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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.28 Vila Franca de Xira  2013

 

Formas alternativas do exercício da parentalidade: parentalidade e maternidade em contexto prisional

Alternative forms of parenting: fatherhood and motherhood in prison context

Formes alternatives d’exercice de la parentalité : paternité et maternité en contexte carcéral

 

Rafaela Granja*1, Manuela P. da Cunha*2 e Helena Machado*3

*1 Universidade do Minho, Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS), Braga, Portugal. r.granja@ics.uminho.pt

*2 Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais (ICS), Braga, Portugal. micunha@ics.uminho.pt

*3 Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais (ICS), Braga, Portugal. hmachado@ics.uminho.pt

 

RESUMO

Explorando o carácter genderizado e socialmente situado do conceito de parentalidade, este artigo analisa, através das narrativas de pais e mães reclusas, as formas alternativas de exercício da paternidade e maternidade no contexto prisional. Os dados sugerem que as diferenças e desigualdades de género se materializam, antes e durante a reclusão, em diferentes cenários de envolvimento para mães e pais com percursos desviantes. Os resultados também evidenciam como se reconfiguram os laços parentais num contexto distanciado das configurações tradicionais e ao qual se somam os impactos criados pelo controlo penal.

Palavras-chave: parentalidade, género, reclusão, desvio.

 

ABSTRACT

Exploring the gendered and socially situated nature of the concept of parenting, this article analyzes, through the narratives of prisoners who are parents, the alternative ways of mothering and fathering in the prison context. The data collected suggest that gender differences and inequalities materialize, before and during imprisonment, in different scenarios of involvement for mothers and fathers with offending paths. They also show how parental ties are reconfigured in a context apart from traditional family configurations and marked by the impacts created by penal control.

Keywords: parenting, gender, prison, deviance.

 

RÉSUMÉ

Explorant le caractère sexué, ainsi que la nature socialement située du concept de parentalité, cet article analyse, à travers les narratives de pères et mères détenus, les formes alternatives d’exercice de la maternité et de paternité dans le contexte carcéral. Les données suggèrent que les différences et d’inégalités de genre se matérialisent, avant et après l’emprisonnement, en différents panoramas de rapports dans le cas des mères ou des pères avec des parcours de transgression. Elles montrent aussi comment les liens parentaux sont reconfigurés dans un contexte éloigné des configurations familiales conventionnelles et marqué par les impacts du contrôle pénal.

Mots-clés: parentalité, genre, détention, déviance.

 

Introdução1

Nas últimas décadas ocorreram alterações nas estruturas e dinâmicas da família e nas relações de género, pelas quais se assistiu a mudanças profundas nos lugares dos homens na família, associadas a uma maior centralidade das dinâmicas da paternidade e à emergência de um modelo mais igualitário da divisão sexual do trabalho (Wall, Aboim e Cunha, 2010). Contudo, essas dinâmicas de mudança das relações de género e das formas de parentalidade são diversas, complexas e condicionadas tanto por fatores estruturais de ordem económica, política e cultural, como profundamente marcadas por trajetórias individuais e práticas socialmente situadas, por sua vez permeadas por diferenças de classe social, etnicidade, idade e fase do ciclo de vida de mulheres e homens (Smock e Greenland, 2010).

Não obstante vários estudos indicarem a transformação do modelo tradicional de paternidade e um maior envolvimento dos homens na produção doméstica e parental em Portugal (Almeida e Wall, 2001; Torres, 2001; Wall, 2005), parece consensual a constatação de que persistem assimetrias de género e mecanismos de (re)produção de definições tradicionais do papel do pai e da mãe pelas quais a paternidade tende a ser mais periférica para os homens do que a maternidade para as mulheres (Almeida, 2003; Amâncio, 1994; Cunha e Granja, 2013; Ortner e Whitehead 1981).

No âmbito deste artigo exploramos como as assimetrias das relações sociais de género se consubstanciam no exercício da parentalidade em meio prisional. Atribuindo enfoque aos papéis parentais de reclusos e reclusas, comummente relegados para segundo plano num contexto em que disciplina, controlo e segurança são dominantes (Craig, 2004), analisa-se, através das narrativas de pais e mães com filhos/as menores em meio exterior, a natureza genderizada dos laços entre progenitores/as e filhos/as. Explorando o carácter culturalmente construído e a natureza relacional e socialmente situada do conceito de parentalidade, procura- -se compreender as formas de envolvimento entre pais/mães e filhos/as e desvendar que formas alternativas do exercício da parentalidade são construídas por homens e mulheres reclusos/as num contexto distanciado das configurações familiares tradicionais, caracterizado pela ausência de um ou ambos os progenitores e ao qual se somam os impactos criados por percursos desviantes e pelo controlo penal.

