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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.1 Coimbra dez. 2022  Epub 24-Nov-2022

https://doi.org/10.12707/rvi22016 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)

Vivências de violência no quotidiano de mulheres consumidoras de drogas

Experiences of violence in the daily life of female drug users

Experiencias de violencia en la vida cotidiana de las mujeres consumidoras de drogas

Keity Laís Siepmann Soccol1 
http://orcid.org/0000-0002-7071-3124

Marlene Gomes Terra2 
http://orcid.org/0000-0001-9402-561X

Andressa da Silveira2 
http://orcid.org/0000-0002-4182-4714

Zaira Letícia Tisott3 
http://orcid.org/0000-0001-9489-3951

Carla Lizandra de Lima Ferreira1 
http://orcid.org/0000-0003-0759-7113

Patricia Cristiane da Costa Dutra4 
http://orcid.org/0000-0002-5741-068X

Daiana Foggiato de Siqueira2 
http://orcid.org/0000-0002-8592-379X

1 Universidade Franciscana, Santa Maria, RS, Brasil

2 Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

3 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

4 Prefeitura Municipal de Santa Maria, RS, Brasil


Resumo

Enquadramento:

O uso de drogas por mulheres é permeado por diversas situações de violência que se repercutem no quotidiano por meio da exclusão e da marginalização das consumidoras.

Objetivo:

Identificar como a violência está presente no quotidiano de mulheres consumidoras de drogas.

Metodologia:

Estudo do tipo qualitativo, descritivo e exploratório, desenvolvido com 20 mulheres consumidoras de drogas assistidas num centro de atenção psicossocial álcool e drogas. A colheita de dados foi efetuada por meio de entrevista aberta, e os dados analisados conforme a análise de conteúdo temática.

Resultados:

O quotidiano de mulheres consumidoras de drogas está associado à violência pelos parceiros, bem como exposição ao risco de violência, à vulnerabilidade e à criminalidade decorrente da presença em cenas de consumo e de tráfico.

Conclusão:

Existe uma necessidade de desenvolvimento de ações educativas e políticas públicas eficientes que promovam a segurança, reduzam riscos de exposição e atendam às necessidades destas mulheres.

Palavras-chave: violência; exposição à violência; transtornos relacionados ao uso de substâncias; mulheres

Abstract

Background:

Women who use drugs experience several situations of violence that impact their daily life through their exclusion and marginalization.

Objective:

To understand how violence is present in the daily life of women who use drugs.

Methodology:

A qualitative, descriptive, and exploratory study was conducted with 20 women who use drugs receiving care at a Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs. Data were collected through an open interview and analyzed using the Thematic Content Analysis method.

Results:

The daily life of these women is associated with partner violence and exposure to the risk of violence, vulnerability, and criminality due to their presence in spaces of drug use and trafficking.

Conclusion:

Efficient educational interventions and public policies should be designed to promote women’s safety, reduce their exposure to these risks, and meet their needs.

Keywords: violence; exposure to violence; substance-related disorders; women

Resumen

Marco contextual:

El consumo de drogas por parte de las mujeres está impregnado de diversas situaciones de violencia que repercuten en la vida cotidiana a través de la exclusión y la marginación de las consumidoras.

Objetivo:

Identificar cómo la violencia está presente en la vida cotidiana de las mujeres consumidoras de drogas.

Metodología:

Estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio, desarrollado con 20 mujeres consumidoras de drogas atendidas en un centro de atención psicosocial de alcohol y drogas. La recogida de datos se llevó a cabo mediante una entrevista abierta, y los datos se analizaron según el análisis de contenido temático.

Resultados:

La vida cotidiana de las mujeres consumidoras de drogas está asociada a la violencia de pareja, así como a la exposición al riesgo de violencia, vulnerabilidad y criminalidad derivada de su presencia en los escenarios de consumo y tráfico de drogas.

Conclusión:

Es necesario desarrollar acciones educativas y políticas públicas eficientes que promuevan la seguridad, reduzcan los riesgos de exposición y satisfagan las necesidades de estas mujeres.

Palabras clave: violencia; exposición a la violencia; trastornos relacionados con sustancias; mujeres

Introdução

A violência contra as mulheres faz parte de um contexto histórico e social, com impactos sociais que geram um problema de saúde pública, em que as mulheres vítimas de violência podem sofrer severas discriminações e dificuldade para denunciar os episódios de violência (Santos et al., 2018).

