionalmente carregado pelos limites e potencialidades de cada um. E isto em um cenário que cada vez mais impõe o gerenciamento de conflitos em grupos cada vez mais heterogêneos: a sala de aula.

A continuação do trabalho sobre o objeto de aprendizagem Incluir será feita através da promoção de oficinas e cursos e de sua disponibilização para uso livre e gratuito via Internet. A avaliação do objeto através do livro de visitas é essencial para testar se a metodologia proposta é válida para ser utilizada na construção de outros objetos digitais de aprendizagem dentro dos mesmos princípios epistemológicos. Ao mesmo tempo, sabe-se da necessidade de manutenção e aprimoramento contínuo de um objeto digital de aprendizagem, visando corrigir erros em sua concepção ou na programação, aprimorar os processos e ampliar seu escopo.

 

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Recebido em Novembro/2011

Aceite para publicação em Julho/2012

 

Notas

* Projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS/BRASIL) e Universidade de Caxias do Sul, Brasil.

1 A expressão "estudante de perfil não tradicional" refere-se a estudantes oriundos das classes populares, estudantes trabalhadores, mais velhos (acima dos 25 anos), estudantes pertencentes a minorias étnicas e culturais ou que apresentam dificuldades de aprendizagem, deficiências físicas ou sensoriais, doenças mentais ou físicas crônicas.

2 Multimedia Educational Resource for Learning and Online Teaching (http://www.merlot.org).