A literatura tem consistentemente evidenciado que as configurações dos cuidados infantis e as implicações da detenção prisional para os/as filhos/as de pais e mães reclusas variam conforme o sexo do progenitor detido (Mumola, 2000) e que a reclusão feminina é tendencialmente mais disruptiva para a vida infantil do que a masculina (Schafer e Dellinger, 2000). No período prévio à reclusão, os cuidados infantis tendem a ser responsabilidade das mães. Os pais geralmente protagonizam um papel periférico ou ausente na educação e na provisão económica infantil (European Commission, 2005: 36). Perante a reclusão feminina, uma vez que a maioria das mães não pode deixar os/as filhos/as ao cuidado dos pais, a mobilização de redes de cuidados infantis tende a reproduzir padrões mais amplos da ativação do apoio informal em Portugal, recrutando sobretudo agentes femininos no seio das redes familiares – avós, tias, irmãs – (Pimentel, 2011; Portugal, 1995). Este é um cenário que se diferencia das configurações de cuidados infantis na decorrência da reclusão masculina em que as crianças tendem a permanecer sob os cuidados das mães. A reprodução da divisão sexual do trabalho é, portanto, patente nas configurações da guarda de filhos/as de pais e mães reclusas, na medida em que estas são sobretudo dinamizadas por mulheres, tanto aquém como além da prisão, tanto na decorrência da reclusão de mães como perante a detenção dos pais (Cunha e Granja, 2013).

Apesar das implicações da reclusão de pais e mães terem vindo a ser exploradas, escasseiam ainda estudos que, partindo da perspetiva dos próprios reclusos e reclusas, explorem a natureza genderizada das experiências e atribuições de sentido à maternidade e paternidade em contexto prisional. Se a parentalidade tende a assumir diferentes significados para homens e mulheres, como se reconfiguram os laços com os/as filhos/as à sombra da monitorização penitenciária? As assimetrias de género são mitigadas ou consolidadas pela intervenção penal?

Em Portugal estas questões permanecem escassamente pesquisadas. No âmbito do exercício da parentalidade na prisão são de destacar as investigações que analisaram as experiências de mães reclusas que permanecem com as crianças durante o cumprimento de pena (Cunha, 1994; Serras e Pires, 2004)2. Todavia, o restante leque de cenários de parentalidade possíveis – crianças institucionalizadas ou mães e pais reclusos com filhos/as em meio exterior a serem cuidados/as por redes de parentesco –, que se localizam na interface entre o mundo intramuros e extramuros, permanecem ausentes dos debates sobre o sistema penal Português. Esta carência de contribuições tem contribuído para manter invisível o exercício da parentalidade por mulheres e homens reclusos, acarretando consequências quer no campo da produção científica, quer no domínio das políticas de intervenção.

Apesar de o sistema penal assumir, em termos abstratos, o princípio da «neutralidade face ao género» (Beleza, 2002), a definição institucional das possibilidades de exercício da parentalidade em contexto prisional evidencia a incorporação e consolidação de desigualdades entre mulheres e homens. Enquanto «automaticamente» é reconhecido o papel materno e são protegidas as «necessidades especiais femininas» no exercício da maternidade em prisões, o sistema penal aliena-se do conceito de «pai-recluso» (Cunha e Granja, 2013; Machado e Granja, 2013), corroborando a periferia masculina na partilha de responsabilidades parentais (Wall, Aboim e Cunha, 2010) e reforçando a noção patriarcal que a parentalidade é sobretudo um assunto de mulheres.

 

Metodologia

Este artigo enquadra-se numa investigação que tem como principal finalidade explorar os impactos sociofamiliares do cumprimento de penas privativas de liberdade. Sendo este um fenómeno escassamente tratado em Portugal, realizou- se uma pesquisa qualitativa para explorar em profundidade as relações entre homens e mulheres reclusas e as suas famílias.