Existem diferentes tipos de violência contra as mulheres, mas os que mais comumente ocorrem são a física, a psicológica e a sexual. A violência física ofende a integridade e/ou a saúde corporal da mulher. A violência psicológica causa danos emocionais e reduz a autoestima; interfere no pleno desenvolvimento da mulher; ou tem como consequência o controlo sobre elas, sobre os seus comportamentos, crenças e/ou decisões. E, a violência sexual ocorre por meio de uma relação sexual não desejada com uso de intimidação, ameaça, coação ou uso da força (Instituto Maria da Penha, 2022).

Mulheres que abusam de drogas ficam mais expostas às diferentes situações de violência em relação aquelas que não fazem consumo abusivo. O abuso de drogas aumenta o risco de exposição à violência (Wechsberg et al., 2022), favorecendo, também, a prática de violência contra outras pessoas.

O perfil das mulheres que usam drogas mostra que a maioria delas tem relações familiares conflituosas, não têm trabalho remunerado e vivem em situação de rua (Leão et al., 2020). As pessoas que cometem violência contra as mulheres aproveitam-se do facto de elas estarem vulneráveis para cometer o abuso (Kluk et al., 2022). Neste contexto, a literatura mostra que as mulheres consumidoras de drogas podem ficar expostas a diversas situações de violência no seu quotidiano. Assim, este estudo tem como objetivo identificar como é que a violência está presente no quotidiano de mulheres consumidoras de drogas.

Enquadramento

O uso de drogas pelas mulheres é o resultado de múltiplos fatores que são firmados pelas condutas excludentes e de marginalização das consumidoras. Este processo pode ser ainda mais complexo, quando se observam as situações que envolvem relações de género e vulnerabilidade social, onde estão inseridas as mulheres que usam drogas. Quando a mulher é consumidora de drogas as situações de violência contra essas mulheres passam a ser consideradas como aceitáveis (Santos et al., 2018). É como se a violência contra a mulher, por ser consumidora de drogas, fosse algo normal,o que reforça ainda mais o preconceito e as más condutas sociais sobre elas.

As mulheres consumidoras de drogas são discriminadas pela sociedade, pois o uso nessa população é moralmente menos aceitável quando comparadas com os homens. Para a sociedade, o comportamento do uso de drogas está destinado aos homens e não para as mulheres (Medeiros et al., 2017). No entanto, o uso de drogas por mulheres e homens já se assemelha, sendo possível identificar que ambos vêm a consumir quase a mesma quantidade de algumas drogas (Silva, Souza, et al., 2021). As discussões sobre o problema do consumo de drogas não deve ser somente em torno das questões de género, mas também envolver o âmbito de políticas públicas e sociais, na qual facilitem o acesso da população aos serviços de saúde para que assim seja possível reduzir as consequências do uso abusivo de drogas (Medeiros et al., 2017).

Destaca-se que as práticas de cuidado, desenvolvidas pela equipa multiprofissional, com ênfase na enfermagem, devem ser capazes de reconhecer as necessidades de saúde das mulheres consumidoras de drogas que vivem em situação de vulnerabilidade. Os cuidados de saúde precisam de estar pautados nos princípios de integralidade, equidade e universalidade, e, sobretudo, com respeito e dignidade pela vida (Souza et al., 2016).

Pouco se discute sobre a temática de género e violência nos serviços de saúde (Piuchi et al., 2020), ainda mais no casos das mulheres quando elas são consumidoras de drogas. No entanto, a violência contra a mulher é um problema de saúde pública e que causa importantes impactos na saúde física e mental dessas vítimas (Teixeira & Paiva, 2021).

Questão de investigação

De que modo a violência está presente no quotidiano de mulheres consumidoras de drogas?

Metodologia

Estudo do tipo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado com mulheres consumidoras de drogas que estavam em tratamento num centro de atenção psicossocial álcool e drogas (CAPS AD), de um município do sul do Brasil.

Elegeram-se como critérios de inclusão das participantes do estudo: mulheres a partir de 12 anos de idade e estar em tratamento no CAPS AD. Como critérios de exclusão: mulheres que estivessem sob efeito de algum tipo de droga e com dificuldade para falar com a investigadora no momento da entrevista. Participaram no total 20 mulheres, com idades entre 20 e 60 anos. Não houve exclusão de participantes. Foi realizado um pré-teste do roteiro da entrevista, mas as informações do pré-teste não foram utilizadas nos resultados.

