As doenças crónicas não transmissíveis (DCNTs) ou as condições crónicas não transmissíveis (CCNTs) são, inegavelmente, um dos maiores desafios da saúde global e de desenvolvimento neste século, apesar da experiência negativa vivida pela COVID-19 nos anos 2020, 2021, 2022 e até 2023.
O protagonismo das DCNts/CCNTs é tão relevante que se tornou uma prioridade pela taxa de mortalidade precoce, pelo comprometimento da qualidade de vida, pelo alto custo do tratamento e, claro, pelo aumento exponencial dos casos, com destaque para as doenças cardiovasculares, cancro, diabetes, doenças respiratórias crónicas, as suas complicações e os seus fatores de risco, juntamente com a saúde mental, que são responsáveis por quase três quartos das mortes no mundo, traduzidas em 41 milhões de pessoas todos os anos (World Health Organization, 2020).
As questões relacionadas com os desfechos negativos das DCNTs e CCNTs estão centradas no rastreamento ausente ou frágil de fatores associados e do perfil individual, da inoperância dos sistemas de saúde frequentemente derivada de péssimas condições de trabalho e baixa qualificação dos profissionais. Estes, entre outros fatores locais, incorrem em subdiagnóstico, subtratamento e controle clínico insatisfatório que contribuem para o fardo do sistema de saúde, para o indivíduo e família.
As DCNTs/CCNTs impactam significativamente a qualidade de vida da população, dos indivíduos, dos seus familiares e dos seus ambientes, trazendo consequências aos níveis económico, psicológico e social. A preocupação é ainda maior em países de baixo rendimento, onde o acesso a cuidados adequados, acessíveis e abrangentes, diagnóstico e tratamento são limitados e as linhas de prevenção descontinuadas.
Este cenário alarmante das DCNTs/CCNTs exige iniciativas intersetoriais de prevenção e controlo, envolvendo diversos agentes de transformação, em que o enfermeiro tem como responsabilidade exercer o papel de liderança por representar a linha matriz do cuidado em saúde e conhecer, acompanhar e intervir profissionalmente nos fenómenos do ser humano, sem reducionismo ou fragmentação. As suas ações baseiam-se numa combinação harmoniosa e incondicional de conhecimentos e práticas que abordam o indivíduo nas suas dimensões física, biológica, mental, espiritual bem como na sua interação social, apontando para uma visão transdisciplinar sistémica e dinâmica do processo saúde doença (Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde & Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis, 2021; Ministério das Relações Exteriores, 2021). Esta combinação de conceitos determinantes do bom cuidado em saúde não se sustenta sem o conhecimento científico.
A pandemia pela COVID-19 foi um exemplo recente da importância da ciência para o bem-estar das pessoas. Essa crise, que resultou na interdição das vidas e das rotinas, exigiu medidas imediatas de investimento em ciência e de organização do cuidado que possibilitaram um enfrentamento apoiado no conjugado ciência-cuidado num movimento de retroalimentação dinâmica obrigatória e inequívoca.
Nesta lógica, cuidado e ciência são reconhecidos como componentes fundamentais da assistência de enfermagem segura, assumindo protagonismo no avanço da profissão e contribuindo para melhores desfechos em saúde, ainda que alguns progressos e98 tecnologias científicas sejam pouco exploradas. A ciência melhora a qualidade de vida, prolonga a esperança média de vida e é fundamental na luta contra o negacionismo científico, o obscurantismo, as pseudociências e o charlatanismo. Destaque-se a pesquisa básica no contexto da ciência.
A pesquisa básica, que é digna de maiores qualificações do que simplesmente o oposto de pesquisa aplicada, tem como objetivo isolar variáveis ambientais e individuais para uma melhor compreensão de mecanismos fisiopatológicos envolvidos no desenvolvimento de alterações ou condições como as DCNTs/CCNTs. Os resultados da pesquisa básica contribuem para a prevenção, identificação de risco e tratamento. A pesquisa básica, cenário promissor e provocante da ciência, é uma área pouco explorada e segue sendo um estigma na área da enfermagem, tratada quase como uma pesquisa descolada da essência do cuidado. Falemos um pouco sobre a resistência à pesquisa básica e à sua importância na enfermagem.