A informação foi recolhida através de entrevistas semiestruturadas realizadas a 20 homens e 20 mulheres reclusas, autorizadas pela Direção Nacional dos Serviços Prisionais e de Reinserção Social, e realizadas entre abril e setembro de 2011 a mulheres e entre janeiro e fevereiro de 2012 a homens.

As reflexões aqui apresentadas visam uma análise parcial das entrevistas, focando exclusivamente as dinâmicas da parentalidade na interface entre o contexto prisional e o meio exterior. Todas as entrevistas foram gravadas e integralmente transcritas e tiveram a duração média de 83 minutos.

Foi utilizada uma amostra teórica que foi sendo definida de acordo com o desenvolvimento da investigação e não selecionada na íntegra previamente (Guest, Bunce e Johnson, 2006). Tratando-se de um estudo que adotou uma abordagem eminentemente qualitativa, a seleção dos/as participantes foi intencionalizada em função da informação que poderiam fornecer sobre o fenómeno em causa. Desta forma, construiu-se uma amostra que se pretendia representativa das variações e tipicidade das configurações familiares dos reclusos e reclusas, designadamente em matérias de parentalidade, conjugalidade e redes de parentesco alargadas.

Todos/as os/as participantes são de nacionalidade portuguesa, condenados/as a pena efetiva de prisão e estavam detidos/as há mais de seis meses. Dez entrevistados/ as são pertencentes à minoria étnica cigana. Os objetivos do estudo foram explicitados aos/às entrevistados/as de forma a obter o seu consentimento informado.

Em relação aos procedimentos de análise e de codificação de dados adotados, seguindo os pressupostos da grounded theory (Glaser e Strauss, 1967), numa primeira fase comparou-se sistematicamente os conceitos contidos em cada resposta. Posteriormente, conceitos semelhantes foram codificados e agrupados por categorias e meta-temas emergentes da análise de dados. Com base numa análise compreensiva e interpretativa de narrativas produzidas em relação ao exercício da parentalidade na prisão, selecionaram-se os extratos mais ilustrativos das atribuições de sentido encontradas nos discursos, destacando-se i) formas de envolvimento com os/as filhos/as antes e durante a reclusão, nomeadamente, os fatores que estiveram na origem de processos de afastamento e distanciamento ou de reconstrução de laços familiares; ii) formas alternativas de exercício da parentalidade na prisão, visando em particular a desfragmentação das práticas parentais anteriormente protagonizadas e a reconfiguração das experiências e atribuições de sentido aos papéis de pai e mãe à luz do controlo penitenciário. Os nomes indicados na secção de análise de resultados são fictícios, de modo a garantir o anonimato dos/as entrevistados/as.

Os/as participantes posicionam-se, de forma geral, em grupos sociais marcados pela vulnerabilidade socioeconómica e baixos níveis de escolaridade. Conforme mostra a tabela 1, a maioria das pessoas entrevistadas enquadra-se nas faixas etárias entre os 26 e 33 anos e os 34 e 41 anos (11 e 12 entrevistados/as, respetivamente). Homens e mulheres apresentam baixos níveis de escolaridade, sendo mais reduzidos entre os reclusos: 9 homens não foram além do 1º ciclo do ensino básico. Não obstante, 3 reclusos concluíram o ensino secundário, enquanto apenas 1 mulher completou o mesmo grau de ensino. Entre as reclusas o nível de ensino mais comum é o 2º ciclo do ensino básico, frequentado por 8 mulheres. Ao nível da composição do agregado familiar, as mulheres têm em média 2.85 filhos e os homens 2,5 filhos. Antes da reclusão 14 mulheres viviam com todos/as os/as filhos/as, número mais reduzido junto dos homens, uma vez que 11 pais coabitavam com todos/as os/as descendentes.

 

 

No que diz respeito à caracterização jurídico-penal, a reincidência é mais recorrente junto dos reclusos: 13 homens e 5 mulheres já tinham cumprido penas prisionais anteriormente. Entre os crimes praticados destacam-se os crimes contra o património em geral, cometidos por 11 homens e 8 mulheres, e os crimes relacionados com o tráfico de estupefacientes, praticados por 5 homens e 7 mulheres. Entre as reclusas verificam-se 5 casos de crimes contra as pessoas. Os homens contam com 2 condenações pelo mesmo motivo. Relativamente à duração das sentenças, 21 entrevistados (12 mulheres e 9 homens) cumprem penas compreendidas os 3 e 6 anos.