Os dados foram colhidos entre os meses de fevereiro a maio de 2017.

Para a operacionalização da produção de dados foi realizada uma entrevista aberta individual com cada uma das mulheres. As entrevistas foram conduzidas por uma única investigadora que já tinha experiência em colheita de dados de pesquisas qualitativas. A questão utilizada para a colheita das informações foi: De que modo você percebe a violência no teu quotidiano? A colheita de dados ocorreu conforme a disponibilidade das participantes do estudo, nos dias em que as mulheres tinham consultas e atividades grupais agendadas no CAPS AD. Algumas entrevistas foram realizadas no domicílio de acordo com o desejo e disponibilidade de cada participante. As entrevistas foram previamente agendadas e tiveram duração entre 40 e 75 minutos.

A amostragem de participantes não foi pré-estabelecida, portanto o quantitativo de entrevistas foi encerrado com outras prováveis participantes quando se alcançou a suficiência de significados, ou seja, a saturação teórica, quando a inclusão de novas informações não foi acrescida no banco de dados para fundamentar a teorização (Minayo, 2014). Desta forma, o corpus do estudo foi composto por 20 entrevistas.

As entrevistas foram realizadas individualmente e somente ocorreram após a autorização por escrito de cada mulher. Foram gravadas através de um gravador digital e, posteriormente, passaram pela dupla transcrição, a fim de evitar possíveis erros que pudessem interferir posteriormente na análise dos dados.

Os dados foram analisados de acordo com a análise temática (Minayo, 2014), que envolve a pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Assim, foram realizadas várias leituras das transcrições, e posteriormente separados os trechos dos depoimentos significativos, que respondiam ao objetivo proposto. Na sequência, os trechos foram agrupados por similaridade de temas, gerando as categorias temáticas. Participaram na etapa da análise dos dados quatro investigadores, dois doutores e dois mestres em enfermagem. Os quatro investigadores leram todas as entrevistas para confirmarem a seleção dos temas selecionados de acordo com os objetivos.

Este estudo seguiu os princípios éticos que estabelecem as normas para realização de estudos, envolvendo seres humanos, explicitados na Resolução Nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. As participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, com informações referentes ao estudo. O estudo foi aceite pelo CAPS AD e posteriormente foi registado e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, sob o parecer nº 1.867.646 e CAEE 61019616.8.0000.5346. O sigilo e o anonimato das mulheres foram respeitados sendo as participantes identificadas pela letra M, que significa mulher, seguida de um numeral que representa a ordem das entrevistas.

Resultados

As informações apresentadas neste artigo são provenientes de uma tese de doutoramento.

Participaram no estudo 20 mulheres consumidoras de drogas, que possuíam idade entre entre 20 e 60 anos. No que se refere à escolaridade, 12 mulheres tinham o ensino fundamental, sete concluíram o ensino médio e uma era analfabeta. Quanto ao estado civil, cinco eram divorciadas, seis estavam casadas, oito solteiras e uma era viúva. Apenas uma das mulheres não tinha filhos. Quanto ao trabalho, cinco mulheres trabalhavam, duas estavam aposentadas, duas ocupavam-se com afazeres domésticos e 11 não trabalhavam. No que se refere aos tipos de drogas consumidas, 12 mulheres consumiam múltiplas drogas, dentre essas a cannabis, cocaína, crack, e bebidas alcoólicas, enquanto que oito somente consumiam bebidas alcoólicas.

A partir da análise emergiram duas categorias temáticas: Tipos de violência que as mulheres sofrem pelos parceiros consumidores de drogas e Exposição ao risco de violência, vulnerabilidade e criminalidade. A codificação das categorias e dos temas está ilustrada na Tabela 1.

Tabela 1 : Codificação das categorias e temas 

Categorias temáticas Violências no quotidiano de consumidoras de drogas
Categoria 1: Tipos de violência que as mulheres sofrem pelos parceiros usuários de drogas - Violência física: empurrões, socos, espancamento e tentativa de suicídio pelos parceiros. - Violência psicológica: perseguição, não podem expressar sentimentos e emoções, ameaças, afastamento do convívio social e com os filhos.
Categoria 2: Exposição ao risco de violência, vulnerabilidade e criminalidade - Consumo de droga em diferentes espaços: as mulheres sofrem agressão, risco de homicídio e abuso sexual. - Envolvimento com tráfico de drogas e venda de armas de fogo que levam ocasionalmente à prisão. - O consumo de drogas faz com que as mulheres se tornem agressivas.

