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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher
versão impressa ISSN 0874-6885
Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.35 Lisboa jun. 2016
(AUTO-)RETRATO
Isabel Gago - uma mulher resistente
M. Margarida Pereira-Müller*, Ana M. Lobo**
* Associação das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas, Anexo à Casa do Capelão / IO, Largo D. Dinis, 2675-332 Odivelas, Infobus, Comunicação & Serviços, Lda, Rua de Moçambique, 9, 2745-180 Queluz.
** Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Química, 2819-515 Caparica, AMONET – Associação Portuguesa das Mulheres Cientistas, Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, Campolide, 1099-085 Lisboa.
Quando a conhecemos ia já a caminho dos 95 anos. Franzina, de corpo magro, cara afiada, só os olhos vivos e brilhantes denotavam a vivacidade que lhe ia na alma. Quem era aquela mulher aparentemente frágil que só após muita insistência acedia a conversar sobre a sua vida?
Nascida em 1913, nos primeiros anos da República, Isabel Gago era filha de um jovem capitão do exército português, falecido em França na 1ª Grande Guerra. Aos 8 anos entrou como aluna interna para o Instituto de Odivelas. “Não, não se chamava assim. O meu Instituto na altura chamava-se Instituto Feminino de Educação e Trabalho”. Lá conheceu aquela que viria a ser a sua grande amiga, Vera Monteiro Torres, também ela órfã de um aviador, cujo avião havia sido abatido durante o mesmo conflito que lhe levara o pai. E como era a vida no Instituto? “Era dura. Não havia luxos. Lavávamo-nos com água fria mesmo no Inverno. Banhos quentes só havia duas vezes por semana. Mas fazíamos ginástica sueca, ao ar livre se possível, e todos os dias, na forma, antes do pequeno-almoço, fazíamos exercícios de respiração.” A adaptação inicial não foi fácil. Isabel ressentiu-se com o regime de internato. Quando vinha a casa chorava frequentemente e a avó, com pena dela, aconselhava a mãe a tirá-la do colégio. A mãe recusou sempre. A instituição era muito boa e a filha iria receber uma educação que a acompanharia pela vida fora. Com o passar do tempo e as amizades com as colegas veio a adaptação. “As minhas lágrimas foram secando, dando lugar à satisfação de estar num bom colégio.”
De facto é o ensino que Isabel Gago mais elogia. “A educação, os valores morais já os trazia de casa, ali só foram alicerçados. Mas o ensino era muito bom. Na sala de aula havia sempre uma balança, com os respectivos pesos e medidas de capacidade, feitos de alumínio. A pesar e a medir volumes, aprendia-se praticando.”
No final do 2ºano do liceu, dado não haver a certeza de poder finalizar o curso liceal no Instituto, saiu para frequentar em Lisboa o Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho. No registo existente de uma fotografia da época, nada a distingue das colegas, jovens lisboetas da classe média, para quem a educação secundária das raparigas começava a ser um dado adquirido.
A universidade veio a seguir, em 1933, e com ela não uma escolha ‘normal’ que a preparasse para ser ‘esposa e mãe’. Não, nada disso. Ao escolher o Instituto Superior Técnico, uma escola maioritariamente masculina, onde as mulheres se contavam pelos dedos, Isabel não deve ter medido o alcance e as repercussões que essa decisão teria sobre a sua vida. Matriculou-se no curso de Engenharia Química com outra colega que com ela acabou a licenciatura no mesmo ano de 1939. Foram as primeiras engenheiras químicas portuguesas licenciadas por essa escola.
Pode dizer-se que nunca mais deixou o Técnico. Foi a sua grande paixão. Alugou um 3º andar numa casa próxima sem elevador. Após o curso ali ficou como assistente tendo seguido a carreira docente universitária. Nunca se doutorou. Quando a reforma universitária e a mudança de nomes dos vários escalões da carreira académica chegaram, nunca pôde usar o título de professora. Era simplesmente 1ª assistente. Mas deu aulas teóricas e práticas de qualidade na área da electroquímica e manteve o nível do ensino experimental o melhor que pôde. Na década de sessenta do séc. XX fez parte da equipa de académicos que montaram os laboratórios na então criada Universidade de Lourenço Marques em Moçambique. Foi uma profissional de corpo inteiro até se aposentar em 1984, com 70 anos. “Depois, ainda continuei a lá ir, sem ganhar dinheiro, pois muito me ligava ao meu laboratório.” Falava pouco da sua vida profissional, algo lhe ficou a doer. A distância entre o sonho de realização pessoal e a realidade numa sociedade ainda tacanha, onde a custo a mulher profissional se ia afirmando, teve um preço de que não gostava de falar. Contudo o seu exemplo ficou e, seguindo as suas pisadas, centenas de mulheres portuguesas integraram ano após ano o curso de Engenharia Química do I.S.T., que é hoje um curso universitário onde as mulheres são alunas ‘normais’, fazem carreiras ‘normais’, e de onde saiu a primeira catedrática dessa escola, Sílvia Brito Costa, quatro anos antes de Isabel Gago se retirar. Morreu a 8 de Maio de 2012 aos 99 anos. O ‘seu’ Instituto foi extinto por decreto do então Ministro da Defesa Aguiar Branco três anos mais tarde em 2015, ‘para garantir a igualdade de género às alunas’, que foram transferidas para o Colégio Militar em Lisboa, um colégio só de rapazes, onde começaram a sua educação masculina.
Agradecimentos: À Associação das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas, ao Instituto de Odivelas e ao Instituto Superior Técnico pelos elementos biográficos sobre Isabel Gago.
* Este artigo foi escrito de acordo com a antiga ortografia.