 

Resultados

Formas de envolvimento entre pais/mães e filhos/as: Laços reconstruídos e laços impedidos

Antes da reclusão seis pais e seis mães não mantinham relações de proximidade com pelo menos um dos seus filhos e/ou filhas. São sobretudo homens e mulheres que, devido às suas condutas desviantes, comumente caracterizadas por adição a estupefacientes, criminalidade, violência, pobreza e instabilidade habitacional, mantinham um papel periférico nos cuidados quotidianos infantis e um envolvimento intermitente com os/as filhos/as. O seu comportamento não normativo era alvo de estigmatização e desaprovação por parte das suas famílias e comunidades e as suas práticas parentais desvalorizadas e classificadas como inaptas por instâncias de controlo formal e informal.

Em famílias não convencionais, em relação às quais se considera que as mulheres requerem educação e supervisão (Eaton, 1986), o afastamento das crianças das mães foi geralmente mobilizado por mecanismos de controlo formais, acionados por redes informais que, desaprovando as práticas e condutas maternas, formalmente vetaram às mulheres a assunção continuada de cuidados, transferindo a custódia infantil para outros agentes. Como refere Sandra:

A avó [paterna] ia ver o menino, levava-o de vez em quando para casa dela, e eu deixei, claro. Até que meteu a Segurança Social, a parte que o meu pai era alcoólico, que eu andava a roubar, que o meu pai e a minha mãe eram uma péssima influência para o meu filho, por causa do ambiente em casa [caracterizado pela violência doméstica], porque eu consumia drogas e conseguiram o que queriam. Tiraram-me o meu filho. (Sandra, 25 anos, 2 filhos, roubo, pena de 7 anos).

Junto dos pais a ausência na vida dos/as filhos/as resultou geralmente de acordos informais, efetivados no seio das redes de parentesco, à margem das instâncias de controlo formal. Evidencia-se um escrutínio societal mais vasto dirigido à maternidade e à monitorização das mães do que à paternidade. Os homens são geralmente mais periféricos do que as mulheres às práticas formais de controlo da parentalidade (Collier e Sheldon, 2008; Machado, 2004).

O afastamento masculino da vida dos/as filhos/as efetivou-se ora por opção voluntária dos pais, que se exoneraram das responsabilidades parentais, ora como consequência de «estratégias de maximização da segurança» por parte das mães das crianças que tomaram a opção de afastarem os/as filhos/as dos pais (Pina-Cabral, 1993). Conforme evidencia o testemunho de Paulo, esta escolha é justificada pelo facto de a conduta masculina tender a prejudicar, mais do que a contribuir positivamente para a vida familiar e bem-estar infantil.

Quando a minha companheira decidiu ser mãe, foi aí que a minha adição se começou a fazer sentir mais, muito mais, no meu seio familiar. Afetava em todos os aspetos, em termos económicos, em termos sociais, em todos os aspetos. Foi muito mau, eu não consigo entender como é que cometi tantas insanidades, tantas atrocidades, desde roubar em casa, desde de vender tudo. (Paulo, 43 anos, 3 filhas, burla qualificada e furtos, pena de 7 anos).

Apesar da periferia de mães e pais na vida dos/as filhos/as antes da reclusão se ter perpetuado por longos períodos, durante a pena de prisão os reclusos, afastados das pressões quotidianas acumuladas que caracterizavam as suas trajetórias no exterior, almejam reconstruir laços com os/as filhos/as. João refere como o cenário de distanciamento que anteriormente caracterizava a sua relação com o filho devido à sua dependência de drogas se alterou durante a reclusão, que se pauta pelo investimento na relação com o filho.

Não sei se eu já sofri tanto como o meu filho já sofreu por não ter o pai presente (…) Havia alturas em que eu saía de casa e desaparecia uma semana, cheguei a desaparecer meses, sem dar qualquer tipo de satisfação (…) faltei a aniversários dele, não apareci em alturas de Natal, nos momentos mais marcantes da vida dele eu não apareci por causa dos consumos. Agora cá dentro, ele faz anos no dia 9 deste mês e eu fiz-lhe uma prendinha e ele ficou todo contente. [Agora] ele manda cartas para o pai com desenhos, todas as semanas pede uma surpresa ao papá, ou faço um desenho, ou arranjo maneira de dar um chupa, ou um ovo Kinder. (João, 38 anos, 1 filho, furto qualificado, pena de 3 anos e 6 meses).