Tipos de violência que as mulheres sofrem pelos parceiros consumidores de drogas

Esta categoria evidenciou que as mulheres que abusam de drogas sofrem diferentes tipos de violência por parte dos parceiros. A violência física é algo que comummente ocorre na vida das mulheres. O quotidiano destas mulheres é permeado por discussões que culminam em empurrões, socos, espancamento e até mesmo em tentativa de homicídio. A situação de violência agrava-se ainda mais quando existe um envolvimento com companheiros que também são consumidores de drogas, conforme podemos verificar nos depoimentos a seguir. “Uma vez ele (marido) quase me matou. Ele apertou muito o meu pescoço e ele quase me matou mas depois ele nunca mais me bateu, foi a única vez que ele foi agressivo comigo mas eu tive medo dele.” (M1). “Foram 15 anos casados, muita traição, muita coisa, de chegar a ponto de me agredir, dentro da minha própria casa.” (M4). “Ele (marido) bebia também, daí eu bebia junto com ele e acabava brigando. Ele me batia e uma vez tentou até me matar. Esse é um problema que eu guardo comigo, que eu não consigo esquecer.” (M10). “A gente brigava muito dentro de casa. Quebrava tudo e se dava até tiro.” (M5).

Situação semelhante pode ser observada a seguir:

Eu discutia muito com meu marido, e ele discutia muito comigo quando ele bebia, porque ele também bebe! E, a gente já teve muitos empurrões. Bastante discussão! . . . Uma vez o meu marido entrou com ódio de mim, porque ele tinha que tá indo me buscar na rua. Ele me soquiou, que o meu filho teve que se meter no meio. Ele me machucou os rins, que eu não podia nem caminhar depois. Eu tinha medo dele, porque ele sempre me ameaçava: ‘’tu não vem bêbada para casa porque eu vou te mandar embora. Vou te dar umas porradas. (M8).

Meu marido, que também era bêbado, começou a me bater. Eu não trabalhava. Fiquei um tempo lá com ele em outra cidade e só depois vim embora. Ele só bebia, não trabalhava. E, chegava em casa e fazia a mesma coisa que o meu pai, me batia. E eu tinha que ficar lá, porque eu era de menor, e não tinha dinheiro para nada. Não tinha como vir embora. (M9).

Apesar das agressões praticadas pelos companheiros, as mulheres não conseguem afastar-se deles, muitas vezes pela dependência financeira ou até mesmo pelos sentimentos e vínculo afetivo que ainda nutrem pelos companheiros.

Ele (ex-marido) disse que se eu não fosse dele não era de mais ninguém. Ele me cortou na frente do meu filho, na esquina da casa da minha mãe. Eu fiz três cirurgias plásticas no rosto. Depois, eu vendi coisas que eu nunca usei, que ele me dava eu vendi. Eu vendi meu guarda-roupa inteiro! Lençol que eu nunca usei. Vendi pano de prato. Foi que ele (marido) se obrigou a me bater. Ele deu (bateu) em mim. Daí dei parte na polícia. A polícia foi lá, tirou ele da casa e deixou eu. Mas eu não sei ficar longe dele. (M17).

Além da violência física, a violência psicológica está presente no quotidiano das mulheres, na qual elas são perseguidas pelos companheiros, impossibilitadas de expressar seus sentimentos e emoções, e também são ameaçadas.

Ele fez uma tortura psicológica tão grande, que eu estava me sentindo uma pessoa horrível. Estava entrando em depressão de novo. Ele me perseguia na rua e me ligava todos os dias, era todas as horas, de 5 em 5 minutos tinha recado. Passei momentos terríveis com ele, mas eu não conseguia me separar dele. Ele era um cara muito bom, mas muito louco. O problema dele ia além da droga. Era mais do que isso, era problema psicológico. Ele era esquizofrênico, era possessivo. (M1).

Tive duas gravidez em que acabaram falecendo as crianças. No dia em que o bebé morreu eu chorava, e ele dizia para eu parar de chorar que os outros estavam vendo. Imagina? Não poder chorar pelo teu próprio filho que morreu! (M5).