Apesar do grande desenvolvimento da ciência em saúde, sabe-se que apenas pequena parte dos resultados terapêuticos que se tem conhecimento, como vacinas, medicamentos, materiais biocompatíveis, insulina, estão livres de terem sido validados primeiramente com modelos biológicos ou in vivo. É inegável que a compreensão dos sistemas biológicos, fundamental para o cuidado, está primariamente pautada em conhecimentos derivados de modelos experimentais e da pesquisa básica, isso também porque os limites éticos de exposição do humano são próprios e oportunos.
Os modelos experimentais, ou experimentos pré-clínicos, são elaborados com uma finalidade específica e permitem isolar variáveis para estabelecer conceitos relacionados com doenças humanas e animais, alterações funcionais, mecanismos celulares e moleculares que determinam comportamentos, stresse e manifestações. São utilizados seres vivos de diferentes espécies, mas, na sua maioria, ratos ou camundongos por apresentarem tamanhos de fácil manuseio e demonstrarem boa validade preditiva àquela dos seres humanos. A premissa básica para o uso de animais em pesquisa é garantir o seu bem estar, não expor ao sofrimento e realizar técnicas humanizadas, ou seja, inspiradas no tratamento do humano.
Desta forma, é preciso assumir que a pesquisa básica ainda é imprescindível para a saúde. Além disso, a pesquisa com animais deve estar ancorada sob três critérios: a exequibilidade, o comprometimento com a geração de conhecimento e ter relevância, à semelhança de pesquisas clínicas. Ela deve ter aplicação para a saúde humana, ser bem planeada e bem sustentada. Por outro lado, a pesquisa básica apresenta uma qualidade visceral que a diferencia de muitas outras: ela é originariamente interdisciplinar, bem como os seus resultados (Neiva & Vattimo, 2012).
Exemplo de pesquisas básicas desenvolvidos prioritariamente por enfermeiros são aquelas desenvolvidas no Laboratório Experimental de Modelos Animais (LEMA) da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Neste espaço, os enfermeiros atuam com uma equipa multidisciplinar de investigadores que procuram identificar intervenções não farmacológicas para suprimir a morbidade das DNCTs/CCNTs por meio de modelos animais. Pautados nas metas de redução da mortalidade precoce por DCNTs/CCNTs da Organização Mundial de Saúde (OMS) com estímulo da cessação do uso de tabaco e do uso excessivo de álcool, dieta saudável e atividade física, o LEMA inovou na reprodução de modelos laboratoriais de doenças crónicas, entre elas a doença renal crónica e o diabetes mellitus, em que são empregues protocolos de treino físico e redução da ingestão de sal para se avaliar em que proporção estas intervenções teriam maior impacto na progressão destas doenças. Os modelos são totalmente desenvolvidos por enfermeiros em nível de graduação, mestrado, doutoramento e pós doutoramento.
Os estudos têm confirmado excelentes resultados dos efeitos do exercício físico moderado em animais com doenças crónicas, reduzindo significativamente a morbidade e a vulnerabilidade a fatores risco. A médio prazo, verificou-se uma redução na progressão dessas doenças e a postergação, ou até mesmo, a eliminação da necessidade de terapias de alta complexidade, como por exemplo as terapias de substituição renal. Estes estudos de alta relevância para saúde humana, com metodologias animais, pesquisa básica, são desenvolvidos por enfermeiros, para enfermeiros e para toda a equipa multidisciplinar de saúde.
Sumariamente, as DCNTs/CCNTs continuam a representar uma escala de ameaça à vida humana e seguem exigindo elevados investimentos para a identificação de fatores e protocolos para a melhor prevenção. É certo que estas doenças dependem, em grande parte, de componente individual para o seu controlo, no entanto, o conhecimento sobre as condições exatas para os melhores desfechos é necessário e consiste em condição obrigatória para um cuidado seguro. O enfermeiro deve estar inserido e comprometido com toda a trajetória terapêutica do indivíduo com DCNTs/CCNTs, dominando mecanismos e ações, quer seja por meio do consumo ávido da ciência, quer seja por meio da produção da ciência em qualquer nível de investigação, da pesquisa básica à clínica.