As tentativas dos homens em (re)investir na reconstrução relacional com os/as filhos/as, durante o cumprimento de penas prisionais, são geralmente bem recebidas pelas cuidadoras das crianças, sobretudo mães, que tendem a apoiar e fomentar o contacto entre pais e filhos/as.

Porém, entre as seis mulheres que mantinham um papel periférico na vida infantil antes da reclusão não se evidencia a mesma disponibilidade por parte dos/as cuidadores/as para apoiar o reinvestimento relacional. As relações tensas que as reclusas mantêm com os/as responsáveis pelas crianças, principalmente mulheres, tendem a repercutir-se negativamente na reconstrução afetiva com os/as filhos/as. Tal como aponta Ana, perante os entraves criados pelos tutores as mães sentem-se impotentes para negociar padrões de envolvimento: «Gostava que ele [pai da criança] trouxesse o meu filho mas eu não estou lá fora. Não posso fazer nada.» (Ana, 28 anos, 3 filhos, furto qualificado, pena de 5 anos e 6 meses).

No que concerne à categoria de laços impedidos, destaca-se um caso marcado por especificidades culturais associadas à parentalidade em comunidades ciganas, nas quais regulação do poder parental pode ser modelada de acordo com os condicionalismos aí vigentes (Casa-Nova, 2009: 149). Vejamos o caso de Margarida que, no período prévio à reclusão, terminou o seu casamento intraétnico e envolveu-se com um homem não cigano. A sua transgressão face ao guião cultural endogâmico implicou a deterioração de relações familiares, catalisou o seu afastamento e acarretou também uma sanção que a impediu de exercer o papel de mãe. A sua narrativa mostra como este cenário de distanciamento face à filha é perpetuado na prisão: «Desde que estou aqui só vi a minha filha no funeral da minha mãe. (…) Só uma vez. Mais nenhuma. Praticamente há um ano. Eu adorava ver a minha filha.» (Margarida, 30 anos, 2 filhas, tráfico de menor gravidade, pena de 3 anos e 3 meses).

O desvio feminino, que se repercute no papel de mãe, evidencia-se como irreversível e irremissível. As mulheres, mais do que transgredirem leis, infringem códigos sociais que prescrevem um conjunto de práticas e deveres decorrentes dos seus papéis sociais de género (Cunha, 1994; Matos, 2006). Nesse sentido, as intersecções das múltiplas pertenças categoriais de género, classe e etnicidade, que já compunham experiências de dupla e tripla discriminação (Oliveira, 2010), conjugam-se com percursos desviantes e criminalizados, traduzindo-se na periferização da mãe biológica, perpetuada e acentuada em meio prisional. Por oposição, o comportamento desviante masculino, que traça cenários de envolvimento oscilando entre ausência, periferia e presença, é, durante a reclusão, absolvido e o reinvestimento relacional permitido e sustentado.

Esta discrepância entre formas de envolvimento permitidas aos pais e vetadas às mães não implica, contudo, que todos os homens tenham, em meio prisional, um acesso facilitado aos/às filhos/as e que estejam a reconstruir a relação parental. Dois pais entrevistados demonstram vontade em manter relações com os filhos, mas este projeto é impossibilitado pelas restrições da mãe e pelos condicionamentos impostos pela detenção prisional (Machado e Granja, 2013). O que se evidencia é que as mulheres tendem a enfrentar barreiras mais críticas do que os homens no processo de reinvestimento relacional com os/as filhos/as.

 

Formas alternativas do exercício da parentalidade

Para os catorze pais e igual número de mães que, antes da reclusão, tinham um papel ativo na provisão das necessidades quotidianas infantis, a detenção prisional reconfigura por completo o seu envolvimento com as crianças, redesenhando- o à luz da monitorização penitenciária.

Não obstante as reconfigurações que a reclusão impõe, a maioria dos reclusos e reclusas almeja manter um papel relevante na vida dos/as filhos/as e ambiciona reunir-se futuramente com as crianças. Nesse sentido, homens e mulheres procuram reinventar e reconstruir os seus guiões de desempenho parental, no restritivo e monitorizado contexto penal. Todavia, os meios que tradicionalmente materializam o exercício da parentalidade, designadamente cuidar, educar, prover, proteger e disciplinar estão, na sua maioria, fora do alcance de pais e mães. A escassez ou inexistência de rendimentos veta a provisão económica contínua e a separação imposta impede o acesso ao convívio e à prestação de cuidados aos/às filhos/as.