Além disso, as mulheres convivem com distintos tipos de ameaças feitas pelos companheiros com quem se relacionavam. Estas ameaças envolvem o risco de agressão, de morte, e da impossibilidade de convívio com os filhos. Os companheiros, por vezes, trancavam as mulheres em casa, fazendo com que elas lhes ficassem submissas, excluindo-as do convívio social.

Ele sempre me ameaçava, de que se eu fosse embora que eu não levava meu filho. Ele era muito idiota e ciumento por qualquer marca no meu corpo. Quando eu atrasava o horário, ele já pensava coisas que nunca aconteceu. Só que ele só me cobrava disso quando ele bebia. E eu fui levando meu casamento porque eu achava que eu era burra, que eu era boba. Porque eu achava que realmente ele faria isso de tomar meu filho de mim, que era tudo que eu tinha. (M8).

‘‘Meu marido não deixava eu receber visitas em casa. Não queria que eu visse ninguém. Eu tinha que ser só dele. Ele me controlava e controlava tudo na minha vida’’ (M18).

Exposição ao risco de violência, vulnerabilidade e criminalidade

Esta categoria revela que as mulheres consumidoras de drogas ficam expostas a vários riscos. O facto de irem para as ruas na procura por droga, de frequentar espaços onde ocorre a venda destas substâncias, de usar a droga e viver em espaços públicos deixa-as em situação de vulnerabilidade que vão desde a agressão, risco de homicídio até ao abuso sexual. “Meu marido começou a me pressionar para eu parar de usar droga, até que eu acabei saindo de casa e fui morar na rua. Fui estuprada.” (M7).

Não quero mais andar nas bocas de fumo. Eu moro perto do beco, que agora mataram um monte de gente, um monte de traficante, que querem tomar os pontos de droga. Então ali é ponto de droga direto, bem perto da minha casa, é perigoso! Matam qualquer um. (M2).

As mulheres consumidoras, por vezes, envolvem-se em tráfico de drogas e atividades ilícitas, como a venda de armas, que é percebido por elas como uma renda, na qual estes recursos são os únicos meios encontrados para a manutenção da própria dependência. A venda de drogas faz com que estas tenham problemas perante a lei.

“A mãe descobriu que eu usava droga cocaína. Ela não aceitava isso. Daí nós saímos de casa. Fomos morar numa boca de droga. Até o momento eu não vendia, só usava. Depois eu comecei a vender.” (M6).

Ele (companheiro) era traficante. E tinha armas também. Eu ajudava a vender todas aquelas armas. E o trato era de que ele iria trabalhar e final de semana a gente podia fazer uma festa e ele podia vender alguma coisinha já que era o que ele sabia fazer. E deu muito certo porque a gente recebia visita, vendia e fazia um dinheirinho e cobria o que a gente gastava com o próprio vício. . . . Não sei quantas vezes a gente correu o risco de quase ser preso também. (M1).

“Eu vendi droga uma época. Eu queria usar, então tinha que vender. Eu quase fui presa pela polícia, várias vezes, mas consegui escapar. Foi muito tenso! Eu tinha medo de ser pega.” (M14).

Ainda no que dez respeito à venda de drogas, as mulheres vivenciam o encarceramento por exercer essa atividade ilegal. Assim, o único meio encontrado pelas mulheres para a obtenção das drogas é o tráfico, o que as leva à perda da liberdade. “Eu me juntei com um companheiro e tive os meus filhos. E nós sempre fumando. Aí ele começou a traficar. A gente ficou preso dois anos e meio.” (M2).

Também, relativamente à criminalidade é possível identificar que além do tráfico, a personalidade e a conduta das mulheres se altera como resultado do abuso de drogas, na qual se exacerba a violência e também as leva a agredirem outras pessoas.