Perante este contexto, os pais reclusos apropriam-se da maleabilidade das formas de protagonizar a masculinidade e a paternidade (Collier e Sheldon, 2008) e renegoceiam-nas no contexto particular da prisão. O discurso de André exemplifica como os pais que, em meio exterior, tendiam a alicerçar o seu papel em representações e práticas reminiscentes das configurações tradicionais de paternidade, se direcionam depois, em contexto prisional, para outras formas de vivenciar e construir o papel de pai que transcendem as responsabilidades de provisão, disciplina e controlo. Entre as escassas opções disponíveis aos reclusos para sustentar o seu papel de pai, o investimento na vertente emocional e afetiva da relação com os/as filhos/as afigura-se como central.

O facto de estar preso fez-me dar o verdadeiro valor da família porque lá fora o valor que eu dava à minha filha era «eu tenho que dar dinheiro e roupa porque sou pai, gosto da minha filha». O facto de estar preso puxou-me o verdadeiro sentimento, puro mesmo, aquilo que representa realmente um filho. Não é a gente poder dar tudo do bom e do melhor. (…) São pequeninas coisinhas, é um valor enorme a gente poder estar ali fora, a minha filha fazer anos, eu poder ir lá, dar-lhe os parabéns, dar-lhe um beijinho, dar-lhe uma prenda, ir à escola no dia do pai. (…) Eu ligo todos os dias, todos os dias tento-lhe dar uma palavrinha, «filha o papá gosta muito de ti, porta-te bem, está bem?» sempre, tento ao máximo. (André, 23 anos, 1 filha, roubo agravado, pena de 16 anos).

A experiência prisional tende, portanto, a distanciar os homens da sua antecedente figura de pai distante, embora mantendo sempre intenções de prover economicamente. Na prisão os pais criam renovadas subjetividades sobre paternidade que ressignificam as experiências masculinas prévias de acordo com uma linguagem de proximidade e afetividade. No entanto, como mostra Bruno, o envolvimento entre pais e filhos/as em contexto prisional é limitado e inevitavelmente perturbado pelas restrições prisionais.

O meu filho tem 9 anos mas acho que precisa de muito carinho, eu não sei se faço bem ou se faço mal mas eu no fundo sinto-me bem a mimá-lo assim. Eu também só estou uma vez por semana com ele, e se não lhe vou dar carinhos e mimos uma vez por semana, não é? (Bruno, 38 anos, 1 filho, furto qualificado, pena de 4 anos e 6 meses).

Não obstante se encontrarem num contexto que define, monitoriza e controla todas as formas de contacto, os reclusos procuram, em particular durante as visitas prisionais, criar um espaço propício ao envolvimento com os/as filhos/as. Samuel, que foi detido antes do nascimento do segundo filho, mostra como tenta manter-se envolvido na vida das crianças, e sobretudo com o filho mais novo, com o qual teve de construir integralmente uma relação a partir da prisão.

Entrei detido a minha mulher estava grávida. Não vi o meu filho a nascer, é das coisas que mais me revolta. Eu estive com a minha filha até aos 2 anos e meio e ela sentiu o acompanhamento. Mas o meu filho nunca me teve com ele. (…) Na visita eu levo sempre desenhos porque desenho bem, faço sempre qualquer coisa para lhes levar para a visita, ensino ao meu filho as cores ou a contar os dedos, números, em inglês, em português. (Samuel, 24 anos, 2 filhos, tráfico e outras atividades ilícitas, 6 anos e 2 meses).

Junto das mulheres reclusas que mantinham um papel ativo na vida dos/as filhos/as não se tende a evidenciar uma redefinição e expansão das formas de viver e atribuir sentido e significado ao papel de mãe. Pelo contrário, as reclusas destacam a descontinuidade e desfragmentação que a esfera penal impôs à sua relação com os/as filhos/as, quer em termos de atividades de cuidado, quer em termos do tempo dedicado às crianças. Como relata Rita: «Eu sou muito mãe galinha. Quando entrei aqui entrei em pânico por causa deles porque eu estava muito, muito ligada a eles, eu andava sempre com os três em cima de mim. Não sentia os miúdos seguros com outra pessoa.» (Rita, 28 anos, 3 filhos, tráfico e outras atividades ilícitas, pena de 5 anos).

Na prisão o acesso aos/às filhos/as passa a ser dependente das possibilidades de acesso e posse de recursos económicos e da disponibilidade dos/as cuidadores/ as. Conforme evidenciado por Antónia, a manutenção de contacto pode implicar gastos consideráveis e longas e desgastantes viagens que tendem a constituir um entrave ao envolvimento, sobretudo para cuidadores/as com idades avançadas e para famílias com parcos recursos económicos.

Agora não tenho visitas. Não quero que eles venham cá porque é uma viagem muito grande. E os meus pais já não têm aquela idade. Antes tinha visitas uma vez por mês. Não tinha mais porque é uma viagem cara, é muito longe. A estrada é muito perigosa, os reflexos [dos meus pais] já não são os mesmos. (Antónia, 42 anos, 6 filhos, homicídio qualificado na forma tentada, pena de 25 anos).

Impedidas de dar continuidade nos mesmos moldes aos cuidados infantis que protagonizavam no exterior, à semelhança dos pais reclusos, as mulheres procuram construir formas de contornar as limitações em que incorrem. Uma vez que o exercício da parentalidade a partir da prisão é mediado por cuidadores/as externos/as a intervenção e envolvimento na vida das crianças é dependente de uma rede de apoio que promova e sustente o contacto. O testemunho de Cláudia é ilustrativo de como, através da negociação contínua entre as perceções de direitos e deveres das mães e dos/as cuidadores/as, as reclusas mobilizam estratégias para tentar preservar alguns papéis que mantinham antes da reclusão.

Eu estou presa mas não se faz nada à minha filha sem o meu consentimento. Infelizmente estou presa mas a primeira [a autorizar ou não] sou eu. A minha filha adora praia, mas ela só vai com o meu pai e o padrinho, não tem autorização minha para ir com [mais] ninguém (…) Estou sempre presente [para tomar decisões]. Olhe, ainda num dia destes escrevi para a segurança social para ajudar a mudá-la de escola. Sempre presente. Só estou ausente de corpo mesmo, mas tudo que eu possa fazer daqui para fora para ajudar a minha filha faço. Aliás eu andei na escola [a frequentar atividades de formação durante a reclusão] a receber 150? por mês, e o dinheiro caía na conta e ele ia para fora para a minha filha. Nem com 20? eu ficava. Não é que ela precise porque ela não precisa. Mas é assim eu como mãe é que tenho de ajudar. (Cláudia, 35 anos, 1 filha, tráfico e outras atividades ilícitas, 4 anos e 8 meses).

As dinâmicas que envolvem o desenho de formas alternativas de parentalidade na prisão são, portanto, diversas e condicionadas por uma miríade de fatores. Articulando e interseccionando preceitos normativos da paternidade e maternidade, práticas parentais permeadas pelo género, etnicidade, idade e ciclo de vida, número e idade dos/as filhos/as, acesso e posse de recursos económicos, relacionamentos e negociações quotidianas com os/as cuidadores/as das crianças, perceções dos pais e mães sobre direitos e deveres e ainda expectativas de envolvimento na educação e suporte financeiro dos/as filhos/as, as formas alternativas de parentalidade na prisão inscrevem-se em posições híbridas que desafiam a polaridade entre presença e ausência, envolvimento e afastamento, exoneração e assunção de responsabilidades.

 

Conclusão

As narrativas de pais e mães reclusas evidenciam como estes homens e mulheres habitam espaços que agregam processos cumulativos de segregação, marcados por pertenças categoriais que intersectam género, classe e etnicidade (Oliveira, 2010) e que, por sua vez, se traduzem de formas complexas e múltiplas nas formas de construir e vivenciar o papel de pai e mãe. As desvantagens sociais acumuladas que caracterizam a vida de populações de onde proveem estes reclusos e reclusas tornam a presença, envolvimento, cuidados e provisão económica no exercício da parentalidade como elementos fluídos e dinâmicos, mais dependentes das circunstâncias contextuais que pautam a vida dos pais e das mães do que dos seus desejos de «ser» pai e mãe.