Eu usei muita droga. Eu era agressiva com as pessoas, eu dava pau [agredia] nas pessoas. Eu não sei porque eu fazia isso. Eu quase matei uma mulher. Ela foi até pro hospital. Depois ela morreu, mas não foi por causa minha. Não foi eu quem matei, eu só dei pau nela. Eu era muito agressiva, muito mesmo, e depois eu parei com isso. (M15)

Discussão

As mulheres que usam drogas estão mais expostas à violência física quando comparadas com aquelas que não usam drogas. Um estudo desenvolvido com mulheres que consomem bebidas alcoólicas evidencia que há uma prevalência maior de violência psicológica e física nesta população (Santos et al., 2020). Os fatores de risco para a violência contra a mulher incluem o uso de drogas, antecedentes familiares de violência e o comportamento violento do parceiro (Silva, Souza, et al., 2021). O envolvimento com homens que usam drogas aumenta o risco de violência psicológica, física e sexual contra as mulheres (Silva, Rocha-Brischiliari, et al., 2021).

As mulheres consumidoras de drogas sofrem violência repetidamente, e na maioria dos casos são os próprios parceiros os responsáveis pela violência. A violência pelo parceiro tem distintas motivações, como os ciúmes, opiniões divergentes e ocorrem quando as mulheres não concordam em executar a ordem dos agressores (Piuchi et al., 2020). Além da violência, as mulheres expressam que os parceiros as ameaçam de abandono e tentam até mesmo matá-las. Isto demonstra que o quotidiano da mulher consumidora de drogas envolve além da violência, as tentativas de feminicídio. O feminicídio, que é o assassinato de mulheres, é uma realidade que tem vindo a crescer cada vez mais, evidencia os relacionamentos desiguais e expõe as relações de género, bem como se repercute em casos extremos de violência e morte (Caicedo-Roa et al., 2022).

O uso de bebidas alcoólicas e outras drogas é considerado como fator agravante que eleva a probabilidade de violência devido à capacidade que tem de alterar o senso de julgamento do agressor (Silva, Rocha-Brischiliari, et al., 2021). Neste sentido, o envolvimento das mulheres com homens que também são consumidores eleva a prevalência de diferentes tipos de violência contra as mulheres. Além disso, faz com que as consumidoras quando estão sob efeito de drogas também se tornem agressivas e cometam violência contra outras pessoas.

As mulheres consumidoras possuem uma certa subordinação relativamente aos homens com os quais mantêm um relacionamento, devido ao facto de fornecerem drogas para o uso ou por se sentirem dependentes financeiramente. Deste modo, a dependência financeira é um fator de risco para a violência (Dias et al., 2021). E, mesmo quando elas detêm condições económicas e são financeiramente independentes, eles fazem jogos psicológicos, culpabilizam as mulheres e afastam-nas da família, tornando-as dependentes emocionalmente. Assim, é difícil para as mulheres saírem destes relacionamentos abusivos (Silva, Rocha-Brischiliari, et al., 2021).

O problema do abuso de drogas e da violência intensifica-se ainda mais quando a mulher vive em situação de rua, tendo em conta a intensa discriminação e preconceitos sociais sobre ser mulher usuária de drogas e que vive em situação de rua. A discriminação produz importantes efeitos como o sofrimento, baixa autoestima, rutura dos vínculos familiares, perda de direitos e de cidadania, bem como favorece a exclusão social e a desassistência das mulheres (Brito & Silva, 2022). Os danos causados pela violência à saúde física e mental destas mulheres são irreversíveis e, por vezes, até mesmo irreparáveis (Dias et al., 2021). Assim, acentuam-se as vulnerabilidades e riscos que as mulheres vivenciam no seu quotidiano. As mulheres que sofrem violência têm mais dificuldade em realizar um tratamento para o abuso de drogas e dependência química, neste sentido, as hipóteses de terem recaída são maiores (Ogden et al., 2022).

Um estudo aponta que as mulheres quando estão sob efeito de drogas fazem sexo sem o seu consentimento ou são molestadas quando não estão em condições de responder pelos seus atos, e, por vezes, não se recordam de como ocorreu (Piuchi et al., 2020). Em virtude da intensa necessidade de usar a droga, as mulheres não têm a possibilidade de negociação para sexo seguro o que as expõe ao risco de contaminação para as infeções sexualmente transmissíveis (Silva, Rocha-Brischiliari, et al., 2021). As mulheres que usam drogas estão mais expostas à violência sexual e a gravidez indesejada devido à recusa do uso de preservativo pelos homens (Leite et al., 2019; Silva, Souza, et al., 2021).

O abuso sexual repercute-se em trauma físico e psicológico. As marcas do abuso sexual interferem negativamente na saúde mental das mulheres e faz com que elas desenvolvam uma maior tendência para a tentativa de suicídio (Soccol et al., 2021).

Quanto à exposição em cenários que representam riscos de violência para a integridade das mulheres, a procura pelas drogas em locais de tráfico também aumenta as hipóteses de violência. Ainda, para que as mulheres possam ter acesso e consumir a droga, muitas precisam realizar tráfico de drogas como um meio de subsistência e facilidade de acesso à droga e ao consumo. As mulheres envolvidas no tráfico excedem os limites penais e as expectativas que a sociedade detém acerca do comportamento esperado socialmente de acordo com o seu género (Silva, Rocha-Brischiliari, et al., 2021).

Compreende-se, de modo geral, que a estrutura representacional acerca da mulher envolvida com as drogas, é influenciada por construções sociais, as quais contribuem tanto para a entrada quanto permanência dela no crime. Os estigmas seculares, ainda atuais, apontam práticas ancoradas na culpabilização destas mulheres e estão pautadas na imagem de incompatibilidade da mulher no cumprimento dos seus papéis sociais e de poder exercer a sua própria identidade (Vargas & Falcke, 2019).

A saúde das mulheres consumidoras de drogas, as quais são vulneráveis e estão expostas ao risco de violências e criminalidade, precisa de ser incorporada nas políticas de saúde a fim de atender as necessidades desta população. É imprescindível ampliar as informações sobre o tema, associando os conhecimentos científicos e históricos com as estratégias de combate à violência sexual e de género adotadas no país. Salienta-se, ainda, a importância da atuação dos profissionais de saúde juntamente a outros setores, como segurança e educação, no combate ao álcool e outras drogas.

Destaca-se, como limitação da presente investigação o facto de ter sido realizada num único serviço de saúde que é público, não abarcando mulheres em situações socioeconomicamente mais favorecidas.

Conclusão

O quotidiano de mulheres consumidoras de drogas é permeado pela violência física, psicológica e ameaças dos parceiros consumidores de drogas. Além disso, elas estão expostas a risco de violência, vulnerabilidade e criminalidade. Neste sentido, conclui-se que existe a necessidade do desenvolvimento de ações educativas e políticas públicas eficientes para esta população.

É necessário que os serviços de saúde e sociais estejam engajados para combater, punir e prevenir a violência contra as mulheres, principalmente aquelas em situações de vulnerabilidade que convivem com a dor da violência física, psicológica ou sexual e a discriminação social pelo consumo de drogas.

A partir deste estudo, pode-se pensar na construção de estratégias coletivas e organizacionais que tornem o quotidiano das mulheres mais seguro, além de assegurar a qualidade e resolutividade do cuidado nos serviços de saúde. Sugere-se a realização de futuros estudos que possam investigar mais sobre a situação socioeconómica e cultural das mulheres, considerando que o uso de drogas e a violência estão presentes em todas as classes sociais. E, como implicações para a investigação é necessário o desenvolvimento de mais estudos que discutam sobre a violência que as mulheres consumidoras de drogas sofrem, pois são poucos os estudos que discutem sobre esta temática.

Referências bibliográficas

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Contribuição de autores

1Conceptualização: Soccol, K. L., Terra, M. G.

2Tratamento de dados: Soccol, K. L., Terra, M. G.

8Como citar este artigo:Soccol, K. L., Terra, M. G., Silveira, A., Tisott, Z. L., Ferreira, C. L., Dutra, P. C., & Siqueira, D. F. (2022). Vivências de violência no quotidiano de mulheres consumidoras de drogas. Revista de Enfermagem Referência, 6(1), e22016. https://doi.org/10.12707/RVI22016

Recebido: 10 de Fevereiro de 2022; Aceito: 07 de Setembro de 2022

Autor de correspondência Keity Laís Siepmann Soccol E-mail: keitylais@hotmail.com

Metodologia: Soccol, K. L., Terra, M. G.

Supervisão: Soccol, K. L., Terra, M. G.

Validação: Soccol, K. L., Silveira, A., Tisott, Z. L., Ferreira, C. L., Dutra, P. C., Siqueira, D. F.

Redação - rascunho original: Soccol, K. L., Terra, M. G, Siqueira, D. F., Silveira, A., Tisott, Z. L.

Redação - análise e edição: Soccol, K. L., Terra, M. G, Silveira, A., Tisott, Z. L., Ferreira, C. L., Dutra, P. C., Siqueira, D. F.

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