Homens e mulheres desafiam os guiões convencionais da parentalidade expandindo as possibilidades de exercer a maternidade e paternidade para além do binómio presença/ausência. Por um lado as experiências de pais e mães que, antes de serem detidos/as, mantinham um papel periférico na vida dos/as filhos/as, evidenciam como a sua presença física em contexto livre, ou seja, o seu acesso aos/às filhos/as, não significa automaticamente um envolvimento de proximidade e intimidade com eles/elas. Por outro lado, homens e mulheres reclusas ilustram como a sua ausência do espaço doméstico devido à reclusão não constitui inequivocamente um sinónimo de ruturas e deteriorações relacionais. Contextos sociais restritivos e caracterizados pela ausência de pais e mães – como a reclusão – podem paradoxalmente constituir cenários favoráveis à vivência da parentalidade (Cunha e Granja, 2013; Machado e Granja, 2013).

Em meio prisional os pais reclusos, afastados das pressões que caracterizavam as suas vidas e limitavam o seu desempenho paterno, e/ou privados dos meios que lhes permitiam construir o seu papel de pai através dos cânones tradicionais da paternidade, (re)investem na relação com os/as filhos/as, passando a privilegiar o envolvimento emocional com as crianças, em detrimento da «presença distante» que protagonizavam no exterior. A movimentação ao longo do ciclo de vida entre diferentes cenários e diversas atribuições de sentido aos laços entre pai e filho/a é sustentada pela flexibilidade e elasticidade que caracteriza os horizontes plurais da paternidade, que tanto naturalizam um pai ausente, parcialmente comprometido, ou até excluído, da partilha das responsabilidades, como evocam uma figura paterna emocionalmente próxima dos/as filhos/as (Wall, Aboim e Cunha, 2010).

A transmutabilidade entre cenários de ausência, periferia e presença em que se inscreve a paternidade não está, contudo, inteiramente disponível às mulheres. As normas que regem a maternidade são mais uniformes, rígidas e restritas (Moore, 1988) e não se coadunam com a demissão, voluntária ou imposta, das responsabilidades maternas. Conforme evidenciado pelas mães reclusas que veem vetada a reconstrução relacional com os/as filhos/as, após as mulheres se inscreverem numa lógica desviante, caracterizada pela exoneração de responsabilidades, são rotuladas como «inaptas» por instâncias de controlo formal e informal e impedidas de (re)investir no envolvimento com as crianças. Movendo-se na rigidez da maternidade, as mulheres que antes da reclusão tinham um papel ativo nos cuidados infantis, procuram construir formas alternativas de parentalidade na prisão, prevenindo a diluição do seu papel.

Num contexto caracterizado pelas restrições e controlo penais, homens e mulheres reclusas autoconstroem-se como promotores/as de estratégias de negociação e adaptação à sua realidade prática e circunstancial, rejeitando a possibilidade do afastamento imposto pela condenação constituir uma base legítima para a segregação dos pais e mães da vida dos/as filhos/as.

 

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Artigo recebido em 31 de janeiro de 2013 e aceite para publicação em 20 de junho de 2013.

Notas

*1Doutoranda em Sociologia, Universidade do Minho, e membro do CICS. A sua tese explora a relação entre reclusos e familiares e os impactos sociofamiliares da reclusão. r.granja@ics.uminho.pt

Centro de Investigação em Ciências Sociais, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal.

*2Doutorada em Antropologia, docente da Universidade do Minho (ICS), membro do CRIA/UM (Portugal), e do IDEMEC/CNRS (França). micunha@ics.uminho.pt

*3Doutorada em Sociologia, docente no Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, e membro do CES, Universidade de Coimbra. hmachado@ics.uminho.pt

1Agradecemos o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ministério da Educação e Ciência), no âmbito da dissertação de doutoramento intitulada Representações sobre os impactos sociofamiliares da reclusão: visões femininas e masculinas, realizada por Rafaela Granja (ref. SFRH/ /BD/73214/2010). Agradecemos também aos homens e mulheres entrevistados, que tão generosamente partilharam as suas histórias, e a quem avaliou este artigo, pelos úteis comentários.

2Em Portugal, as crianças tanto podem permanecer com a mãe ou com o pai na prisão até aos 3 anos de idade, excecionalmente até aos 5, desde que com autorização do outro titular da responsabilidade parental, e se assim for considerado do interesse do menor e desde que existam as condições necessárias (Lei n.º 115/2009).

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